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Gosto de Veneno
Marcelle Souza




Gosto de Veneno




   Campo Grande - MS,
         2009
Copyright by Marcelle Souza




        Projeto Experimental do Curso de
             Comunicação Social
                 Jornalismo 2009
    Universidade Federal de Mato Grosso do Sul

       Textos e Diagramação: Marcelle Souza
           Orientador: Marcelo Câncio
            Fotos e capa: Bruno Barros



6
“O repórter que não for capaz de
  se emocionar, de chorar e se alegrar
   junto com os personagens de quem
fala, jamais conseguirá transmitir ao
     leitor a realidade que encontrou”

                   Ricardo Kotscho




                                     7
Marcelle Souza




8
Gosto de Veneno



Apresentação




      O trabalho desenvolvido pela acadêmica de
jornalismo da Universidade Federal de Mato Grosso do
Sul, Marcelle Souza, neste livro-reportagem é digno de
elogios. Destaco inicialmente sua vontade de pesquisar e
escrever sobre um tema de extrema importância social,
mas que infelizmente não está no foco da mídia e, portan-
to, não faz parte da pauta diária dos veículos de comunica-
ção. A realidade e a dramaticidade dos depoimentos reve-
lados no texto expõem a triste realidade de um grupo de
brasileiros. Cidadãos que trabalham uma vida inteira para
morrer miseravelmente. E as causas dessas mortes são di-
versas: procedimentos desumanos impostos pela agricul-
tura brasileira, ganância das indústrias de inseticidas, ori-
entação equivocada oferecida aos agricultores e, finalmen-
te, a própria ignorância que ainda impera nas zonas ru-
rais do país. O agricultor é estimulado a plantar, mas o
                                                            9
Marcelle Souza

mercado exige produção e impõe preços. A necessidade
de aumentar continuamente a produtividade agrícola leva
o produtor rural às lojas agropecuárias. Elas, por sua vez,
vendem a eles os agrotóxicos que vão eliminar as pragas e
por consequência aumentar a produção da lavoura. Em
contrapartida, os agricultores passam a manusear produ-
tos altamente tóxicos que, no decorrer dos anos, lhes ti-
ram a vida precocemente. Aos serem encaminhados aos
hospitais são relegados à própria sorte. Muitos morrem
intoxicados, outros sofrem consequências a longo prazo e
as estatísticas ainda mostram um grande número de suicí-
dios.
         Esse é o quadro captado, observado e investigado
com persistência e indignação pela Marcelle. Este trabalho
tem muitos méritos, mas ressalto três que considero
fundamentais. O primeiro é o mérito da escolha da pauta.
É um tema que raramente é tratado pelo jornalismo. Além
disso, não é fácil se envolver com uma pauta que,
antecipadamente, já se sabe que o que se vai ouvir não é
poesia, nem é música para os ouvidos. Não se trata apenas
de estudar um tema que faz parte do cotidiano rural de
Mato Grosso do Sul. Os relatos dos agricultores
demonstram como em determinados momentos é
doloroso para o jornalista conviver com assuntos tão
dramáticos.
         O segundo mérito a ser realçado neste trabalho é
o da investigação jornalística. A autora manteve a
determinação de conhecer criteriosamente a bibliografia
científica sobre os riscos da utilização de agrotóxicos. Uma
bibliografia recheada de dados estatísticos e
comprobatórios. Depois a investigação se estende para as
pesquisas de campo realizadas na área urbana e rural da
cidade de Fátima do Sul, local onde foram registradas
muitas mortes de produtores rurais por envenenamento

10
Gosto de Veneno

e suicídios. Falecimentos que estão intrinsecamente relaci-
onados com a utilização de agrotóxicos. São muitos os ca-
sos a serem revelados e a Marcelle foi conhecer de perto o
cotidiano de homens e mulheres que cultivam lavouras
na área rural desse município sul-mato-grossense. Ouviu
suas histórias, entrevistou personagens, detalhou informa-
ções técnicas, investigou as causas de tantas mortes, fez
descobertas, deu voz a pessoas desconhecidas e trouxe à
tona um problema que é tratado com certo descaso pela
sociedade e pelas autoridades governamentais. O conteúdo
do livro mescla os sentimentos e as histórias dos agricultores
com impressionantes informações científicas. É a
comprovação do flagelo sofrido por muitos produtores que
seguem produzindo alimentos consumidos pela população
brasileira.
         O terceiro mérito é o da persistência. É preciso
insistir no trabalho quando se tem um tema tão árduo e
áspero como esse. Ir fundo ao tema mesmo quando surgem
muitas dificuldades é um grande mérito. É a insistência e
a indignação que move o jornalista a realizar um trabalho
diferenciado. É a persistência que estimula a concretização
de um produto jornalístico que se destaca pela relevância
social que possui. Um jornalismo que dá luz e vida a um
tema que estava escondido dos olhos da sociedade.
         O resultado final é uma obra jornalística que revela
com detalhes uma melancólica realidade brasileira. O livro
reportagem intitulado “Gosto de Veneno” caminha no
sentido positivo do bom jornalismo investigativo.

                                             Marcelo Cancio
              Professor Adjunto do Curso de Jornalismo da UFMS
                   Doutor em Ciências da Comunicação pela USP
                                        Orientador deste Projeto



                                                             11
Marcelle Souza




12
Gosto de Veneno



Sumário


1. A Primeira Vista......................................15

2. O Cheiro................................................27

3. O Silêncio..............................................39

4. O Gosto.................................................49

5. Um Novo Sorriso...................................63




                                                            13
Marcelle Souza




Adelina Oliveira
        14
Gosto de Veneno



1. A primeira vista


     “Eu digo: ‘Padre Damião, eu quero ir pra Mato Grosso’. Daí
 o padre falou, ‘Meu filho, você vá pra Mato Grosso, porque lá dá
   para o homem arrumar o pão, São Paulo já ta muito cansado”.
                                              Erasmo Lunardo




      No sítio de poucos hectares, ela nos recebe com passos
ligeiros, corpo curvado e um balde na mão. Estamos em
Culturama, distrito de Fátima do Sul, Mato Grosso do Sul,
e a simpatia daquela senhora, aparentemente frágil, nos
convida a entrar na casa simples de madeira. São 242
quilômetros de Campo Grande, e outros 20 quilômetros
da zona urbana do município.
      A cidade fica na região sul do estado, próxima a Dou-
rados, e tem pouco mais de 18 mil habitantes. Foi criada
em 1943 durante o Governo Getúlio Vargas com a inten-
ção de que ali se desenvolvesse uma colônia agrícola. A
vocação para o campo logo foi comprovada pelo plantio
de algodão, que rendeu lucros à população até o fim da
década de 1990.
      Na zona rural, ainda hoje predominam as pequenas
propriedades, entre três e dez hectares, e os imigrantes
nordestinos. O clima é ameno, as ruas são tranquilas e
                                                              15
Marcelle Souza

quase não se ouve barulho de carro por ali. Aliás, automó-
vel é coisa difícil, ou estão parados nas garagens ou circu-
lam vez ou outra, anunciando que alguém da cidade veio
fazer uma visita. Comum mesmo são as motos pelo cami-
nho e seus motoristas sem capacete, que cumprimentam a
todos que cruzam a estrada de terra.
      Naquela manhã chove um pouco, o que dificultou
nossa chegada ao local. Depois de uma longa viagem e das
rápidas boas-vindas, o banco de madeira parece um tanto
confortável para uma extensa conversa com aquela mulher
de 1,50m de altura e de muitas histórias para contar.
      Foi batizada Adelina Oliveira Mendes, nasceu em
Pernambuco e já soma mais de cinco décadas na casa
construída com muito esforço no pedaço de terra ganhado
durante a reforma agrária promovida pelo governo de
Getúlio Vargas. Enquanto mostra os retratos da família,
sua filha logo pega uma escova de cabelos para arrumar o
coque que se desfez enquanto a mãe dava comida aos
animais. Arruma as cadeiras, ajeita a luz e ainda ajuda
Adelina a se lembrar dos detalhes que lhe escapam da
memória.
      A família é de produtores rurais e imigrantes, que
saíram de Pernambuco para Fátima do Sul em busca de
melhores oportunidades. “Nós deixamos até terra por
vender lá em Pernambuco, até hoje ainda tá lá por vender,
e viemos”, conta ela, lembrando do fato que aconteceu há
mais de cinquenta anos.
      As histórias de sucesso no Mato Grosso atraíram não
só dona Adelina, assim como outras tantas famílias
cansadas da seca do Sertão. Casou-se e veio em busca de
vida nova, teve quatro filhos e até hoje mora na mesma
casa construída com muito esforço quando chegara à terra
prometida.
      Os filhos foram criados com o resultado de muito

16
Gosto de Veneno

trabalho: arroz, amendoim, milho e algodão são alguns
dos produtos que viraram fonte de sustento para toda a
família. “Aqui era uma riqueza do mundo, minha filha, só
que acabava com as mulheres. As mulheres trabalhavam
tanto que morriam. Morreu a finada Catarina, morreu a
finada Antônia, morreu tudo as mulheres. Todo mundo
tinha que trabalhar, se não quisesse dever até o cabelo da
cabeça”, lembra a senhora.
      Assim como difundiam os primeiros imigrantes, o
solo era mesmo bom para plantar, só que exigia dedicação
de todos de sol a sol, já que era preciso pagar despesas
domésticas e os insumos para a lavoura. Era sofrido, mas
fome ninguém passava, afinal arroz, feijão e as verduras
eram plantadas no terreno mesmo, logo ao lado do
algodão. Galinhas e porcos também ajudavam a diversificar
o almoço, que era servido aos trabalhadores no meio da
lavoura.
       “O algodão enricou os povos que forneciam [semen-
tes e insumos]. Eles ficaram podre de rico e nós, nem uma
casa não tinha. Era só um rancho. Aí veio esse tal de soja
que tá acabando com os homens. Porque tá muito rica a
preparação, a plantação, a semente, o adubo e o veneno
tão pior, tá mais caro do que tudo”, exclama Adelina sobre
a desigualdade entre os que trabalhavam e os que
enriqueciam com o cultivo da terra.
      Fala da terra, do plantio do algodão e do cheiro do
veneno. “Aquilo pegava nas folhas e cheirava tão forte
que criança não podia chegar perto. Dava coceira, mancha
e amarelado na pele”. A história soa natural, como se o
odor do agrotóxico fosse algo indispensável na vida dos
que chegaram à nova terra. Saiu então da lavoura, ganhou
os espaços da casa e, aos poucos, também a vida das pessoas.
“Antigamente ele vinha em um pote de alumínio, daí
quando acabava a mãe esvaziava o pote e fazia de caneca

                                                          17
Marcelle Souza

pra gente beber água”, lembra a filha de Adelina, Maria
Nilza Mendes Rodrigues.
      E assim o desconhecimento facilitava a intoxicação
dos agricultores, que usavam as embalagens de veneno para
guardar comida, água, armazenar alimentos para os
animais ou auxiliar nas tarefas domésticas. Uma exposição
diária que levou o marido da agricultora a ter que
abandonar a lida na terra em nome da saúde. Vômito,
diarréia, dor de cabeça e, por fim, uma sensibilização que
fez com que o médico o proibisse de chegar perto dos
agrotóxicos por um ano.
      De tão acostumada à vida dura do campo, hoje
Adelina não consegue nem aproveitar o descanso digno
da velhice. “Ela ficou assim porque choveu nesses últimos
dias e ela não pode trabalhar”, explica a filha, enquanto a
senhora responde com os olhos, garantindo que o
esclarecimento é verdadeiro. Durante a visita, seus olhos
pareciam mais baixos que o normal, uma tristeza antiga
de quem reduziu o significado de felicidade ao local onde
mora.
      Na verdade, a vida perdeu um pouco o sentido para
ela desde que o marido faleceu, há cerca de um ano. Nas
fotografias, Adelina mostra um senhor moreno e sério
que veste uma roupa clara e bem passada durante a reunião
de família. Os olhos levemente enchem de lágrimas,
enquanto a filha tenta acolhê-la nos braços. Ninguém pode
medir quantas lembranças surgem naquele momento, só
é possível perceber que a vida não é a mesma sem o
companheiro de tantos anos.
      Desde que ele morreu, ela tem alimentado com mais
dedicação um dos seus maiores prazeres: trocar cartas com
os irmãos que moram em Pernambuco. Toda semana
recebe as novidades de alguma parte da família pelo
correio. Nos bilhetes carinhosos, parte da família relata as

18
Gosto de Veneno

dificuldades da lavoura, as conquistas dos filhos e, princi-
palmente, a saudade que não cessa.
      Textos bem escritos, letras caprichadas e muito
emoção em cada uma das letras. Nos envelopes de cartas e
fotos estão guardadas as recordações que contam parte da
história de Adelina e sua família. Orgulhosa, ela devolve
para a filha cada lembrança que a faz não esquecer do
passado nem desistir de continuar vivendo.

     Marcha para o Oeste
     A região do município de Fátima do Sul começou a
ser ocupada no final da década de 40 por imigrantes que
vinham do Nordeste do país. A mudança era resultado da
política expansionista do governo Getúlio Vargas, que
incentivou o f luxo migratório para regiões pouco
exploradas, como Amazônia, Goiás e sul de Mato Grosso.
A “Marcha para o Oeste” foi marcada pela criação, em
1938, da Divisão da Terra e Colonização, que além da
doação de lotes, ficava encarregada de fornecer
implementos agrícolas e materiais de construção aos
imigrantes.
     “Essa fase da história do Brasil marca definitivamente
o desenvolvimento das relações capitalistas no país, o que
se dá de forma mais intensa após a Segunda Guerra
Mundial, momento em que o capital externo vai incentivar
o crescimento da indústria brasileira e tentar dominá-la”,
explica o professor das Faculdades Integradas de Fátima
do Sul (Fafisul), Nilton Paulo Ponciano. Desse modo, ele
afirma que a colonização era vista como um acréscimo do
mercado interno para a indústria.
     Mas existiam regras para receber os lotes destinados
à reforma agrária: o produtor deveria ser brasileiro, ter
mais de 18 anos, não possuir propriedade rural em seu
nome e ser reconhecidamente pobre. Também estava

                                                          19
Marcelle Souza

proibida a concessão de terras a funcionários públicos de
qualquer uma das esferas de governo. Durante o primeiro
ano, o colono ainda recebia assistência médica e
farmacêutica.
      Em 1943, o Decreto-Lei 5.941 oficializava a criação
da Colônia Agrícola Nacional de Dourados, no então
território federal de Ponta Porã. A medida visava a ocupar
e, como consequência, aumentar a fiscalização na fronteira
com o Paraguai, além de fechar o cerco à Companhia Matte
Laranjeira, que favorecia a presença constante de
estrangeiros e conflitos armados na região. Desse modo, a
área, que segundo o decreto não poderia ter menos de
300 mil hectares, reforçaria a campanha também no
campo ideológico, onde a ocupação territorial era símbolo
de brasilidade para o governo Vargas.
      Porém, a demarcação da Colônia de Dourados só
aconteceu em 1948, durante o mandato do presidente
Eurico Gaspar Dutra. Eram 409 mil hectares que
abrigariam cerca de 10 mil famílias de imigrantes atraídos
pela qualidade do solo e as propagandas do governo. Nesse
espaço, duas cidades foram projetadas: Vila Brasil,
atualmente Fátima do Sul, e Vila Glória, onde hoje se
localiza o município de Glória de Dourados. Na Colônia
ainda foram fundadas Deodápolis, Douradina e Jateí.
      Nas décadas de 1960 e 1970 a região presencia um
crescimento significativo, impulsionado pela instalação de
fábricas e a construção de estradas que facilitaram o acesso
da zona rural às cidades próximas. “Isso aqui era tudo cheio
de gente”, lembra Adelina, sobre as famílias que cresciam
os lotes vizinhos.
      As festas, todos os finais de semana, eram embaladas
pelo forró e outras músicas nordestinas que ajudavam os
colonos a matar a saudade da terra natal. Nesses bailes e
casais se conheciam e casamentos acabavam. O resultado

20
Gosto de Veneno

eram fofocas e alegrias para o resto da semana, um sopro
de felicidade aos que passavam a semana inteira na lida
com a terra. Por um momento, os imigrantes esqueciam-
se do cheiro do agrotóxico que pairava pelo ar.
     Eram tempos bons, lembram os mais velhos, que
lamentam ver nos terrenos vizinhos o mato tomar conta.
Dona Adelina foi uma das que presenciou primeiro os
filhos e, em seguida, os amigos se despedirem do campo e
irem para cidade. Onde antes era espaço de muito trabalho
e um tanto de alegria, agora virou reduto de homens que
lutam contra a falta de dinheiro para plantar e que sonham
com os tempos áureos do algodão.
     Mulheres e jovens tornaram-se espécies raras entre
os moradores da zona rural de Fátima do Sul. Elas buscam
oportunidades de emprego melhores ou casamentos mais
prósperos, enquanto os mais novos partem do sítio para
estudar e conquistar a tão sonhada “vida melhor”. Talvez
o mesmo sonho dos avós que saíram do Nordeste
procurando terra boa para plantar e felicidade para toda a
família.

      Alegre sabedoria
      No meio da tarde, as visitas chegam e ele ainda está
dormindo. A nora nos recebe e alguns minutos depois o
senhor já esta de pé. Chega de moletom escuro, um gorro
na cabeça e o ar meio de atrapalhado de quem acabou de
acordar. Mesmo assim, Erasmo Lunardo da Silva pergunta
quem somos, estende a mão para cumprimentar um a um
e abre o sorriso acolhedor.
      A casa de madeira é escura e parece muito confortável
para um cochilo depois do almoço. Auxiliado pela nora,
Erasmo senta em uma das cadeiras da cozinha e dispara a
falar já nas primeiras perguntas. Um verdadeiro gozador,
conta causos e brinca com a platéia como quem aprendeu

                                                         21
Marcelle Souza

a se divertir melhor com o passar dos anos.
      Filho único, o produtor nasceu em junho, mês de
São João, em Pernambuco, de onde sente falta das moças
bonitas e do verdadeiro forró. “Sou o filho preferido da
minha mãe”, brinca.
      Em busca de uma vida melhor, deixou a terra natal
para trás e partiu para São Paulo. “Lá toquei umas cinquenta
roça, anotei tudo, tenho até o papelzinho”. Mas, como
veio parar em Fátima do Sul? A nora responde por ele,
dizendo que “foi coisa do governo”, mas os detalhes da
história surgem em seguida com a explicação do produtor
rural. “Um dia fui no Padre Damião. E eu digo: ‘Padre
Damião, eu quero ir pra Mato Grosso’. Daí o padre falou,
‘Meu filho, você vá pra Mato Grosso, porque lá dá para o
homem arrumar o pão, São Paulo já tá muito cansado”.
      Foi o suficiente para decidir mudar de novo e levar a
família para onde muitos dos seus conterrâneos já tinham
ido. “Aí eu digo, ‘olhe, mulher, eu vou é pra Mato Grosso.
O padre deu esse conselho é porque não é ruim não, é
bom’”. Quando chegou à região onde hoje é o município
de Fátima do Sul, o agricultor encontrou muita gente
plantando algodão, que ele tratou de cultivar em sua terra
também.
      “Comprei muito algodão naquela época, mas
embocou um presidente, que quando eu cuidei de mim,
tomou o dinheiro todinho. Toquei muita roça naquela
casa lá em baixo, um terreirão. Acabou o dinheiro, acabou
a poupança. Agora tem aposentadoria, um negócio até
bom que inventaram pra veio. Trabalhei tanto que não
tenho nem cabelo branco, porque o cabelo já caiu tudo”,
conta fazendo piada de si mesmo e fazendo os ouvintes
sorrirem também.
      Ficar velho na zona rural parece ter um significado
bem diferente dos anos a mais na cidade grande. É que o

22
Gosto de Veneno

trabalho sob o sol e os anos de exposição aos agrotóxicos
deixam as rugas e os calos ainda mais aparentes. “Passei
tanto veneno, que nem sei da conta. Tinha um chamado
Tatuzinha que, Ave Maria, era de morrer conversando e
rindo”, relata Erasmo.
       Ele mesmo ficou tão sensível que não consegue mais
chegar perto das máquinas de aplicação de agrotóxico. O
agricultor e seus vizinhos lembram-se das nuvens de fedor
nos períodos em que todos passavam os produtos em pó
nas lavouras.
       Tem o sotaque carregado e, no rosto, traz as marcas
dos anos de trabalho duro no campo. Entre uma pergunta
e outra, ele ajeita o gorro na cabeça em um gesto lento,
preguiçoso. Às vezes não escuta e mesmo assim ri, ação
espontânea de quem aprendeu a fazer piada com as
passagens da própria vida.
       Talvez o grande problema da velhice para Erasmo
sejam os lapsos de falta de memória, que, apesar dos sustos,
rendem-lhe boas histórias para contar. “Esses dias sai daqui
e fui espiar a roça. Meu amigo, quanto acordei de mim,
tava perdido. Ah, menino, eu andei numa roça de milho
ali e ia quebrando no peito o milharal deste tamanho aqui.
Ah, negócio danado, quanto mais caminhava, mais perdia.
‘Eita que agora o Erasmo veio vai embora’, pensei. Soquei
a perna num buraco de estaca, que a perna veio aqui. Ai
eu disse, ‘como que eu tiro a perna daqui?’ Eu deitado
assim, espiando pra perna. E disse, ‘Deus tem dó do veio’.
Aqui, quando foi um pouco, a perna veio. Deus é bom
demais. Mas, menino, eu sofri. Ave Maria!”, e mais uma
vez a platéia aproveita para dar boas gargalhadas.
       A alegria vai embora quando comenta da esposa
falecida há mais de um ano. “A mulher veia Deus já levou”,
diz Erasmo, enquanto perde o olhar entre as plantações
do terreno vizinho. São alguns minutos de lembrança e a

                                                          23
Marcelle Souza

saudade dos 54 anos de casamento toma conta do senhor
sentado na cadeira. “Olha, minha filha, ela era um mulher
muito boa pra mim e às vezes vejo ela andando assim pelo
terreiro”. A união deu fruto a 12 doze filhos (“rapaziada
bonita”, segundo ele) que o visitam com freqüência no
sítio.
       A vida, agora sim, é tranqüila. Os vizinhos são sempre
conhecidos e o silêncio das tardes de sol só é interrompido
pelo cantar de alguns pássaros. Enquanto na cidade o
tempo parece passar rápido demais, no campo os dias são
longos, deixando as lembranças maiores ainda. E para
quem abandonou a terra querida para se aventurar em
um desconhecido Mato Grosso, restam agora as imagens
e o carinho pelo que ficou por lá. “Não voltei pro
Pernambuco, mas ainda tenho vontade de ir. Eu fico assim
pensando, lá é coisa boa. Lá eu levava tudo, vendia na
feira, não apertava com nada não. Aqui é difícil muita
coisa”, compara a sabedoria sob a forma de um homem
de 85 anos.


     Adelina e Erasmo, dois amigos que representam o
grupo de imigrantes que deixou a Região Nordeste,
acostumou-se ao fedor do veneno, às intoxicações
consequentes dele e viu morrer muitos jovens com os goles
do que era matar apenas as pragas da lavoura. Criaram os
filhos no campo, beberam nas embalagens de agrotóxico
que viraram copos da cozinha e vivem hoje em uma tristeza
silenciosa, causada pela falta dos companheiros que se
foram e dos amigos que preferiram morar na cidade.
     Testemunhas de uma época áurea, em que lavouras
de algodão ocupavam todas as propriedades da região.
Época dos vizinhos festeiros e de algumas notícias tristes,
quando alguém era invadido pela tristeza e preferia morrer

24
Gosto de Veneno

a lutar pela vida.




                                 25
Marcelle Souza




Manuel Firmino
       26
Gosto de Veneno



2. O Cheiro


        “A medida mais segura para evitar o veneno é não usá-lo”
                                           Sebastião Pinheiro




     Um pequeno espaço de terra, uma casa de madeira e
o Seu Manuel. A conversa acontece em um banco no
quintal, e as primeiras perguntas deixam o agricultor de
73 anos um pouco desconfiado. Ele observa bem,
questiona, mas logo sorri e deixa os receios de lado.
     Manuel Firmino Roberto nasceu em Alagoas, mas
saiu da terra natal aos 22 anos. O primeiro destino foi o
interior de São Paulo, de onde partiu pouco tempo depois
em busca do sonho de sucesso no desconhecido estado de
Mato Grosso. De Alagoas, ele ainda carrega o sotaque
nordestino, a fala apressada, as palavras que se atropelam
e um bom humor irresistível. Para ele que faz de “filho da
puta” nome, os palavrões saem sem nenhum temor.
     A conversa frouxa e as opiniões sobre a atuação do
presidente Lula misturam-se a uma história de vida difícil.
A pele queimada de sol e os traços aparentes da idade
mostram que o trabalho na lavoura fez os anos parecerem

                                                             27
Marcelle Souza

mais duros para Manuel Firmino. Sua esposa morreu há
muitos anos.
      O motivo ele não sabe ao certo, e mesmo assim tenta
explicar o que poderia ter levado a companheira embora.
“Um dia ela tava com dor de cabeça e tomou Aguardente
Alemanha pra curar. Tomou um café e foi prender umas
roupas no varal. Ficou sem fala, levei pro doutor, mas não
teve jeito. Parece que foi derrame”, narra o produtor rural,
que explica, em seguida, que a Aguardente Alemanha era
uma raizada usada para curar vários males.
      De lá para cá a vida foi perdendo um pouco da graça
para Seu Mané, como é conhecido por todos na região.
Os botões abertos da camisa revelam sua magreza,
enquanto os olhos baixos indicam um pouco de
infelicidade. Em um dia, sem muitas brincadeiras, Manuel
conta o motivo do seu mais profundo desgosto. Com a
mesma fala apressada, ele lamenta o desrespeito e os maus
tratos que sofre do filho de 35 anos, Abrão Firmino
Roberto. “Nessa idade, minha filha, tendo que aguentar
o filho maltratando a gente”.
      Os dois são hoje o que restou da família, moram em
uma casa simples com apenas um quarto, uma sala
pequena, cozinha e banheiro. As paredes de madeira não
escondem a desordem e o vício de dois homens solitários:
são nove horas da manhã e a garrafa de pinga sobre a
mesa já está pela metade.
      A sala da casa traduz um pouco do que foi e ainda é a
vida de Manuel. Nas paredes estão pendurados retratos
da família, quadros antigos, daqueles que ainda eram
pintados a mão. O sofá é velho e fica bem em frente à
televisão, ferramenta importante de conhecimento para
quem, assim como ele, lê pouco e tem a TV como a
principal fonte de informação.
      Ao lado do aparelho e também atrás da porta, estão

28
Gosto de Veneno

os sacos de sementes e as embalagens de agrotóxico. Como
cada linha daquele rosto e cada tábua da casa de madeira,
venenos da classificação “extremamente tóxicos” estão
presentes até nos momentos de lazer da família.
      Desde quando Manuel usa agrotóxicos? Pergunta
difícil para um homem que viu os anos passarem com uma
máquina de aplicação manual nas costas. Em seu lote de
terra já foram cultivados produtos como fumo, arroz e
algodão. Na última década, assim como os demais
produtores da região, Manuel decidiu investir na soja e no
milho. Mas o pouco dinheiro e as secas sucessivas diminuem
a cada safra os ganhos do produtor.
      Mesmo sem conseguir largar o trabalho na terra, Seu
Mané parece cansado. Nota-se pelo rosto, o corpo franzino
e as queixas frequentes. “Tem dia que tô lascado de dor,
minha filha”, conta ele sobre a artrite que, às vezes, o
impede de trabalhar.

      Perfume Inconfundível
      “Barrage”, “”, “Azodrin”, “Tamaron”, “2,4D” e “3,10”
são velhos conhecidos de agricultores como Seu Mané. Para
alguns, essas palavras estranhas podem até soar como
estrangeiras, mas na verdade são alguns dos agrotóxicos
mais usados em Fátima do Sul para combater as pragas do
algodão, do milho e da soja.
      A maioria pertence à família dos organofosforados e
mudaram a idéia do que é saúde para aquela população.
Manuel e o filho Abrão chegam a enumerar os sintomas
que se tornaram cotidianos: dor de cabeça, náusea, coceira
e até o “perfume” inconfundível. “Quando a gente aplica
o veneno, pode até tomar banho depois, mas a roupa e o
suor fede Tamarão (sic). Não sai do corpo, né, Zé?”,
comenta Manuel para o agente de saúde que nos
acompanha.

                                                        29
Marcelle Souza

      Há ainda muitas histórias de intoxicação aguda, em
que os sintomas surgem rapidamente após uma exposição
ao agrotóxico. “Uma vez tava passando Tamarão e o tempo
tava quente. Tive dor no estômago, vômito. Fiquei ruim
umas duas semanas”, conta Abrão, que ainda acrescenta,
“Tamarão mata hein, não precisa nem beber”.
      Com a mesma naturalidade, Manuel, que está
sentado no sofá velho da sala, vai acrescentando à conversa
outros relatos tão comuns e graves quanto os do filho, que
permanece em pé ao seu lado. “Naquela época a gente
usava muito veneno em pó, colocava a máquina nas costas
e passava na lavoura. Dava uma coceira danada. Outra
vez passei Folidol, intoxiquei e fui pro hospital”.
      Fatos nada isolados, que fazem parte das histórias da
vida de praticamente todos os produtores rurais da região,
já acostumados ao cheiro e às consequências da exposição
aos agrotóxicos. “Uns 10 anos atrás eu passei quatro dias
fedendo porque tomei um banho de veneno. A máquina
caiu em cima de mim e fiquei mais de um mês vomitando.
Não fui pro médico, só tomei uma água com açúcar
mesmo”, relata João Lima de Jesus, vizinho de Seu Manuel.
Ele ainda lembra que as aplicações de veneno em pó
durante o plantio do algodão eram as piores. “Aquilo
queimava as costas. E quando tava na época de aplicar, a
gente ia dormir inalando aquele pó”.
      Em cada casa visitada, os relatos parecem os mesmos.
Sintomas, cheiros, dores e o mal-estar característico das
intoxicações agudas. Mas o que parece tão estranho aos
ouvidos vindos da Capital, já se tornou parte inerente à
lida no campo. Para eles, que acham graça do espanto dos
forasteiros, veneno é parte da vida e intoxicação torna-se
mera consequência desse viver.
      Existem, porém, outras histórias menos comuns e tão
sérias quanto às anteriores. “Uma vez colocaram Tamarão

30
Gosto de Veneno

(sic) no nosso feijão. Eu comi, o Abrão também. Deu uma
disenteria braba e ele ficou até internado”, relata Manuel,
sobre uma possível tentativa de assassinato. Segundo ele,
algum inimigo da família teria colocado agrotóxico dentro
da panela de feijão, o que, felizmente, só resultou em uma
visita ao hospital.
      Há os que conhecem os perigos e até sugerem medidas
para o fim das narrativas de intoxicação no campo. “Acho
que o 2,4D devia ser proibido, porque acaba com tudo
num raio de 1 quilômetro, galinha cai dura”, relata o
vizinho de Manuel, Benedito Francisco da Silva. Curioso
é mesmo Benedito não dar a menor importância aos
sintomas que se tornaram parte do seu dia a dia. Em seus
30 anos de trabalho na lavoura, dor de cabeça,
“piniqueira”, enjôo, formigamento já são mais do que
comuns.
      Apesar de conhecer as consequências do uso de
agrotóxico por tanto tempo, Manuel e o filho Abrão, e os
vizinhos Benedito e João Lima dispensam os equipamentos
de proteção individual (EPIs) na hora de passar o veneno
na lavoura. As desculpas são sempre as mesmas: eles
esquentam, atrapalham e são pouco confortáveis.
Argumentos que, segundo o professor do departamento
de Química da UFMS, Dario Xavier Pires, na maioria dos
casos são válidos. “A gente tem que pensar que é muito
difícil você vestir o EPI e entrar em uma lavoura de milho
às duas horas da tarde. O milho é alto, fecha, não circula
ar, ninguém aguenta”, explica o pesquisador.
      Para ele, porém, esse não é o único motivo dos
equipamentos serem descartados pelos trabalhadores
rurais. Dario indica que culturalmente o brasileiro não dá
importância ao trabalho com segurança, diferente dos
produtores dos países desenvolvidos, onde a proteção é
tão importante quanto a própria lavoura. Esse descaso pode

                                                         31
Marcelle Souza

ser comparado pelos relatos dos próprios agricultores em
Fátima do Sul, que afirmam que a primeira e única
informação observada no rótulo desses produtos são as
concentrações utilizadas na aplicação.
     Pesquisador e duro crítico da indústria de defensivos
agrícolas, o engenheiro agrícola Sebastião Pinheiro
também defende o argumento dos produtores, destacando
que na maioria das vezes a utilização dos EPIs torna-se
inviável no campo. “Coloque todo o equipamento de
proteção individual e depois fique andando à sombra
debaixo de umas mangueiras em Mato Grosso do Sul em
qualquer uma das estações. Sua morte ocorrerá em cinco
ou seis horas por desidratação”, desafia o ambientalista.
     Pinheiro vai além afirmando que tais ferramentas
de trabalho se tornaram recursos das empresas para
transferir a responsabilidade pelas intoxicações. “Indústria
necessita de álibis, pretextos para pôr a culpa nas vítimas.
A medida mais segura para evitar o veneno é não usá-lo”,
garante Pinheiro.
     “Aqui no Brasil os estudantes de agronomia
aprendem que os culpados pelas intoxicações são os
agricultores por não usarem proteção individual. Há casos
de funcionários de floriculturas na Flórida que morreram
intoxicados pelo veneno nas rosas importadas da
Colômbia. Será que não se deveria obrigar as pessoas que
trabalham nas floriculturas a usar equipamento de
proteção?”, chama atenção o pesquisador, que é membro
do Grupo Interdisciplinar de Pesquisa e Ação em
Agricultura e Saúde (GIPAAS) e ambientalista da
Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural
(AGAPAN).
     Nem obrigar os produtores a usarem equipamentos,
nem colocar toda a culpa na indústria dos agrotóxicos, de
acordo com Sebastião Pinheiro a melhor saída seria adotar

32
Gosto de Veneno

a Diretiva Comunitária da União Européia 414/91, que
obriga o agricultor que quiser usar venenos a fazer um
curso de 400 horas e passar por uma habilitação. “Minha
proposta é radical. O curso deveria ser pago 33% pelas
indústrias, 33% pelos ambientalistas contra os venenos e
33% pelo governo”.

      Só uma talagada de cachaça
      Assim como tantos produtores, Seu Manuel Firmino
sabe ler, mas dispensa as instruções contidas nos rótulos
dos produtos. Destes, a única parte realmente importante
são as concentrações recomendadas para a aplicação do
veneno em cada tipo de lavoura. Enquanto isso, ficam de
fora informações sobre grau de toxidade e equipamentos
de proteção individual que devem ser usados para cada
agrotóxico.
      “Isso de dizer que agricultor não conhece rótulo não
é bem verdade, eles sabem o que é rótulo, as informações.
Talvez não saibam as minúcias, mas eles sabem qual
produto é o mais e qual é o menos tóxico. Eles têm
conhecimento do risco, mas eu acho que pelo fato de a
vida inteira trabalharem com aquilo, a noção de perigo
vai sendo amainada”, explica o pesquisador da UFMS,
Dario Xavier Pires.
      Segundo ele, a falta de atenção ao ler os cuidados
contidos no rótulo mostra uma tendência do agricultor a
minimizar o risco do contato com um produto já conhecido
por ele. “A noção de risco, por causa da rotina de uso, fica
de algum modo esmorecida. Eles têm a noção de que é
perigoso, mas é tanto tempo trabalhando com aquilo que
acabam perdendo os cuidados”.
      Por causa do tempo prolongado de exposição, alguns
produtores chegam a relatar que foram proibidos de
chegar perto dos agrotóxicos, tamanha sensibilidade que

                                                          33
Marcelle Souza

atingiram. O organismo fica extremamente potencializado
pra isso. “Alguns agricultores se mostraram extremamente
preocupados com um tipo de inseticida que o princípio
ativo é o piretróide, porque ele provoca alergia, apesar de
não ser tão tóxico. Então, quando ele entra em contato
com o piretróide, os dedos ficam inflamados e a mão fica
vermelha. Mas eles não se preocupam com os que não
provocam alergia e são extremamente tóxicos”, explica o
professor do Departamento de Química da Universidade
Federal de Mato Grosso do Sul.
      Prova da falta de cuidado de muitos produtores
acostumados com o trabalho na lavoura, o vendedor de
uma loja de produtos agropecuários, Pedro Vieira Santos,
diz: “Antes ninguém usava equipamento, só um pano no
nariz quando o veneno era muito fedido. ‘Se o agrotóxico
não é fedido, não mata’, é assim que os produtores pensam.
Só que os mais perigosos são exatamente os que não têm
cheiro”, relata o vendedor.
      São maneiras de enganar o pouco de medo que ainda
possuem de algo que, apesar da gravidade, já se tornou
habitual ao trabalho desses produtores. Outro sinal de que
eles tendem a minimizar os riscos são os remédios caseiros
que afirmam usar antes da aplicação. Entre as “curas
milagrosas” está o leite. “Passei mal e depois tomei um copo
de leite”, conta a maioria dos agricultores, já que o produto
é visto como forte aliado para “proteger” o corpo contra a
alta exposição aos agrotóxicos.
      Durante a realização de suas pesquisas, Dario Xavier
descobriu que além dessa bebida, a cachaça também é um
forte aliado dos produtores na hora de aplicar o veneno.
“É da cultura machista isso de enfrentar o perigo, então,
principalmente os mais novos, tomam uma talagada de
cachaça e vão passar o veneno na lavoura. Dessa forma,
para muitos, a cachaça, de algum modo, previne, mas a

34
Gosto de Veneno

gente sabe que é o oposto”.
     Para a psiquiatra Jussinalva Aguiar a bebida é uma
pseudofortaleza que faz com que a pessoa se sinta
aparentemente mais forte. “O ser humano é onipotente.
Acha que vai acontecer com o outro, mas nunca com ele”,
completa a médica.
     Ao contrário do que pensam os moradores da zona
rural de Fátima do Sul, a bebida alcoólica deixa o corpo
mais propenso à desidratação. Portanto, ao invés de buscar
as curas mágicas, medidas mais eficazes poderiam ser
adotadas: não aplicar agrotóxico com o sol muito forte,
porque a insolação favorece a penetração do veneno na
pele , ter uma dieta rica em proteína e não fumar ou co-
mer durante aplicação.

      Na porta da cozinha
      Enquanto os homens sentem na pele as consequências
das intoxicações, em casa as esposas também conhecem o
tamanho do perigo. “O 3,10 era o mais pior, era o gambá,
fedido demais. A roupa dos homens tinha deixar lá fora e
lavar com sabão de soda muito forte pra não envenenar o
corpo deles depois. Aquilo pregava nas folhas da lavoura e
só saía com chuva. Um cheiro forte que criança não podia
ir lá. Eu ia levar comida na roça e não levava criança,
porque pregava no couro, dava coceira, ficava umas
manchas meio amareladinha no couro”, descreve Dona
Adelina, que nunca trabalhou na roça com os filhos e o
marido, e no quintal era capaz de sentir o fedor do
agrotóxico.
      Em casa, mulheres como ela são as primeiras a acolher
os familiares intoxicados e são elas que chamam o socorro
nessas horas. “Meu marido intoxicou duas vezes. A primeira
vez ele ficou inchado e a outra vez ficou sem poder
caminhar. Quem curou ele foi a Dona Marina Japonesa.

                                                         35
Marcelle Souza

Ela é viva ainda, agora parece que o marido dela, Seu Jor-
ge, morreu. Meu marido não podia andar não. Atiraram
ele num carrinho de pneu de um homem ali, chamado
Zé Pereira, e pagaram R$ 3 pra levar, não me lembro, mas
acho que foi pra Dourados”. E emenda: “não ficou no
hospital, só deram remédio.Teve vômito, diarréia e dor
de cabeça. Ele vomitou até sangue. Ficou ruim um mês.
Foi quando ele ficou um ano sem pegar em veneno. Era o
de passar na maçã, o Bicudo, nunca tinha ouvido falar,
mas quem falou foi um homem chamado Daniel” detalha
a senhora viúva de 81 anos.
      Mas mães, esposas, filhas e nora de produtores rurais,
não percebem o perigo do veneno apenas de casa, embora
não figurem entre as estatísticas de intoxicação aguda,
caracterizada por reações rápidas diante de exposições ao
veneno, o ambiente as expõe aos resíduos e, assim como
os homens, as mulheres sentem as consequências das
intoxicações crônicas, cujos sintomas aparecem anos depois
e podem se manifestar em várias doenças.
      Da cadeira do laboratório de informática do
Departamento de Química da Universidade Federal, o
professor Doutor Dario Xavier Pires, que estudou o
fenômeno em Fátima do Sul durante mais de 10 anos,
explica a relação das mulheres com os agrotóxicos. “Se você
for lá em Fátima do Sul, você vê: a casa de moradia é
rodeada, às vezes, de soja, milho. A agricultura chega,
basicamente, quase na porta da cozinha. Então, se você
está aplicando o veneno, mesmo que a pessoa não esteja
aplicando diretamente, ela está exposta. Outra coisa, são
elas que fazem a lavagem das roupas dos homens, então
elas também estão expostas apesar de não diretamente”.
      O ambientalista Sebastião Pinheiro tem ainda outra
explicação para os casos de intoxicação crônica em
mulheres. Segundo ele, elas são mais sensíveis à ação

36
Gosto de Veneno

cumulativa dos venenos porque as doses são letais em quan-
tidades menores do que as expostas aos homens. “Um ve-
neno para a mulher é muitíssimas vezes mais perigoso.
Elas passam aos filhos a herança citoplasmática e o
primeiro alimento, muitas substâncias tóxicas ficam retidas
nas gorduras e passam para o bebê. Os organofosforados
causam disrupção endócrina, ou seja, alteram a
concentração de hormônios para mais ou para menos
alterando todo o metabolismo da pessoa”. A relação é
perigosa, só que o problema é que o fato não é estudado
com maior profundidade.




                                                         37
Marcelle Souza




Culturama, Fátima do Sul
        38
Gosto de Veneno



3. O silêncio


     “Meu filho ficou três dias dentro do quarto, só tomava água e
  café. E gritava ‘eu matei meu irmão!’ Um dia o médico mandou
me chamar e disse ‘O seu menino tem a depressão mais terrível que
 existe. Só sai se tomar remédio’. E ele tomou por cinco meses e até
                                                  hoje ainda toma”
                                                Sinésia dos Anjos




     Ao lado de um grande terreno com alguns pés de
eucalipto, mora dona Sinésia Maria dos Anjos. Assim como
as demais, o acesso à sua residência também é de terra e a
chuva exige mais destreza dos motoristas que se arriscam
na lama escorregadia para chegar aos sítios que ficam do
outro lado da rodovia.
     A casa de alvenaria parece bem cuidada e, logo na
entrada, um coração feito na terra com pedras e algumas
flores “recebem” os visitantes. O enfeite foi feito por um
dos filhos de Sinésia durante uma das visitas rápidas que
costuma fazer à mãe.
     Logo à frente, a anfitriã nos recebe sem nenhum
entusiasmo, deixando claro que a visita não é bem-vinda.
É uma senhora pequena, de 82 anos, olhos fundos e
magreza que gera compaixão dos demais. Tem três filhos
e um enteado, mas apesar da recepção graciosa das rosas
em formato de coração da entrada, a história dessa família
                                                                 39
Marcelle Souza

não parece tão doce.
      No começo responde sempre com poucas palavras,
diz apenas que sua vida não é interessante o suficiente para
ser contada. O olhar distante revela que seu grande
problema é lembrar-se da dor que parece ser inerente.
Aparenta ser uma mulher frágil e lúcida, resultado de uma
força inexplicável e uma loucura que muitos não
suportariam.
      Aos poucos saem as primeiras palavras sobre a história,
no começo tão parecida com as outras que tinha escutado
nas andanças pela região. “Casei e deu na cabeça de vir
pro Mato Grosso”, conta Sinésia. Nasceu na Bahia e aos
vinte anos casou-se com um homem viúvo, que já tinha
um filho de outro casamento. Sobre o romance, ela se
esquiva de buscar detalhes, e continua com o relato sobre
a mudança para tão longe. “Lá era difícil pra viver”. O
marido então ficou sabendo que para as bandas de Mato
Grosso tinha gente dando certo. “Ele perguntou se eu
queria vir e concordei”, comenta.
      Mas os primeiros anos em uma terra tão distante não
foram fáceis. “Eu chorava dia e noite. Pensava que nunca
mais ia ver meus pais”, lembra a senhora, ainda com uma
feição de tristeza. Felizmente, apesar da distância, vez ou
outra o pai ainda vem visitá-la, mas Sinésia nunca mais
viajou para a terra natal.
      Entre uma palavra e outra, é impossível não observar
seu enteado, que caminha de um lado para o outro na
varanda feita de madeira nos fundos da casa. É um homem
de mais de 50 anos e notavelmente tem uma deficiência
mental. Resmunga o tempo todo e cospe no chão quando
para. Está fora da conversa, parece querer chamar a
atenção, os visitantes não conseguem tirar os olhos dele.
Sinésia, no entanto, ignora as ações do enteado, mostrando
que a cena se tornou cotidiana para ela. Os dois são hoje o

40
Gosto de Veneno

que restou da família, ele vive em um mundo distante,
inacessível, enquanto a senhora sofre sozinha uma tristeza
que parece que só terá fim no dia de sua morte.
      “Minha vida foi muito sofrida. Vivi pra criar filhos,
netos e bisnetos”, diz ela, sem saber que a expressão de
suas palavras está marcada em seu rosto. O motivo do olhar
perdido e da falta de esperança na vida é esclarecido quando
Sinésia começa a falar sobre os filhos, que trabalharam no
campo desde crianças. “Tem um que o juízo dele não é
muito bom desde pequeno. Já ficou internado em Fátima
do Sul, Campo Grande e São Paulo uns três meses. Tá
sempre atrás de uma pinga e conversando lorota. Fica me
surtando. Às vezes é agressivo e triste”, conta a mãe.
      O que parecia só tristeza logo foi diagnosticada como
depressão. “Ele ficou pior depois que vendeu toda a madeira
dos eucaliptos que eu tinha no terreno do lado. Só que o
homem nunca pagou. Daí, acho que ele ficou com remorso,
porque eu não queria que vendesse. Ficou com olho fundo
e não comia quase nada”, lembra Sinésia, sobre o que
desencadeou a doença do filho mais velho.
      Antes de contar a próxima história, ela para poucos
minutos, lembra-se das coisas que viveu, dá um leve suspiro
e diz: “Já sofri tanto nesse mundo”. Recorda das crises de
depressão, das bebedeiras e internações do filho que quase
a colocaram em um processo de loucura também. E, como
se não bastasse, pouco tempo depois sua lucidez seria testada
novamente.
      Quando ainda se recuperava do tratamento do mais
velho, uma fatalidade fez Sinésia perder seus outros dois
filhos. “Ele vinha dirigindo o trator calmo, devagarinho,
mas o outro menino tinha bebido e caiu do trator. Quando
percebemos, ele tinha passado por cima do irmão”. O
segundo morreu na hora, enquanto o motorista entrou
em uma depressão profunda que até hoje, dez anos depois

                                                           41
Marcelle Souza

do ocorrido, faz o homem ficar grande parte do ano
internado em uma clínica pública na Capital.
      “Meu filho ficou três dias dentro do quarto, só tomava
água e café. E gritava ‘eu matei meu irmão!’ Chorava que
dava dó, daí não teve quem desse jeito. Tivemos que
mandar ele para Campo Grande e um dia o médico
mandou me chamar. ‘O seu menino tem a depressão mais
terrível que existe. Só sai se tomar remédio. E ele tomou
por cinco meses e até hoje toma”. O acidente foi confuso,
a mãe estava ali no meio dos curiosos que se reuniram
para saber o que havia acontecido. Lembra-se apenas que
a dor era muito forte e não conseguia compreender o que
estava acontecendo.
      Naquele momento ela mal podia entender que além
de suportar o luto, teria que aprender a ver seu outro fi-
lho perder a vontade de viver. Até hoje ele passa de 2 a 3
meses internado em Campo Grande, volta para a casa da
mãe, mas logo tem que retomar os tratamentos na clínica
psiquiátrica. “Quando ele vem, arranja um falatório que
aborrece até os vizinhos. Aí tem que internar ele de novo”,
conta.
      A mãe franzina, que tira forças de onde parece não
ser possível, lamenta o rumo que a vida tomou. “Eu tenho
sofrido muito. Tem dia que fico de cabeça baixa pensando
nesse menino. Antes ele tinha vontade de ter as coisinhas
dele, mas agora nunca vejo do jeito que ele era naquela
época”, diz. Dor de quem perdeu as esperanças de ter uma
vida melhor e teve que se acostumar com a falta de brilho
nos olhos.
      Mas a conversa que trouxe de volta as lembranças
ruins conseguiu também iluminar alguns minutos do dia
daquela mulher. Ao final da entrevista surge um pequeno
sorriso, resultado simples por alguém ter dedicado um
pouco de atenção à sua história de vida. Tímida, pede que

42
Gosto de Veneno

as visitas voltem outra vez e tanta dor é aliviada com um
abraço de despedida.

      Nem fraco nem esquisito
      A tristeza no campo é um silêncio assustador, uma
falta de esperança de que a lavoura dê lucro e de que a
região volte a ser populosa como antigamente. Não
existem mais festas de forró, como as que os imigrantes
faziam logo que chegaram em busca de uma nova vida. O
tempo também parou, os filhos foram embora e os poucos
que ficaram vivem das lembranças.
      Nos idosos isso é mais aparente, sentem-se sozinhos e
a falta de perspectiva para prepará-los para a despedida
final. Por isso, uma simples conversa funciona como uma
catarse, trazendo à tona a dor, a saudade e as lembranças
que esqueceram por alguns instantes.
      Para o pesquisador da UFMS Dario Xavier Pires, os
sintomas que se aproximam da depressão são evidentes
tanto no contato com os produtores quanto nas conversas
informais com profissionais da saúde. “Eu nunca me
esqueço de um médico do Programa Saúde da Família,
que não posso dizer o nome, sentar e dizer: ‘Fátima do Sul
é uma cidade de loucos’. Isso porque ele nunca tinha visto
tamanho consumo de remédios controlados”.
      A cidade não possui Programa de Saúde Mental por
isso, em grande parte dos casos, os doentes são
encaminhados para Dourados ou Campo Grande, que fica
a 242 quilômetros de Fátima do Sul. Para a psiquiatra,
Jussinalva Silva de Aguiar, o tratamento longe de casa
prejudica a recuperação do paciente, que vez ou outra acaba
voltando à cidade de origem e sofrendo um retrocesso em
relação aos avanços conquistados pelos médicos. Sem a
família, a pessoa também se sente desamparada diante do
ambiente estranho e das dificuldades que surgem durante

                                                         43
Marcelle Souza

o tratamento.
     Há 20 anos, parte dos casos de depressão, porém, não
eram sequer identificados. Isso porque a assistência à saúde
para as populações rurais era ainda mais deficiente e a
doença não chegava a ser diagnosticada pelos médicos. O
problema é que nos casos graves, a falta de tratamento
pode levar ao suicídio, tema também recorrente nas
conversas com os produtores.
     “Normalmente os casos de suicídio estão ligados a
quadros depressivos. Mesmo que a família diga que não,
em uma análise mais profunda acabamos descobrindo que
a pessoa já vinha apresentando sintomas. No meio rural é
pior, porque eles não têm muita perspicácia do lado
psíquico e humano. Dizem que a pessoa é meio esquisita,
fraca, o que na verdade pode ser uma depressão ou
esquizofrenia”, explica a psiquiatra.
     Existem pesquisas no Brasil e em outros países que
estudam a relação entre a exposição aos agrotóxicos
organofosforados e a depressão. No meio acadêmico o
debate é pouco conhecido, mas produz boas discussões sobre
a efetiva ligação entre os fatores. De um lado, estão
pesquisadores, como o médico toxicologista Ângelo Zanaga
Trapé, que acreditam que os levantamentos realizados até
hoje não conseguiram sustentar a relação.
     Do outro, representando os defensores dos estudos
sobre o tema, o engenheiro agrônomo Sebastião Pinheiro
afirma com veemência que a intoxicação por
organofosforados resulta não só na depressão, como está
diretamente relacionada aos casos de suicídios em regiões
onde os produtores estão expostos ao produto.
     Nessa discussão, o consenso é que esse tipo de
agrotóxico inibe a enzima acetilcolinesterase, causando o
acúmulo do neurotransmissor acetilcolina e a consequente
superestimulação das terminações nervosas. O resultado

44
Gosto de Veneno

são sintomas conhecidos pelos produtores, como dor de
cabeça, tontura, ânsia de vômito e palpitação
      “Entre um neurônio e outro existem as fendas
sinápticas, onde ficam esses neurotransmissores. A
intoxicação por agrotóxico causa variações qualitativas e
quantitativas nas sinapses, que agem na alteração do
humor, o que pode causar tanto sintomas depressivos,
como o aparecimento de manias e agitação”, explica a
psiquiatra Jussinalva Aguiar. A especialista ainda destaca
que a depressão causada pelo uso de agrotóxicos é exógena,
ou seja, de causa externa, resultado da intoxicação a longo
prazo.
      Entre 2004 e 2005, um grupo de pesquisadores da
UFMS realizou um levantamento sobre os estados
depressivos e os níveis da enzima colinesterase em 261
agricultores expostos aos organofosforados em Fátima do
Sul. Os resultados apontaram que 149 produtores (57,1%)
relataram algum tipo de sintoma após o uso dos agrotóxicos,
e 30 pessoas apresentaram Distúrbios Psiquiátricos
Menores (DPM), sendo que três destes já haviam tentado
cometer suicídio.
      Em 24 agricultores foi detectada a redução da ativi-
dade enzimática em relação ao período de não exposição,
abaixo do limite inferior de referência do grupo controle,
e foram considerados extremamente expostos. Destes, cin-
co confirmaram DPM. O estudo ainda diagnosticou a as-
sociação entre os distúrbios psiquiátricos, os baixos níveis
de escolaridade e uso de pulverizadores costais, o que indica
um aumento do risco por conta das condições inseguras
de aplicação.

    Câncer
    Segundo a Agência Internacional para Pesquisa de
Câncer (IARC), alguns tipos desses agrotóxicos são consi-

                                                          45
Marcelle Souza

derados cancerígenos. Em Fátima do Sul, a observação a
campo aponta para o câncer como possível reflexo da ex-
posição prolongada aos organofosforados.
      “Quando nós fomos a Fátima do Sul, as pessoas
citavam que o índice de câncer na cidade era elevado e
estavam preocupados. Talvez essa seja uma evidência de
que o número é mesmo alto, já que a própria população
começa a perceber isso”, comenta o professor de Química
da UFMS, Dario Xavier Pires, que esteve na zona rural do
município coletando informações para sua pesquisa de
doutorado.
      E não é só para os visitantes que a incidência da doença
parece ter aumentado. Para o médico Hermindo de David,
do Hospital Nazareno, em Fátima do Sul, há 20 anos esse
tipo de relato não era tão comum quanto os que chegam
com frequência aos profissionais da saúde do município.
       “Antigamente quase não existiam casos de câncer,
agora percebemos que o número aumentou
significativamente e isso pode ter um conexão com o uso
de agrotóxico”. Segundo David, os mais comuns são o de
mama, próstata e aparelho digestivo.
      Mais uma vez, como o tratamento não pode ser feito
na cidade, os pacientes são encaminhados à Capital.
“Durante os contatos para o nosso trabalho, eu me lembro
de uma enfermeira do setor de oncologia do Hospital
Universitário, em Campo Grande, comentar sobre o
grande número de pacientesque vinham da região de Dou-
rados, como crianças com câncer de medula ou com defei-
to lábio-palatino”, lembra o pesquisador.
      Durante as décadas de 1960 e 1970, o solo e os
produtores foram expostos aos organoclorados, que
possuem alta toxidade, bioacumulação e persistência no
ambiente por muitos anos. São agrotóxicos extremamente
cancerígenos e a maioria deles já foi proibida no Brasil. O

46
Gosto de Veneno

problema é que os resíduos de aplicações anteriores po-
dem ter permanecido no ambiente, o que torna necessá-
ria a realização de estudos para detectar até que ponto essa
contaminação pode ter afetado os agricultores do
município.
      “Se agora a população rural diz que não há assistência
técnica, nem atenção à saúde, imagina na década de 60,
70, quando eles chegaram. Além disso, tinha todo um
programa de financiamento dos bancos que só liberavam
o dinheiro mediante o uso de veneno”, critica Dario Xavier,
sobre os fatores que levaram ao uso indiscriminado de
agrotóxicos na região.
      De fato, a necessidade de investimento em pesticidas
torna o financiamento mais difícil para produtores que
optam pela agricultura orgânica, segundo o gerente da
sede da Agência de Desenvolvimento Agrário e Extensão
Rural (Agraer/MS) em Fátima do Sul, Marcio Ribeiro
Bonette. “Fora da cerca, todo mundo tem lucro, bancos,
revendedoras e fabricantes, enquanto o agricultor vive para
pagar as dívidas”, diz Bonette.


     De um lado, as grandes empresas e do outro,
pequenos produtores, entre eles um produto lucrativo mas
que pode causar danos irreversíveis à saúde do homem. E
nessa disputa desleal ganham aqueles que têm mais força,
sendo que a outra ponta sobrevive lutando contra as
doenças e tentando ganhar dinheiro para pagar o que deve
e conseguir plantar.




                                                          47
Marcelle Souza




Erasmo Lunardo
       48
Gosto de Veneno



4. O Gosto


       “O padre achou ruim levar a vizinha para a igreja, porque
todo mundo ficava participando daquele fedor mais triste. A finada
     Eva misturou três venenos e bebeu. Daí disse, ‘eu não disse que
                                                      bebia’, e caiu”
                                                 Adelina Oliveira




       Ainda não tinha completado 18 anos, quando ela
resolveu acabar com a própria vida. Deixou para trás a
filha de um ano e meio e todos os sonhos da juventude
em nome de um grande amor. Filha de Seu Erasmo, Eva
Erasmo da Silva surpreendeu toda a família quando
desmaiou porque tinha bebido veneno. O motivo, segundo
ela, era um romance mal resolvido, que antes já tinha
motivado uma depressão percebida pelas irmãs.
       A jovem era bonita e, assim como todas as garotas do
sítio, sonhava em morar na cidade. Teve sua primeira filha,
fruto de um casamento forçado pelo pai. O namoro não
dera certo e Eva voltou para a casa da mãe. Pouco tempo
depois, envolveu-se com um homem casado, que lhe deu
um novo lar, mas não o amor que ela esperava.
       O relacionamento rendia momentos de extremo
descontentamento, enquanto em outras horas era
alimentado pela esperança de que poderia dar certo. Para

                                                                  49
Marcelle Souza

as irmãs e a mãe, estava claro que Eva vivia infeliz e a
tristeza próxima à depressão foi relatada pelos conhecidos
em muitos momentos.
      A família dava-lhe conselhos, mas ela não queria
escutá-los. Foi quando descobriu que estava grávida
novamente e o grande amor deixou claro que não iria
abandonar o casamento para ficar com ela. Só que apesar
da tristeza pelo desprezo do homem amado, naquele dia
ela parecia especialmente feliz. Chegou alegre à casa da
cunhada e disse apenas que iria tomar banho no córrego.
Lucia confessa que estranhou a felicidade da jovem que
nos últimos dias parecia bem abatida, mas logo deixou
desconfiança de lado e resolveu ficar contente com a
aparente recuperação da irmã de seu marido.
      Minutos depois, porém, Eva voltou para a casa e
encontrou-se novamente com a cunhada. “Olhou e falou
pra mim que tinha tomado veneno. Daí tirou uma caneca
e tomou o resto que tinha. Demorou uns minutos e já
caiu. Fiquei meio atrapalhada, meia doida, ai já correram
e levaram pra cidade, mas não teve jeito, porque ela tomou
demais”, lembra Lúcia, casada com um dos filhos de
Erasmo.
      Eva morreu a caminho do hospital, já em Fátima do
Sul. A família recorda que ninguém conseguia ficar no
velório da jovem, tamanho era o fedor do agrotóxico que
ela havia ingerido. O caso aconteceu há 25 anos, mas até
hoje os irmãos choram ao lembrar da notícia que
receberam naquele dia. “Quando me contaram que
alguém tinha bebido veneno no sítio, eu nunca imaginei
que era a minha irmã”, lembra Cida, uma das mais velhas,
que ficou sabendo do suicídio quando estava na cidade
fazendo compras de charrete.
      Diante da dor de uma perda tão grande, Seu Erasmo
e a esposa tiveram que tirar forças para educar a neta que

50
Gosto de Veneno

mal sabia andar. Hoje com 26 anos e dois filhos, a menina
virou mulher e aprendeu a chamar os avós de pais, já que
não tem lembranças da mãe que não a viu crescer.

     Suicídio em números
     A história poderia ser só mais uma fatalidade, não
fossem as histórias semelhantes que se ouvem em Fátima
do Sul. Todas por ingestão de agrotóxico e consequência
do que antes era conhecido como tristeza, mas hoje recebe
o nome de depressão.
     A Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que
ocorram anualmente no mundo cerca de três milhões de
intoxicações agudas provocadas pela exposição aos
agrotóxicos, o que resulta em aproximadamente 220 mil
mortes por ano. Ainda de acordo com a OMS, esses casos
constituem um grave problema de saúde pública,
principalmente nos países em desenvolvimento.
     Do outro lado, um levantamento da Associação
Nacional de Defesa de Vegetal (Andef) à consultoria alemã
Kleffmann Group indica que o Brasil é o maior mercado
de agrotóxicos do mundo. O estudo ainda mostra que a
indústria dos defensivos agrícolas movimentou US$ 7,1
bilhões no país em 2008, ante US$ 6,6 bilhões do segundo
colocado, os Estados Unidos. Comparados com 2007,
quando o consumo brasileiro foi de US$ 5,4 bilhões, os
números revelam um crescimento significativo apesar de
a área plantada ter encolhido 2% no ano passado.
     Consequência desse consumo crescente de agrotóxicos
no país, o Serviço Integrado de Informações Tóxico-
farmacológicas (Sinitox) do Ministério da Saúde, registrou
112.403 casos de intoxicação em 2007. Destes, 2.899
correspondem a tentativas de suicídio por ingestão de
veneno de uso agrícola. Segundo o pesquisador Dario
Xavier, o problema é que, para cada intoxicação desse tipo

                                                        51
Marcelle Souza

notificada, existem outras cinquenta não registradas pelo
sistema de saúde, o que dificulta a implantação de ações
concretas para conter as consequências da exposição
prolongada a esses venenos.
      Em números absolutos, Mato Grosso do Sul ocupava,
em 2002, o quarto lugar em suicídios de homens e o se-
gundo de mulheres no Brasil. Quando se estuda o índice
de morte por ingestão intencional de agrotóxicos, dados
do Centro Integrado de Vigilância Toxicológica (Civitox)
da Secretaria de Estado de Saúde de MS apresentam a
macrorregião geográfica de Dourados, da qual Fátima do
Sul faz parte, como a campeã em tentativas de suicídio em
todo o estado. O número leva em conta o período entre
1992 e 2002, quando foram registradas 203 tentativas e
63 óbitos nos 15 municípios que compõem essa
macrorregião.
      Entre esses municípios, Dourados apresentou maior
prevalência de tentativas, enquanto Fátima do Sul assumiu
o segundo lugar. Nesse sentido é importante destacar que
parte dos números de Dourados está relacionada à alta
incidência de suicídios entre os índios guarani-kaiowás,
resultado, principalmente, do processo de confinamento
a que foram submetidos. Relação diferente, portanto, da
atribuída aos casos de Fátima do Sul, que seriam
consequência, em sua maioria, da exposição aos agrotóxicos
usados em grande quantidade no período de cultivo intenso
do algodão que durou até o fim da década de 1990.
      Fátima do Sul e a vizinha Vicentina, segundo o
Civitox, apresentam as maiores razões entre intoxicações
e área de culturas temporárias na região. A primeira
também assume o topo quando se analisa a relação entre
tentativas de suicídios e áreas de culturas temporárias. Isso
significa que o alto índice de suicídios e intoxicações é mais
bem percebido quando se leva em conta a pequena área

52
Gosto de Veneno

geográfica que esses municípios possuem.
      Apesar de os números mostrarem a forte relação
entre o consumo alto de agrotóxico e os suicídios ocorridos
na região, pesquisadores divergem sobre a relação direta
entre os dois fatores. “Eu pessoalmente acredito, já que
esses agrotóxicos levam à depressão, essa que tem uma
ligação direta com o suicídio sim”, defende o professor
Dario Xavier, autor em parceria com outras pesquisadoras,
do artigo “O uso de agrotóxicos e os suicídios em Mato
Grosso do Sul, Brasil”, publicado em 2005. Do outro lado,
o médico toxicologista e professor da Unicamp, Ângelo
Zanaga Trapé rebate: “os estudos feitos nessas populações
não são determinantes e ainda não conseguiram comprovar
essa relação”.
      No meio da discussão, números e levantamentos
perdem a força diante dos relatos de uma população que
viu de perto muita gente morrer com os goles de veneno.
Histórias tristes de pessoas que tentam esquecer a dor da
perda dos parentes que cometeram o suicídio.

      Fedor mais triste
       Aos 81 anos, Dona Adelina Oliveira enche os olhos
de lágrimas ao lembrar-se de conhecidos que seguiram esse
caminho. “Aqui morreu foi 11 pessoas com raiva, tomava
o veneno pra morrer. Bastava perder, ia pro jogo, não
fazia aqueles pontos, tinha raiva e bebia veneno. Uma
tristeza do mundo”, chora. Esse é um dos momentos em
que ela realmente se emociona, não foram seus filhos nem
netos que se mataram, mas a dor alheia e a tristeza das
famílias são suficientes para desestruturar essa mulher forte
e ao mesmo tempo tão sensível.
      A conversa avança, e aos poucos ela vai lembrando
de outras histórias parecidas, como dos inúmeros velórios
que apresentavam o ser humano de uma das piores

                                                           53
Marcelle Souza

maneiras. “Levava pro hospital, vinha no caixão e já leva-
va pro cemitério. Era um alívio. Não velava porque o dou-
tor não queria que velasse, por causa do fedorzão que tava”.
E continua, “tinha que ter uma toalha para ir cobrindo,
que é para as crianças não chegarem perto daquele fedor.
Cobria com as toalhas e já levava pro hospital”.
      A toalha era para que ninguém visse o estado do
corpo, alguns com a boca espumada, outros com a língua
para fora, marcas, segundo ela, de uma morte que se
aproxima do sentido de definhar. “É um fedor e uma
tristeza. A gente chora e nunca se conforma”, conta
Adelina. E com os olhos baixos e algumas lágrimas nos
olhos, ela ainda se lembra de deixar um conselho aos mais
jovens: “Se um rapaz tem uma namorada e ela não quer,
meu filho, não vá morrer não. Não tem coisa pior que a
morte”.
      Sobre o suicídio de Eva, filha de seu grande amigo
Erasmo, Adelina lembra detalhes. “O padre achou ruim
levar a vizinha aqui para a igreja, porque todo mundo
ficava participando daquele fedor mais triste. A finada Eva
misturou três venenos e bebeu. Daí disse, ‘eu não disse
que bebia’, aí caiu”. Só que logo as memórias acabam, sinal
de que se lembrar do cheiro de morte não faz bem nem a
quem escolheu ficar vivo.
      Há alguns metros dali, a sabedoria de um vizinho de
dona Adelina, Manuel Firmino, busca as minúcias do dia
em que o cunhado bebeu veneno para se matar. Dessa vez
a dor é de família, que buscou apagar o resto de lembrança
sobre o fato de que deveria mesmo ser esquecido por todos.
      Já faz mais ou menos 20 anos desde que o cunhado
de Manuel, Valdemiro, tomou Azodrin e morreu na hora.
O homem tinha aproximadamente 40 anos e morava com
a mãe no terreno que fica em frente ao de Seu Mané. Na
época em que tudo era tratado com remédios naturais,

54
Gosto de Veneno

talvez a tristeza daquele homem ainda não tivesse cura.
Calado, Valdemiro era um homem que trabalhava na
lavoura de algodão e mostrava sinais de depressão. “Ele
era bobão, meio doidão, fraco das idéias. Gente assim a
gente conhece”, descreve Manuel.
      Para a família, o motivo do suicídio foi fútil. Segundo
Abrão, o tio queria muito comprar um Fusca, mas a mãe
não deixou. Uma briga, alguns goles de pinga e outros
tantos de veneno. Valdemiro tomou Azodrin e andou até
uma árvore no quintal, onde mais tarde o corpo foi
encontrado pela mãe. “Já tava pálido, com espuma na
boca”, conta Abrão que não consegue esquecer a cena do
corpo do tio morto no terreiro.
      Já para Seu Mané, a história deve ser usada apenas
como exemplo do que não se deve fazer. “Não desejo a
morte de jeito nenhum. A gente tem que saber conversar,
saber suportar as dificuldades da vida”, declara Manuel com
a sabedoria de quem já viveu 73 anos. “Gente é o bicho
mais fraco de morrer”, acrescenta sobre a fragilidade do
homem diante da letalidade do agrotóxico.

      Organofosforados e suicídios
      Em todo o Brasil, pesquisas têm se aprofundado cada
vez mais na ligação entre os organofosforados e os casos
de suicídio. Em Venâncio Aires, Rio Grande do Sul, um
grupo de pesquisadores fez um levantamento das
conseqüências da exposição prolongada dos trabalhadores
rurais a esse tipo de agrotóxico. O estudo foi uma demanda
da Assembléia Legislativa e, apesar dos resultados
significativos, não conseguiu mobilizar o poder público para
a gravidade da situação.
      O agrônomo Sebastião Pinheiro foi um dos
responsáveis pelo trabalho e lamenta que não tenha sido
usado para melhorar a vida daqueles agricultores. Assim

                                                           55
Marcelle Souza

como em Fátima do Sul, os produtores de Venâncio Aires
também estão expostos aos organofosforados. Os últimos,
porém, trabalham com plantio do fumo, que necessita de
quantidades maiores de veneno, o que produz resultados
ainda mais visíveis que os encontrados na cidade sul-mato-
grossense.
      Conhecidas em todo o mundo, as conseqüências do
uso prolongado desse tipo de agrotóxico produziram
resultados diversos em várias partes do mundo. “Na
Noruega (primeiro país em qualidade de vida) foi feito em
1990 um estudo epidemiológicosobre a deficiência no
aprendizado de escolares da área rural em relação aos
urbanos. Desde aquele momento, todos os fosforados
foram restritos em toda a Europa e no mundo civilizado”,
compara Pinheiro.
      No relatório Safer Acess to Pesticides (Acesso Seguro
aos Agrotóxicos, em português) divulgado em 2006, a
Organização Mundial da Saúde reúne recomendações para
tentar diminuir o número de intoxicações e suicídios
causados pelos pesticidas. De acordo com a organização,
esses casos têm sido pouco estudados porque grande parte
das pesquisas sobre prevenção ao suicídio é procedente dos
países desenvolvidos, enquanto as consequências à
exposição ao uso de pesticidas aparecem predominantes
em países pobres e em desenvolvimento, como as áreas
rurais da Ásia, América Central e do Sul, África e ilhas do
Pacífico. O documento ainda destaca o alto número de
suicídios em lavouras de tabaco no Brasil, como é o caso
de Venâncio Aires , onde os produtores são expostos
exatamente aos mesmos organofosforados presentes nas
plantações de algodão, em Fátima do Sul.
      Em nível federal, o Ministério da Saúde reconhece
as consequências da relação entre o uso de inseticidas e
suicídios no relatório Saúde Brasil 2007. “Alguns estudiosos

56
Gosto de Veneno

apontam os agrotóxicos como elementos desencadeadores
de quadros depressivos, em função de mecanismos
neurológicos e endócrinos. Mas há que se investigar ainda,
com mais profundidade, outras hipóteses, como a questão
cultural”, cita. Apesar disso, não existem estudos nem
política preventiva de suicídio na zona rural, o que é
provado pelo documento lançado em 2006, titulado
“Estratégia Nacional de Prevenção ao Suicídio”, onde
nenhum ponto aborda as especificidades das populações
rurais expostas aos organofosforados.
      Em Mato Grosso do Sul, a Secretaria de Estado de
Saúde também não realiza nenhuma ação específica e a
falta de conhecimento dos profissionais de saúde foi uma
das dificuldades encontradas pelo pesquisador Dario Xavier.
“Eu comecei ler, é uma coisa pouco conhecida, então pro-
curei alguns médicos psiquiatras que trabalham nessa área.
Mas eles não conheciam essa ligação entre organofosforado
e depressão. Eu tive que levar artigos para discutir com
eles e acho que isso pode sim prejudicar o atendimento”,
avalia.

      Notável desgraça
      Tímida, ela nos cumprimenta com os olhos baixos e
os braços cruzados. Antônia de Souza Lucas também vive
na zona rural de Fátima do Sul, mas há alguns anos em
suas terras já não germina nenhum tipo de semente. A
dor talvez tenha sido a responsável pela decisão de arren-
dar o pedaço de terra de onde a família por tantos anos
tirou o sustento.
      Aos 64 anos, restaram-lhe poucos dentes e alguns
sorrisos no rosto. As marcas da idade, do sol, da dor e do
uso de agrotóxico também são notáveis. Dona Antônia
transmite calma e até certa ternura. Ela fala pouco, observa
bastante e procura não demonstrar os sentimentos que

                                                          57
Marcelle Souza

lhe trouxeram tanto amor e sofrimento.
      Nasceu em Pernambuco, para onde nunca mais
voltou desde os 15 anos de idade, e não sente vontade de
voltar. “Aqui é bom. Melhor do que lá. Gosto daqui do
jeito ta”, explica-se. Casou-se em Fátima do Sul, onde
também ficou viúva. Foi seu único homem, pelo qual
Antônia diz não guardar nenhuma saudade. Das
lembranças do companheiro só restaram as noites em que
chegava bêbado e brigava com ela e os filhos. “Se soubesse
que ele era assim, eu nem casava”, conta a mulher que
não entra em detalhes, mas demonstra parte do rancor
que tem por um homem que a humilhou por muito tempo.
      Dos quinze filhos que nasceram desse casamento,
apenas cinco vivem hoje com ela. Esses são homens,
solteiros e trabalhadores rurais. A família sobrevive com a
aposentadoria que Antônia recebe, da quantia do
arrendamento e da trabalho dos filhos, que nem sempre
contribuem com as despesas da casa. Assim como o pai,
todos são alcoólatras.
      Coincidência ou fatalidade, três dos seus filhos se sui-
cidaram e outros dois tentaram, mas não conseguiram se
matar com agrotóxico. “Bugrão”, Mauro e Luiz encontra-
ram a morte a poucos passos de casa, numa casinha que
servia de depósito para as embalagens de veneno. Uma
desilusão qualquer, o álcool, e a decisão estava tomada:
era só entrar no local e escolher o gosto de sua morte.
      Jonas, mais conhecido como “Burgão”, foi o primei-
ro a morrer. De acordo com a mãe, o filho tinha um “ca-
belo bem pretinho” e talvez se estivesse sóbrio não teria se
matado. Tomou veneno e morreu em casa. Não deu nem
tempo de ser socorrido, já que o corpo foi encontrado pela
família quando ele já estava morto. “Discutiu na rua e foi
lá e bebeu dois tipos de veneno. Bebeu e caiu ali no buraco.
Ele queria ir longe pra morrer”, lembra dona Antônia.

58
Gosto de Veneno

      Luiz foi o caso mais recente, chegou em casa à noite e
passou direto para a casinha. “Ele era o mais novo e veio
bebendo de uma festa que teve lá na 5 ª [linha]. Já tava
meio chumbado, aí passou direito pra tuia, nem veio aqui
em casa. Quando nós demos por fé ouvimos um gemido
lá dentro, com a tuia fechada ainda, e tava cheinho de
veneno. Eu tinha um algodãzinho lá embaixo que tava
branquinho quando ele morreu. Ele passou o veneno nesse
dia e depois que foi pra festa, veio e bebeu”, descreve
Antônia sem manifestar dor. “O negócio foi tão forte que
comeu a língua dele. Os outros beberam pouco e morreu
logo, já esse ficou sofrendo”, completa.
      Mauro não foi muito diferente. Fez o mesmo
caminho dos irmãos e depois de ingerir dois tipos de
agrotóxico ainda conseguiu caminhar alguns metros para
chegar até a casa. “O Mauro foi assim, o irmão dele bateu
no rádio dele e ele ficou brabo. Ai correu logo pra tuia. Eu
nem vi, quando vi, já tinha bebido. Ele chegou aqui caindo
e falou ‘Mãe, eu bebi veneno’. Foi lá pra cama e ficou lá.
Aí chamamos um carro pra levar pra Fátima, mas quando
foi um pouquinho já morreu”, conta a mãe.
      Cecília misturou veneno líquido com farinha, comeu
o prato inteiro, mas não morreu. “Na hora não deu nada,
mas depois a gente teve que levar ela pra Campo Grande”
relata Antônia. E o irmão Pedro completa: “Até hoje ela é
meio atrapalhada”.
      Outro que poderia ter ido pelo mesmo caminho que
os demais foi Paulo, um dos mais novos. No início do ano,
ele ficou bêbado e começou a dizer que a vida não tinha
mais graça. Decidido, chegou a pedir que alguém passasse
por cima dele com um trator, mas a solicitação felizmente
não foi atendida.
      Da história de “bebedeira” a mãe faz graça, como se
aliviada ou acostumada com a presença da morte na famí-

                                                          59
Marcelle Souza

lia. Envergonhado, Paulo desmente, diz que não se lem-
bra da tentativa de suicídio e muda de assunto. Enquanto
isso, Antônia dá um sorriso leve e permanece encostada
na porta da varanda de casa, cenário comum, não fosse a
notável desgraça a que essa família teve que se acostumar.




60
Gosto de Veneno




            61
Marcelle Souza




Antônia de Souza
        62
Gosto de Veneno




5. Um novo sorriso


         “Nas grandes propriedades o veneno é aplicado na lavoura
  em tratores com GPS, rádio e bico de pulverização. Já o agricultor
        familiar tem acesso apenas a bomba costal e uma máscara
                                                           rasgada”
                                            Ângelo Zanaga Trapé




      Adelina, Erasmo, Manuel, Sinésia e Antônia: cinco
histórias que mostram um pouco do que é a realidade da
zona rural de Fátima do Sul. Imigrantes que construíram
uma nova vida na terra desconhecida, criaram os filhos
entre o plantio e a colheita do algodão e agora vivem a
tristeza que é sutil para uns e visível para outros. Um lugar
onde o silêncio das estradas remete à mudez de alguns desses
produtores ao recordar de momentos importantes de suas
vidas.
      Trouxeram para dentro de casa a máquina de
aplicação de agrotóxico, as roupas sujas do trabalho na
lavoura e as consequências dessa proximidade com aquilo
que deveria matar apenas as pragas do algodão. Transfor-
maram as embalagens em copos para tomar água e, de
repente, os goles do veneno começaram a assustar os mo-
radores da região.
      Os anos foram passando e agora convivem as
                                                                 63
Marcelle Souza

lembranças das festas de forró nos finais de semana e a
dos velórios com caixão fechado, que não podiam ser feitos
dentro da igreja a pedido do padre. Restam agora os filhos
adultos sem trabalho e dinheiro para plantar.
      Aos poucos também vão perdendo as esperanças de
que a vida melhore e que o corpo volte a ser como era
antes. Dor de cabeça, vômito, coceira, câncer e depressão
tornaram-se sintomas normais de quem já perdeu a noção
do significado de saúde.
      Afinal, foram anos dedicados aos agrotóxicos, histó-
rias inteiras regadas as bombeadas da máquina costal e,
para alguns, foi dele também o último gosto que sentiram
na boca. Um amargo que sufoca, dói e mata.

      Lapso de lucidez
      É o aperto de mão firme que dá as boas-vindas aos
visitantes de Culturama. Cumprimentos de um homem
de estatura média e simpatia séria, que serve de guia à
quem veio conhecer o lugar. José Lima de Jesus, ou apenas
“Zé Lima”, conhece bem cada uma das histórias narradas
ao longo deste livro-reportagem. Aliás decorou nome, so-
brenome e número de identidade da maioria dos
moradores da região.
      O rosto de pele branca mostra um leve queimado de
sol, enquanto os olhos são verdes, presentes, notáveis. Veste
calça jeans, botina e uma camiseta muito bem passada.
Conhece metro a metro da região e cuida de cada família
com um zelo incomparável. “Seu Manuel, ta acabando o
remédio, né? Essa semana passo aqui para trazer outra
cartela para o senhor”, diz ele, pouco antes que a entrevista
comece.
      Zé Lima é agente de saúde por paixão. Passou no
concurso da Prefeitura de Fátima do Sul há 11 anos e
largou tudo para trabalhar no lugar onde cresceu. Formou-

64
Gosto de Veneno

se em Ciências Contábeis, concluiu o curso técnico em
Enfermagem, e fez a opção de ganhar menos de dois
salários mínimos para se aventurar no que realmente gosta
de fazer.
      Vive com a esposa e dois filhos em um sítio pequeno
na zona rural, onde tem uma horta e planta outros gêneros
alimentícios. É vizinho dos tios e do pai e faz questão de
dizer que não sairia dali por dinheiro algum.
      De segunda a sexta acorda, vai trabalhar a pé, volta
para o almoço e tira um cochilo. Levanta novamente, dá
um beijo na filha de seis meses e continua as visitas. Ao
final da tarde está em casa de novo. A rotina é quase sempre
parecida, salvo os dias de vacinação, quando é preciso ir
mais longe e ficar o dia todo fora.
      Zé tem 41 anos, revelados por uma leve calvície; parece
também um pouco fechado, mas isso é só aparência. Brinca,
ri e faz piada como se estivesse no sofá de casa, e de certa
forma está. Aos sábados à tarde tem um compromisso
sagrado com os homens da vizinhança: o futebol, outra de
suas grandes paixões.
      Casou-se pela primeira vez há mais de dez anos e não
tem vergonha de dizer que foi abandonado pela esposa,
que fugiu com outro homem. Sozinho, ele teve que criar
o filho pequeno e conviver com a decepção. Há quatro
anos arrumou uma nova esposa, com quem teve uma filha.
Marido dedicado e pai carinhoso, Zé deixa bem claro que
a família é a coisa mais importante em sua vida.
      Zé Lima é um herói solitário, representante de um
sistema de saúde que só chega até a comunidade por meio
dele. Remédios, consultas e encaminhamentos são algumas
de suas atribuições. E como as outras políticas públicas são
insuficientes, é na conversa na varanda que ele aproveita
para explicar que alguns venenos são muito perigosos e
que os equipamentos de proteção individual são sempre

                                                           65
Marcelle Souza

necessários.
     Tenta combater sozinho os anos de experiência e
teimosia dos produtores rurais . É um lapso de consciência
em meio aos resultados dos anos de exposição da
comunidade aos agrotóxicos. Uma luta diária de quem
acredita no trabalho que faz e ama o lugar onde mora.

      Uma balança desigual
      A carência de políticas públicas exposta na
comunidade do distrito de Culturama, em Fátima do Sul,
faz parte da realidade dos pequenos produtores de todo o
Brasil. Segundo o Censo Agropecuário de 2006 feito pelo
IBGE, apesar de ocupar só um quarto da área cultivada do
Brasil, a agricultura familiar é responsável por 38% do
valor da produção nacional. Gera 54 bilhões de reais por
ano e é dela também a responsabilidade por garantir a
segurança alimentar do país, gerando os principais produtos
da cesta básica brasileira. Emprega ainda 74% da mão-de-
obra do campo. Só em Mato Grosso do Sul, o IBGE calcula
que mais de 200 mil pessoas trabalhem no meio rural,
destes 133 mil tem laços de parentesco com o produtor.
      Só que a participação dessas pequenas propriedades
na produção nacional de alimentos não garante que as
políticas públicas alcancem essa fatia de brasileiros. O IBGE
ainda apontou, por exemplo, que 80% dos produtores
entrevistados durante a pesquisa tinham baixa escolaridade.
      A carência de políticas educacionais está diretamente
ligada aos casos de intoxicação no campo, afinal, são
exatamente os que não sabem ler que aplicam o veneno
na lavoura. Sem conseguir identificar no rótulo as
concentrações e as precauções necessárias, acabam se
expondo muito mais aos riscos do produto.
      Nas grandes propriedades o veneno é aplicado na
lavoura em tratores com GPS, rádio e bico de pulveriza-

66
Gosto de Veneno

ção. Já o agricultor familiar tem acesso apenas à bomba
costal e uma máscara rasgada, então acaba se intoxicando.
No primeiro caso, a pessoa fica totalmente protegida. En-
tão, o segundo acaba sublimando o risco, porque tem que
fazer o serviço e não tem outro jeito de aplicar o veneno”,
compara o toxicologista Ângelo Zanaga Trapé, mostran-
do a desigualdade no campo.
      Prova da crítica feita pelo médico é que, de acordo
com o Censo Agropecuário, 78% das lavouras que usam
agrotóxico são dirigidas pelos proprietários, de forma que
o equipamento mais usado é o pulverizador costal (69,1%),
que tem maior potencial de exposição.
      Ainda conforme o estudo, em mais da metade dos
estabelecimentos onde houve utilização de agrotóxicos
(56%) os agricultores não receberam orientação técnica,
sendo que 15% dos responsáveis por essas propriedades
não sabiam ler nem escrever.
      Para Trapé, outra grande deficiência é revelada pelo
sistema de saúde que, segundo ele, está sempre distante
do pequeno produtor e não vê a zona rural como área
importante de atuação. No distrito de Culturama, por
exemplo, não existem programas de prevenção ou grupos
que acompanhem a saúde dos produtores. Nesse contex-
to, ações simples como medir periodicamente os níveis da
enzima acetilcolinesterase poderiam servir de base para
que equipes multidisciplinares avaliassem os níveis de
intoxicação de cada agricultor.
      A falta de orientação técnica que poderia suprir em
parte a baixa escolaridade e ausência de fiscalização da
vigilância sanitária ajudam a completar o quadro de
políticas públicas que não chegam a essa população.
      Conforme o professor de Química, Dario Xavier Pires,
os dados reforçam sua tese de que é necessário trabalhar
na prevenção envolvendo basicamente saúde e educação

                                                         67
Marcelle Souza

de forma conjunta. “É importante que isso seja tratado de
forma mais séria”, diz. Desde a década de 1990, quando
começaram suas pesquisas sobre o assunto, Pires avalia que
houve a introdução de algumas iniciativas de prevenção,
que ainda são incipientes para tratar do problema de
maneira efetiva.
      Baseado nos resultados obtidos na zona rural de
Campinas nos últimos dois anos, o médico Ângelo Trapé
aponta que essa integração de políticas pode dar certo.
Nesse período, ele destaca que nenhum caso de intoxicação
foi registrado no município, onde educação, orientação
técnica e acompanhamento médico frequente da
população têm reduzido também as consequências das
exposições a longo prazo.
      Há também quem discorde, como o engenheiro agrô-
nomo Sebastião Pinheiro, e não acredita que haja uma
saída que possa minimizar os riscos dos pequenos produto-
res expostos frequentemente aos agrotóxicos. Ele defende
a realização de cursos de capacitação para esses trabalha-
dores, mas acha que uma relação saudável entre os dois
lados só acontece quando os venenos são de fato proibi-
dos.
      “As industrias de agrotóxicos e de alimentos são uma
coisa só, logo, não há futuro. Pois tudo será industria de
alimentos em um feudalismo medieval altamente
tecnológico”, prevê sobre o futuro desses agricultores.

     Pela graça dos sorrisos
     Debates à parte, o importante é garantir proteção
aos produtores rurais enquanto esses pesticidas forem legais
no país. E são iniciativas governamentais ou o trabalho do
herói solitário de Fátima do Sul que alimentam as
esperanças de que devem existir formas eficazes de
prevenção. Antes de tudo é preciso discutir o tema, para

68
Gosto de Veneno

que as políticas públicas não continuem dando as costas a
16 milhões de brasileiros.
      Pessoas que dedicaram grande parte da vida à terra e
ainda veem nela o futuro das próximas gerações, sentem-
se esquecidas, assim como suas lembranças. Já perderam
as esperanças de que algo possa mudar.
      Senhores e senhoras acham que a visita de um agente
de saúde em casa é o máximo que podem ter do poder
público. Governo que só chega ali em época de eleição ou
por meio das recordações de que as terras foram doadas
durante a presidência de Getúlio Vergas. Este, por sua vez,
que montou uma colônia agrícola no afastado e
desconhecido sul de Mato Grosso e não fez questão de
equipar o local com o mínimo de infraestrutura necessária.
      Perderam-se muitas vidas, muitas lágrimas e muitos
sonhos. Mas são por histórias como as de Adelina, Manuel,
Erasmo, Sinésia, Antônia e Zé Lima que vale a pena
trabalhar para que o futuro seja diferente e as festas de
finais de semana voltem a acontecer, sem cheiro de veneno
e com a mesma graça que é contada nos sorrisos dos mais
velhos.




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Marcelle Souza




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A história de Adelina, imigrante nordestina em Fátima do Sul

  • 1.
  • 2.
  • 4.
  • 5. Marcelle Souza Gosto de Veneno Campo Grande - MS, 2009
  • 6. Copyright by Marcelle Souza Projeto Experimental do Curso de Comunicação Social Jornalismo 2009 Universidade Federal de Mato Grosso do Sul Textos e Diagramação: Marcelle Souza Orientador: Marcelo Câncio Fotos e capa: Bruno Barros 6
  • 7. “O repórter que não for capaz de se emocionar, de chorar e se alegrar junto com os personagens de quem fala, jamais conseguirá transmitir ao leitor a realidade que encontrou” Ricardo Kotscho 7
  • 9. Gosto de Veneno Apresentação O trabalho desenvolvido pela acadêmica de jornalismo da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Marcelle Souza, neste livro-reportagem é digno de elogios. Destaco inicialmente sua vontade de pesquisar e escrever sobre um tema de extrema importância social, mas que infelizmente não está no foco da mídia e, portan- to, não faz parte da pauta diária dos veículos de comunica- ção. A realidade e a dramaticidade dos depoimentos reve- lados no texto expõem a triste realidade de um grupo de brasileiros. Cidadãos que trabalham uma vida inteira para morrer miseravelmente. E as causas dessas mortes são di- versas: procedimentos desumanos impostos pela agricul- tura brasileira, ganância das indústrias de inseticidas, ori- entação equivocada oferecida aos agricultores e, finalmen- te, a própria ignorância que ainda impera nas zonas ru- rais do país. O agricultor é estimulado a plantar, mas o 9
  • 10. Marcelle Souza mercado exige produção e impõe preços. A necessidade de aumentar continuamente a produtividade agrícola leva o produtor rural às lojas agropecuárias. Elas, por sua vez, vendem a eles os agrotóxicos que vão eliminar as pragas e por consequência aumentar a produção da lavoura. Em contrapartida, os agricultores passam a manusear produ- tos altamente tóxicos que, no decorrer dos anos, lhes ti- ram a vida precocemente. Aos serem encaminhados aos hospitais são relegados à própria sorte. Muitos morrem intoxicados, outros sofrem consequências a longo prazo e as estatísticas ainda mostram um grande número de suicí- dios. Esse é o quadro captado, observado e investigado com persistência e indignação pela Marcelle. Este trabalho tem muitos méritos, mas ressalto três que considero fundamentais. O primeiro é o mérito da escolha da pauta. É um tema que raramente é tratado pelo jornalismo. Além disso, não é fácil se envolver com uma pauta que, antecipadamente, já se sabe que o que se vai ouvir não é poesia, nem é música para os ouvidos. Não se trata apenas de estudar um tema que faz parte do cotidiano rural de Mato Grosso do Sul. Os relatos dos agricultores demonstram como em determinados momentos é doloroso para o jornalista conviver com assuntos tão dramáticos. O segundo mérito a ser realçado neste trabalho é o da investigação jornalística. A autora manteve a determinação de conhecer criteriosamente a bibliografia científica sobre os riscos da utilização de agrotóxicos. Uma bibliografia recheada de dados estatísticos e comprobatórios. Depois a investigação se estende para as pesquisas de campo realizadas na área urbana e rural da cidade de Fátima do Sul, local onde foram registradas muitas mortes de produtores rurais por envenenamento 10
  • 11. Gosto de Veneno e suicídios. Falecimentos que estão intrinsecamente relaci- onados com a utilização de agrotóxicos. São muitos os ca- sos a serem revelados e a Marcelle foi conhecer de perto o cotidiano de homens e mulheres que cultivam lavouras na área rural desse município sul-mato-grossense. Ouviu suas histórias, entrevistou personagens, detalhou informa- ções técnicas, investigou as causas de tantas mortes, fez descobertas, deu voz a pessoas desconhecidas e trouxe à tona um problema que é tratado com certo descaso pela sociedade e pelas autoridades governamentais. O conteúdo do livro mescla os sentimentos e as histórias dos agricultores com impressionantes informações científicas. É a comprovação do flagelo sofrido por muitos produtores que seguem produzindo alimentos consumidos pela população brasileira. O terceiro mérito é o da persistência. É preciso insistir no trabalho quando se tem um tema tão árduo e áspero como esse. Ir fundo ao tema mesmo quando surgem muitas dificuldades é um grande mérito. É a insistência e a indignação que move o jornalista a realizar um trabalho diferenciado. É a persistência que estimula a concretização de um produto jornalístico que se destaca pela relevância social que possui. Um jornalismo que dá luz e vida a um tema que estava escondido dos olhos da sociedade. O resultado final é uma obra jornalística que revela com detalhes uma melancólica realidade brasileira. O livro reportagem intitulado “Gosto de Veneno” caminha no sentido positivo do bom jornalismo investigativo. Marcelo Cancio Professor Adjunto do Curso de Jornalismo da UFMS Doutor em Ciências da Comunicação pela USP Orientador deste Projeto 11
  • 13. Gosto de Veneno Sumário 1. A Primeira Vista......................................15 2. O Cheiro................................................27 3. O Silêncio..............................................39 4. O Gosto.................................................49 5. Um Novo Sorriso...................................63 13
  • 15. Gosto de Veneno 1. A primeira vista “Eu digo: ‘Padre Damião, eu quero ir pra Mato Grosso’. Daí o padre falou, ‘Meu filho, você vá pra Mato Grosso, porque lá dá para o homem arrumar o pão, São Paulo já ta muito cansado”. Erasmo Lunardo No sítio de poucos hectares, ela nos recebe com passos ligeiros, corpo curvado e um balde na mão. Estamos em Culturama, distrito de Fátima do Sul, Mato Grosso do Sul, e a simpatia daquela senhora, aparentemente frágil, nos convida a entrar na casa simples de madeira. São 242 quilômetros de Campo Grande, e outros 20 quilômetros da zona urbana do município. A cidade fica na região sul do estado, próxima a Dou- rados, e tem pouco mais de 18 mil habitantes. Foi criada em 1943 durante o Governo Getúlio Vargas com a inten- ção de que ali se desenvolvesse uma colônia agrícola. A vocação para o campo logo foi comprovada pelo plantio de algodão, que rendeu lucros à população até o fim da década de 1990. Na zona rural, ainda hoje predominam as pequenas propriedades, entre três e dez hectares, e os imigrantes nordestinos. O clima é ameno, as ruas são tranquilas e 15
  • 16. Marcelle Souza quase não se ouve barulho de carro por ali. Aliás, automó- vel é coisa difícil, ou estão parados nas garagens ou circu- lam vez ou outra, anunciando que alguém da cidade veio fazer uma visita. Comum mesmo são as motos pelo cami- nho e seus motoristas sem capacete, que cumprimentam a todos que cruzam a estrada de terra. Naquela manhã chove um pouco, o que dificultou nossa chegada ao local. Depois de uma longa viagem e das rápidas boas-vindas, o banco de madeira parece um tanto confortável para uma extensa conversa com aquela mulher de 1,50m de altura e de muitas histórias para contar. Foi batizada Adelina Oliveira Mendes, nasceu em Pernambuco e já soma mais de cinco décadas na casa construída com muito esforço no pedaço de terra ganhado durante a reforma agrária promovida pelo governo de Getúlio Vargas. Enquanto mostra os retratos da família, sua filha logo pega uma escova de cabelos para arrumar o coque que se desfez enquanto a mãe dava comida aos animais. Arruma as cadeiras, ajeita a luz e ainda ajuda Adelina a se lembrar dos detalhes que lhe escapam da memória. A família é de produtores rurais e imigrantes, que saíram de Pernambuco para Fátima do Sul em busca de melhores oportunidades. “Nós deixamos até terra por vender lá em Pernambuco, até hoje ainda tá lá por vender, e viemos”, conta ela, lembrando do fato que aconteceu há mais de cinquenta anos. As histórias de sucesso no Mato Grosso atraíram não só dona Adelina, assim como outras tantas famílias cansadas da seca do Sertão. Casou-se e veio em busca de vida nova, teve quatro filhos e até hoje mora na mesma casa construída com muito esforço quando chegara à terra prometida. Os filhos foram criados com o resultado de muito 16
  • 17. Gosto de Veneno trabalho: arroz, amendoim, milho e algodão são alguns dos produtos que viraram fonte de sustento para toda a família. “Aqui era uma riqueza do mundo, minha filha, só que acabava com as mulheres. As mulheres trabalhavam tanto que morriam. Morreu a finada Catarina, morreu a finada Antônia, morreu tudo as mulheres. Todo mundo tinha que trabalhar, se não quisesse dever até o cabelo da cabeça”, lembra a senhora. Assim como difundiam os primeiros imigrantes, o solo era mesmo bom para plantar, só que exigia dedicação de todos de sol a sol, já que era preciso pagar despesas domésticas e os insumos para a lavoura. Era sofrido, mas fome ninguém passava, afinal arroz, feijão e as verduras eram plantadas no terreno mesmo, logo ao lado do algodão. Galinhas e porcos também ajudavam a diversificar o almoço, que era servido aos trabalhadores no meio da lavoura. “O algodão enricou os povos que forneciam [semen- tes e insumos]. Eles ficaram podre de rico e nós, nem uma casa não tinha. Era só um rancho. Aí veio esse tal de soja que tá acabando com os homens. Porque tá muito rica a preparação, a plantação, a semente, o adubo e o veneno tão pior, tá mais caro do que tudo”, exclama Adelina sobre a desigualdade entre os que trabalhavam e os que enriqueciam com o cultivo da terra. Fala da terra, do plantio do algodão e do cheiro do veneno. “Aquilo pegava nas folhas e cheirava tão forte que criança não podia chegar perto. Dava coceira, mancha e amarelado na pele”. A história soa natural, como se o odor do agrotóxico fosse algo indispensável na vida dos que chegaram à nova terra. Saiu então da lavoura, ganhou os espaços da casa e, aos poucos, também a vida das pessoas. “Antigamente ele vinha em um pote de alumínio, daí quando acabava a mãe esvaziava o pote e fazia de caneca 17
  • 18. Marcelle Souza pra gente beber água”, lembra a filha de Adelina, Maria Nilza Mendes Rodrigues. E assim o desconhecimento facilitava a intoxicação dos agricultores, que usavam as embalagens de veneno para guardar comida, água, armazenar alimentos para os animais ou auxiliar nas tarefas domésticas. Uma exposição diária que levou o marido da agricultora a ter que abandonar a lida na terra em nome da saúde. Vômito, diarréia, dor de cabeça e, por fim, uma sensibilização que fez com que o médico o proibisse de chegar perto dos agrotóxicos por um ano. De tão acostumada à vida dura do campo, hoje Adelina não consegue nem aproveitar o descanso digno da velhice. “Ela ficou assim porque choveu nesses últimos dias e ela não pode trabalhar”, explica a filha, enquanto a senhora responde com os olhos, garantindo que o esclarecimento é verdadeiro. Durante a visita, seus olhos pareciam mais baixos que o normal, uma tristeza antiga de quem reduziu o significado de felicidade ao local onde mora. Na verdade, a vida perdeu um pouco o sentido para ela desde que o marido faleceu, há cerca de um ano. Nas fotografias, Adelina mostra um senhor moreno e sério que veste uma roupa clara e bem passada durante a reunião de família. Os olhos levemente enchem de lágrimas, enquanto a filha tenta acolhê-la nos braços. Ninguém pode medir quantas lembranças surgem naquele momento, só é possível perceber que a vida não é a mesma sem o companheiro de tantos anos. Desde que ele morreu, ela tem alimentado com mais dedicação um dos seus maiores prazeres: trocar cartas com os irmãos que moram em Pernambuco. Toda semana recebe as novidades de alguma parte da família pelo correio. Nos bilhetes carinhosos, parte da família relata as 18
  • 19. Gosto de Veneno dificuldades da lavoura, as conquistas dos filhos e, princi- palmente, a saudade que não cessa. Textos bem escritos, letras caprichadas e muito emoção em cada uma das letras. Nos envelopes de cartas e fotos estão guardadas as recordações que contam parte da história de Adelina e sua família. Orgulhosa, ela devolve para a filha cada lembrança que a faz não esquecer do passado nem desistir de continuar vivendo. Marcha para o Oeste A região do município de Fátima do Sul começou a ser ocupada no final da década de 40 por imigrantes que vinham do Nordeste do país. A mudança era resultado da política expansionista do governo Getúlio Vargas, que incentivou o f luxo migratório para regiões pouco exploradas, como Amazônia, Goiás e sul de Mato Grosso. A “Marcha para o Oeste” foi marcada pela criação, em 1938, da Divisão da Terra e Colonização, que além da doação de lotes, ficava encarregada de fornecer implementos agrícolas e materiais de construção aos imigrantes. “Essa fase da história do Brasil marca definitivamente o desenvolvimento das relações capitalistas no país, o que se dá de forma mais intensa após a Segunda Guerra Mundial, momento em que o capital externo vai incentivar o crescimento da indústria brasileira e tentar dominá-la”, explica o professor das Faculdades Integradas de Fátima do Sul (Fafisul), Nilton Paulo Ponciano. Desse modo, ele afirma que a colonização era vista como um acréscimo do mercado interno para a indústria. Mas existiam regras para receber os lotes destinados à reforma agrária: o produtor deveria ser brasileiro, ter mais de 18 anos, não possuir propriedade rural em seu nome e ser reconhecidamente pobre. Também estava 19
  • 20. Marcelle Souza proibida a concessão de terras a funcionários públicos de qualquer uma das esferas de governo. Durante o primeiro ano, o colono ainda recebia assistência médica e farmacêutica. Em 1943, o Decreto-Lei 5.941 oficializava a criação da Colônia Agrícola Nacional de Dourados, no então território federal de Ponta Porã. A medida visava a ocupar e, como consequência, aumentar a fiscalização na fronteira com o Paraguai, além de fechar o cerco à Companhia Matte Laranjeira, que favorecia a presença constante de estrangeiros e conflitos armados na região. Desse modo, a área, que segundo o decreto não poderia ter menos de 300 mil hectares, reforçaria a campanha também no campo ideológico, onde a ocupação territorial era símbolo de brasilidade para o governo Vargas. Porém, a demarcação da Colônia de Dourados só aconteceu em 1948, durante o mandato do presidente Eurico Gaspar Dutra. Eram 409 mil hectares que abrigariam cerca de 10 mil famílias de imigrantes atraídos pela qualidade do solo e as propagandas do governo. Nesse espaço, duas cidades foram projetadas: Vila Brasil, atualmente Fátima do Sul, e Vila Glória, onde hoje se localiza o município de Glória de Dourados. Na Colônia ainda foram fundadas Deodápolis, Douradina e Jateí. Nas décadas de 1960 e 1970 a região presencia um crescimento significativo, impulsionado pela instalação de fábricas e a construção de estradas que facilitaram o acesso da zona rural às cidades próximas. “Isso aqui era tudo cheio de gente”, lembra Adelina, sobre as famílias que cresciam os lotes vizinhos. As festas, todos os finais de semana, eram embaladas pelo forró e outras músicas nordestinas que ajudavam os colonos a matar a saudade da terra natal. Nesses bailes e casais se conheciam e casamentos acabavam. O resultado 20
  • 21. Gosto de Veneno eram fofocas e alegrias para o resto da semana, um sopro de felicidade aos que passavam a semana inteira na lida com a terra. Por um momento, os imigrantes esqueciam- se do cheiro do agrotóxico que pairava pelo ar. Eram tempos bons, lembram os mais velhos, que lamentam ver nos terrenos vizinhos o mato tomar conta. Dona Adelina foi uma das que presenciou primeiro os filhos e, em seguida, os amigos se despedirem do campo e irem para cidade. Onde antes era espaço de muito trabalho e um tanto de alegria, agora virou reduto de homens que lutam contra a falta de dinheiro para plantar e que sonham com os tempos áureos do algodão. Mulheres e jovens tornaram-se espécies raras entre os moradores da zona rural de Fátima do Sul. Elas buscam oportunidades de emprego melhores ou casamentos mais prósperos, enquanto os mais novos partem do sítio para estudar e conquistar a tão sonhada “vida melhor”. Talvez o mesmo sonho dos avós que saíram do Nordeste procurando terra boa para plantar e felicidade para toda a família. Alegre sabedoria No meio da tarde, as visitas chegam e ele ainda está dormindo. A nora nos recebe e alguns minutos depois o senhor já esta de pé. Chega de moletom escuro, um gorro na cabeça e o ar meio de atrapalhado de quem acabou de acordar. Mesmo assim, Erasmo Lunardo da Silva pergunta quem somos, estende a mão para cumprimentar um a um e abre o sorriso acolhedor. A casa de madeira é escura e parece muito confortável para um cochilo depois do almoço. Auxiliado pela nora, Erasmo senta em uma das cadeiras da cozinha e dispara a falar já nas primeiras perguntas. Um verdadeiro gozador, conta causos e brinca com a platéia como quem aprendeu 21
  • 22. Marcelle Souza a se divertir melhor com o passar dos anos. Filho único, o produtor nasceu em junho, mês de São João, em Pernambuco, de onde sente falta das moças bonitas e do verdadeiro forró. “Sou o filho preferido da minha mãe”, brinca. Em busca de uma vida melhor, deixou a terra natal para trás e partiu para São Paulo. “Lá toquei umas cinquenta roça, anotei tudo, tenho até o papelzinho”. Mas, como veio parar em Fátima do Sul? A nora responde por ele, dizendo que “foi coisa do governo”, mas os detalhes da história surgem em seguida com a explicação do produtor rural. “Um dia fui no Padre Damião. E eu digo: ‘Padre Damião, eu quero ir pra Mato Grosso’. Daí o padre falou, ‘Meu filho, você vá pra Mato Grosso, porque lá dá para o homem arrumar o pão, São Paulo já tá muito cansado”. Foi o suficiente para decidir mudar de novo e levar a família para onde muitos dos seus conterrâneos já tinham ido. “Aí eu digo, ‘olhe, mulher, eu vou é pra Mato Grosso. O padre deu esse conselho é porque não é ruim não, é bom’”. Quando chegou à região onde hoje é o município de Fátima do Sul, o agricultor encontrou muita gente plantando algodão, que ele tratou de cultivar em sua terra também. “Comprei muito algodão naquela época, mas embocou um presidente, que quando eu cuidei de mim, tomou o dinheiro todinho. Toquei muita roça naquela casa lá em baixo, um terreirão. Acabou o dinheiro, acabou a poupança. Agora tem aposentadoria, um negócio até bom que inventaram pra veio. Trabalhei tanto que não tenho nem cabelo branco, porque o cabelo já caiu tudo”, conta fazendo piada de si mesmo e fazendo os ouvintes sorrirem também. Ficar velho na zona rural parece ter um significado bem diferente dos anos a mais na cidade grande. É que o 22
  • 23. Gosto de Veneno trabalho sob o sol e os anos de exposição aos agrotóxicos deixam as rugas e os calos ainda mais aparentes. “Passei tanto veneno, que nem sei da conta. Tinha um chamado Tatuzinha que, Ave Maria, era de morrer conversando e rindo”, relata Erasmo. Ele mesmo ficou tão sensível que não consegue mais chegar perto das máquinas de aplicação de agrotóxico. O agricultor e seus vizinhos lembram-se das nuvens de fedor nos períodos em que todos passavam os produtos em pó nas lavouras. Tem o sotaque carregado e, no rosto, traz as marcas dos anos de trabalho duro no campo. Entre uma pergunta e outra, ele ajeita o gorro na cabeça em um gesto lento, preguiçoso. Às vezes não escuta e mesmo assim ri, ação espontânea de quem aprendeu a fazer piada com as passagens da própria vida. Talvez o grande problema da velhice para Erasmo sejam os lapsos de falta de memória, que, apesar dos sustos, rendem-lhe boas histórias para contar. “Esses dias sai daqui e fui espiar a roça. Meu amigo, quanto acordei de mim, tava perdido. Ah, menino, eu andei numa roça de milho ali e ia quebrando no peito o milharal deste tamanho aqui. Ah, negócio danado, quanto mais caminhava, mais perdia. ‘Eita que agora o Erasmo veio vai embora’, pensei. Soquei a perna num buraco de estaca, que a perna veio aqui. Ai eu disse, ‘como que eu tiro a perna daqui?’ Eu deitado assim, espiando pra perna. E disse, ‘Deus tem dó do veio’. Aqui, quando foi um pouco, a perna veio. Deus é bom demais. Mas, menino, eu sofri. Ave Maria!”, e mais uma vez a platéia aproveita para dar boas gargalhadas. A alegria vai embora quando comenta da esposa falecida há mais de um ano. “A mulher veia Deus já levou”, diz Erasmo, enquanto perde o olhar entre as plantações do terreno vizinho. São alguns minutos de lembrança e a 23
  • 24. Marcelle Souza saudade dos 54 anos de casamento toma conta do senhor sentado na cadeira. “Olha, minha filha, ela era um mulher muito boa pra mim e às vezes vejo ela andando assim pelo terreiro”. A união deu fruto a 12 doze filhos (“rapaziada bonita”, segundo ele) que o visitam com freqüência no sítio. A vida, agora sim, é tranqüila. Os vizinhos são sempre conhecidos e o silêncio das tardes de sol só é interrompido pelo cantar de alguns pássaros. Enquanto na cidade o tempo parece passar rápido demais, no campo os dias são longos, deixando as lembranças maiores ainda. E para quem abandonou a terra querida para se aventurar em um desconhecido Mato Grosso, restam agora as imagens e o carinho pelo que ficou por lá. “Não voltei pro Pernambuco, mas ainda tenho vontade de ir. Eu fico assim pensando, lá é coisa boa. Lá eu levava tudo, vendia na feira, não apertava com nada não. Aqui é difícil muita coisa”, compara a sabedoria sob a forma de um homem de 85 anos. Adelina e Erasmo, dois amigos que representam o grupo de imigrantes que deixou a Região Nordeste, acostumou-se ao fedor do veneno, às intoxicações consequentes dele e viu morrer muitos jovens com os goles do que era matar apenas as pragas da lavoura. Criaram os filhos no campo, beberam nas embalagens de agrotóxico que viraram copos da cozinha e vivem hoje em uma tristeza silenciosa, causada pela falta dos companheiros que se foram e dos amigos que preferiram morar na cidade. Testemunhas de uma época áurea, em que lavouras de algodão ocupavam todas as propriedades da região. Época dos vizinhos festeiros e de algumas notícias tristes, quando alguém era invadido pela tristeza e preferia morrer 24
  • 25. Gosto de Veneno a lutar pela vida. 25
  • 27. Gosto de Veneno 2. O Cheiro “A medida mais segura para evitar o veneno é não usá-lo” Sebastião Pinheiro Um pequeno espaço de terra, uma casa de madeira e o Seu Manuel. A conversa acontece em um banco no quintal, e as primeiras perguntas deixam o agricultor de 73 anos um pouco desconfiado. Ele observa bem, questiona, mas logo sorri e deixa os receios de lado. Manuel Firmino Roberto nasceu em Alagoas, mas saiu da terra natal aos 22 anos. O primeiro destino foi o interior de São Paulo, de onde partiu pouco tempo depois em busca do sonho de sucesso no desconhecido estado de Mato Grosso. De Alagoas, ele ainda carrega o sotaque nordestino, a fala apressada, as palavras que se atropelam e um bom humor irresistível. Para ele que faz de “filho da puta” nome, os palavrões saem sem nenhum temor. A conversa frouxa e as opiniões sobre a atuação do presidente Lula misturam-se a uma história de vida difícil. A pele queimada de sol e os traços aparentes da idade mostram que o trabalho na lavoura fez os anos parecerem 27
  • 28. Marcelle Souza mais duros para Manuel Firmino. Sua esposa morreu há muitos anos. O motivo ele não sabe ao certo, e mesmo assim tenta explicar o que poderia ter levado a companheira embora. “Um dia ela tava com dor de cabeça e tomou Aguardente Alemanha pra curar. Tomou um café e foi prender umas roupas no varal. Ficou sem fala, levei pro doutor, mas não teve jeito. Parece que foi derrame”, narra o produtor rural, que explica, em seguida, que a Aguardente Alemanha era uma raizada usada para curar vários males. De lá para cá a vida foi perdendo um pouco da graça para Seu Mané, como é conhecido por todos na região. Os botões abertos da camisa revelam sua magreza, enquanto os olhos baixos indicam um pouco de infelicidade. Em um dia, sem muitas brincadeiras, Manuel conta o motivo do seu mais profundo desgosto. Com a mesma fala apressada, ele lamenta o desrespeito e os maus tratos que sofre do filho de 35 anos, Abrão Firmino Roberto. “Nessa idade, minha filha, tendo que aguentar o filho maltratando a gente”. Os dois são hoje o que restou da família, moram em uma casa simples com apenas um quarto, uma sala pequena, cozinha e banheiro. As paredes de madeira não escondem a desordem e o vício de dois homens solitários: são nove horas da manhã e a garrafa de pinga sobre a mesa já está pela metade. A sala da casa traduz um pouco do que foi e ainda é a vida de Manuel. Nas paredes estão pendurados retratos da família, quadros antigos, daqueles que ainda eram pintados a mão. O sofá é velho e fica bem em frente à televisão, ferramenta importante de conhecimento para quem, assim como ele, lê pouco e tem a TV como a principal fonte de informação. Ao lado do aparelho e também atrás da porta, estão 28
  • 29. Gosto de Veneno os sacos de sementes e as embalagens de agrotóxico. Como cada linha daquele rosto e cada tábua da casa de madeira, venenos da classificação “extremamente tóxicos” estão presentes até nos momentos de lazer da família. Desde quando Manuel usa agrotóxicos? Pergunta difícil para um homem que viu os anos passarem com uma máquina de aplicação manual nas costas. Em seu lote de terra já foram cultivados produtos como fumo, arroz e algodão. Na última década, assim como os demais produtores da região, Manuel decidiu investir na soja e no milho. Mas o pouco dinheiro e as secas sucessivas diminuem a cada safra os ganhos do produtor. Mesmo sem conseguir largar o trabalho na terra, Seu Mané parece cansado. Nota-se pelo rosto, o corpo franzino e as queixas frequentes. “Tem dia que tô lascado de dor, minha filha”, conta ele sobre a artrite que, às vezes, o impede de trabalhar. Perfume Inconfundível “Barrage”, “”, “Azodrin”, “Tamaron”, “2,4D” e “3,10” são velhos conhecidos de agricultores como Seu Mané. Para alguns, essas palavras estranhas podem até soar como estrangeiras, mas na verdade são alguns dos agrotóxicos mais usados em Fátima do Sul para combater as pragas do algodão, do milho e da soja. A maioria pertence à família dos organofosforados e mudaram a idéia do que é saúde para aquela população. Manuel e o filho Abrão chegam a enumerar os sintomas que se tornaram cotidianos: dor de cabeça, náusea, coceira e até o “perfume” inconfundível. “Quando a gente aplica o veneno, pode até tomar banho depois, mas a roupa e o suor fede Tamarão (sic). Não sai do corpo, né, Zé?”, comenta Manuel para o agente de saúde que nos acompanha. 29
  • 30. Marcelle Souza Há ainda muitas histórias de intoxicação aguda, em que os sintomas surgem rapidamente após uma exposição ao agrotóxico. “Uma vez tava passando Tamarão e o tempo tava quente. Tive dor no estômago, vômito. Fiquei ruim umas duas semanas”, conta Abrão, que ainda acrescenta, “Tamarão mata hein, não precisa nem beber”. Com a mesma naturalidade, Manuel, que está sentado no sofá velho da sala, vai acrescentando à conversa outros relatos tão comuns e graves quanto os do filho, que permanece em pé ao seu lado. “Naquela época a gente usava muito veneno em pó, colocava a máquina nas costas e passava na lavoura. Dava uma coceira danada. Outra vez passei Folidol, intoxiquei e fui pro hospital”. Fatos nada isolados, que fazem parte das histórias da vida de praticamente todos os produtores rurais da região, já acostumados ao cheiro e às consequências da exposição aos agrotóxicos. “Uns 10 anos atrás eu passei quatro dias fedendo porque tomei um banho de veneno. A máquina caiu em cima de mim e fiquei mais de um mês vomitando. Não fui pro médico, só tomei uma água com açúcar mesmo”, relata João Lima de Jesus, vizinho de Seu Manuel. Ele ainda lembra que as aplicações de veneno em pó durante o plantio do algodão eram as piores. “Aquilo queimava as costas. E quando tava na época de aplicar, a gente ia dormir inalando aquele pó”. Em cada casa visitada, os relatos parecem os mesmos. Sintomas, cheiros, dores e o mal-estar característico das intoxicações agudas. Mas o que parece tão estranho aos ouvidos vindos da Capital, já se tornou parte inerente à lida no campo. Para eles, que acham graça do espanto dos forasteiros, veneno é parte da vida e intoxicação torna-se mera consequência desse viver. Existem, porém, outras histórias menos comuns e tão sérias quanto às anteriores. “Uma vez colocaram Tamarão 30
  • 31. Gosto de Veneno (sic) no nosso feijão. Eu comi, o Abrão também. Deu uma disenteria braba e ele ficou até internado”, relata Manuel, sobre uma possível tentativa de assassinato. Segundo ele, algum inimigo da família teria colocado agrotóxico dentro da panela de feijão, o que, felizmente, só resultou em uma visita ao hospital. Há os que conhecem os perigos e até sugerem medidas para o fim das narrativas de intoxicação no campo. “Acho que o 2,4D devia ser proibido, porque acaba com tudo num raio de 1 quilômetro, galinha cai dura”, relata o vizinho de Manuel, Benedito Francisco da Silva. Curioso é mesmo Benedito não dar a menor importância aos sintomas que se tornaram parte do seu dia a dia. Em seus 30 anos de trabalho na lavoura, dor de cabeça, “piniqueira”, enjôo, formigamento já são mais do que comuns. Apesar de conhecer as consequências do uso de agrotóxico por tanto tempo, Manuel e o filho Abrão, e os vizinhos Benedito e João Lima dispensam os equipamentos de proteção individual (EPIs) na hora de passar o veneno na lavoura. As desculpas são sempre as mesmas: eles esquentam, atrapalham e são pouco confortáveis. Argumentos que, segundo o professor do departamento de Química da UFMS, Dario Xavier Pires, na maioria dos casos são válidos. “A gente tem que pensar que é muito difícil você vestir o EPI e entrar em uma lavoura de milho às duas horas da tarde. O milho é alto, fecha, não circula ar, ninguém aguenta”, explica o pesquisador. Para ele, porém, esse não é o único motivo dos equipamentos serem descartados pelos trabalhadores rurais. Dario indica que culturalmente o brasileiro não dá importância ao trabalho com segurança, diferente dos produtores dos países desenvolvidos, onde a proteção é tão importante quanto a própria lavoura. Esse descaso pode 31
  • 32. Marcelle Souza ser comparado pelos relatos dos próprios agricultores em Fátima do Sul, que afirmam que a primeira e única informação observada no rótulo desses produtos são as concentrações utilizadas na aplicação. Pesquisador e duro crítico da indústria de defensivos agrícolas, o engenheiro agrícola Sebastião Pinheiro também defende o argumento dos produtores, destacando que na maioria das vezes a utilização dos EPIs torna-se inviável no campo. “Coloque todo o equipamento de proteção individual e depois fique andando à sombra debaixo de umas mangueiras em Mato Grosso do Sul em qualquer uma das estações. Sua morte ocorrerá em cinco ou seis horas por desidratação”, desafia o ambientalista. Pinheiro vai além afirmando que tais ferramentas de trabalho se tornaram recursos das empresas para transferir a responsabilidade pelas intoxicações. “Indústria necessita de álibis, pretextos para pôr a culpa nas vítimas. A medida mais segura para evitar o veneno é não usá-lo”, garante Pinheiro. “Aqui no Brasil os estudantes de agronomia aprendem que os culpados pelas intoxicações são os agricultores por não usarem proteção individual. Há casos de funcionários de floriculturas na Flórida que morreram intoxicados pelo veneno nas rosas importadas da Colômbia. Será que não se deveria obrigar as pessoas que trabalham nas floriculturas a usar equipamento de proteção?”, chama atenção o pesquisador, que é membro do Grupo Interdisciplinar de Pesquisa e Ação em Agricultura e Saúde (GIPAAS) e ambientalista da Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural (AGAPAN). Nem obrigar os produtores a usarem equipamentos, nem colocar toda a culpa na indústria dos agrotóxicos, de acordo com Sebastião Pinheiro a melhor saída seria adotar 32
  • 33. Gosto de Veneno a Diretiva Comunitária da União Européia 414/91, que obriga o agricultor que quiser usar venenos a fazer um curso de 400 horas e passar por uma habilitação. “Minha proposta é radical. O curso deveria ser pago 33% pelas indústrias, 33% pelos ambientalistas contra os venenos e 33% pelo governo”. Só uma talagada de cachaça Assim como tantos produtores, Seu Manuel Firmino sabe ler, mas dispensa as instruções contidas nos rótulos dos produtos. Destes, a única parte realmente importante são as concentrações recomendadas para a aplicação do veneno em cada tipo de lavoura. Enquanto isso, ficam de fora informações sobre grau de toxidade e equipamentos de proteção individual que devem ser usados para cada agrotóxico. “Isso de dizer que agricultor não conhece rótulo não é bem verdade, eles sabem o que é rótulo, as informações. Talvez não saibam as minúcias, mas eles sabem qual produto é o mais e qual é o menos tóxico. Eles têm conhecimento do risco, mas eu acho que pelo fato de a vida inteira trabalharem com aquilo, a noção de perigo vai sendo amainada”, explica o pesquisador da UFMS, Dario Xavier Pires. Segundo ele, a falta de atenção ao ler os cuidados contidos no rótulo mostra uma tendência do agricultor a minimizar o risco do contato com um produto já conhecido por ele. “A noção de risco, por causa da rotina de uso, fica de algum modo esmorecida. Eles têm a noção de que é perigoso, mas é tanto tempo trabalhando com aquilo que acabam perdendo os cuidados”. Por causa do tempo prolongado de exposição, alguns produtores chegam a relatar que foram proibidos de chegar perto dos agrotóxicos, tamanha sensibilidade que 33
  • 34. Marcelle Souza atingiram. O organismo fica extremamente potencializado pra isso. “Alguns agricultores se mostraram extremamente preocupados com um tipo de inseticida que o princípio ativo é o piretróide, porque ele provoca alergia, apesar de não ser tão tóxico. Então, quando ele entra em contato com o piretróide, os dedos ficam inflamados e a mão fica vermelha. Mas eles não se preocupam com os que não provocam alergia e são extremamente tóxicos”, explica o professor do Departamento de Química da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Prova da falta de cuidado de muitos produtores acostumados com o trabalho na lavoura, o vendedor de uma loja de produtos agropecuários, Pedro Vieira Santos, diz: “Antes ninguém usava equipamento, só um pano no nariz quando o veneno era muito fedido. ‘Se o agrotóxico não é fedido, não mata’, é assim que os produtores pensam. Só que os mais perigosos são exatamente os que não têm cheiro”, relata o vendedor. São maneiras de enganar o pouco de medo que ainda possuem de algo que, apesar da gravidade, já se tornou habitual ao trabalho desses produtores. Outro sinal de que eles tendem a minimizar os riscos são os remédios caseiros que afirmam usar antes da aplicação. Entre as “curas milagrosas” está o leite. “Passei mal e depois tomei um copo de leite”, conta a maioria dos agricultores, já que o produto é visto como forte aliado para “proteger” o corpo contra a alta exposição aos agrotóxicos. Durante a realização de suas pesquisas, Dario Xavier descobriu que além dessa bebida, a cachaça também é um forte aliado dos produtores na hora de aplicar o veneno. “É da cultura machista isso de enfrentar o perigo, então, principalmente os mais novos, tomam uma talagada de cachaça e vão passar o veneno na lavoura. Dessa forma, para muitos, a cachaça, de algum modo, previne, mas a 34
  • 35. Gosto de Veneno gente sabe que é o oposto”. Para a psiquiatra Jussinalva Aguiar a bebida é uma pseudofortaleza que faz com que a pessoa se sinta aparentemente mais forte. “O ser humano é onipotente. Acha que vai acontecer com o outro, mas nunca com ele”, completa a médica. Ao contrário do que pensam os moradores da zona rural de Fátima do Sul, a bebida alcoólica deixa o corpo mais propenso à desidratação. Portanto, ao invés de buscar as curas mágicas, medidas mais eficazes poderiam ser adotadas: não aplicar agrotóxico com o sol muito forte, porque a insolação favorece a penetração do veneno na pele , ter uma dieta rica em proteína e não fumar ou co- mer durante aplicação. Na porta da cozinha Enquanto os homens sentem na pele as consequências das intoxicações, em casa as esposas também conhecem o tamanho do perigo. “O 3,10 era o mais pior, era o gambá, fedido demais. A roupa dos homens tinha deixar lá fora e lavar com sabão de soda muito forte pra não envenenar o corpo deles depois. Aquilo pregava nas folhas da lavoura e só saía com chuva. Um cheiro forte que criança não podia ir lá. Eu ia levar comida na roça e não levava criança, porque pregava no couro, dava coceira, ficava umas manchas meio amareladinha no couro”, descreve Dona Adelina, que nunca trabalhou na roça com os filhos e o marido, e no quintal era capaz de sentir o fedor do agrotóxico. Em casa, mulheres como ela são as primeiras a acolher os familiares intoxicados e são elas que chamam o socorro nessas horas. “Meu marido intoxicou duas vezes. A primeira vez ele ficou inchado e a outra vez ficou sem poder caminhar. Quem curou ele foi a Dona Marina Japonesa. 35
  • 36. Marcelle Souza Ela é viva ainda, agora parece que o marido dela, Seu Jor- ge, morreu. Meu marido não podia andar não. Atiraram ele num carrinho de pneu de um homem ali, chamado Zé Pereira, e pagaram R$ 3 pra levar, não me lembro, mas acho que foi pra Dourados”. E emenda: “não ficou no hospital, só deram remédio.Teve vômito, diarréia e dor de cabeça. Ele vomitou até sangue. Ficou ruim um mês. Foi quando ele ficou um ano sem pegar em veneno. Era o de passar na maçã, o Bicudo, nunca tinha ouvido falar, mas quem falou foi um homem chamado Daniel” detalha a senhora viúva de 81 anos. Mas mães, esposas, filhas e nora de produtores rurais, não percebem o perigo do veneno apenas de casa, embora não figurem entre as estatísticas de intoxicação aguda, caracterizada por reações rápidas diante de exposições ao veneno, o ambiente as expõe aos resíduos e, assim como os homens, as mulheres sentem as consequências das intoxicações crônicas, cujos sintomas aparecem anos depois e podem se manifestar em várias doenças. Da cadeira do laboratório de informática do Departamento de Química da Universidade Federal, o professor Doutor Dario Xavier Pires, que estudou o fenômeno em Fátima do Sul durante mais de 10 anos, explica a relação das mulheres com os agrotóxicos. “Se você for lá em Fátima do Sul, você vê: a casa de moradia é rodeada, às vezes, de soja, milho. A agricultura chega, basicamente, quase na porta da cozinha. Então, se você está aplicando o veneno, mesmo que a pessoa não esteja aplicando diretamente, ela está exposta. Outra coisa, são elas que fazem a lavagem das roupas dos homens, então elas também estão expostas apesar de não diretamente”. O ambientalista Sebastião Pinheiro tem ainda outra explicação para os casos de intoxicação crônica em mulheres. Segundo ele, elas são mais sensíveis à ação 36
  • 37. Gosto de Veneno cumulativa dos venenos porque as doses são letais em quan- tidades menores do que as expostas aos homens. “Um ve- neno para a mulher é muitíssimas vezes mais perigoso. Elas passam aos filhos a herança citoplasmática e o primeiro alimento, muitas substâncias tóxicas ficam retidas nas gorduras e passam para o bebê. Os organofosforados causam disrupção endócrina, ou seja, alteram a concentração de hormônios para mais ou para menos alterando todo o metabolismo da pessoa”. A relação é perigosa, só que o problema é que o fato não é estudado com maior profundidade. 37
  • 39. Gosto de Veneno 3. O silêncio “Meu filho ficou três dias dentro do quarto, só tomava água e café. E gritava ‘eu matei meu irmão!’ Um dia o médico mandou me chamar e disse ‘O seu menino tem a depressão mais terrível que existe. Só sai se tomar remédio’. E ele tomou por cinco meses e até hoje ainda toma” Sinésia dos Anjos Ao lado de um grande terreno com alguns pés de eucalipto, mora dona Sinésia Maria dos Anjos. Assim como as demais, o acesso à sua residência também é de terra e a chuva exige mais destreza dos motoristas que se arriscam na lama escorregadia para chegar aos sítios que ficam do outro lado da rodovia. A casa de alvenaria parece bem cuidada e, logo na entrada, um coração feito na terra com pedras e algumas flores “recebem” os visitantes. O enfeite foi feito por um dos filhos de Sinésia durante uma das visitas rápidas que costuma fazer à mãe. Logo à frente, a anfitriã nos recebe sem nenhum entusiasmo, deixando claro que a visita não é bem-vinda. É uma senhora pequena, de 82 anos, olhos fundos e magreza que gera compaixão dos demais. Tem três filhos e um enteado, mas apesar da recepção graciosa das rosas em formato de coração da entrada, a história dessa família 39
  • 40. Marcelle Souza não parece tão doce. No começo responde sempre com poucas palavras, diz apenas que sua vida não é interessante o suficiente para ser contada. O olhar distante revela que seu grande problema é lembrar-se da dor que parece ser inerente. Aparenta ser uma mulher frágil e lúcida, resultado de uma força inexplicável e uma loucura que muitos não suportariam. Aos poucos saem as primeiras palavras sobre a história, no começo tão parecida com as outras que tinha escutado nas andanças pela região. “Casei e deu na cabeça de vir pro Mato Grosso”, conta Sinésia. Nasceu na Bahia e aos vinte anos casou-se com um homem viúvo, que já tinha um filho de outro casamento. Sobre o romance, ela se esquiva de buscar detalhes, e continua com o relato sobre a mudança para tão longe. “Lá era difícil pra viver”. O marido então ficou sabendo que para as bandas de Mato Grosso tinha gente dando certo. “Ele perguntou se eu queria vir e concordei”, comenta. Mas os primeiros anos em uma terra tão distante não foram fáceis. “Eu chorava dia e noite. Pensava que nunca mais ia ver meus pais”, lembra a senhora, ainda com uma feição de tristeza. Felizmente, apesar da distância, vez ou outra o pai ainda vem visitá-la, mas Sinésia nunca mais viajou para a terra natal. Entre uma palavra e outra, é impossível não observar seu enteado, que caminha de um lado para o outro na varanda feita de madeira nos fundos da casa. É um homem de mais de 50 anos e notavelmente tem uma deficiência mental. Resmunga o tempo todo e cospe no chão quando para. Está fora da conversa, parece querer chamar a atenção, os visitantes não conseguem tirar os olhos dele. Sinésia, no entanto, ignora as ações do enteado, mostrando que a cena se tornou cotidiana para ela. Os dois são hoje o 40
  • 41. Gosto de Veneno que restou da família, ele vive em um mundo distante, inacessível, enquanto a senhora sofre sozinha uma tristeza que parece que só terá fim no dia de sua morte. “Minha vida foi muito sofrida. Vivi pra criar filhos, netos e bisnetos”, diz ela, sem saber que a expressão de suas palavras está marcada em seu rosto. O motivo do olhar perdido e da falta de esperança na vida é esclarecido quando Sinésia começa a falar sobre os filhos, que trabalharam no campo desde crianças. “Tem um que o juízo dele não é muito bom desde pequeno. Já ficou internado em Fátima do Sul, Campo Grande e São Paulo uns três meses. Tá sempre atrás de uma pinga e conversando lorota. Fica me surtando. Às vezes é agressivo e triste”, conta a mãe. O que parecia só tristeza logo foi diagnosticada como depressão. “Ele ficou pior depois que vendeu toda a madeira dos eucaliptos que eu tinha no terreno do lado. Só que o homem nunca pagou. Daí, acho que ele ficou com remorso, porque eu não queria que vendesse. Ficou com olho fundo e não comia quase nada”, lembra Sinésia, sobre o que desencadeou a doença do filho mais velho. Antes de contar a próxima história, ela para poucos minutos, lembra-se das coisas que viveu, dá um leve suspiro e diz: “Já sofri tanto nesse mundo”. Recorda das crises de depressão, das bebedeiras e internações do filho que quase a colocaram em um processo de loucura também. E, como se não bastasse, pouco tempo depois sua lucidez seria testada novamente. Quando ainda se recuperava do tratamento do mais velho, uma fatalidade fez Sinésia perder seus outros dois filhos. “Ele vinha dirigindo o trator calmo, devagarinho, mas o outro menino tinha bebido e caiu do trator. Quando percebemos, ele tinha passado por cima do irmão”. O segundo morreu na hora, enquanto o motorista entrou em uma depressão profunda que até hoje, dez anos depois 41
  • 42. Marcelle Souza do ocorrido, faz o homem ficar grande parte do ano internado em uma clínica pública na Capital. “Meu filho ficou três dias dentro do quarto, só tomava água e café. E gritava ‘eu matei meu irmão!’ Chorava que dava dó, daí não teve quem desse jeito. Tivemos que mandar ele para Campo Grande e um dia o médico mandou me chamar. ‘O seu menino tem a depressão mais terrível que existe. Só sai se tomar remédio. E ele tomou por cinco meses e até hoje toma”. O acidente foi confuso, a mãe estava ali no meio dos curiosos que se reuniram para saber o que havia acontecido. Lembra-se apenas que a dor era muito forte e não conseguia compreender o que estava acontecendo. Naquele momento ela mal podia entender que além de suportar o luto, teria que aprender a ver seu outro fi- lho perder a vontade de viver. Até hoje ele passa de 2 a 3 meses internado em Campo Grande, volta para a casa da mãe, mas logo tem que retomar os tratamentos na clínica psiquiátrica. “Quando ele vem, arranja um falatório que aborrece até os vizinhos. Aí tem que internar ele de novo”, conta. A mãe franzina, que tira forças de onde parece não ser possível, lamenta o rumo que a vida tomou. “Eu tenho sofrido muito. Tem dia que fico de cabeça baixa pensando nesse menino. Antes ele tinha vontade de ter as coisinhas dele, mas agora nunca vejo do jeito que ele era naquela época”, diz. Dor de quem perdeu as esperanças de ter uma vida melhor e teve que se acostumar com a falta de brilho nos olhos. Mas a conversa que trouxe de volta as lembranças ruins conseguiu também iluminar alguns minutos do dia daquela mulher. Ao final da entrevista surge um pequeno sorriso, resultado simples por alguém ter dedicado um pouco de atenção à sua história de vida. Tímida, pede que 42
  • 43. Gosto de Veneno as visitas voltem outra vez e tanta dor é aliviada com um abraço de despedida. Nem fraco nem esquisito A tristeza no campo é um silêncio assustador, uma falta de esperança de que a lavoura dê lucro e de que a região volte a ser populosa como antigamente. Não existem mais festas de forró, como as que os imigrantes faziam logo que chegaram em busca de uma nova vida. O tempo também parou, os filhos foram embora e os poucos que ficaram vivem das lembranças. Nos idosos isso é mais aparente, sentem-se sozinhos e a falta de perspectiva para prepará-los para a despedida final. Por isso, uma simples conversa funciona como uma catarse, trazendo à tona a dor, a saudade e as lembranças que esqueceram por alguns instantes. Para o pesquisador da UFMS Dario Xavier Pires, os sintomas que se aproximam da depressão são evidentes tanto no contato com os produtores quanto nas conversas informais com profissionais da saúde. “Eu nunca me esqueço de um médico do Programa Saúde da Família, que não posso dizer o nome, sentar e dizer: ‘Fátima do Sul é uma cidade de loucos’. Isso porque ele nunca tinha visto tamanho consumo de remédios controlados”. A cidade não possui Programa de Saúde Mental por isso, em grande parte dos casos, os doentes são encaminhados para Dourados ou Campo Grande, que fica a 242 quilômetros de Fátima do Sul. Para a psiquiatra, Jussinalva Silva de Aguiar, o tratamento longe de casa prejudica a recuperação do paciente, que vez ou outra acaba voltando à cidade de origem e sofrendo um retrocesso em relação aos avanços conquistados pelos médicos. Sem a família, a pessoa também se sente desamparada diante do ambiente estranho e das dificuldades que surgem durante 43
  • 44. Marcelle Souza o tratamento. Há 20 anos, parte dos casos de depressão, porém, não eram sequer identificados. Isso porque a assistência à saúde para as populações rurais era ainda mais deficiente e a doença não chegava a ser diagnosticada pelos médicos. O problema é que nos casos graves, a falta de tratamento pode levar ao suicídio, tema também recorrente nas conversas com os produtores. “Normalmente os casos de suicídio estão ligados a quadros depressivos. Mesmo que a família diga que não, em uma análise mais profunda acabamos descobrindo que a pessoa já vinha apresentando sintomas. No meio rural é pior, porque eles não têm muita perspicácia do lado psíquico e humano. Dizem que a pessoa é meio esquisita, fraca, o que na verdade pode ser uma depressão ou esquizofrenia”, explica a psiquiatra. Existem pesquisas no Brasil e em outros países que estudam a relação entre a exposição aos agrotóxicos organofosforados e a depressão. No meio acadêmico o debate é pouco conhecido, mas produz boas discussões sobre a efetiva ligação entre os fatores. De um lado, estão pesquisadores, como o médico toxicologista Ângelo Zanaga Trapé, que acreditam que os levantamentos realizados até hoje não conseguiram sustentar a relação. Do outro, representando os defensores dos estudos sobre o tema, o engenheiro agrônomo Sebastião Pinheiro afirma com veemência que a intoxicação por organofosforados resulta não só na depressão, como está diretamente relacionada aos casos de suicídios em regiões onde os produtores estão expostos ao produto. Nessa discussão, o consenso é que esse tipo de agrotóxico inibe a enzima acetilcolinesterase, causando o acúmulo do neurotransmissor acetilcolina e a consequente superestimulação das terminações nervosas. O resultado 44
  • 45. Gosto de Veneno são sintomas conhecidos pelos produtores, como dor de cabeça, tontura, ânsia de vômito e palpitação “Entre um neurônio e outro existem as fendas sinápticas, onde ficam esses neurotransmissores. A intoxicação por agrotóxico causa variações qualitativas e quantitativas nas sinapses, que agem na alteração do humor, o que pode causar tanto sintomas depressivos, como o aparecimento de manias e agitação”, explica a psiquiatra Jussinalva Aguiar. A especialista ainda destaca que a depressão causada pelo uso de agrotóxicos é exógena, ou seja, de causa externa, resultado da intoxicação a longo prazo. Entre 2004 e 2005, um grupo de pesquisadores da UFMS realizou um levantamento sobre os estados depressivos e os níveis da enzima colinesterase em 261 agricultores expostos aos organofosforados em Fátima do Sul. Os resultados apontaram que 149 produtores (57,1%) relataram algum tipo de sintoma após o uso dos agrotóxicos, e 30 pessoas apresentaram Distúrbios Psiquiátricos Menores (DPM), sendo que três destes já haviam tentado cometer suicídio. Em 24 agricultores foi detectada a redução da ativi- dade enzimática em relação ao período de não exposição, abaixo do limite inferior de referência do grupo controle, e foram considerados extremamente expostos. Destes, cin- co confirmaram DPM. O estudo ainda diagnosticou a as- sociação entre os distúrbios psiquiátricos, os baixos níveis de escolaridade e uso de pulverizadores costais, o que indica um aumento do risco por conta das condições inseguras de aplicação. Câncer Segundo a Agência Internacional para Pesquisa de Câncer (IARC), alguns tipos desses agrotóxicos são consi- 45
  • 46. Marcelle Souza derados cancerígenos. Em Fátima do Sul, a observação a campo aponta para o câncer como possível reflexo da ex- posição prolongada aos organofosforados. “Quando nós fomos a Fátima do Sul, as pessoas citavam que o índice de câncer na cidade era elevado e estavam preocupados. Talvez essa seja uma evidência de que o número é mesmo alto, já que a própria população começa a perceber isso”, comenta o professor de Química da UFMS, Dario Xavier Pires, que esteve na zona rural do município coletando informações para sua pesquisa de doutorado. E não é só para os visitantes que a incidência da doença parece ter aumentado. Para o médico Hermindo de David, do Hospital Nazareno, em Fátima do Sul, há 20 anos esse tipo de relato não era tão comum quanto os que chegam com frequência aos profissionais da saúde do município. “Antigamente quase não existiam casos de câncer, agora percebemos que o número aumentou significativamente e isso pode ter um conexão com o uso de agrotóxico”. Segundo David, os mais comuns são o de mama, próstata e aparelho digestivo. Mais uma vez, como o tratamento não pode ser feito na cidade, os pacientes são encaminhados à Capital. “Durante os contatos para o nosso trabalho, eu me lembro de uma enfermeira do setor de oncologia do Hospital Universitário, em Campo Grande, comentar sobre o grande número de pacientesque vinham da região de Dou- rados, como crianças com câncer de medula ou com defei- to lábio-palatino”, lembra o pesquisador. Durante as décadas de 1960 e 1970, o solo e os produtores foram expostos aos organoclorados, que possuem alta toxidade, bioacumulação e persistência no ambiente por muitos anos. São agrotóxicos extremamente cancerígenos e a maioria deles já foi proibida no Brasil. O 46
  • 47. Gosto de Veneno problema é que os resíduos de aplicações anteriores po- dem ter permanecido no ambiente, o que torna necessá- ria a realização de estudos para detectar até que ponto essa contaminação pode ter afetado os agricultores do município. “Se agora a população rural diz que não há assistência técnica, nem atenção à saúde, imagina na década de 60, 70, quando eles chegaram. Além disso, tinha todo um programa de financiamento dos bancos que só liberavam o dinheiro mediante o uso de veneno”, critica Dario Xavier, sobre os fatores que levaram ao uso indiscriminado de agrotóxicos na região. De fato, a necessidade de investimento em pesticidas torna o financiamento mais difícil para produtores que optam pela agricultura orgânica, segundo o gerente da sede da Agência de Desenvolvimento Agrário e Extensão Rural (Agraer/MS) em Fátima do Sul, Marcio Ribeiro Bonette. “Fora da cerca, todo mundo tem lucro, bancos, revendedoras e fabricantes, enquanto o agricultor vive para pagar as dívidas”, diz Bonette. De um lado, as grandes empresas e do outro, pequenos produtores, entre eles um produto lucrativo mas que pode causar danos irreversíveis à saúde do homem. E nessa disputa desleal ganham aqueles que têm mais força, sendo que a outra ponta sobrevive lutando contra as doenças e tentando ganhar dinheiro para pagar o que deve e conseguir plantar. 47
  • 49. Gosto de Veneno 4. O Gosto “O padre achou ruim levar a vizinha para a igreja, porque todo mundo ficava participando daquele fedor mais triste. A finada Eva misturou três venenos e bebeu. Daí disse, ‘eu não disse que bebia’, e caiu” Adelina Oliveira Ainda não tinha completado 18 anos, quando ela resolveu acabar com a própria vida. Deixou para trás a filha de um ano e meio e todos os sonhos da juventude em nome de um grande amor. Filha de Seu Erasmo, Eva Erasmo da Silva surpreendeu toda a família quando desmaiou porque tinha bebido veneno. O motivo, segundo ela, era um romance mal resolvido, que antes já tinha motivado uma depressão percebida pelas irmãs. A jovem era bonita e, assim como todas as garotas do sítio, sonhava em morar na cidade. Teve sua primeira filha, fruto de um casamento forçado pelo pai. O namoro não dera certo e Eva voltou para a casa da mãe. Pouco tempo depois, envolveu-se com um homem casado, que lhe deu um novo lar, mas não o amor que ela esperava. O relacionamento rendia momentos de extremo descontentamento, enquanto em outras horas era alimentado pela esperança de que poderia dar certo. Para 49
  • 50. Marcelle Souza as irmãs e a mãe, estava claro que Eva vivia infeliz e a tristeza próxima à depressão foi relatada pelos conhecidos em muitos momentos. A família dava-lhe conselhos, mas ela não queria escutá-los. Foi quando descobriu que estava grávida novamente e o grande amor deixou claro que não iria abandonar o casamento para ficar com ela. Só que apesar da tristeza pelo desprezo do homem amado, naquele dia ela parecia especialmente feliz. Chegou alegre à casa da cunhada e disse apenas que iria tomar banho no córrego. Lucia confessa que estranhou a felicidade da jovem que nos últimos dias parecia bem abatida, mas logo deixou desconfiança de lado e resolveu ficar contente com a aparente recuperação da irmã de seu marido. Minutos depois, porém, Eva voltou para a casa e encontrou-se novamente com a cunhada. “Olhou e falou pra mim que tinha tomado veneno. Daí tirou uma caneca e tomou o resto que tinha. Demorou uns minutos e já caiu. Fiquei meio atrapalhada, meia doida, ai já correram e levaram pra cidade, mas não teve jeito, porque ela tomou demais”, lembra Lúcia, casada com um dos filhos de Erasmo. Eva morreu a caminho do hospital, já em Fátima do Sul. A família recorda que ninguém conseguia ficar no velório da jovem, tamanho era o fedor do agrotóxico que ela havia ingerido. O caso aconteceu há 25 anos, mas até hoje os irmãos choram ao lembrar da notícia que receberam naquele dia. “Quando me contaram que alguém tinha bebido veneno no sítio, eu nunca imaginei que era a minha irmã”, lembra Cida, uma das mais velhas, que ficou sabendo do suicídio quando estava na cidade fazendo compras de charrete. Diante da dor de uma perda tão grande, Seu Erasmo e a esposa tiveram que tirar forças para educar a neta que 50
  • 51. Gosto de Veneno mal sabia andar. Hoje com 26 anos e dois filhos, a menina virou mulher e aprendeu a chamar os avós de pais, já que não tem lembranças da mãe que não a viu crescer. Suicídio em números A história poderia ser só mais uma fatalidade, não fossem as histórias semelhantes que se ouvem em Fátima do Sul. Todas por ingestão de agrotóxico e consequência do que antes era conhecido como tristeza, mas hoje recebe o nome de depressão. A Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que ocorram anualmente no mundo cerca de três milhões de intoxicações agudas provocadas pela exposição aos agrotóxicos, o que resulta em aproximadamente 220 mil mortes por ano. Ainda de acordo com a OMS, esses casos constituem um grave problema de saúde pública, principalmente nos países em desenvolvimento. Do outro lado, um levantamento da Associação Nacional de Defesa de Vegetal (Andef) à consultoria alemã Kleffmann Group indica que o Brasil é o maior mercado de agrotóxicos do mundo. O estudo ainda mostra que a indústria dos defensivos agrícolas movimentou US$ 7,1 bilhões no país em 2008, ante US$ 6,6 bilhões do segundo colocado, os Estados Unidos. Comparados com 2007, quando o consumo brasileiro foi de US$ 5,4 bilhões, os números revelam um crescimento significativo apesar de a área plantada ter encolhido 2% no ano passado. Consequência desse consumo crescente de agrotóxicos no país, o Serviço Integrado de Informações Tóxico- farmacológicas (Sinitox) do Ministério da Saúde, registrou 112.403 casos de intoxicação em 2007. Destes, 2.899 correspondem a tentativas de suicídio por ingestão de veneno de uso agrícola. Segundo o pesquisador Dario Xavier, o problema é que, para cada intoxicação desse tipo 51
  • 52. Marcelle Souza notificada, existem outras cinquenta não registradas pelo sistema de saúde, o que dificulta a implantação de ações concretas para conter as consequências da exposição prolongada a esses venenos. Em números absolutos, Mato Grosso do Sul ocupava, em 2002, o quarto lugar em suicídios de homens e o se- gundo de mulheres no Brasil. Quando se estuda o índice de morte por ingestão intencional de agrotóxicos, dados do Centro Integrado de Vigilância Toxicológica (Civitox) da Secretaria de Estado de Saúde de MS apresentam a macrorregião geográfica de Dourados, da qual Fátima do Sul faz parte, como a campeã em tentativas de suicídio em todo o estado. O número leva em conta o período entre 1992 e 2002, quando foram registradas 203 tentativas e 63 óbitos nos 15 municípios que compõem essa macrorregião. Entre esses municípios, Dourados apresentou maior prevalência de tentativas, enquanto Fátima do Sul assumiu o segundo lugar. Nesse sentido é importante destacar que parte dos números de Dourados está relacionada à alta incidência de suicídios entre os índios guarani-kaiowás, resultado, principalmente, do processo de confinamento a que foram submetidos. Relação diferente, portanto, da atribuída aos casos de Fátima do Sul, que seriam consequência, em sua maioria, da exposição aos agrotóxicos usados em grande quantidade no período de cultivo intenso do algodão que durou até o fim da década de 1990. Fátima do Sul e a vizinha Vicentina, segundo o Civitox, apresentam as maiores razões entre intoxicações e área de culturas temporárias na região. A primeira também assume o topo quando se analisa a relação entre tentativas de suicídios e áreas de culturas temporárias. Isso significa que o alto índice de suicídios e intoxicações é mais bem percebido quando se leva em conta a pequena área 52
  • 53. Gosto de Veneno geográfica que esses municípios possuem. Apesar de os números mostrarem a forte relação entre o consumo alto de agrotóxico e os suicídios ocorridos na região, pesquisadores divergem sobre a relação direta entre os dois fatores. “Eu pessoalmente acredito, já que esses agrotóxicos levam à depressão, essa que tem uma ligação direta com o suicídio sim”, defende o professor Dario Xavier, autor em parceria com outras pesquisadoras, do artigo “O uso de agrotóxicos e os suicídios em Mato Grosso do Sul, Brasil”, publicado em 2005. Do outro lado, o médico toxicologista e professor da Unicamp, Ângelo Zanaga Trapé rebate: “os estudos feitos nessas populações não são determinantes e ainda não conseguiram comprovar essa relação”. No meio da discussão, números e levantamentos perdem a força diante dos relatos de uma população que viu de perto muita gente morrer com os goles de veneno. Histórias tristes de pessoas que tentam esquecer a dor da perda dos parentes que cometeram o suicídio. Fedor mais triste Aos 81 anos, Dona Adelina Oliveira enche os olhos de lágrimas ao lembrar-se de conhecidos que seguiram esse caminho. “Aqui morreu foi 11 pessoas com raiva, tomava o veneno pra morrer. Bastava perder, ia pro jogo, não fazia aqueles pontos, tinha raiva e bebia veneno. Uma tristeza do mundo”, chora. Esse é um dos momentos em que ela realmente se emociona, não foram seus filhos nem netos que se mataram, mas a dor alheia e a tristeza das famílias são suficientes para desestruturar essa mulher forte e ao mesmo tempo tão sensível. A conversa avança, e aos poucos ela vai lembrando de outras histórias parecidas, como dos inúmeros velórios que apresentavam o ser humano de uma das piores 53
  • 54. Marcelle Souza maneiras. “Levava pro hospital, vinha no caixão e já leva- va pro cemitério. Era um alívio. Não velava porque o dou- tor não queria que velasse, por causa do fedorzão que tava”. E continua, “tinha que ter uma toalha para ir cobrindo, que é para as crianças não chegarem perto daquele fedor. Cobria com as toalhas e já levava pro hospital”. A toalha era para que ninguém visse o estado do corpo, alguns com a boca espumada, outros com a língua para fora, marcas, segundo ela, de uma morte que se aproxima do sentido de definhar. “É um fedor e uma tristeza. A gente chora e nunca se conforma”, conta Adelina. E com os olhos baixos e algumas lágrimas nos olhos, ela ainda se lembra de deixar um conselho aos mais jovens: “Se um rapaz tem uma namorada e ela não quer, meu filho, não vá morrer não. Não tem coisa pior que a morte”. Sobre o suicídio de Eva, filha de seu grande amigo Erasmo, Adelina lembra detalhes. “O padre achou ruim levar a vizinha aqui para a igreja, porque todo mundo ficava participando daquele fedor mais triste. A finada Eva misturou três venenos e bebeu. Daí disse, ‘eu não disse que bebia’, aí caiu”. Só que logo as memórias acabam, sinal de que se lembrar do cheiro de morte não faz bem nem a quem escolheu ficar vivo. Há alguns metros dali, a sabedoria de um vizinho de dona Adelina, Manuel Firmino, busca as minúcias do dia em que o cunhado bebeu veneno para se matar. Dessa vez a dor é de família, que buscou apagar o resto de lembrança sobre o fato de que deveria mesmo ser esquecido por todos. Já faz mais ou menos 20 anos desde que o cunhado de Manuel, Valdemiro, tomou Azodrin e morreu na hora. O homem tinha aproximadamente 40 anos e morava com a mãe no terreno que fica em frente ao de Seu Mané. Na época em que tudo era tratado com remédios naturais, 54
  • 55. Gosto de Veneno talvez a tristeza daquele homem ainda não tivesse cura. Calado, Valdemiro era um homem que trabalhava na lavoura de algodão e mostrava sinais de depressão. “Ele era bobão, meio doidão, fraco das idéias. Gente assim a gente conhece”, descreve Manuel. Para a família, o motivo do suicídio foi fútil. Segundo Abrão, o tio queria muito comprar um Fusca, mas a mãe não deixou. Uma briga, alguns goles de pinga e outros tantos de veneno. Valdemiro tomou Azodrin e andou até uma árvore no quintal, onde mais tarde o corpo foi encontrado pela mãe. “Já tava pálido, com espuma na boca”, conta Abrão que não consegue esquecer a cena do corpo do tio morto no terreiro. Já para Seu Mané, a história deve ser usada apenas como exemplo do que não se deve fazer. “Não desejo a morte de jeito nenhum. A gente tem que saber conversar, saber suportar as dificuldades da vida”, declara Manuel com a sabedoria de quem já viveu 73 anos. “Gente é o bicho mais fraco de morrer”, acrescenta sobre a fragilidade do homem diante da letalidade do agrotóxico. Organofosforados e suicídios Em todo o Brasil, pesquisas têm se aprofundado cada vez mais na ligação entre os organofosforados e os casos de suicídio. Em Venâncio Aires, Rio Grande do Sul, um grupo de pesquisadores fez um levantamento das conseqüências da exposição prolongada dos trabalhadores rurais a esse tipo de agrotóxico. O estudo foi uma demanda da Assembléia Legislativa e, apesar dos resultados significativos, não conseguiu mobilizar o poder público para a gravidade da situação. O agrônomo Sebastião Pinheiro foi um dos responsáveis pelo trabalho e lamenta que não tenha sido usado para melhorar a vida daqueles agricultores. Assim 55
  • 56. Marcelle Souza como em Fátima do Sul, os produtores de Venâncio Aires também estão expostos aos organofosforados. Os últimos, porém, trabalham com plantio do fumo, que necessita de quantidades maiores de veneno, o que produz resultados ainda mais visíveis que os encontrados na cidade sul-mato- grossense. Conhecidas em todo o mundo, as conseqüências do uso prolongado desse tipo de agrotóxico produziram resultados diversos em várias partes do mundo. “Na Noruega (primeiro país em qualidade de vida) foi feito em 1990 um estudo epidemiológicosobre a deficiência no aprendizado de escolares da área rural em relação aos urbanos. Desde aquele momento, todos os fosforados foram restritos em toda a Europa e no mundo civilizado”, compara Pinheiro. No relatório Safer Acess to Pesticides (Acesso Seguro aos Agrotóxicos, em português) divulgado em 2006, a Organização Mundial da Saúde reúne recomendações para tentar diminuir o número de intoxicações e suicídios causados pelos pesticidas. De acordo com a organização, esses casos têm sido pouco estudados porque grande parte das pesquisas sobre prevenção ao suicídio é procedente dos países desenvolvidos, enquanto as consequências à exposição ao uso de pesticidas aparecem predominantes em países pobres e em desenvolvimento, como as áreas rurais da Ásia, América Central e do Sul, África e ilhas do Pacífico. O documento ainda destaca o alto número de suicídios em lavouras de tabaco no Brasil, como é o caso de Venâncio Aires , onde os produtores são expostos exatamente aos mesmos organofosforados presentes nas plantações de algodão, em Fátima do Sul. Em nível federal, o Ministério da Saúde reconhece as consequências da relação entre o uso de inseticidas e suicídios no relatório Saúde Brasil 2007. “Alguns estudiosos 56
  • 57. Gosto de Veneno apontam os agrotóxicos como elementos desencadeadores de quadros depressivos, em função de mecanismos neurológicos e endócrinos. Mas há que se investigar ainda, com mais profundidade, outras hipóteses, como a questão cultural”, cita. Apesar disso, não existem estudos nem política preventiva de suicídio na zona rural, o que é provado pelo documento lançado em 2006, titulado “Estratégia Nacional de Prevenção ao Suicídio”, onde nenhum ponto aborda as especificidades das populações rurais expostas aos organofosforados. Em Mato Grosso do Sul, a Secretaria de Estado de Saúde também não realiza nenhuma ação específica e a falta de conhecimento dos profissionais de saúde foi uma das dificuldades encontradas pelo pesquisador Dario Xavier. “Eu comecei ler, é uma coisa pouco conhecida, então pro- curei alguns médicos psiquiatras que trabalham nessa área. Mas eles não conheciam essa ligação entre organofosforado e depressão. Eu tive que levar artigos para discutir com eles e acho que isso pode sim prejudicar o atendimento”, avalia. Notável desgraça Tímida, ela nos cumprimenta com os olhos baixos e os braços cruzados. Antônia de Souza Lucas também vive na zona rural de Fátima do Sul, mas há alguns anos em suas terras já não germina nenhum tipo de semente. A dor talvez tenha sido a responsável pela decisão de arren- dar o pedaço de terra de onde a família por tantos anos tirou o sustento. Aos 64 anos, restaram-lhe poucos dentes e alguns sorrisos no rosto. As marcas da idade, do sol, da dor e do uso de agrotóxico também são notáveis. Dona Antônia transmite calma e até certa ternura. Ela fala pouco, observa bastante e procura não demonstrar os sentimentos que 57
  • 58. Marcelle Souza lhe trouxeram tanto amor e sofrimento. Nasceu em Pernambuco, para onde nunca mais voltou desde os 15 anos de idade, e não sente vontade de voltar. “Aqui é bom. Melhor do que lá. Gosto daqui do jeito ta”, explica-se. Casou-se em Fátima do Sul, onde também ficou viúva. Foi seu único homem, pelo qual Antônia diz não guardar nenhuma saudade. Das lembranças do companheiro só restaram as noites em que chegava bêbado e brigava com ela e os filhos. “Se soubesse que ele era assim, eu nem casava”, conta a mulher que não entra em detalhes, mas demonstra parte do rancor que tem por um homem que a humilhou por muito tempo. Dos quinze filhos que nasceram desse casamento, apenas cinco vivem hoje com ela. Esses são homens, solteiros e trabalhadores rurais. A família sobrevive com a aposentadoria que Antônia recebe, da quantia do arrendamento e da trabalho dos filhos, que nem sempre contribuem com as despesas da casa. Assim como o pai, todos são alcoólatras. Coincidência ou fatalidade, três dos seus filhos se sui- cidaram e outros dois tentaram, mas não conseguiram se matar com agrotóxico. “Bugrão”, Mauro e Luiz encontra- ram a morte a poucos passos de casa, numa casinha que servia de depósito para as embalagens de veneno. Uma desilusão qualquer, o álcool, e a decisão estava tomada: era só entrar no local e escolher o gosto de sua morte. Jonas, mais conhecido como “Burgão”, foi o primei- ro a morrer. De acordo com a mãe, o filho tinha um “ca- belo bem pretinho” e talvez se estivesse sóbrio não teria se matado. Tomou veneno e morreu em casa. Não deu nem tempo de ser socorrido, já que o corpo foi encontrado pela família quando ele já estava morto. “Discutiu na rua e foi lá e bebeu dois tipos de veneno. Bebeu e caiu ali no buraco. Ele queria ir longe pra morrer”, lembra dona Antônia. 58
  • 59. Gosto de Veneno Luiz foi o caso mais recente, chegou em casa à noite e passou direto para a casinha. “Ele era o mais novo e veio bebendo de uma festa que teve lá na 5 ª [linha]. Já tava meio chumbado, aí passou direito pra tuia, nem veio aqui em casa. Quando nós demos por fé ouvimos um gemido lá dentro, com a tuia fechada ainda, e tava cheinho de veneno. Eu tinha um algodãzinho lá embaixo que tava branquinho quando ele morreu. Ele passou o veneno nesse dia e depois que foi pra festa, veio e bebeu”, descreve Antônia sem manifestar dor. “O negócio foi tão forte que comeu a língua dele. Os outros beberam pouco e morreu logo, já esse ficou sofrendo”, completa. Mauro não foi muito diferente. Fez o mesmo caminho dos irmãos e depois de ingerir dois tipos de agrotóxico ainda conseguiu caminhar alguns metros para chegar até a casa. “O Mauro foi assim, o irmão dele bateu no rádio dele e ele ficou brabo. Ai correu logo pra tuia. Eu nem vi, quando vi, já tinha bebido. Ele chegou aqui caindo e falou ‘Mãe, eu bebi veneno’. Foi lá pra cama e ficou lá. Aí chamamos um carro pra levar pra Fátima, mas quando foi um pouquinho já morreu”, conta a mãe. Cecília misturou veneno líquido com farinha, comeu o prato inteiro, mas não morreu. “Na hora não deu nada, mas depois a gente teve que levar ela pra Campo Grande” relata Antônia. E o irmão Pedro completa: “Até hoje ela é meio atrapalhada”. Outro que poderia ter ido pelo mesmo caminho que os demais foi Paulo, um dos mais novos. No início do ano, ele ficou bêbado e começou a dizer que a vida não tinha mais graça. Decidido, chegou a pedir que alguém passasse por cima dele com um trator, mas a solicitação felizmente não foi atendida. Da história de “bebedeira” a mãe faz graça, como se aliviada ou acostumada com a presença da morte na famí- 59
  • 60. Marcelle Souza lia. Envergonhado, Paulo desmente, diz que não se lem- bra da tentativa de suicídio e muda de assunto. Enquanto isso, Antônia dá um sorriso leve e permanece encostada na porta da varanda de casa, cenário comum, não fosse a notável desgraça a que essa família teve que se acostumar. 60
  • 63. Gosto de Veneno 5. Um novo sorriso “Nas grandes propriedades o veneno é aplicado na lavoura em tratores com GPS, rádio e bico de pulverização. Já o agricultor familiar tem acesso apenas a bomba costal e uma máscara rasgada” Ângelo Zanaga Trapé Adelina, Erasmo, Manuel, Sinésia e Antônia: cinco histórias que mostram um pouco do que é a realidade da zona rural de Fátima do Sul. Imigrantes que construíram uma nova vida na terra desconhecida, criaram os filhos entre o plantio e a colheita do algodão e agora vivem a tristeza que é sutil para uns e visível para outros. Um lugar onde o silêncio das estradas remete à mudez de alguns desses produtores ao recordar de momentos importantes de suas vidas. Trouxeram para dentro de casa a máquina de aplicação de agrotóxico, as roupas sujas do trabalho na lavoura e as consequências dessa proximidade com aquilo que deveria matar apenas as pragas do algodão. Transfor- maram as embalagens em copos para tomar água e, de repente, os goles do veneno começaram a assustar os mo- radores da região. Os anos foram passando e agora convivem as 63
  • 64. Marcelle Souza lembranças das festas de forró nos finais de semana e a dos velórios com caixão fechado, que não podiam ser feitos dentro da igreja a pedido do padre. Restam agora os filhos adultos sem trabalho e dinheiro para plantar. Aos poucos também vão perdendo as esperanças de que a vida melhore e que o corpo volte a ser como era antes. Dor de cabeça, vômito, coceira, câncer e depressão tornaram-se sintomas normais de quem já perdeu a noção do significado de saúde. Afinal, foram anos dedicados aos agrotóxicos, histó- rias inteiras regadas as bombeadas da máquina costal e, para alguns, foi dele também o último gosto que sentiram na boca. Um amargo que sufoca, dói e mata. Lapso de lucidez É o aperto de mão firme que dá as boas-vindas aos visitantes de Culturama. Cumprimentos de um homem de estatura média e simpatia séria, que serve de guia à quem veio conhecer o lugar. José Lima de Jesus, ou apenas “Zé Lima”, conhece bem cada uma das histórias narradas ao longo deste livro-reportagem. Aliás decorou nome, so- brenome e número de identidade da maioria dos moradores da região. O rosto de pele branca mostra um leve queimado de sol, enquanto os olhos são verdes, presentes, notáveis. Veste calça jeans, botina e uma camiseta muito bem passada. Conhece metro a metro da região e cuida de cada família com um zelo incomparável. “Seu Manuel, ta acabando o remédio, né? Essa semana passo aqui para trazer outra cartela para o senhor”, diz ele, pouco antes que a entrevista comece. Zé Lima é agente de saúde por paixão. Passou no concurso da Prefeitura de Fátima do Sul há 11 anos e largou tudo para trabalhar no lugar onde cresceu. Formou- 64
  • 65. Gosto de Veneno se em Ciências Contábeis, concluiu o curso técnico em Enfermagem, e fez a opção de ganhar menos de dois salários mínimos para se aventurar no que realmente gosta de fazer. Vive com a esposa e dois filhos em um sítio pequeno na zona rural, onde tem uma horta e planta outros gêneros alimentícios. É vizinho dos tios e do pai e faz questão de dizer que não sairia dali por dinheiro algum. De segunda a sexta acorda, vai trabalhar a pé, volta para o almoço e tira um cochilo. Levanta novamente, dá um beijo na filha de seis meses e continua as visitas. Ao final da tarde está em casa de novo. A rotina é quase sempre parecida, salvo os dias de vacinação, quando é preciso ir mais longe e ficar o dia todo fora. Zé tem 41 anos, revelados por uma leve calvície; parece também um pouco fechado, mas isso é só aparência. Brinca, ri e faz piada como se estivesse no sofá de casa, e de certa forma está. Aos sábados à tarde tem um compromisso sagrado com os homens da vizinhança: o futebol, outra de suas grandes paixões. Casou-se pela primeira vez há mais de dez anos e não tem vergonha de dizer que foi abandonado pela esposa, que fugiu com outro homem. Sozinho, ele teve que criar o filho pequeno e conviver com a decepção. Há quatro anos arrumou uma nova esposa, com quem teve uma filha. Marido dedicado e pai carinhoso, Zé deixa bem claro que a família é a coisa mais importante em sua vida. Zé Lima é um herói solitário, representante de um sistema de saúde que só chega até a comunidade por meio dele. Remédios, consultas e encaminhamentos são algumas de suas atribuições. E como as outras políticas públicas são insuficientes, é na conversa na varanda que ele aproveita para explicar que alguns venenos são muito perigosos e que os equipamentos de proteção individual são sempre 65
  • 66. Marcelle Souza necessários. Tenta combater sozinho os anos de experiência e teimosia dos produtores rurais . É um lapso de consciência em meio aos resultados dos anos de exposição da comunidade aos agrotóxicos. Uma luta diária de quem acredita no trabalho que faz e ama o lugar onde mora. Uma balança desigual A carência de políticas públicas exposta na comunidade do distrito de Culturama, em Fátima do Sul, faz parte da realidade dos pequenos produtores de todo o Brasil. Segundo o Censo Agropecuário de 2006 feito pelo IBGE, apesar de ocupar só um quarto da área cultivada do Brasil, a agricultura familiar é responsável por 38% do valor da produção nacional. Gera 54 bilhões de reais por ano e é dela também a responsabilidade por garantir a segurança alimentar do país, gerando os principais produtos da cesta básica brasileira. Emprega ainda 74% da mão-de- obra do campo. Só em Mato Grosso do Sul, o IBGE calcula que mais de 200 mil pessoas trabalhem no meio rural, destes 133 mil tem laços de parentesco com o produtor. Só que a participação dessas pequenas propriedades na produção nacional de alimentos não garante que as políticas públicas alcancem essa fatia de brasileiros. O IBGE ainda apontou, por exemplo, que 80% dos produtores entrevistados durante a pesquisa tinham baixa escolaridade. A carência de políticas educacionais está diretamente ligada aos casos de intoxicação no campo, afinal, são exatamente os que não sabem ler que aplicam o veneno na lavoura. Sem conseguir identificar no rótulo as concentrações e as precauções necessárias, acabam se expondo muito mais aos riscos do produto. Nas grandes propriedades o veneno é aplicado na lavoura em tratores com GPS, rádio e bico de pulveriza- 66
  • 67. Gosto de Veneno ção. Já o agricultor familiar tem acesso apenas à bomba costal e uma máscara rasgada, então acaba se intoxicando. No primeiro caso, a pessoa fica totalmente protegida. En- tão, o segundo acaba sublimando o risco, porque tem que fazer o serviço e não tem outro jeito de aplicar o veneno”, compara o toxicologista Ângelo Zanaga Trapé, mostran- do a desigualdade no campo. Prova da crítica feita pelo médico é que, de acordo com o Censo Agropecuário, 78% das lavouras que usam agrotóxico são dirigidas pelos proprietários, de forma que o equipamento mais usado é o pulverizador costal (69,1%), que tem maior potencial de exposição. Ainda conforme o estudo, em mais da metade dos estabelecimentos onde houve utilização de agrotóxicos (56%) os agricultores não receberam orientação técnica, sendo que 15% dos responsáveis por essas propriedades não sabiam ler nem escrever. Para Trapé, outra grande deficiência é revelada pelo sistema de saúde que, segundo ele, está sempre distante do pequeno produtor e não vê a zona rural como área importante de atuação. No distrito de Culturama, por exemplo, não existem programas de prevenção ou grupos que acompanhem a saúde dos produtores. Nesse contex- to, ações simples como medir periodicamente os níveis da enzima acetilcolinesterase poderiam servir de base para que equipes multidisciplinares avaliassem os níveis de intoxicação de cada agricultor. A falta de orientação técnica que poderia suprir em parte a baixa escolaridade e ausência de fiscalização da vigilância sanitária ajudam a completar o quadro de políticas públicas que não chegam a essa população. Conforme o professor de Química, Dario Xavier Pires, os dados reforçam sua tese de que é necessário trabalhar na prevenção envolvendo basicamente saúde e educação 67
  • 68. Marcelle Souza de forma conjunta. “É importante que isso seja tratado de forma mais séria”, diz. Desde a década de 1990, quando começaram suas pesquisas sobre o assunto, Pires avalia que houve a introdução de algumas iniciativas de prevenção, que ainda são incipientes para tratar do problema de maneira efetiva. Baseado nos resultados obtidos na zona rural de Campinas nos últimos dois anos, o médico Ângelo Trapé aponta que essa integração de políticas pode dar certo. Nesse período, ele destaca que nenhum caso de intoxicação foi registrado no município, onde educação, orientação técnica e acompanhamento médico frequente da população têm reduzido também as consequências das exposições a longo prazo. Há também quem discorde, como o engenheiro agrô- nomo Sebastião Pinheiro, e não acredita que haja uma saída que possa minimizar os riscos dos pequenos produto- res expostos frequentemente aos agrotóxicos. Ele defende a realização de cursos de capacitação para esses trabalha- dores, mas acha que uma relação saudável entre os dois lados só acontece quando os venenos são de fato proibi- dos. “As industrias de agrotóxicos e de alimentos são uma coisa só, logo, não há futuro. Pois tudo será industria de alimentos em um feudalismo medieval altamente tecnológico”, prevê sobre o futuro desses agricultores. Pela graça dos sorrisos Debates à parte, o importante é garantir proteção aos produtores rurais enquanto esses pesticidas forem legais no país. E são iniciativas governamentais ou o trabalho do herói solitário de Fátima do Sul que alimentam as esperanças de que devem existir formas eficazes de prevenção. Antes de tudo é preciso discutir o tema, para 68
  • 69. Gosto de Veneno que as políticas públicas não continuem dando as costas a 16 milhões de brasileiros. Pessoas que dedicaram grande parte da vida à terra e ainda veem nela o futuro das próximas gerações, sentem- se esquecidas, assim como suas lembranças. Já perderam as esperanças de que algo possa mudar. Senhores e senhoras acham que a visita de um agente de saúde em casa é o máximo que podem ter do poder público. Governo que só chega ali em época de eleição ou por meio das recordações de que as terras foram doadas durante a presidência de Getúlio Vergas. Este, por sua vez, que montou uma colônia agrícola no afastado e desconhecido sul de Mato Grosso e não fez questão de equipar o local com o mínimo de infraestrutura necessária. Perderam-se muitas vidas, muitas lágrimas e muitos sonhos. Mas são por histórias como as de Adelina, Manuel, Erasmo, Sinésia, Antônia e Zé Lima que vale a pena trabalhar para que o futuro seja diferente e as festas de finais de semana voltem a acontecer, sem cheiro de veneno e com a mesma graça que é contada nos sorrisos dos mais velhos. 69