A autora visita Adelina Oliveira, uma agricultora de Fátima do Sul, MS. Adelina fala sobre sua história de imigração do Nordeste para o MS em busca de melhores oportunidades. Ela descreve como a agricultura exigia muito trabalho das famílias, mas também trouxe prosperidade por meio do cultivo de algodão. No entanto, o uso intensivo de agrotóxicos prejudicou a saúde de muitos e levou à morte do marido de Adelina.
6. Copyright by Marcelle Souza
Projeto Experimental do Curso de
Comunicação Social
Jornalismo 2009
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul
Textos e Diagramação: Marcelle Souza
Orientador: Marcelo Câncio
Fotos e capa: Bruno Barros
6
7. “O repórter que não for capaz de
se emocionar, de chorar e se alegrar
junto com os personagens de quem
fala, jamais conseguirá transmitir ao
leitor a realidade que encontrou”
Ricardo Kotscho
7
9. Gosto de Veneno
Apresentação
O trabalho desenvolvido pela acadêmica de
jornalismo da Universidade Federal de Mato Grosso do
Sul, Marcelle Souza, neste livro-reportagem é digno de
elogios. Destaco inicialmente sua vontade de pesquisar e
escrever sobre um tema de extrema importância social,
mas que infelizmente não está no foco da mídia e, portan-
to, não faz parte da pauta diária dos veículos de comunica-
ção. A realidade e a dramaticidade dos depoimentos reve-
lados no texto expõem a triste realidade de um grupo de
brasileiros. Cidadãos que trabalham uma vida inteira para
morrer miseravelmente. E as causas dessas mortes são di-
versas: procedimentos desumanos impostos pela agricul-
tura brasileira, ganância das indústrias de inseticidas, ori-
entação equivocada oferecida aos agricultores e, finalmen-
te, a própria ignorância que ainda impera nas zonas ru-
rais do país. O agricultor é estimulado a plantar, mas o
9
10. Marcelle Souza
mercado exige produção e impõe preços. A necessidade
de aumentar continuamente a produtividade agrícola leva
o produtor rural às lojas agropecuárias. Elas, por sua vez,
vendem a eles os agrotóxicos que vão eliminar as pragas e
por consequência aumentar a produção da lavoura. Em
contrapartida, os agricultores passam a manusear produ-
tos altamente tóxicos que, no decorrer dos anos, lhes ti-
ram a vida precocemente. Aos serem encaminhados aos
hospitais são relegados à própria sorte. Muitos morrem
intoxicados, outros sofrem consequências a longo prazo e
as estatísticas ainda mostram um grande número de suicí-
dios.
Esse é o quadro captado, observado e investigado
com persistência e indignação pela Marcelle. Este trabalho
tem muitos méritos, mas ressalto três que considero
fundamentais. O primeiro é o mérito da escolha da pauta.
É um tema que raramente é tratado pelo jornalismo. Além
disso, não é fácil se envolver com uma pauta que,
antecipadamente, já se sabe que o que se vai ouvir não é
poesia, nem é música para os ouvidos. Não se trata apenas
de estudar um tema que faz parte do cotidiano rural de
Mato Grosso do Sul. Os relatos dos agricultores
demonstram como em determinados momentos é
doloroso para o jornalista conviver com assuntos tão
dramáticos.
O segundo mérito a ser realçado neste trabalho é
o da investigação jornalística. A autora manteve a
determinação de conhecer criteriosamente a bibliografia
científica sobre os riscos da utilização de agrotóxicos. Uma
bibliografia recheada de dados estatísticos e
comprobatórios. Depois a investigação se estende para as
pesquisas de campo realizadas na área urbana e rural da
cidade de Fátima do Sul, local onde foram registradas
muitas mortes de produtores rurais por envenenamento
10
11. Gosto de Veneno
e suicídios. Falecimentos que estão intrinsecamente relaci-
onados com a utilização de agrotóxicos. São muitos os ca-
sos a serem revelados e a Marcelle foi conhecer de perto o
cotidiano de homens e mulheres que cultivam lavouras
na área rural desse município sul-mato-grossense. Ouviu
suas histórias, entrevistou personagens, detalhou informa-
ções técnicas, investigou as causas de tantas mortes, fez
descobertas, deu voz a pessoas desconhecidas e trouxe à
tona um problema que é tratado com certo descaso pela
sociedade e pelas autoridades governamentais. O conteúdo
do livro mescla os sentimentos e as histórias dos agricultores
com impressionantes informações científicas. É a
comprovação do flagelo sofrido por muitos produtores que
seguem produzindo alimentos consumidos pela população
brasileira.
O terceiro mérito é o da persistência. É preciso
insistir no trabalho quando se tem um tema tão árduo e
áspero como esse. Ir fundo ao tema mesmo quando surgem
muitas dificuldades é um grande mérito. É a insistência e
a indignação que move o jornalista a realizar um trabalho
diferenciado. É a persistência que estimula a concretização
de um produto jornalístico que se destaca pela relevância
social que possui. Um jornalismo que dá luz e vida a um
tema que estava escondido dos olhos da sociedade.
O resultado final é uma obra jornalística que revela
com detalhes uma melancólica realidade brasileira. O livro
reportagem intitulado “Gosto de Veneno” caminha no
sentido positivo do bom jornalismo investigativo.
Marcelo Cancio
Professor Adjunto do Curso de Jornalismo da UFMS
Doutor em Ciências da Comunicação pela USP
Orientador deste Projeto
11
13. Gosto de Veneno
Sumário
1. A Primeira Vista......................................15
2. O Cheiro................................................27
3. O Silêncio..............................................39
4. O Gosto.................................................49
5. Um Novo Sorriso...................................63
13
15. Gosto de Veneno
1. A primeira vista
“Eu digo: ‘Padre Damião, eu quero ir pra Mato Grosso’. Daí
o padre falou, ‘Meu filho, você vá pra Mato Grosso, porque lá dá
para o homem arrumar o pão, São Paulo já ta muito cansado”.
Erasmo Lunardo
No sítio de poucos hectares, ela nos recebe com passos
ligeiros, corpo curvado e um balde na mão. Estamos em
Culturama, distrito de Fátima do Sul, Mato Grosso do Sul,
e a simpatia daquela senhora, aparentemente frágil, nos
convida a entrar na casa simples de madeira. São 242
quilômetros de Campo Grande, e outros 20 quilômetros
da zona urbana do município.
A cidade fica na região sul do estado, próxima a Dou-
rados, e tem pouco mais de 18 mil habitantes. Foi criada
em 1943 durante o Governo Getúlio Vargas com a inten-
ção de que ali se desenvolvesse uma colônia agrícola. A
vocação para o campo logo foi comprovada pelo plantio
de algodão, que rendeu lucros à população até o fim da
década de 1990.
Na zona rural, ainda hoje predominam as pequenas
propriedades, entre três e dez hectares, e os imigrantes
nordestinos. O clima é ameno, as ruas são tranquilas e
15
16. Marcelle Souza
quase não se ouve barulho de carro por ali. Aliás, automó-
vel é coisa difícil, ou estão parados nas garagens ou circu-
lam vez ou outra, anunciando que alguém da cidade veio
fazer uma visita. Comum mesmo são as motos pelo cami-
nho e seus motoristas sem capacete, que cumprimentam a
todos que cruzam a estrada de terra.
Naquela manhã chove um pouco, o que dificultou
nossa chegada ao local. Depois de uma longa viagem e das
rápidas boas-vindas, o banco de madeira parece um tanto
confortável para uma extensa conversa com aquela mulher
de 1,50m de altura e de muitas histórias para contar.
Foi batizada Adelina Oliveira Mendes, nasceu em
Pernambuco e já soma mais de cinco décadas na casa
construída com muito esforço no pedaço de terra ganhado
durante a reforma agrária promovida pelo governo de
Getúlio Vargas. Enquanto mostra os retratos da família,
sua filha logo pega uma escova de cabelos para arrumar o
coque que se desfez enquanto a mãe dava comida aos
animais. Arruma as cadeiras, ajeita a luz e ainda ajuda
Adelina a se lembrar dos detalhes que lhe escapam da
memória.
A família é de produtores rurais e imigrantes, que
saíram de Pernambuco para Fátima do Sul em busca de
melhores oportunidades. “Nós deixamos até terra por
vender lá em Pernambuco, até hoje ainda tá lá por vender,
e viemos”, conta ela, lembrando do fato que aconteceu há
mais de cinquenta anos.
As histórias de sucesso no Mato Grosso atraíram não
só dona Adelina, assim como outras tantas famílias
cansadas da seca do Sertão. Casou-se e veio em busca de
vida nova, teve quatro filhos e até hoje mora na mesma
casa construída com muito esforço quando chegara à terra
prometida.
Os filhos foram criados com o resultado de muito
16
17. Gosto de Veneno
trabalho: arroz, amendoim, milho e algodão são alguns
dos produtos que viraram fonte de sustento para toda a
família. “Aqui era uma riqueza do mundo, minha filha, só
que acabava com as mulheres. As mulheres trabalhavam
tanto que morriam. Morreu a finada Catarina, morreu a
finada Antônia, morreu tudo as mulheres. Todo mundo
tinha que trabalhar, se não quisesse dever até o cabelo da
cabeça”, lembra a senhora.
Assim como difundiam os primeiros imigrantes, o
solo era mesmo bom para plantar, só que exigia dedicação
de todos de sol a sol, já que era preciso pagar despesas
domésticas e os insumos para a lavoura. Era sofrido, mas
fome ninguém passava, afinal arroz, feijão e as verduras
eram plantadas no terreno mesmo, logo ao lado do
algodão. Galinhas e porcos também ajudavam a diversificar
o almoço, que era servido aos trabalhadores no meio da
lavoura.
“O algodão enricou os povos que forneciam [semen-
tes e insumos]. Eles ficaram podre de rico e nós, nem uma
casa não tinha. Era só um rancho. Aí veio esse tal de soja
que tá acabando com os homens. Porque tá muito rica a
preparação, a plantação, a semente, o adubo e o veneno
tão pior, tá mais caro do que tudo”, exclama Adelina sobre
a desigualdade entre os que trabalhavam e os que
enriqueciam com o cultivo da terra.
Fala da terra, do plantio do algodão e do cheiro do
veneno. “Aquilo pegava nas folhas e cheirava tão forte
que criança não podia chegar perto. Dava coceira, mancha
e amarelado na pele”. A história soa natural, como se o
odor do agrotóxico fosse algo indispensável na vida dos
que chegaram à nova terra. Saiu então da lavoura, ganhou
os espaços da casa e, aos poucos, também a vida das pessoas.
“Antigamente ele vinha em um pote de alumínio, daí
quando acabava a mãe esvaziava o pote e fazia de caneca
17
18. Marcelle Souza
pra gente beber água”, lembra a filha de Adelina, Maria
Nilza Mendes Rodrigues.
E assim o desconhecimento facilitava a intoxicação
dos agricultores, que usavam as embalagens de veneno para
guardar comida, água, armazenar alimentos para os
animais ou auxiliar nas tarefas domésticas. Uma exposição
diária que levou o marido da agricultora a ter que
abandonar a lida na terra em nome da saúde. Vômito,
diarréia, dor de cabeça e, por fim, uma sensibilização que
fez com que o médico o proibisse de chegar perto dos
agrotóxicos por um ano.
De tão acostumada à vida dura do campo, hoje
Adelina não consegue nem aproveitar o descanso digno
da velhice. “Ela ficou assim porque choveu nesses últimos
dias e ela não pode trabalhar”, explica a filha, enquanto a
senhora responde com os olhos, garantindo que o
esclarecimento é verdadeiro. Durante a visita, seus olhos
pareciam mais baixos que o normal, uma tristeza antiga
de quem reduziu o significado de felicidade ao local onde
mora.
Na verdade, a vida perdeu um pouco o sentido para
ela desde que o marido faleceu, há cerca de um ano. Nas
fotografias, Adelina mostra um senhor moreno e sério
que veste uma roupa clara e bem passada durante a reunião
de família. Os olhos levemente enchem de lágrimas,
enquanto a filha tenta acolhê-la nos braços. Ninguém pode
medir quantas lembranças surgem naquele momento, só
é possível perceber que a vida não é a mesma sem o
companheiro de tantos anos.
Desde que ele morreu, ela tem alimentado com mais
dedicação um dos seus maiores prazeres: trocar cartas com
os irmãos que moram em Pernambuco. Toda semana
recebe as novidades de alguma parte da família pelo
correio. Nos bilhetes carinhosos, parte da família relata as
18
19. Gosto de Veneno
dificuldades da lavoura, as conquistas dos filhos e, princi-
palmente, a saudade que não cessa.
Textos bem escritos, letras caprichadas e muito
emoção em cada uma das letras. Nos envelopes de cartas e
fotos estão guardadas as recordações que contam parte da
história de Adelina e sua família. Orgulhosa, ela devolve
para a filha cada lembrança que a faz não esquecer do
passado nem desistir de continuar vivendo.
Marcha para o Oeste
A região do município de Fátima do Sul começou a
ser ocupada no final da década de 40 por imigrantes que
vinham do Nordeste do país. A mudança era resultado da
política expansionista do governo Getúlio Vargas, que
incentivou o f luxo migratório para regiões pouco
exploradas, como Amazônia, Goiás e sul de Mato Grosso.
A “Marcha para o Oeste” foi marcada pela criação, em
1938, da Divisão da Terra e Colonização, que além da
doação de lotes, ficava encarregada de fornecer
implementos agrícolas e materiais de construção aos
imigrantes.
“Essa fase da história do Brasil marca definitivamente
o desenvolvimento das relações capitalistas no país, o que
se dá de forma mais intensa após a Segunda Guerra
Mundial, momento em que o capital externo vai incentivar
o crescimento da indústria brasileira e tentar dominá-la”,
explica o professor das Faculdades Integradas de Fátima
do Sul (Fafisul), Nilton Paulo Ponciano. Desse modo, ele
afirma que a colonização era vista como um acréscimo do
mercado interno para a indústria.
Mas existiam regras para receber os lotes destinados
à reforma agrária: o produtor deveria ser brasileiro, ter
mais de 18 anos, não possuir propriedade rural em seu
nome e ser reconhecidamente pobre. Também estava
19
20. Marcelle Souza
proibida a concessão de terras a funcionários públicos de
qualquer uma das esferas de governo. Durante o primeiro
ano, o colono ainda recebia assistência médica e
farmacêutica.
Em 1943, o Decreto-Lei 5.941 oficializava a criação
da Colônia Agrícola Nacional de Dourados, no então
território federal de Ponta Porã. A medida visava a ocupar
e, como consequência, aumentar a fiscalização na fronteira
com o Paraguai, além de fechar o cerco à Companhia Matte
Laranjeira, que favorecia a presença constante de
estrangeiros e conflitos armados na região. Desse modo, a
área, que segundo o decreto não poderia ter menos de
300 mil hectares, reforçaria a campanha também no
campo ideológico, onde a ocupação territorial era símbolo
de brasilidade para o governo Vargas.
Porém, a demarcação da Colônia de Dourados só
aconteceu em 1948, durante o mandato do presidente
Eurico Gaspar Dutra. Eram 409 mil hectares que
abrigariam cerca de 10 mil famílias de imigrantes atraídos
pela qualidade do solo e as propagandas do governo. Nesse
espaço, duas cidades foram projetadas: Vila Brasil,
atualmente Fátima do Sul, e Vila Glória, onde hoje se
localiza o município de Glória de Dourados. Na Colônia
ainda foram fundadas Deodápolis, Douradina e Jateí.
Nas décadas de 1960 e 1970 a região presencia um
crescimento significativo, impulsionado pela instalação de
fábricas e a construção de estradas que facilitaram o acesso
da zona rural às cidades próximas. “Isso aqui era tudo cheio
de gente”, lembra Adelina, sobre as famílias que cresciam
os lotes vizinhos.
As festas, todos os finais de semana, eram embaladas
pelo forró e outras músicas nordestinas que ajudavam os
colonos a matar a saudade da terra natal. Nesses bailes e
casais se conheciam e casamentos acabavam. O resultado
20
21. Gosto de Veneno
eram fofocas e alegrias para o resto da semana, um sopro
de felicidade aos que passavam a semana inteira na lida
com a terra. Por um momento, os imigrantes esqueciam-
se do cheiro do agrotóxico que pairava pelo ar.
Eram tempos bons, lembram os mais velhos, que
lamentam ver nos terrenos vizinhos o mato tomar conta.
Dona Adelina foi uma das que presenciou primeiro os
filhos e, em seguida, os amigos se despedirem do campo e
irem para cidade. Onde antes era espaço de muito trabalho
e um tanto de alegria, agora virou reduto de homens que
lutam contra a falta de dinheiro para plantar e que sonham
com os tempos áureos do algodão.
Mulheres e jovens tornaram-se espécies raras entre
os moradores da zona rural de Fátima do Sul. Elas buscam
oportunidades de emprego melhores ou casamentos mais
prósperos, enquanto os mais novos partem do sítio para
estudar e conquistar a tão sonhada “vida melhor”. Talvez
o mesmo sonho dos avós que saíram do Nordeste
procurando terra boa para plantar e felicidade para toda a
família.
Alegre sabedoria
No meio da tarde, as visitas chegam e ele ainda está
dormindo. A nora nos recebe e alguns minutos depois o
senhor já esta de pé. Chega de moletom escuro, um gorro
na cabeça e o ar meio de atrapalhado de quem acabou de
acordar. Mesmo assim, Erasmo Lunardo da Silva pergunta
quem somos, estende a mão para cumprimentar um a um
e abre o sorriso acolhedor.
A casa de madeira é escura e parece muito confortável
para um cochilo depois do almoço. Auxiliado pela nora,
Erasmo senta em uma das cadeiras da cozinha e dispara a
falar já nas primeiras perguntas. Um verdadeiro gozador,
conta causos e brinca com a platéia como quem aprendeu
21
22. Marcelle Souza
a se divertir melhor com o passar dos anos.
Filho único, o produtor nasceu em junho, mês de
São João, em Pernambuco, de onde sente falta das moças
bonitas e do verdadeiro forró. “Sou o filho preferido da
minha mãe”, brinca.
Em busca de uma vida melhor, deixou a terra natal
para trás e partiu para São Paulo. “Lá toquei umas cinquenta
roça, anotei tudo, tenho até o papelzinho”. Mas, como
veio parar em Fátima do Sul? A nora responde por ele,
dizendo que “foi coisa do governo”, mas os detalhes da
história surgem em seguida com a explicação do produtor
rural. “Um dia fui no Padre Damião. E eu digo: ‘Padre
Damião, eu quero ir pra Mato Grosso’. Daí o padre falou,
‘Meu filho, você vá pra Mato Grosso, porque lá dá para o
homem arrumar o pão, São Paulo já tá muito cansado”.
Foi o suficiente para decidir mudar de novo e levar a
família para onde muitos dos seus conterrâneos já tinham
ido. “Aí eu digo, ‘olhe, mulher, eu vou é pra Mato Grosso.
O padre deu esse conselho é porque não é ruim não, é
bom’”. Quando chegou à região onde hoje é o município
de Fátima do Sul, o agricultor encontrou muita gente
plantando algodão, que ele tratou de cultivar em sua terra
também.
“Comprei muito algodão naquela época, mas
embocou um presidente, que quando eu cuidei de mim,
tomou o dinheiro todinho. Toquei muita roça naquela
casa lá em baixo, um terreirão. Acabou o dinheiro, acabou
a poupança. Agora tem aposentadoria, um negócio até
bom que inventaram pra veio. Trabalhei tanto que não
tenho nem cabelo branco, porque o cabelo já caiu tudo”,
conta fazendo piada de si mesmo e fazendo os ouvintes
sorrirem também.
Ficar velho na zona rural parece ter um significado
bem diferente dos anos a mais na cidade grande. É que o
22
23. Gosto de Veneno
trabalho sob o sol e os anos de exposição aos agrotóxicos
deixam as rugas e os calos ainda mais aparentes. “Passei
tanto veneno, que nem sei da conta. Tinha um chamado
Tatuzinha que, Ave Maria, era de morrer conversando e
rindo”, relata Erasmo.
Ele mesmo ficou tão sensível que não consegue mais
chegar perto das máquinas de aplicação de agrotóxico. O
agricultor e seus vizinhos lembram-se das nuvens de fedor
nos períodos em que todos passavam os produtos em pó
nas lavouras.
Tem o sotaque carregado e, no rosto, traz as marcas
dos anos de trabalho duro no campo. Entre uma pergunta
e outra, ele ajeita o gorro na cabeça em um gesto lento,
preguiçoso. Às vezes não escuta e mesmo assim ri, ação
espontânea de quem aprendeu a fazer piada com as
passagens da própria vida.
Talvez o grande problema da velhice para Erasmo
sejam os lapsos de falta de memória, que, apesar dos sustos,
rendem-lhe boas histórias para contar. “Esses dias sai daqui
e fui espiar a roça. Meu amigo, quanto acordei de mim,
tava perdido. Ah, menino, eu andei numa roça de milho
ali e ia quebrando no peito o milharal deste tamanho aqui.
Ah, negócio danado, quanto mais caminhava, mais perdia.
‘Eita que agora o Erasmo veio vai embora’, pensei. Soquei
a perna num buraco de estaca, que a perna veio aqui. Ai
eu disse, ‘como que eu tiro a perna daqui?’ Eu deitado
assim, espiando pra perna. E disse, ‘Deus tem dó do veio’.
Aqui, quando foi um pouco, a perna veio. Deus é bom
demais. Mas, menino, eu sofri. Ave Maria!”, e mais uma
vez a platéia aproveita para dar boas gargalhadas.
A alegria vai embora quando comenta da esposa
falecida há mais de um ano. “A mulher veia Deus já levou”,
diz Erasmo, enquanto perde o olhar entre as plantações
do terreno vizinho. São alguns minutos de lembrança e a
23
24. Marcelle Souza
saudade dos 54 anos de casamento toma conta do senhor
sentado na cadeira. “Olha, minha filha, ela era um mulher
muito boa pra mim e às vezes vejo ela andando assim pelo
terreiro”. A união deu fruto a 12 doze filhos (“rapaziada
bonita”, segundo ele) que o visitam com freqüência no
sítio.
A vida, agora sim, é tranqüila. Os vizinhos são sempre
conhecidos e o silêncio das tardes de sol só é interrompido
pelo cantar de alguns pássaros. Enquanto na cidade o
tempo parece passar rápido demais, no campo os dias são
longos, deixando as lembranças maiores ainda. E para
quem abandonou a terra querida para se aventurar em
um desconhecido Mato Grosso, restam agora as imagens
e o carinho pelo que ficou por lá. “Não voltei pro
Pernambuco, mas ainda tenho vontade de ir. Eu fico assim
pensando, lá é coisa boa. Lá eu levava tudo, vendia na
feira, não apertava com nada não. Aqui é difícil muita
coisa”, compara a sabedoria sob a forma de um homem
de 85 anos.
Adelina e Erasmo, dois amigos que representam o
grupo de imigrantes que deixou a Região Nordeste,
acostumou-se ao fedor do veneno, às intoxicações
consequentes dele e viu morrer muitos jovens com os goles
do que era matar apenas as pragas da lavoura. Criaram os
filhos no campo, beberam nas embalagens de agrotóxico
que viraram copos da cozinha e vivem hoje em uma tristeza
silenciosa, causada pela falta dos companheiros que se
foram e dos amigos que preferiram morar na cidade.
Testemunhas de uma época áurea, em que lavouras
de algodão ocupavam todas as propriedades da região.
Época dos vizinhos festeiros e de algumas notícias tristes,
quando alguém era invadido pela tristeza e preferia morrer
24
27. Gosto de Veneno
2. O Cheiro
“A medida mais segura para evitar o veneno é não usá-lo”
Sebastião Pinheiro
Um pequeno espaço de terra, uma casa de madeira e
o Seu Manuel. A conversa acontece em um banco no
quintal, e as primeiras perguntas deixam o agricultor de
73 anos um pouco desconfiado. Ele observa bem,
questiona, mas logo sorri e deixa os receios de lado.
Manuel Firmino Roberto nasceu em Alagoas, mas
saiu da terra natal aos 22 anos. O primeiro destino foi o
interior de São Paulo, de onde partiu pouco tempo depois
em busca do sonho de sucesso no desconhecido estado de
Mato Grosso. De Alagoas, ele ainda carrega o sotaque
nordestino, a fala apressada, as palavras que se atropelam
e um bom humor irresistível. Para ele que faz de “filho da
puta” nome, os palavrões saem sem nenhum temor.
A conversa frouxa e as opiniões sobre a atuação do
presidente Lula misturam-se a uma história de vida difícil.
A pele queimada de sol e os traços aparentes da idade
mostram que o trabalho na lavoura fez os anos parecerem
27
28. Marcelle Souza
mais duros para Manuel Firmino. Sua esposa morreu há
muitos anos.
O motivo ele não sabe ao certo, e mesmo assim tenta
explicar o que poderia ter levado a companheira embora.
“Um dia ela tava com dor de cabeça e tomou Aguardente
Alemanha pra curar. Tomou um café e foi prender umas
roupas no varal. Ficou sem fala, levei pro doutor, mas não
teve jeito. Parece que foi derrame”, narra o produtor rural,
que explica, em seguida, que a Aguardente Alemanha era
uma raizada usada para curar vários males.
De lá para cá a vida foi perdendo um pouco da graça
para Seu Mané, como é conhecido por todos na região.
Os botões abertos da camisa revelam sua magreza,
enquanto os olhos baixos indicam um pouco de
infelicidade. Em um dia, sem muitas brincadeiras, Manuel
conta o motivo do seu mais profundo desgosto. Com a
mesma fala apressada, ele lamenta o desrespeito e os maus
tratos que sofre do filho de 35 anos, Abrão Firmino
Roberto. “Nessa idade, minha filha, tendo que aguentar
o filho maltratando a gente”.
Os dois são hoje o que restou da família, moram em
uma casa simples com apenas um quarto, uma sala
pequena, cozinha e banheiro. As paredes de madeira não
escondem a desordem e o vício de dois homens solitários:
são nove horas da manhã e a garrafa de pinga sobre a
mesa já está pela metade.
A sala da casa traduz um pouco do que foi e ainda é a
vida de Manuel. Nas paredes estão pendurados retratos
da família, quadros antigos, daqueles que ainda eram
pintados a mão. O sofá é velho e fica bem em frente à
televisão, ferramenta importante de conhecimento para
quem, assim como ele, lê pouco e tem a TV como a
principal fonte de informação.
Ao lado do aparelho e também atrás da porta, estão
28
29. Gosto de Veneno
os sacos de sementes e as embalagens de agrotóxico. Como
cada linha daquele rosto e cada tábua da casa de madeira,
venenos da classificação “extremamente tóxicos” estão
presentes até nos momentos de lazer da família.
Desde quando Manuel usa agrotóxicos? Pergunta
difícil para um homem que viu os anos passarem com uma
máquina de aplicação manual nas costas. Em seu lote de
terra já foram cultivados produtos como fumo, arroz e
algodão. Na última década, assim como os demais
produtores da região, Manuel decidiu investir na soja e no
milho. Mas o pouco dinheiro e as secas sucessivas diminuem
a cada safra os ganhos do produtor.
Mesmo sem conseguir largar o trabalho na terra, Seu
Mané parece cansado. Nota-se pelo rosto, o corpo franzino
e as queixas frequentes. “Tem dia que tô lascado de dor,
minha filha”, conta ele sobre a artrite que, às vezes, o
impede de trabalhar.
Perfume Inconfundível
“Barrage”, “”, “Azodrin”, “Tamaron”, “2,4D” e “3,10”
são velhos conhecidos de agricultores como Seu Mané. Para
alguns, essas palavras estranhas podem até soar como
estrangeiras, mas na verdade são alguns dos agrotóxicos
mais usados em Fátima do Sul para combater as pragas do
algodão, do milho e da soja.
A maioria pertence à família dos organofosforados e
mudaram a idéia do que é saúde para aquela população.
Manuel e o filho Abrão chegam a enumerar os sintomas
que se tornaram cotidianos: dor de cabeça, náusea, coceira
e até o “perfume” inconfundível. “Quando a gente aplica
o veneno, pode até tomar banho depois, mas a roupa e o
suor fede Tamarão (sic). Não sai do corpo, né, Zé?”,
comenta Manuel para o agente de saúde que nos
acompanha.
29
30. Marcelle Souza
Há ainda muitas histórias de intoxicação aguda, em
que os sintomas surgem rapidamente após uma exposição
ao agrotóxico. “Uma vez tava passando Tamarão e o tempo
tava quente. Tive dor no estômago, vômito. Fiquei ruim
umas duas semanas”, conta Abrão, que ainda acrescenta,
“Tamarão mata hein, não precisa nem beber”.
Com a mesma naturalidade, Manuel, que está
sentado no sofá velho da sala, vai acrescentando à conversa
outros relatos tão comuns e graves quanto os do filho, que
permanece em pé ao seu lado. “Naquela época a gente
usava muito veneno em pó, colocava a máquina nas costas
e passava na lavoura. Dava uma coceira danada. Outra
vez passei Folidol, intoxiquei e fui pro hospital”.
Fatos nada isolados, que fazem parte das histórias da
vida de praticamente todos os produtores rurais da região,
já acostumados ao cheiro e às consequências da exposição
aos agrotóxicos. “Uns 10 anos atrás eu passei quatro dias
fedendo porque tomei um banho de veneno. A máquina
caiu em cima de mim e fiquei mais de um mês vomitando.
Não fui pro médico, só tomei uma água com açúcar
mesmo”, relata João Lima de Jesus, vizinho de Seu Manuel.
Ele ainda lembra que as aplicações de veneno em pó
durante o plantio do algodão eram as piores. “Aquilo
queimava as costas. E quando tava na época de aplicar, a
gente ia dormir inalando aquele pó”.
Em cada casa visitada, os relatos parecem os mesmos.
Sintomas, cheiros, dores e o mal-estar característico das
intoxicações agudas. Mas o que parece tão estranho aos
ouvidos vindos da Capital, já se tornou parte inerente à
lida no campo. Para eles, que acham graça do espanto dos
forasteiros, veneno é parte da vida e intoxicação torna-se
mera consequência desse viver.
Existem, porém, outras histórias menos comuns e tão
sérias quanto às anteriores. “Uma vez colocaram Tamarão
30
31. Gosto de Veneno
(sic) no nosso feijão. Eu comi, o Abrão também. Deu uma
disenteria braba e ele ficou até internado”, relata Manuel,
sobre uma possível tentativa de assassinato. Segundo ele,
algum inimigo da família teria colocado agrotóxico dentro
da panela de feijão, o que, felizmente, só resultou em uma
visita ao hospital.
Há os que conhecem os perigos e até sugerem medidas
para o fim das narrativas de intoxicação no campo. “Acho
que o 2,4D devia ser proibido, porque acaba com tudo
num raio de 1 quilômetro, galinha cai dura”, relata o
vizinho de Manuel, Benedito Francisco da Silva. Curioso
é mesmo Benedito não dar a menor importância aos
sintomas que se tornaram parte do seu dia a dia. Em seus
30 anos de trabalho na lavoura, dor de cabeça,
“piniqueira”, enjôo, formigamento já são mais do que
comuns.
Apesar de conhecer as consequências do uso de
agrotóxico por tanto tempo, Manuel e o filho Abrão, e os
vizinhos Benedito e João Lima dispensam os equipamentos
de proteção individual (EPIs) na hora de passar o veneno
na lavoura. As desculpas são sempre as mesmas: eles
esquentam, atrapalham e são pouco confortáveis.
Argumentos que, segundo o professor do departamento
de Química da UFMS, Dario Xavier Pires, na maioria dos
casos são válidos. “A gente tem que pensar que é muito
difícil você vestir o EPI e entrar em uma lavoura de milho
às duas horas da tarde. O milho é alto, fecha, não circula
ar, ninguém aguenta”, explica o pesquisador.
Para ele, porém, esse não é o único motivo dos
equipamentos serem descartados pelos trabalhadores
rurais. Dario indica que culturalmente o brasileiro não dá
importância ao trabalho com segurança, diferente dos
produtores dos países desenvolvidos, onde a proteção é
tão importante quanto a própria lavoura. Esse descaso pode
31
32. Marcelle Souza
ser comparado pelos relatos dos próprios agricultores em
Fátima do Sul, que afirmam que a primeira e única
informação observada no rótulo desses produtos são as
concentrações utilizadas na aplicação.
Pesquisador e duro crítico da indústria de defensivos
agrícolas, o engenheiro agrícola Sebastião Pinheiro
também defende o argumento dos produtores, destacando
que na maioria das vezes a utilização dos EPIs torna-se
inviável no campo. “Coloque todo o equipamento de
proteção individual e depois fique andando à sombra
debaixo de umas mangueiras em Mato Grosso do Sul em
qualquer uma das estações. Sua morte ocorrerá em cinco
ou seis horas por desidratação”, desafia o ambientalista.
Pinheiro vai além afirmando que tais ferramentas
de trabalho se tornaram recursos das empresas para
transferir a responsabilidade pelas intoxicações. “Indústria
necessita de álibis, pretextos para pôr a culpa nas vítimas.
A medida mais segura para evitar o veneno é não usá-lo”,
garante Pinheiro.
“Aqui no Brasil os estudantes de agronomia
aprendem que os culpados pelas intoxicações são os
agricultores por não usarem proteção individual. Há casos
de funcionários de floriculturas na Flórida que morreram
intoxicados pelo veneno nas rosas importadas da
Colômbia. Será que não se deveria obrigar as pessoas que
trabalham nas floriculturas a usar equipamento de
proteção?”, chama atenção o pesquisador, que é membro
do Grupo Interdisciplinar de Pesquisa e Ação em
Agricultura e Saúde (GIPAAS) e ambientalista da
Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural
(AGAPAN).
Nem obrigar os produtores a usarem equipamentos,
nem colocar toda a culpa na indústria dos agrotóxicos, de
acordo com Sebastião Pinheiro a melhor saída seria adotar
32
33. Gosto de Veneno
a Diretiva Comunitária da União Européia 414/91, que
obriga o agricultor que quiser usar venenos a fazer um
curso de 400 horas e passar por uma habilitação. “Minha
proposta é radical. O curso deveria ser pago 33% pelas
indústrias, 33% pelos ambientalistas contra os venenos e
33% pelo governo”.
Só uma talagada de cachaça
Assim como tantos produtores, Seu Manuel Firmino
sabe ler, mas dispensa as instruções contidas nos rótulos
dos produtos. Destes, a única parte realmente importante
são as concentrações recomendadas para a aplicação do
veneno em cada tipo de lavoura. Enquanto isso, ficam de
fora informações sobre grau de toxidade e equipamentos
de proteção individual que devem ser usados para cada
agrotóxico.
“Isso de dizer que agricultor não conhece rótulo não
é bem verdade, eles sabem o que é rótulo, as informações.
Talvez não saibam as minúcias, mas eles sabem qual
produto é o mais e qual é o menos tóxico. Eles têm
conhecimento do risco, mas eu acho que pelo fato de a
vida inteira trabalharem com aquilo, a noção de perigo
vai sendo amainada”, explica o pesquisador da UFMS,
Dario Xavier Pires.
Segundo ele, a falta de atenção ao ler os cuidados
contidos no rótulo mostra uma tendência do agricultor a
minimizar o risco do contato com um produto já conhecido
por ele. “A noção de risco, por causa da rotina de uso, fica
de algum modo esmorecida. Eles têm a noção de que é
perigoso, mas é tanto tempo trabalhando com aquilo que
acabam perdendo os cuidados”.
Por causa do tempo prolongado de exposição, alguns
produtores chegam a relatar que foram proibidos de
chegar perto dos agrotóxicos, tamanha sensibilidade que
33
34. Marcelle Souza
atingiram. O organismo fica extremamente potencializado
pra isso. “Alguns agricultores se mostraram extremamente
preocupados com um tipo de inseticida que o princípio
ativo é o piretróide, porque ele provoca alergia, apesar de
não ser tão tóxico. Então, quando ele entra em contato
com o piretróide, os dedos ficam inflamados e a mão fica
vermelha. Mas eles não se preocupam com os que não
provocam alergia e são extremamente tóxicos”, explica o
professor do Departamento de Química da Universidade
Federal de Mato Grosso do Sul.
Prova da falta de cuidado de muitos produtores
acostumados com o trabalho na lavoura, o vendedor de
uma loja de produtos agropecuários, Pedro Vieira Santos,
diz: “Antes ninguém usava equipamento, só um pano no
nariz quando o veneno era muito fedido. ‘Se o agrotóxico
não é fedido, não mata’, é assim que os produtores pensam.
Só que os mais perigosos são exatamente os que não têm
cheiro”, relata o vendedor.
São maneiras de enganar o pouco de medo que ainda
possuem de algo que, apesar da gravidade, já se tornou
habitual ao trabalho desses produtores. Outro sinal de que
eles tendem a minimizar os riscos são os remédios caseiros
que afirmam usar antes da aplicação. Entre as “curas
milagrosas” está o leite. “Passei mal e depois tomei um copo
de leite”, conta a maioria dos agricultores, já que o produto
é visto como forte aliado para “proteger” o corpo contra a
alta exposição aos agrotóxicos.
Durante a realização de suas pesquisas, Dario Xavier
descobriu que além dessa bebida, a cachaça também é um
forte aliado dos produtores na hora de aplicar o veneno.
“É da cultura machista isso de enfrentar o perigo, então,
principalmente os mais novos, tomam uma talagada de
cachaça e vão passar o veneno na lavoura. Dessa forma,
para muitos, a cachaça, de algum modo, previne, mas a
34
35. Gosto de Veneno
gente sabe que é o oposto”.
Para a psiquiatra Jussinalva Aguiar a bebida é uma
pseudofortaleza que faz com que a pessoa se sinta
aparentemente mais forte. “O ser humano é onipotente.
Acha que vai acontecer com o outro, mas nunca com ele”,
completa a médica.
Ao contrário do que pensam os moradores da zona
rural de Fátima do Sul, a bebida alcoólica deixa o corpo
mais propenso à desidratação. Portanto, ao invés de buscar
as curas mágicas, medidas mais eficazes poderiam ser
adotadas: não aplicar agrotóxico com o sol muito forte,
porque a insolação favorece a penetração do veneno na
pele , ter uma dieta rica em proteína e não fumar ou co-
mer durante aplicação.
Na porta da cozinha
Enquanto os homens sentem na pele as consequências
das intoxicações, em casa as esposas também conhecem o
tamanho do perigo. “O 3,10 era o mais pior, era o gambá,
fedido demais. A roupa dos homens tinha deixar lá fora e
lavar com sabão de soda muito forte pra não envenenar o
corpo deles depois. Aquilo pregava nas folhas da lavoura e
só saía com chuva. Um cheiro forte que criança não podia
ir lá. Eu ia levar comida na roça e não levava criança,
porque pregava no couro, dava coceira, ficava umas
manchas meio amareladinha no couro”, descreve Dona
Adelina, que nunca trabalhou na roça com os filhos e o
marido, e no quintal era capaz de sentir o fedor do
agrotóxico.
Em casa, mulheres como ela são as primeiras a acolher
os familiares intoxicados e são elas que chamam o socorro
nessas horas. “Meu marido intoxicou duas vezes. A primeira
vez ele ficou inchado e a outra vez ficou sem poder
caminhar. Quem curou ele foi a Dona Marina Japonesa.
35
36. Marcelle Souza
Ela é viva ainda, agora parece que o marido dela, Seu Jor-
ge, morreu. Meu marido não podia andar não. Atiraram
ele num carrinho de pneu de um homem ali, chamado
Zé Pereira, e pagaram R$ 3 pra levar, não me lembro, mas
acho que foi pra Dourados”. E emenda: “não ficou no
hospital, só deram remédio.Teve vômito, diarréia e dor
de cabeça. Ele vomitou até sangue. Ficou ruim um mês.
Foi quando ele ficou um ano sem pegar em veneno. Era o
de passar na maçã, o Bicudo, nunca tinha ouvido falar,
mas quem falou foi um homem chamado Daniel” detalha
a senhora viúva de 81 anos.
Mas mães, esposas, filhas e nora de produtores rurais,
não percebem o perigo do veneno apenas de casa, embora
não figurem entre as estatísticas de intoxicação aguda,
caracterizada por reações rápidas diante de exposições ao
veneno, o ambiente as expõe aos resíduos e, assim como
os homens, as mulheres sentem as consequências das
intoxicações crônicas, cujos sintomas aparecem anos depois
e podem se manifestar em várias doenças.
Da cadeira do laboratório de informática do
Departamento de Química da Universidade Federal, o
professor Doutor Dario Xavier Pires, que estudou o
fenômeno em Fátima do Sul durante mais de 10 anos,
explica a relação das mulheres com os agrotóxicos. “Se você
for lá em Fátima do Sul, você vê: a casa de moradia é
rodeada, às vezes, de soja, milho. A agricultura chega,
basicamente, quase na porta da cozinha. Então, se você
está aplicando o veneno, mesmo que a pessoa não esteja
aplicando diretamente, ela está exposta. Outra coisa, são
elas que fazem a lavagem das roupas dos homens, então
elas também estão expostas apesar de não diretamente”.
O ambientalista Sebastião Pinheiro tem ainda outra
explicação para os casos de intoxicação crônica em
mulheres. Segundo ele, elas são mais sensíveis à ação
36
37. Gosto de Veneno
cumulativa dos venenos porque as doses são letais em quan-
tidades menores do que as expostas aos homens. “Um ve-
neno para a mulher é muitíssimas vezes mais perigoso.
Elas passam aos filhos a herança citoplasmática e o
primeiro alimento, muitas substâncias tóxicas ficam retidas
nas gorduras e passam para o bebê. Os organofosforados
causam disrupção endócrina, ou seja, alteram a
concentração de hormônios para mais ou para menos
alterando todo o metabolismo da pessoa”. A relação é
perigosa, só que o problema é que o fato não é estudado
com maior profundidade.
37
39. Gosto de Veneno
3. O silêncio
“Meu filho ficou três dias dentro do quarto, só tomava água e
café. E gritava ‘eu matei meu irmão!’ Um dia o médico mandou
me chamar e disse ‘O seu menino tem a depressão mais terrível que
existe. Só sai se tomar remédio’. E ele tomou por cinco meses e até
hoje ainda toma”
Sinésia dos Anjos
Ao lado de um grande terreno com alguns pés de
eucalipto, mora dona Sinésia Maria dos Anjos. Assim como
as demais, o acesso à sua residência também é de terra e a
chuva exige mais destreza dos motoristas que se arriscam
na lama escorregadia para chegar aos sítios que ficam do
outro lado da rodovia.
A casa de alvenaria parece bem cuidada e, logo na
entrada, um coração feito na terra com pedras e algumas
flores “recebem” os visitantes. O enfeite foi feito por um
dos filhos de Sinésia durante uma das visitas rápidas que
costuma fazer à mãe.
Logo à frente, a anfitriã nos recebe sem nenhum
entusiasmo, deixando claro que a visita não é bem-vinda.
É uma senhora pequena, de 82 anos, olhos fundos e
magreza que gera compaixão dos demais. Tem três filhos
e um enteado, mas apesar da recepção graciosa das rosas
em formato de coração da entrada, a história dessa família
39
40. Marcelle Souza
não parece tão doce.
No começo responde sempre com poucas palavras,
diz apenas que sua vida não é interessante o suficiente para
ser contada. O olhar distante revela que seu grande
problema é lembrar-se da dor que parece ser inerente.
Aparenta ser uma mulher frágil e lúcida, resultado de uma
força inexplicável e uma loucura que muitos não
suportariam.
Aos poucos saem as primeiras palavras sobre a história,
no começo tão parecida com as outras que tinha escutado
nas andanças pela região. “Casei e deu na cabeça de vir
pro Mato Grosso”, conta Sinésia. Nasceu na Bahia e aos
vinte anos casou-se com um homem viúvo, que já tinha
um filho de outro casamento. Sobre o romance, ela se
esquiva de buscar detalhes, e continua com o relato sobre
a mudança para tão longe. “Lá era difícil pra viver”. O
marido então ficou sabendo que para as bandas de Mato
Grosso tinha gente dando certo. “Ele perguntou se eu
queria vir e concordei”, comenta.
Mas os primeiros anos em uma terra tão distante não
foram fáceis. “Eu chorava dia e noite. Pensava que nunca
mais ia ver meus pais”, lembra a senhora, ainda com uma
feição de tristeza. Felizmente, apesar da distância, vez ou
outra o pai ainda vem visitá-la, mas Sinésia nunca mais
viajou para a terra natal.
Entre uma palavra e outra, é impossível não observar
seu enteado, que caminha de um lado para o outro na
varanda feita de madeira nos fundos da casa. É um homem
de mais de 50 anos e notavelmente tem uma deficiência
mental. Resmunga o tempo todo e cospe no chão quando
para. Está fora da conversa, parece querer chamar a
atenção, os visitantes não conseguem tirar os olhos dele.
Sinésia, no entanto, ignora as ações do enteado, mostrando
que a cena se tornou cotidiana para ela. Os dois são hoje o
40
41. Gosto de Veneno
que restou da família, ele vive em um mundo distante,
inacessível, enquanto a senhora sofre sozinha uma tristeza
que parece que só terá fim no dia de sua morte.
“Minha vida foi muito sofrida. Vivi pra criar filhos,
netos e bisnetos”, diz ela, sem saber que a expressão de
suas palavras está marcada em seu rosto. O motivo do olhar
perdido e da falta de esperança na vida é esclarecido quando
Sinésia começa a falar sobre os filhos, que trabalharam no
campo desde crianças. “Tem um que o juízo dele não é
muito bom desde pequeno. Já ficou internado em Fátima
do Sul, Campo Grande e São Paulo uns três meses. Tá
sempre atrás de uma pinga e conversando lorota. Fica me
surtando. Às vezes é agressivo e triste”, conta a mãe.
O que parecia só tristeza logo foi diagnosticada como
depressão. “Ele ficou pior depois que vendeu toda a madeira
dos eucaliptos que eu tinha no terreno do lado. Só que o
homem nunca pagou. Daí, acho que ele ficou com remorso,
porque eu não queria que vendesse. Ficou com olho fundo
e não comia quase nada”, lembra Sinésia, sobre o que
desencadeou a doença do filho mais velho.
Antes de contar a próxima história, ela para poucos
minutos, lembra-se das coisas que viveu, dá um leve suspiro
e diz: “Já sofri tanto nesse mundo”. Recorda das crises de
depressão, das bebedeiras e internações do filho que quase
a colocaram em um processo de loucura também. E, como
se não bastasse, pouco tempo depois sua lucidez seria testada
novamente.
Quando ainda se recuperava do tratamento do mais
velho, uma fatalidade fez Sinésia perder seus outros dois
filhos. “Ele vinha dirigindo o trator calmo, devagarinho,
mas o outro menino tinha bebido e caiu do trator. Quando
percebemos, ele tinha passado por cima do irmão”. O
segundo morreu na hora, enquanto o motorista entrou
em uma depressão profunda que até hoje, dez anos depois
41
42. Marcelle Souza
do ocorrido, faz o homem ficar grande parte do ano
internado em uma clínica pública na Capital.
“Meu filho ficou três dias dentro do quarto, só tomava
água e café. E gritava ‘eu matei meu irmão!’ Chorava que
dava dó, daí não teve quem desse jeito. Tivemos que
mandar ele para Campo Grande e um dia o médico
mandou me chamar. ‘O seu menino tem a depressão mais
terrível que existe. Só sai se tomar remédio. E ele tomou
por cinco meses e até hoje toma”. O acidente foi confuso,
a mãe estava ali no meio dos curiosos que se reuniram
para saber o que havia acontecido. Lembra-se apenas que
a dor era muito forte e não conseguia compreender o que
estava acontecendo.
Naquele momento ela mal podia entender que além
de suportar o luto, teria que aprender a ver seu outro fi-
lho perder a vontade de viver. Até hoje ele passa de 2 a 3
meses internado em Campo Grande, volta para a casa da
mãe, mas logo tem que retomar os tratamentos na clínica
psiquiátrica. “Quando ele vem, arranja um falatório que
aborrece até os vizinhos. Aí tem que internar ele de novo”,
conta.
A mãe franzina, que tira forças de onde parece não
ser possível, lamenta o rumo que a vida tomou. “Eu tenho
sofrido muito. Tem dia que fico de cabeça baixa pensando
nesse menino. Antes ele tinha vontade de ter as coisinhas
dele, mas agora nunca vejo do jeito que ele era naquela
época”, diz. Dor de quem perdeu as esperanças de ter uma
vida melhor e teve que se acostumar com a falta de brilho
nos olhos.
Mas a conversa que trouxe de volta as lembranças
ruins conseguiu também iluminar alguns minutos do dia
daquela mulher. Ao final da entrevista surge um pequeno
sorriso, resultado simples por alguém ter dedicado um
pouco de atenção à sua história de vida. Tímida, pede que
42
43. Gosto de Veneno
as visitas voltem outra vez e tanta dor é aliviada com um
abraço de despedida.
Nem fraco nem esquisito
A tristeza no campo é um silêncio assustador, uma
falta de esperança de que a lavoura dê lucro e de que a
região volte a ser populosa como antigamente. Não
existem mais festas de forró, como as que os imigrantes
faziam logo que chegaram em busca de uma nova vida. O
tempo também parou, os filhos foram embora e os poucos
que ficaram vivem das lembranças.
Nos idosos isso é mais aparente, sentem-se sozinhos e
a falta de perspectiva para prepará-los para a despedida
final. Por isso, uma simples conversa funciona como uma
catarse, trazendo à tona a dor, a saudade e as lembranças
que esqueceram por alguns instantes.
Para o pesquisador da UFMS Dario Xavier Pires, os
sintomas que se aproximam da depressão são evidentes
tanto no contato com os produtores quanto nas conversas
informais com profissionais da saúde. “Eu nunca me
esqueço de um médico do Programa Saúde da Família,
que não posso dizer o nome, sentar e dizer: ‘Fátima do Sul
é uma cidade de loucos’. Isso porque ele nunca tinha visto
tamanho consumo de remédios controlados”.
A cidade não possui Programa de Saúde Mental por
isso, em grande parte dos casos, os doentes são
encaminhados para Dourados ou Campo Grande, que fica
a 242 quilômetros de Fátima do Sul. Para a psiquiatra,
Jussinalva Silva de Aguiar, o tratamento longe de casa
prejudica a recuperação do paciente, que vez ou outra acaba
voltando à cidade de origem e sofrendo um retrocesso em
relação aos avanços conquistados pelos médicos. Sem a
família, a pessoa também se sente desamparada diante do
ambiente estranho e das dificuldades que surgem durante
43
44. Marcelle Souza
o tratamento.
Há 20 anos, parte dos casos de depressão, porém, não
eram sequer identificados. Isso porque a assistência à saúde
para as populações rurais era ainda mais deficiente e a
doença não chegava a ser diagnosticada pelos médicos. O
problema é que nos casos graves, a falta de tratamento
pode levar ao suicídio, tema também recorrente nas
conversas com os produtores.
“Normalmente os casos de suicídio estão ligados a
quadros depressivos. Mesmo que a família diga que não,
em uma análise mais profunda acabamos descobrindo que
a pessoa já vinha apresentando sintomas. No meio rural é
pior, porque eles não têm muita perspicácia do lado
psíquico e humano. Dizem que a pessoa é meio esquisita,
fraca, o que na verdade pode ser uma depressão ou
esquizofrenia”, explica a psiquiatra.
Existem pesquisas no Brasil e em outros países que
estudam a relação entre a exposição aos agrotóxicos
organofosforados e a depressão. No meio acadêmico o
debate é pouco conhecido, mas produz boas discussões sobre
a efetiva ligação entre os fatores. De um lado, estão
pesquisadores, como o médico toxicologista Ângelo Zanaga
Trapé, que acreditam que os levantamentos realizados até
hoje não conseguiram sustentar a relação.
Do outro, representando os defensores dos estudos
sobre o tema, o engenheiro agrônomo Sebastião Pinheiro
afirma com veemência que a intoxicação por
organofosforados resulta não só na depressão, como está
diretamente relacionada aos casos de suicídios em regiões
onde os produtores estão expostos ao produto.
Nessa discussão, o consenso é que esse tipo de
agrotóxico inibe a enzima acetilcolinesterase, causando o
acúmulo do neurotransmissor acetilcolina e a consequente
superestimulação das terminações nervosas. O resultado
44
45. Gosto de Veneno
são sintomas conhecidos pelos produtores, como dor de
cabeça, tontura, ânsia de vômito e palpitação
“Entre um neurônio e outro existem as fendas
sinápticas, onde ficam esses neurotransmissores. A
intoxicação por agrotóxico causa variações qualitativas e
quantitativas nas sinapses, que agem na alteração do
humor, o que pode causar tanto sintomas depressivos,
como o aparecimento de manias e agitação”, explica a
psiquiatra Jussinalva Aguiar. A especialista ainda destaca
que a depressão causada pelo uso de agrotóxicos é exógena,
ou seja, de causa externa, resultado da intoxicação a longo
prazo.
Entre 2004 e 2005, um grupo de pesquisadores da
UFMS realizou um levantamento sobre os estados
depressivos e os níveis da enzima colinesterase em 261
agricultores expostos aos organofosforados em Fátima do
Sul. Os resultados apontaram que 149 produtores (57,1%)
relataram algum tipo de sintoma após o uso dos agrotóxicos,
e 30 pessoas apresentaram Distúrbios Psiquiátricos
Menores (DPM), sendo que três destes já haviam tentado
cometer suicídio.
Em 24 agricultores foi detectada a redução da ativi-
dade enzimática em relação ao período de não exposição,
abaixo do limite inferior de referência do grupo controle,
e foram considerados extremamente expostos. Destes, cin-
co confirmaram DPM. O estudo ainda diagnosticou a as-
sociação entre os distúrbios psiquiátricos, os baixos níveis
de escolaridade e uso de pulverizadores costais, o que indica
um aumento do risco por conta das condições inseguras
de aplicação.
Câncer
Segundo a Agência Internacional para Pesquisa de
Câncer (IARC), alguns tipos desses agrotóxicos são consi-
45
46. Marcelle Souza
derados cancerígenos. Em Fátima do Sul, a observação a
campo aponta para o câncer como possível reflexo da ex-
posição prolongada aos organofosforados.
“Quando nós fomos a Fátima do Sul, as pessoas
citavam que o índice de câncer na cidade era elevado e
estavam preocupados. Talvez essa seja uma evidência de
que o número é mesmo alto, já que a própria população
começa a perceber isso”, comenta o professor de Química
da UFMS, Dario Xavier Pires, que esteve na zona rural do
município coletando informações para sua pesquisa de
doutorado.
E não é só para os visitantes que a incidência da doença
parece ter aumentado. Para o médico Hermindo de David,
do Hospital Nazareno, em Fátima do Sul, há 20 anos esse
tipo de relato não era tão comum quanto os que chegam
com frequência aos profissionais da saúde do município.
“Antigamente quase não existiam casos de câncer,
agora percebemos que o número aumentou
significativamente e isso pode ter um conexão com o uso
de agrotóxico”. Segundo David, os mais comuns são o de
mama, próstata e aparelho digestivo.
Mais uma vez, como o tratamento não pode ser feito
na cidade, os pacientes são encaminhados à Capital.
“Durante os contatos para o nosso trabalho, eu me lembro
de uma enfermeira do setor de oncologia do Hospital
Universitário, em Campo Grande, comentar sobre o
grande número de pacientesque vinham da região de Dou-
rados, como crianças com câncer de medula ou com defei-
to lábio-palatino”, lembra o pesquisador.
Durante as décadas de 1960 e 1970, o solo e os
produtores foram expostos aos organoclorados, que
possuem alta toxidade, bioacumulação e persistência no
ambiente por muitos anos. São agrotóxicos extremamente
cancerígenos e a maioria deles já foi proibida no Brasil. O
46
47. Gosto de Veneno
problema é que os resíduos de aplicações anteriores po-
dem ter permanecido no ambiente, o que torna necessá-
ria a realização de estudos para detectar até que ponto essa
contaminação pode ter afetado os agricultores do
município.
“Se agora a população rural diz que não há assistência
técnica, nem atenção à saúde, imagina na década de 60,
70, quando eles chegaram. Além disso, tinha todo um
programa de financiamento dos bancos que só liberavam
o dinheiro mediante o uso de veneno”, critica Dario Xavier,
sobre os fatores que levaram ao uso indiscriminado de
agrotóxicos na região.
De fato, a necessidade de investimento em pesticidas
torna o financiamento mais difícil para produtores que
optam pela agricultura orgânica, segundo o gerente da
sede da Agência de Desenvolvimento Agrário e Extensão
Rural (Agraer/MS) em Fátima do Sul, Marcio Ribeiro
Bonette. “Fora da cerca, todo mundo tem lucro, bancos,
revendedoras e fabricantes, enquanto o agricultor vive para
pagar as dívidas”, diz Bonette.
De um lado, as grandes empresas e do outro,
pequenos produtores, entre eles um produto lucrativo mas
que pode causar danos irreversíveis à saúde do homem. E
nessa disputa desleal ganham aqueles que têm mais força,
sendo que a outra ponta sobrevive lutando contra as
doenças e tentando ganhar dinheiro para pagar o que deve
e conseguir plantar.
47
49. Gosto de Veneno
4. O Gosto
“O padre achou ruim levar a vizinha para a igreja, porque
todo mundo ficava participando daquele fedor mais triste. A finada
Eva misturou três venenos e bebeu. Daí disse, ‘eu não disse que
bebia’, e caiu”
Adelina Oliveira
Ainda não tinha completado 18 anos, quando ela
resolveu acabar com a própria vida. Deixou para trás a
filha de um ano e meio e todos os sonhos da juventude
em nome de um grande amor. Filha de Seu Erasmo, Eva
Erasmo da Silva surpreendeu toda a família quando
desmaiou porque tinha bebido veneno. O motivo, segundo
ela, era um romance mal resolvido, que antes já tinha
motivado uma depressão percebida pelas irmãs.
A jovem era bonita e, assim como todas as garotas do
sítio, sonhava em morar na cidade. Teve sua primeira filha,
fruto de um casamento forçado pelo pai. O namoro não
dera certo e Eva voltou para a casa da mãe. Pouco tempo
depois, envolveu-se com um homem casado, que lhe deu
um novo lar, mas não o amor que ela esperava.
O relacionamento rendia momentos de extremo
descontentamento, enquanto em outras horas era
alimentado pela esperança de que poderia dar certo. Para
49
50. Marcelle Souza
as irmãs e a mãe, estava claro que Eva vivia infeliz e a
tristeza próxima à depressão foi relatada pelos conhecidos
em muitos momentos.
A família dava-lhe conselhos, mas ela não queria
escutá-los. Foi quando descobriu que estava grávida
novamente e o grande amor deixou claro que não iria
abandonar o casamento para ficar com ela. Só que apesar
da tristeza pelo desprezo do homem amado, naquele dia
ela parecia especialmente feliz. Chegou alegre à casa da
cunhada e disse apenas que iria tomar banho no córrego.
Lucia confessa que estranhou a felicidade da jovem que
nos últimos dias parecia bem abatida, mas logo deixou
desconfiança de lado e resolveu ficar contente com a
aparente recuperação da irmã de seu marido.
Minutos depois, porém, Eva voltou para a casa e
encontrou-se novamente com a cunhada. “Olhou e falou
pra mim que tinha tomado veneno. Daí tirou uma caneca
e tomou o resto que tinha. Demorou uns minutos e já
caiu. Fiquei meio atrapalhada, meia doida, ai já correram
e levaram pra cidade, mas não teve jeito, porque ela tomou
demais”, lembra Lúcia, casada com um dos filhos de
Erasmo.
Eva morreu a caminho do hospital, já em Fátima do
Sul. A família recorda que ninguém conseguia ficar no
velório da jovem, tamanho era o fedor do agrotóxico que
ela havia ingerido. O caso aconteceu há 25 anos, mas até
hoje os irmãos choram ao lembrar da notícia que
receberam naquele dia. “Quando me contaram que
alguém tinha bebido veneno no sítio, eu nunca imaginei
que era a minha irmã”, lembra Cida, uma das mais velhas,
que ficou sabendo do suicídio quando estava na cidade
fazendo compras de charrete.
Diante da dor de uma perda tão grande, Seu Erasmo
e a esposa tiveram que tirar forças para educar a neta que
50
51. Gosto de Veneno
mal sabia andar. Hoje com 26 anos e dois filhos, a menina
virou mulher e aprendeu a chamar os avós de pais, já que
não tem lembranças da mãe que não a viu crescer.
Suicídio em números
A história poderia ser só mais uma fatalidade, não
fossem as histórias semelhantes que se ouvem em Fátima
do Sul. Todas por ingestão de agrotóxico e consequência
do que antes era conhecido como tristeza, mas hoje recebe
o nome de depressão.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que
ocorram anualmente no mundo cerca de três milhões de
intoxicações agudas provocadas pela exposição aos
agrotóxicos, o que resulta em aproximadamente 220 mil
mortes por ano. Ainda de acordo com a OMS, esses casos
constituem um grave problema de saúde pública,
principalmente nos países em desenvolvimento.
Do outro lado, um levantamento da Associação
Nacional de Defesa de Vegetal (Andef) à consultoria alemã
Kleffmann Group indica que o Brasil é o maior mercado
de agrotóxicos do mundo. O estudo ainda mostra que a
indústria dos defensivos agrícolas movimentou US$ 7,1
bilhões no país em 2008, ante US$ 6,6 bilhões do segundo
colocado, os Estados Unidos. Comparados com 2007,
quando o consumo brasileiro foi de US$ 5,4 bilhões, os
números revelam um crescimento significativo apesar de
a área plantada ter encolhido 2% no ano passado.
Consequência desse consumo crescente de agrotóxicos
no país, o Serviço Integrado de Informações Tóxico-
farmacológicas (Sinitox) do Ministério da Saúde, registrou
112.403 casos de intoxicação em 2007. Destes, 2.899
correspondem a tentativas de suicídio por ingestão de
veneno de uso agrícola. Segundo o pesquisador Dario
Xavier, o problema é que, para cada intoxicação desse tipo
51
52. Marcelle Souza
notificada, existem outras cinquenta não registradas pelo
sistema de saúde, o que dificulta a implantação de ações
concretas para conter as consequências da exposição
prolongada a esses venenos.
Em números absolutos, Mato Grosso do Sul ocupava,
em 2002, o quarto lugar em suicídios de homens e o se-
gundo de mulheres no Brasil. Quando se estuda o índice
de morte por ingestão intencional de agrotóxicos, dados
do Centro Integrado de Vigilância Toxicológica (Civitox)
da Secretaria de Estado de Saúde de MS apresentam a
macrorregião geográfica de Dourados, da qual Fátima do
Sul faz parte, como a campeã em tentativas de suicídio em
todo o estado. O número leva em conta o período entre
1992 e 2002, quando foram registradas 203 tentativas e
63 óbitos nos 15 municípios que compõem essa
macrorregião.
Entre esses municípios, Dourados apresentou maior
prevalência de tentativas, enquanto Fátima do Sul assumiu
o segundo lugar. Nesse sentido é importante destacar que
parte dos números de Dourados está relacionada à alta
incidência de suicídios entre os índios guarani-kaiowás,
resultado, principalmente, do processo de confinamento
a que foram submetidos. Relação diferente, portanto, da
atribuída aos casos de Fátima do Sul, que seriam
consequência, em sua maioria, da exposição aos agrotóxicos
usados em grande quantidade no período de cultivo intenso
do algodão que durou até o fim da década de 1990.
Fátima do Sul e a vizinha Vicentina, segundo o
Civitox, apresentam as maiores razões entre intoxicações
e área de culturas temporárias na região. A primeira
também assume o topo quando se analisa a relação entre
tentativas de suicídios e áreas de culturas temporárias. Isso
significa que o alto índice de suicídios e intoxicações é mais
bem percebido quando se leva em conta a pequena área
52
53. Gosto de Veneno
geográfica que esses municípios possuem.
Apesar de os números mostrarem a forte relação
entre o consumo alto de agrotóxico e os suicídios ocorridos
na região, pesquisadores divergem sobre a relação direta
entre os dois fatores. “Eu pessoalmente acredito, já que
esses agrotóxicos levam à depressão, essa que tem uma
ligação direta com o suicídio sim”, defende o professor
Dario Xavier, autor em parceria com outras pesquisadoras,
do artigo “O uso de agrotóxicos e os suicídios em Mato
Grosso do Sul, Brasil”, publicado em 2005. Do outro lado,
o médico toxicologista e professor da Unicamp, Ângelo
Zanaga Trapé rebate: “os estudos feitos nessas populações
não são determinantes e ainda não conseguiram comprovar
essa relação”.
No meio da discussão, números e levantamentos
perdem a força diante dos relatos de uma população que
viu de perto muita gente morrer com os goles de veneno.
Histórias tristes de pessoas que tentam esquecer a dor da
perda dos parentes que cometeram o suicídio.
Fedor mais triste
Aos 81 anos, Dona Adelina Oliveira enche os olhos
de lágrimas ao lembrar-se de conhecidos que seguiram esse
caminho. “Aqui morreu foi 11 pessoas com raiva, tomava
o veneno pra morrer. Bastava perder, ia pro jogo, não
fazia aqueles pontos, tinha raiva e bebia veneno. Uma
tristeza do mundo”, chora. Esse é um dos momentos em
que ela realmente se emociona, não foram seus filhos nem
netos que se mataram, mas a dor alheia e a tristeza das
famílias são suficientes para desestruturar essa mulher forte
e ao mesmo tempo tão sensível.
A conversa avança, e aos poucos ela vai lembrando
de outras histórias parecidas, como dos inúmeros velórios
que apresentavam o ser humano de uma das piores
53
54. Marcelle Souza
maneiras. “Levava pro hospital, vinha no caixão e já leva-
va pro cemitério. Era um alívio. Não velava porque o dou-
tor não queria que velasse, por causa do fedorzão que tava”.
E continua, “tinha que ter uma toalha para ir cobrindo,
que é para as crianças não chegarem perto daquele fedor.
Cobria com as toalhas e já levava pro hospital”.
A toalha era para que ninguém visse o estado do
corpo, alguns com a boca espumada, outros com a língua
para fora, marcas, segundo ela, de uma morte que se
aproxima do sentido de definhar. “É um fedor e uma
tristeza. A gente chora e nunca se conforma”, conta
Adelina. E com os olhos baixos e algumas lágrimas nos
olhos, ela ainda se lembra de deixar um conselho aos mais
jovens: “Se um rapaz tem uma namorada e ela não quer,
meu filho, não vá morrer não. Não tem coisa pior que a
morte”.
Sobre o suicídio de Eva, filha de seu grande amigo
Erasmo, Adelina lembra detalhes. “O padre achou ruim
levar a vizinha aqui para a igreja, porque todo mundo
ficava participando daquele fedor mais triste. A finada Eva
misturou três venenos e bebeu. Daí disse, ‘eu não disse
que bebia’, aí caiu”. Só que logo as memórias acabam, sinal
de que se lembrar do cheiro de morte não faz bem nem a
quem escolheu ficar vivo.
Há alguns metros dali, a sabedoria de um vizinho de
dona Adelina, Manuel Firmino, busca as minúcias do dia
em que o cunhado bebeu veneno para se matar. Dessa vez
a dor é de família, que buscou apagar o resto de lembrança
sobre o fato de que deveria mesmo ser esquecido por todos.
Já faz mais ou menos 20 anos desde que o cunhado
de Manuel, Valdemiro, tomou Azodrin e morreu na hora.
O homem tinha aproximadamente 40 anos e morava com
a mãe no terreno que fica em frente ao de Seu Mané. Na
época em que tudo era tratado com remédios naturais,
54
55. Gosto de Veneno
talvez a tristeza daquele homem ainda não tivesse cura.
Calado, Valdemiro era um homem que trabalhava na
lavoura de algodão e mostrava sinais de depressão. “Ele
era bobão, meio doidão, fraco das idéias. Gente assim a
gente conhece”, descreve Manuel.
Para a família, o motivo do suicídio foi fútil. Segundo
Abrão, o tio queria muito comprar um Fusca, mas a mãe
não deixou. Uma briga, alguns goles de pinga e outros
tantos de veneno. Valdemiro tomou Azodrin e andou até
uma árvore no quintal, onde mais tarde o corpo foi
encontrado pela mãe. “Já tava pálido, com espuma na
boca”, conta Abrão que não consegue esquecer a cena do
corpo do tio morto no terreiro.
Já para Seu Mané, a história deve ser usada apenas
como exemplo do que não se deve fazer. “Não desejo a
morte de jeito nenhum. A gente tem que saber conversar,
saber suportar as dificuldades da vida”, declara Manuel com
a sabedoria de quem já viveu 73 anos. “Gente é o bicho
mais fraco de morrer”, acrescenta sobre a fragilidade do
homem diante da letalidade do agrotóxico.
Organofosforados e suicídios
Em todo o Brasil, pesquisas têm se aprofundado cada
vez mais na ligação entre os organofosforados e os casos
de suicídio. Em Venâncio Aires, Rio Grande do Sul, um
grupo de pesquisadores fez um levantamento das
conseqüências da exposição prolongada dos trabalhadores
rurais a esse tipo de agrotóxico. O estudo foi uma demanda
da Assembléia Legislativa e, apesar dos resultados
significativos, não conseguiu mobilizar o poder público para
a gravidade da situação.
O agrônomo Sebastião Pinheiro foi um dos
responsáveis pelo trabalho e lamenta que não tenha sido
usado para melhorar a vida daqueles agricultores. Assim
55
56. Marcelle Souza
como em Fátima do Sul, os produtores de Venâncio Aires
também estão expostos aos organofosforados. Os últimos,
porém, trabalham com plantio do fumo, que necessita de
quantidades maiores de veneno, o que produz resultados
ainda mais visíveis que os encontrados na cidade sul-mato-
grossense.
Conhecidas em todo o mundo, as conseqüências do
uso prolongado desse tipo de agrotóxico produziram
resultados diversos em várias partes do mundo. “Na
Noruega (primeiro país em qualidade de vida) foi feito em
1990 um estudo epidemiológicosobre a deficiência no
aprendizado de escolares da área rural em relação aos
urbanos. Desde aquele momento, todos os fosforados
foram restritos em toda a Europa e no mundo civilizado”,
compara Pinheiro.
No relatório Safer Acess to Pesticides (Acesso Seguro
aos Agrotóxicos, em português) divulgado em 2006, a
Organização Mundial da Saúde reúne recomendações para
tentar diminuir o número de intoxicações e suicídios
causados pelos pesticidas. De acordo com a organização,
esses casos têm sido pouco estudados porque grande parte
das pesquisas sobre prevenção ao suicídio é procedente dos
países desenvolvidos, enquanto as consequências à
exposição ao uso de pesticidas aparecem predominantes
em países pobres e em desenvolvimento, como as áreas
rurais da Ásia, América Central e do Sul, África e ilhas do
Pacífico. O documento ainda destaca o alto número de
suicídios em lavouras de tabaco no Brasil, como é o caso
de Venâncio Aires , onde os produtores são expostos
exatamente aos mesmos organofosforados presentes nas
plantações de algodão, em Fátima do Sul.
Em nível federal, o Ministério da Saúde reconhece
as consequências da relação entre o uso de inseticidas e
suicídios no relatório Saúde Brasil 2007. “Alguns estudiosos
56
57. Gosto de Veneno
apontam os agrotóxicos como elementos desencadeadores
de quadros depressivos, em função de mecanismos
neurológicos e endócrinos. Mas há que se investigar ainda,
com mais profundidade, outras hipóteses, como a questão
cultural”, cita. Apesar disso, não existem estudos nem
política preventiva de suicídio na zona rural, o que é
provado pelo documento lançado em 2006, titulado
“Estratégia Nacional de Prevenção ao Suicídio”, onde
nenhum ponto aborda as especificidades das populações
rurais expostas aos organofosforados.
Em Mato Grosso do Sul, a Secretaria de Estado de
Saúde também não realiza nenhuma ação específica e a
falta de conhecimento dos profissionais de saúde foi uma
das dificuldades encontradas pelo pesquisador Dario Xavier.
“Eu comecei ler, é uma coisa pouco conhecida, então pro-
curei alguns médicos psiquiatras que trabalham nessa área.
Mas eles não conheciam essa ligação entre organofosforado
e depressão. Eu tive que levar artigos para discutir com
eles e acho que isso pode sim prejudicar o atendimento”,
avalia.
Notável desgraça
Tímida, ela nos cumprimenta com os olhos baixos e
os braços cruzados. Antônia de Souza Lucas também vive
na zona rural de Fátima do Sul, mas há alguns anos em
suas terras já não germina nenhum tipo de semente. A
dor talvez tenha sido a responsável pela decisão de arren-
dar o pedaço de terra de onde a família por tantos anos
tirou o sustento.
Aos 64 anos, restaram-lhe poucos dentes e alguns
sorrisos no rosto. As marcas da idade, do sol, da dor e do
uso de agrotóxico também são notáveis. Dona Antônia
transmite calma e até certa ternura. Ela fala pouco, observa
bastante e procura não demonstrar os sentimentos que
57
58. Marcelle Souza
lhe trouxeram tanto amor e sofrimento.
Nasceu em Pernambuco, para onde nunca mais
voltou desde os 15 anos de idade, e não sente vontade de
voltar. “Aqui é bom. Melhor do que lá. Gosto daqui do
jeito ta”, explica-se. Casou-se em Fátima do Sul, onde
também ficou viúva. Foi seu único homem, pelo qual
Antônia diz não guardar nenhuma saudade. Das
lembranças do companheiro só restaram as noites em que
chegava bêbado e brigava com ela e os filhos. “Se soubesse
que ele era assim, eu nem casava”, conta a mulher que
não entra em detalhes, mas demonstra parte do rancor
que tem por um homem que a humilhou por muito tempo.
Dos quinze filhos que nasceram desse casamento,
apenas cinco vivem hoje com ela. Esses são homens,
solteiros e trabalhadores rurais. A família sobrevive com a
aposentadoria que Antônia recebe, da quantia do
arrendamento e da trabalho dos filhos, que nem sempre
contribuem com as despesas da casa. Assim como o pai,
todos são alcoólatras.
Coincidência ou fatalidade, três dos seus filhos se sui-
cidaram e outros dois tentaram, mas não conseguiram se
matar com agrotóxico. “Bugrão”, Mauro e Luiz encontra-
ram a morte a poucos passos de casa, numa casinha que
servia de depósito para as embalagens de veneno. Uma
desilusão qualquer, o álcool, e a decisão estava tomada:
era só entrar no local e escolher o gosto de sua morte.
Jonas, mais conhecido como “Burgão”, foi o primei-
ro a morrer. De acordo com a mãe, o filho tinha um “ca-
belo bem pretinho” e talvez se estivesse sóbrio não teria se
matado. Tomou veneno e morreu em casa. Não deu nem
tempo de ser socorrido, já que o corpo foi encontrado pela
família quando ele já estava morto. “Discutiu na rua e foi
lá e bebeu dois tipos de veneno. Bebeu e caiu ali no buraco.
Ele queria ir longe pra morrer”, lembra dona Antônia.
58
59. Gosto de Veneno
Luiz foi o caso mais recente, chegou em casa à noite e
passou direto para a casinha. “Ele era o mais novo e veio
bebendo de uma festa que teve lá na 5 ª [linha]. Já tava
meio chumbado, aí passou direito pra tuia, nem veio aqui
em casa. Quando nós demos por fé ouvimos um gemido
lá dentro, com a tuia fechada ainda, e tava cheinho de
veneno. Eu tinha um algodãzinho lá embaixo que tava
branquinho quando ele morreu. Ele passou o veneno nesse
dia e depois que foi pra festa, veio e bebeu”, descreve
Antônia sem manifestar dor. “O negócio foi tão forte que
comeu a língua dele. Os outros beberam pouco e morreu
logo, já esse ficou sofrendo”, completa.
Mauro não foi muito diferente. Fez o mesmo
caminho dos irmãos e depois de ingerir dois tipos de
agrotóxico ainda conseguiu caminhar alguns metros para
chegar até a casa. “O Mauro foi assim, o irmão dele bateu
no rádio dele e ele ficou brabo. Ai correu logo pra tuia. Eu
nem vi, quando vi, já tinha bebido. Ele chegou aqui caindo
e falou ‘Mãe, eu bebi veneno’. Foi lá pra cama e ficou lá.
Aí chamamos um carro pra levar pra Fátima, mas quando
foi um pouquinho já morreu”, conta a mãe.
Cecília misturou veneno líquido com farinha, comeu
o prato inteiro, mas não morreu. “Na hora não deu nada,
mas depois a gente teve que levar ela pra Campo Grande”
relata Antônia. E o irmão Pedro completa: “Até hoje ela é
meio atrapalhada”.
Outro que poderia ter ido pelo mesmo caminho que
os demais foi Paulo, um dos mais novos. No início do ano,
ele ficou bêbado e começou a dizer que a vida não tinha
mais graça. Decidido, chegou a pedir que alguém passasse
por cima dele com um trator, mas a solicitação felizmente
não foi atendida.
Da história de “bebedeira” a mãe faz graça, como se
aliviada ou acostumada com a presença da morte na famí-
59
60. Marcelle Souza
lia. Envergonhado, Paulo desmente, diz que não se lem-
bra da tentativa de suicídio e muda de assunto. Enquanto
isso, Antônia dá um sorriso leve e permanece encostada
na porta da varanda de casa, cenário comum, não fosse a
notável desgraça a que essa família teve que se acostumar.
60
63. Gosto de Veneno
5. Um novo sorriso
“Nas grandes propriedades o veneno é aplicado na lavoura
em tratores com GPS, rádio e bico de pulverização. Já o agricultor
familiar tem acesso apenas a bomba costal e uma máscara
rasgada”
Ângelo Zanaga Trapé
Adelina, Erasmo, Manuel, Sinésia e Antônia: cinco
histórias que mostram um pouco do que é a realidade da
zona rural de Fátima do Sul. Imigrantes que construíram
uma nova vida na terra desconhecida, criaram os filhos
entre o plantio e a colheita do algodão e agora vivem a
tristeza que é sutil para uns e visível para outros. Um lugar
onde o silêncio das estradas remete à mudez de alguns desses
produtores ao recordar de momentos importantes de suas
vidas.
Trouxeram para dentro de casa a máquina de
aplicação de agrotóxico, as roupas sujas do trabalho na
lavoura e as consequências dessa proximidade com aquilo
que deveria matar apenas as pragas do algodão. Transfor-
maram as embalagens em copos para tomar água e, de
repente, os goles do veneno começaram a assustar os mo-
radores da região.
Os anos foram passando e agora convivem as
63
64. Marcelle Souza
lembranças das festas de forró nos finais de semana e a
dos velórios com caixão fechado, que não podiam ser feitos
dentro da igreja a pedido do padre. Restam agora os filhos
adultos sem trabalho e dinheiro para plantar.
Aos poucos também vão perdendo as esperanças de
que a vida melhore e que o corpo volte a ser como era
antes. Dor de cabeça, vômito, coceira, câncer e depressão
tornaram-se sintomas normais de quem já perdeu a noção
do significado de saúde.
Afinal, foram anos dedicados aos agrotóxicos, histó-
rias inteiras regadas as bombeadas da máquina costal e,
para alguns, foi dele também o último gosto que sentiram
na boca. Um amargo que sufoca, dói e mata.
Lapso de lucidez
É o aperto de mão firme que dá as boas-vindas aos
visitantes de Culturama. Cumprimentos de um homem
de estatura média e simpatia séria, que serve de guia à
quem veio conhecer o lugar. José Lima de Jesus, ou apenas
“Zé Lima”, conhece bem cada uma das histórias narradas
ao longo deste livro-reportagem. Aliás decorou nome, so-
brenome e número de identidade da maioria dos
moradores da região.
O rosto de pele branca mostra um leve queimado de
sol, enquanto os olhos são verdes, presentes, notáveis. Veste
calça jeans, botina e uma camiseta muito bem passada.
Conhece metro a metro da região e cuida de cada família
com um zelo incomparável. “Seu Manuel, ta acabando o
remédio, né? Essa semana passo aqui para trazer outra
cartela para o senhor”, diz ele, pouco antes que a entrevista
comece.
Zé Lima é agente de saúde por paixão. Passou no
concurso da Prefeitura de Fátima do Sul há 11 anos e
largou tudo para trabalhar no lugar onde cresceu. Formou-
64
65. Gosto de Veneno
se em Ciências Contábeis, concluiu o curso técnico em
Enfermagem, e fez a opção de ganhar menos de dois
salários mínimos para se aventurar no que realmente gosta
de fazer.
Vive com a esposa e dois filhos em um sítio pequeno
na zona rural, onde tem uma horta e planta outros gêneros
alimentícios. É vizinho dos tios e do pai e faz questão de
dizer que não sairia dali por dinheiro algum.
De segunda a sexta acorda, vai trabalhar a pé, volta
para o almoço e tira um cochilo. Levanta novamente, dá
um beijo na filha de seis meses e continua as visitas. Ao
final da tarde está em casa de novo. A rotina é quase sempre
parecida, salvo os dias de vacinação, quando é preciso ir
mais longe e ficar o dia todo fora.
Zé tem 41 anos, revelados por uma leve calvície; parece
também um pouco fechado, mas isso é só aparência. Brinca,
ri e faz piada como se estivesse no sofá de casa, e de certa
forma está. Aos sábados à tarde tem um compromisso
sagrado com os homens da vizinhança: o futebol, outra de
suas grandes paixões.
Casou-se pela primeira vez há mais de dez anos e não
tem vergonha de dizer que foi abandonado pela esposa,
que fugiu com outro homem. Sozinho, ele teve que criar
o filho pequeno e conviver com a decepção. Há quatro
anos arrumou uma nova esposa, com quem teve uma filha.
Marido dedicado e pai carinhoso, Zé deixa bem claro que
a família é a coisa mais importante em sua vida.
Zé Lima é um herói solitário, representante de um
sistema de saúde que só chega até a comunidade por meio
dele. Remédios, consultas e encaminhamentos são algumas
de suas atribuições. E como as outras políticas públicas são
insuficientes, é na conversa na varanda que ele aproveita
para explicar que alguns venenos são muito perigosos e
que os equipamentos de proteção individual são sempre
65
66. Marcelle Souza
necessários.
Tenta combater sozinho os anos de experiência e
teimosia dos produtores rurais . É um lapso de consciência
em meio aos resultados dos anos de exposição da
comunidade aos agrotóxicos. Uma luta diária de quem
acredita no trabalho que faz e ama o lugar onde mora.
Uma balança desigual
A carência de políticas públicas exposta na
comunidade do distrito de Culturama, em Fátima do Sul,
faz parte da realidade dos pequenos produtores de todo o
Brasil. Segundo o Censo Agropecuário de 2006 feito pelo
IBGE, apesar de ocupar só um quarto da área cultivada do
Brasil, a agricultura familiar é responsável por 38% do
valor da produção nacional. Gera 54 bilhões de reais por
ano e é dela também a responsabilidade por garantir a
segurança alimentar do país, gerando os principais produtos
da cesta básica brasileira. Emprega ainda 74% da mão-de-
obra do campo. Só em Mato Grosso do Sul, o IBGE calcula
que mais de 200 mil pessoas trabalhem no meio rural,
destes 133 mil tem laços de parentesco com o produtor.
Só que a participação dessas pequenas propriedades
na produção nacional de alimentos não garante que as
políticas públicas alcancem essa fatia de brasileiros. O IBGE
ainda apontou, por exemplo, que 80% dos produtores
entrevistados durante a pesquisa tinham baixa escolaridade.
A carência de políticas educacionais está diretamente
ligada aos casos de intoxicação no campo, afinal, são
exatamente os que não sabem ler que aplicam o veneno
na lavoura. Sem conseguir identificar no rótulo as
concentrações e as precauções necessárias, acabam se
expondo muito mais aos riscos do produto.
Nas grandes propriedades o veneno é aplicado na
lavoura em tratores com GPS, rádio e bico de pulveriza-
66
67. Gosto de Veneno
ção. Já o agricultor familiar tem acesso apenas à bomba
costal e uma máscara rasgada, então acaba se intoxicando.
No primeiro caso, a pessoa fica totalmente protegida. En-
tão, o segundo acaba sublimando o risco, porque tem que
fazer o serviço e não tem outro jeito de aplicar o veneno”,
compara o toxicologista Ângelo Zanaga Trapé, mostran-
do a desigualdade no campo.
Prova da crítica feita pelo médico é que, de acordo
com o Censo Agropecuário, 78% das lavouras que usam
agrotóxico são dirigidas pelos proprietários, de forma que
o equipamento mais usado é o pulverizador costal (69,1%),
que tem maior potencial de exposição.
Ainda conforme o estudo, em mais da metade dos
estabelecimentos onde houve utilização de agrotóxicos
(56%) os agricultores não receberam orientação técnica,
sendo que 15% dos responsáveis por essas propriedades
não sabiam ler nem escrever.
Para Trapé, outra grande deficiência é revelada pelo
sistema de saúde que, segundo ele, está sempre distante
do pequeno produtor e não vê a zona rural como área
importante de atuação. No distrito de Culturama, por
exemplo, não existem programas de prevenção ou grupos
que acompanhem a saúde dos produtores. Nesse contex-
to, ações simples como medir periodicamente os níveis da
enzima acetilcolinesterase poderiam servir de base para
que equipes multidisciplinares avaliassem os níveis de
intoxicação de cada agricultor.
A falta de orientação técnica que poderia suprir em
parte a baixa escolaridade e ausência de fiscalização da
vigilância sanitária ajudam a completar o quadro de
políticas públicas que não chegam a essa população.
Conforme o professor de Química, Dario Xavier Pires,
os dados reforçam sua tese de que é necessário trabalhar
na prevenção envolvendo basicamente saúde e educação
67
68. Marcelle Souza
de forma conjunta. “É importante que isso seja tratado de
forma mais séria”, diz. Desde a década de 1990, quando
começaram suas pesquisas sobre o assunto, Pires avalia que
houve a introdução de algumas iniciativas de prevenção,
que ainda são incipientes para tratar do problema de
maneira efetiva.
Baseado nos resultados obtidos na zona rural de
Campinas nos últimos dois anos, o médico Ângelo Trapé
aponta que essa integração de políticas pode dar certo.
Nesse período, ele destaca que nenhum caso de intoxicação
foi registrado no município, onde educação, orientação
técnica e acompanhamento médico frequente da
população têm reduzido também as consequências das
exposições a longo prazo.
Há também quem discorde, como o engenheiro agrô-
nomo Sebastião Pinheiro, e não acredita que haja uma
saída que possa minimizar os riscos dos pequenos produto-
res expostos frequentemente aos agrotóxicos. Ele defende
a realização de cursos de capacitação para esses trabalha-
dores, mas acha que uma relação saudável entre os dois
lados só acontece quando os venenos são de fato proibi-
dos.
“As industrias de agrotóxicos e de alimentos são uma
coisa só, logo, não há futuro. Pois tudo será industria de
alimentos em um feudalismo medieval altamente
tecnológico”, prevê sobre o futuro desses agricultores.
Pela graça dos sorrisos
Debates à parte, o importante é garantir proteção
aos produtores rurais enquanto esses pesticidas forem legais
no país. E são iniciativas governamentais ou o trabalho do
herói solitário de Fátima do Sul que alimentam as
esperanças de que devem existir formas eficazes de
prevenção. Antes de tudo é preciso discutir o tema, para
68
69. Gosto de Veneno
que as políticas públicas não continuem dando as costas a
16 milhões de brasileiros.
Pessoas que dedicaram grande parte da vida à terra e
ainda veem nela o futuro das próximas gerações, sentem-
se esquecidas, assim como suas lembranças. Já perderam
as esperanças de que algo possa mudar.
Senhores e senhoras acham que a visita de um agente
de saúde em casa é o máximo que podem ter do poder
público. Governo que só chega ali em época de eleição ou
por meio das recordações de que as terras foram doadas
durante a presidência de Getúlio Vergas. Este, por sua vez,
que montou uma colônia agrícola no afastado e
desconhecido sul de Mato Grosso e não fez questão de
equipar o local com o mínimo de infraestrutura necessária.
Perderam-se muitas vidas, muitas lágrimas e muitos
sonhos. Mas são por histórias como as de Adelina, Manuel,
Erasmo, Sinésia, Antônia e Zé Lima que vale a pena
trabalhar para que o futuro seja diferente e as festas de
finais de semana voltem a acontecer, sem cheiro de veneno
e com a mesma graça que é contada nos sorrisos dos mais
velhos.
69