2. O HOMEM COMO OBJETO DA HISTÓRIA.
Muitas vezes, até mesmo na escola em que estudamos, ouvimos
falar que durante a Idade Média não houve uma produção
artística e cultural, que os homens não eram capazes de
desenvolver qualquer tipo de produção sem estar atrelada às
questões religiosas. Que a Idade Média era a “Idade das
Trevas3”.
Em parte, este pensamento não está correto, pois através da
afirmação de que durante este período a cultura de modo
geral não se desenvolveu, ou que era “fraca”, “gótica”,
“grosseira”, muitos intelectuais compactuaram com a ideia de
que a Idade Média nada mais era do que um longo intervalo
que interrompeu o desenvolvimento humano e que se interpôs
entre a antiguidade clássica e o renascimento. Mas temos que
admitir a dimensão religiosa imposta na vida dos indivíduos
medievais que não concebem o mundo sem atribuir a todos os
fenômenos características divinas.
3. A disciplina histórica estuda os fenômenos sociais provocados pelas ações
humanas. Ao contrário da historiografia do século XIX, que priorizava a ação
dos indivíduos considerados “heróis” devido à sua trajetória de vida e grandes
feitos para a sociedade de seu tempo, a historiografia do século XX não prioriza a
ação individual destes indivíduos heróicos, mas buscam entender através dos
diversos indivíduos que compõem uma determinada realidade social. Em uma
frase o historiador Lucien Febvre definiu o que era a medida da História: “O
homem, medida da história, sua única medida. Mais ainda, sua única razão de
ser”. E continua:Os homens, único objeto da história – de uma história que não
se interessa por um qualquer homem abstrato, eterno, imutável e perpetuamente
idêntico a si próprio – os homens, membros destas sociedades, numa época bem
determinada do seu desenvolvimento – os homens dotados de múltiplas funções,
de atividades diversas, com preocupações e atitudes diferentes, que se misturam,
se chocam, se contradizem, acabando por firmar uma paz de compromisso,
um modus vivendi a que se chama vida. (FEBVRE, Lucien. Apud. Le Goff. 1989,
p. 9)
4. Mas qual é o homem que interessa aos historiadores da Idade
Média? Seria o homem, ou os homens? Esta é a indagação de
Jacques Le Goff na obra O Homem Medieval. Através da
abordagem oferecida por Le Goff neste livro, o historiador
estuda os homens na sociedade do Ocidente Cristão, nas suas
principais funções e no concreto do seu status social. Entende
que o Ocidente Cristão se divide temporalmente em duas
fases: a primeira entre o ano mil e o século XII e a segunda a
partir do século XIII quando temos tempos conturbados
devido às transformações do cenário feudal.
Entre estas duas fases que demarcam a Alta Idade Média e a
Baixa Idade Média, temos exemplos de modelos humanos que
se modificam através do tempo. Assim, o exemplo humano
seguido durante a alta Idade média será o modelo bíblico de
Jó. Para Le Goff, o livro de Jó foi muito lido utilizado e
valorizado pelos clérigos da época, pois oferecia um modelo de
vida e submissão a Deus.
5. De acordo com Le Goff, Jó é o modelo
bíblico em que a imagem do homem melhor
se encarnou. Havia um fascínio muito
grande pelo personagem do Velho
Testamento, por ter que aceitar a vontade de
Deus sem
buscar nenhuma outra explicação para os
fenômenos que abatiam sua vida. Porém da
História de Jó, os homens medievais
conheciam mais os episódios de sua
humilhação perante Deus. Porém, a história
deste homem foi uma formadora do domínio
do imaginário1 medieval. Deste modo, a
imagem ao lado privilegia a figura de Jó
devorado pelas feridas em meio a um
ambiente imundo. Um leproso, que para os
medievais se tratava de um farrapo humano.
6. A partir do século XIII o homem símbolo do
sofrimento deixa de ser Jó e passa a ser o
próprio Deus, Jesus. Para Le Goff, Deus
passa a se relacionar mais com os homens a
partir do momento em que ele é encarado
como uma figura humana. Ocorre uma
aproximação entre a divindade e os homens
medievais, que identificam seus sofrimentos
ao martírio de Cristo. Portanto o calvário, a
crucificação, o ultraje, a piedade, são os
elementos que prevalecem, pois quem sofre
agora é o próprio Deus.
7. Por uma perturbante inversão de imagem, o homem que
sofre agora é o Deus da encarnação, Cristo. E a imagem
que prevalece, no século XV, é a de Jesus com o manto de
púrpura e a coroa de espinhos do escárnio, tal como Pilatos
o mostra à multidão... dizendo “Eis o homem”. Este
homem excepcional da história humana é agora a figura
simbólica do homem que sofre, do humilhado, mas divino.
(Le Goff, 1989, p. 12) De que forma o Deus encarnado na
figura de Jesus Cristo pode ser um modelo de homem para
os indivíduos medievais?
Além destes modelos seguidos pelos indivíduos medievais,
os homens da Idade Média não se limitam a uma relação
frente a frente com Deus. O homem está envolvido em uma
luta entre o Bem e o Mal, entre Deus e Satanás. Para Le
Goff, o cristianismo negou o maniqueísmo na doutrina, ou
seja, a idéia de que exista uma força maligna tão grande
que superasse a vontade divina. Não cabe na teologia cristã
um espaço para dois deuses. Para os clérigos medievais,
Satanás recebeu de Deus deixou um poder sobre os
homens, e cabe a eles a escolha sobre suas ações. Afirma o
autor:
8. Aceitar ou recusar a graça que o salvaria, ceder ou resistir ao pecado
que o condenaria, compete ao homem, que age segundo o seu livre
arbítrio. (...) o homem é o local da batalha em que se empenham,
para a sua salvação ou para a sua condenação, os dois exércitos
sobrenaturais, prontos a cada momento, para agredir ou socorrer: os
demônios e os anjos. O local da batalha é a sua alma, que certos
autores medievais descrevem como palco de um renhido jogo de
futebol entre uma equipe diabólica e uma equipe angélica. O homem
medieval é também a imagem de sua alma sob forma de um pequeno
homem que S.a Miguel pesa na sua balança, sob olhar atento de
Satanás, sempre pronto a fazer inclinar o prato para o lado
desfavorável, e de um S. Pedro, sempre pronto a fazer inclinar o
prato favorável. (Le Goff, Jacques. 1989, P. 12)
10. Primeiro o homem em marcha, em viagem permanente na terra e na sua vida. A
figura do Monge, ligado por vocação à clausura, peregrina pelas estradas. No século
XIII temos os frades das ordens mendicantes, com São Francisco como líder. Temos
também os cruzados que, embora uma minoria dos cristãos se envolveram em
perigosa peregrinação. Porém, afirma Le Goff que todos os homens medievais eram
peregrinos potenciais ou simbólicos.
Penitente:
O homem na Idade Média procura constantemente a sua salvação, através da
penitência. Ele está sempre pronto a responder através de uma flagelação pública ou
particular por algum evento perturbador. A partir do século XIII, o Concílio de
Latrão (1215) determinou que ao menos uma vez por ano os homens e mulheres
deveriam se confessar e fazer penitência.
Assim, o homem medieval é um ser muito complexo, e que pela sua constituição física
e seu organismo corpóreo, torna-se ponto de referencia simbólico. O corpo humano
passa a ser a imagem metafórica da sociedade. Para Le Goff, o homem assume uma
imagem positiva de natureza miniaturalizada, criada por Deus e obediente às leis que
foram estabelecidas por Ele. Deste modo assegurava-se a unicidade do organismo
humano e a solidariedade do corpo social. Através de uma perspectiva, podemos
entender o organismo humano e social através da seguinte representação:
11.
12. O HOMEM NA SOCIEDADE
Tripartida:
A sociedade medieval produziu um esquema para descrever sua estrutura e
ofereceu meios intelectuais apropriados para isso. Com o desenvolvimento da sociedade
medieval, a igreja cristã desenvolveu uma série de esquemas articulados para
explicarem as disposições sociais existentes e classificá-las. O Esquema mais conhecido
pelos historiadores foi o esquema trifuncional1. Este esquema distinguia três categorias
sociais: Os que oram, os que guerreiam e os que trabalham (Oratores, bellatores e
laboratores). Este esquema corresponde ao período do ano mil, em que temos nos
documentos da igreja a presença das definições das categorias sociais.
Os oratores correspondem aos clérigos cuja função é a oração que os coloca em ligação
com o mundo divino e lhes confere grande poder espiritual na Terra. Os bellatores são
os guerreiros, o novo estrato social que monta a cavalo e que irá se transformar em uma
nobreza, a cavalaria. Esta classe protege as demais com o poder das armas. O mundo do
trabalho está definido pela presença dos laboratores, camponeses que com o produto do
seu trabalho sustenta as demais classes. Este esquema teológico se sedimenta na
realidade, e a transforma em um corpo equilibrado e harmonioso, em que cada um
desempenha seus papéis, com a intenção de receber a premiação final, a salvação. Porém
este esquema aparentemente igualitário, afirma Le Goff, reforça a desigualdade social
existente entre as três classes sociais.
13. Conclusão:
Nesta aula discutimos sobre alguma das possibilidades de pensar o
homem medieval. Esta aula esta baseada no livro O Homem
Medieval organizado por Jacques Le Goff, e que nele há estudos
sobre os mais variados elementos sociais que compõem a sociedade
medieval. Vale muito a pena ler esta obra. Referência importante
para todos os professores de História!!!
Em nossa próxima aula continuaremos com a discussão sobre o
homem Medieval, porém vamos falar de alguns indivíduos
marginalizados da sociedade medieval, e que não são encontrados
nos esquemas elaborados pela igreja cristã: A mulher, os
marginais e os excluídos. Um bom estudo a todos!!!
14. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
LE GOFF, Jacques (dir). O Homem Medieval. Lisboa: Editorial Presença,
1989.
LE GOFF, Jacques. A Civilização do Ocidente Medieval. Vol 11. Lisboa:
Editorial Estampa, 1983.