4. 2
– – –
UMA HISTÓRIA DE
“DIFERENÇAS E DESIGUALDADES”
AS DOUTRINAS RACIAIS DO SÉCULO XIX1
A partir de 1870 introduzem-se no cenário brasileiro teorias de pensamento até então
desconhecidas, como o positivismo, o evolucionismo, o darwinismo. No entanto, a entrada coletiva,
simultânea e maciça dessas doutrinas acarretou, nas leituras mais contemporânea sobre o período,
uma percepção por demais unívoca e mesmo coincidente de todas essas, tendências. Tais modelos,
porém, foram utilizados de forma particular, guardando-se suas conclusões singulares, suas
decorrências teóricas distintas. Dessa forma, se a noção de evolução social funcionava como um
paradigma de época, 2
acima das especificidades das diferentes escolas, não implicou uma única
visão de época, ou uma só interpretação.
O que se pretende realizar neste capítulo, portanto, é um balanço das diferentes teorias raciais
produzidas durante o século XIX — uma espécie de glossário de época —, para que se possa pensar
com mais propriedade as especificidades do uso local. Esse debate, que amadurece em meados do
século passado, remete, no entanto, a questões anteriores que exigem um breve retorno aos modelos
de reflexão do século das Luzes, sem o que esta caracterização ficaria incompleta. Com efeito, os
teóricos raciais do século XIX referiam-se constantemente aos pensadores do século XVIII, mas não
de maneira uniforme. Enquanto a literatura humanista e em especial Rousseau apareciam como seus
principais antagonistas — em sua defesa da noção de uma humanidade una —, autores como Buffon e
De Pauw eram apontados como grandes influências quando se tratava de justificar diferenças
essenciais entre os homens.
ENTRE A EDENIZAÇÃO E A DETRAÇÃO
A época das grandes viagens inaugura um momento específico na história ocidental, quando a
percepção da diferença entre os homens torna-se tema constante, de debate e reflexão: a conquista de
terras desconhecidas levava a novas concepções e posturas, já que, se era bom observar, era ainda
mais fácil ouvir do que ver. Nas narrativas de viagem, que aliavam fantasia a realidade, esses
“novos homens” eram frequentemente descritos como estranhos em seus costumes, diversos em sua
natureza (Mello e Souza, 1986; Holanda, s. d.; Todorov, 1983; Gerbi, 1982).
Pode-se dizer, no entanto, que é no século XVIII que os “povos selvagens passam a ser
entendidos e caracterizados como primitivos” (Clastres, 1983:188). Primitivos porque primeiros, no
começo do gênero humano; os homens americanos se transformam-se em objetos privilegiados para a
nova percepção que reduzia a humanidade a uma espécie, uma única evolução e uma possível
“perfectibilidade”.
Conceito-chave na teoria humanista de Rousseau, a “perfectibilidade” resumia — conjuntamente
com a “liberdade” de resistir aos ditames da natureza ou acordar neles — uma especificidade
5. propriamente humana (1775/1978:243). Longe da concepção que será utilizada pelos evolucionistas
no decorrer do século XIX, a visão humanista discorria, a partir dessa noção, sobre a capacidade
singular e inerente a todos os homens de sempre se superarem. Afirmava o filósofo genebrino: “há
uma outra qualidade muito específica que distingue os homens, a respeito da qual não pode haver
contestação — é a faculdade de aperfeiçoar-se”. Via de mão dupla, “a perfectibilidade” não
supunha, porém, o acesso obrigatório ao “estado de civilização” e à virtude, como supunham os
teóricos do século XIX. “Será triste para nós vermo-nos forçados a convir que seja essa faculdade
distintiva e quase ilimitada, a fonte de todos os males do homem, que seja ela que, fazendo com que
através de séculos desabrochem suas luzes e erros, seus vícios e virtudes, o torna com o tempo o
tirano de si mesmo e da natureza” (op. cit.: 243).3
Marca de uma humanidade una, mas diversa em
seus caminhos, a “perfectibilidade humana” anunciava para Rousseau os “vícios” da civilização, a
origem da desigualdade entre os homens.
Herdeira de uma tradição humanista, a reflexão sobre a diversidade se torna, portanto, central
quando, no século XVIII, a partir dos legados políticos da Revolução Francesa e dos ensinamentos
da Ilustração, estabelecem-se as bases filosóficas para se pensar a humanidade enquanto totalidade.
Pressupor a igualdade e a liberdade como naturais levava à determinacão da unidade do gênero
humano e a certa universalização da igualdade, entendida como um modelo imposto pela natureza. A
igualdade de princípios era inscrita na constituição das nações modernas, delegando-se às
“diferenças” um espaço “moralmente neutro” (Dumont, 1966:322). Afinal, os homens nascem iguais,
apenas sem uma definição completa da natureza.
Em Rousseau, por exemplo, com a noção do “bom selvagem”, essa idéia estará absolutamente
presente. O homem americano se transformava inclusive em modelo lógico, já que o “estado de
natureza” significava, para esse autor, não o retorno a um paraíso original, e sim um trampolim para a
análise da própria sociedade ocidental, um instrumento adequado para se pensar o próprio “estado,
de civilização”.
Pergunto qual das duas — a vida civil ou a natural — é mais suscetível de tornar-se
insuportável. À nossa volta vemos quase somente pessoas que se lamentam de sua
existência, inúmeras até que dela se privam assim que podem … Pergunto se algum
dia se ouviu dizer que um selvagem em liberdade pensa em lamentar-se da vida e
querer morrer. Que se julgue pois, com menos orgulho, de que lado está a verdadeira
miséria (1775/1978:251).
A alteridade desses “novos homens” transformada em modelo lógico se contrapunha à
experiência ocidental. Como concluía Rousseau sobre a origem da desigualdade entre os homens, “se
há uma bondade original da natureza humana: a evolução social corrompeu-a” (op. cit.: 205).
Estrangeiro em terras próprias, abandonado em meio a um mundo que lhe parece hostil, o famoso
filósofo da Ilustração encontrava um modelo ideal nesse “outro” tão distante do “nós, ocidentais”, e
o elegia como moralmente superior.
No entanto, ao conformar esse quadro antitético, Rousseau de certa forma se afastava da
Ilustração, já que refletia sobre um progresso às avessas. Em contraposição à filosofia humanista,
procurava na identificação, ou na “compaixão”, 4
a melhor maneira para entender esse homem que
tanto se distinguia da experiência ocidental.
Mas, se a visão idílica de Rousseau foi no decorrer do século XVIII a mais fecunda (Holanda,
1985: XXV), 5
é impossível deixar de falar das vertentes mais negativas de interpretação. Segundo
6. Mello e Souza, as imagens que detratam o Novo Mundo se intensificaram sobretudo a partir da
segunda metade do século XVIII, simetricamente correspondentes ao maior conhecimento e
colonização desses novos territórios (op. cit.: 42). É o momento em que se passa da projeção da
inocência à inata maldade do selvagem: “a da suposta inferioridade física do continente, e de uma
consequente debilidade natural de suas espécies … todos condenados por natureza a uma decadência
irresistível, a uma corrupção fatal” (Gerbi, 1982: IX).
Vários pensadores corroboraram esse tipo de visão mais negativa da América, mas dois
merecem uma atenção maior: Buffon. com sua tese da “infantilidade do continente”, e De Pauw, com
a teoria da “degeneração americana”.
A partir de Buffon (1707-88), conhecido naturalista francês, podem-se perceber os primórdios
de uma “ciência geral do homem” (Foucault, 1966), marcada pela tensão entre uma imagem negativa
da natureza e do homem americanos, e a representação positiva do estado natural apresentada por
Rousseau. Buffon personificou, com sua teoria, uma runtura com o paraíso rousseauniano, passando a
caracterizar o continente americano sob o signo da carência. O pequeno porte dos animais, o escasso
povoamento, a ausência de pêlos nos homens, a proliferação de espécies pequenas, de répteis e de
insetos, tudo parecia corroborar a tese da debilidade e imaturidade dessa terra (Buffon, 1834).
Assim, apesar de a unidade do gênero humano permanecer como postulado, um agudo senso de
hierarquia aparecia como novidade. Por meio da obra desse naturalista, uma concepção étnica e
cultural estritamente etnocêntrica delineava-se.
O debate se vê realmente polarizado com a introdução da noção de ‘‘degeneração”, utilizada
pelo jurista Cornelius de Pauw. Até então chamavam-se de degeneradas espécies consideradas
inferiores, porque menos complexas em sua conformação orgânica. A partir desse momento, porém, o
termo deixa de se referir a mudanças de forma, passando a descrever ‘‘um desvio patológico do tipo
original.” 6
Radicalizando os argumentos de Buffon, De Pauw acreditava que os americanos não eram
apenas ‘‘imaturos” como também “decaídos”, confirmando sua tese central de “fé no progresso, e
falta de fé na bondade humana” (Gerbi, op. cit.: 66). Em seus textos um antiamericanismo claro
transparecia quando de suas avaliações sobre a “natureza do Novo Mundo, débil por estar
corrompida, inferior por estar degenerada” (De Pauw, 1768 apud Gerbi: 1982).7
Portanto, no contexto intelectual do século XVII, novas perspectivas se destacam. De um lado, a
visão humanista herdeira da Revolução Francesa, que naturalizava a igualdade humana; de outro, uma
reflexão, ainda tímida, sobre as diferenças básicas existentes entre os homens. A partir do século
XIX, será a segunda postura a mais influente, estabelecendo-se correlações rígidas entre patrimônio
genético, aptidões intelectuais e inclinações morais.
NATURALIZANDO AS DIFERENÇAS
A emergência da “raça”
O final do século XVIII representa, dessa forma, o prolongamento de um debate ainda não
resolvido. Prevalecia, porém, certo otimismo próprio da tradição igualitária que advinha da
Revolução Francesa e que tendeu a considerar os diversos grupos como “povos”, “nações” e jamais
como raças diferentes em sua origem e conformação (Stocking, 1968:28).
Com efeito, o termo raça é introduzido na literatura mais especializada em inícios do século
XIX, por Georges Cuvier, inaugurando a idéia da existência de heranças físicas permanentes entre os
7. vários grupos humanos (Stocking, 1968:29).8
Esboçava-se um projeto marcado pela diferença de
atitude entre o cronista do século XVI e o naturalista do século XIX,-“a quem não cabia apenas
narrar, como classificar, ordenar, organizar tudo o que se encontra pelo caminho” (Sussekind,
1990:45).
Delineia-se a partir de então certa reorientação intelectual, uma reação ao Iluminismo em sua
visão unitária da humanidade. Tratava-se de uma investida contra os pressupostos igualitários das
revoluções burguesas, cujo novo suporte intelectual concentrava-se na idéia de raça, que em tal
contexto cada vez mais se aproximava da noção de povo. O discurso racial surgia, dessa maneira,
como variante do debate sobre a cidadania, já que no interior desses novos modelos discorria-se
mais sobre as determinações do grupo biológico do que sobre o arbítrio do indivíduo entendido
como “um resultado, uma reificação dos atributos específicos da sua raça” (Galton, 1869/1988:86).
PENSANDO NA ORIGEM: MONOGENISMO x POLIGENISMO
Esse debate — que opunha o modelo igualitário da Ilustração às doutrinas raciais — faz parte,
no entanto, de um problema mais remoto, sobre as origens da humanidade. Mas, se o tema é em si
antigo, toma uma forma mais definida a partir do século XIX, quando o imaginário social parecia
abalado por esse tipo de questão.
Exemplo típico são os relatos sobre “crianças selvagens”, “meninos-lobos” perdidos nas
florestas do exótico Oriente, casos extraordinários que alimentavam a curiosidade ocidental. Uma
discussão sobre a veracidade ou não desses episódios poderia ser desenvolvida, 9
mas o que
interessa é pensar no papel que cumpriam esses estranhos eventos. Exemplos vivos, tais meninos
selvagens pareciam personificar e estabelecer limites, mesmo que tênues, entre o mundo da natureza
e o mundo da cultura, revelando a atenção que o tema despertava. 10
Duas grandes vertentes aglutinavam os diferentes autores que na época enfrentaram o desafio de
pensar a origem do homem. De um lado, a visão monogenista, dominante até meados do século XIX,
congregou a maior parte dos pensadores que, conformes às escrituras bíblicas, acreditavam que a
humanidade era una. O homem, segundo essa versão, teria se originado de uma fonte comum, sendo
os diferentes tipos humanos apenas um produto “da maior degeneração ou perfeição do Éden”
(Quatrefage, 1857 apud Stocking, 1968). Nesse tipo de argumentação vinha embutida, por outro lado,
a noção de virtualidade, pois a origem uniforme garantiria um desenvolvimento (mais ou menos)
retardado, mas de toda forma semelhante. Pensava-se na humanidade como um gradiente — que iria
do mais perfeito (mais próximo do Éden) ao menos perfeito (mediante a degeneração) —, sem
pressupor, num primeiro momento, uma noção única de evolução. 11
Esse mesmo contexto propicia o surgimento de uma interpretação divergente. A partir de
meados do século XIX a hipótese poligenista transformava-se em uma alternativa plausível, em vista
da crescente sofisticação das ciências biológicas e sobretudo diante da contestação ao dogma
monogenisía da Igreja. Partiam esses autores da crença na existência de vários centros de criação,
que corresponderiam, por sua vez, às diferenças raciais observadas.
A versão poligenista permitiria, por outro lado, o fortalecimento de uma interpretação biológica
na análise dos comportamentos humanos, que passam a ser crescentemente encarados como resultado
imediato de leis biológicas e naturais. Esse tipo de viés foi encorajado sobretudo pelo nascimento
simultâneo da frenologia e da antropometria, teorias que passavam a interpretar a capacidade