1. Burguesia
Texto transcrito com ajustes de Olavo de Carvalho no True Outspeak n° 3 de
18/12/2006
Por: Rodrigo Belinaso Guimarães
Uma coisa maravilhosa que aconteceu esta semana foi a matéria da Revista Piauí,
escrita por Luiz Maklouf Carvalho, chamada O Ortodoxo.1 Vocês sabem quem é o
ortodoxo? É o nosso velho e inesquecível Marques de Sader (Emir Sader). Ele diz
algumas coisas tão fabulosas que eu custo a crer.2 Quando a gente pensa que ele chegou
no ápice da vigarice, ele se transcende, dá uma volta por cima e consegue inventar um
negócio que ele mesmo não acreditaria uns meses antes. Por exemplo, ele dá aqui uma
definição da burguesia, prestem atenção: “A burguesia é uma classe privada que tira suas
vantagens através do Estado”.3 De fato, no Brasil acontece isso com a burguesia, ela vive
1 Ver: <https://piaui.folha.uol.com.br/materia/o-ortodoxo/>.
2 O principal objeto de Carvalho (2006) nesta transmissão foi o conceito de burguesia apresentado por
Sader, mas há outras declarações na reportagem que certamente poderiam ter despertado sua ironia. Tais
como: “Sobre Cuba, a posição de Sader é de apoio irrestrito ao regime, ao governo e a Fidel Castro. Ele diz
que a responsabilidade pela ausência de democracia na ilha é dos Estados Unidos: ‘Enquanto não terminar
o bloqueio norte-americano, não se pode pedir nenhum tipo de ampliação do debate interno’”; “‘Sou um
militante socialista’, diz Sader. Instado a elaborar a resposta, ele acrescenta: ‘Sou, essencialmente, um
anticapitalista’. O apartamento de Emir Sader (no Leblon no Rio de Janeiro) tem três quartos e uma sala
com vista para o mar.”
3 Esta definição, que parece atualizar a clássica definição de Marx, estava de algum modo condizente com
o “capitalismo controlado” que em 2006 era, a meu ver, a principal finalidade econômica do governo Lula.
Na época,os intelectuais de esquerda se diziam contrários à orientação econômica do governo que, segundo
eles, não rumava ao socialismo, estando atrelada ao sistema financeiro. Assim, era comum a esses
intelectuais criticarem o governo por sua não adesão ao socialismo, tal como fez Emir Sader ao explicar
sua relação com o governo do PT à reportagem: “Apoio crítico, centralmente contra a política econômica,
a favorda política internacional, contra as práticas da direção tradicional do PT, responsáveis pelo mensalão
e pelo dossiê”.Porém, a argumentação de Olavo de Carvalho sempre foi a de que o socialismo não poderia
ser caracterizado apenas por sua orientação econômica, já que uma “economia socialista” tinha se
comprovado uma impossibilidade prática. Então, pode-se entenderque a crítica dos intelectuais ao governo
Lula com base na política econômica tinha, como efeito, a intenção de esconder da opinião pública a
vinculação de tal governo com o controle e a centralização de poder de tipo socialista. Era evidente que o
governo Lula se movia no sentido de concentraro máximo de poderem suas mãos e de controlar a economia
de modo a que todas as empresas privadas dependessemdele para sobreviver. Nesse caso, a definição de
Emir Sader da burguesia era, exatamente, aquilo que o governo do PT estava produzindo: um “capitalismo
controlado”. Esse direcionamento econômico aparece descrito no texto de Francisco de Oliveira, outro
sociólogo com relações orgânicas com a esquerda,quando este analiva o primeiro governo Lula: “Trata-se
da formação de uma nova classe social, cujo lugar no sistema é definido pela função que ocupa no acesso
aos fundos públicos.E, como no capitalismo periférico brasileiro os fundos de acumulação foram de origem
estatal, nas suas várias formas, a financeirização foi também uma criação estatal, através dos fundos de
previdência complementar das empresas estatais, uma espécie de Welfare privado que a ditadura militar
criou. Os principais investidores institucionais no Brasil hoje são os fundos Previ, Eletros, Sistel, Petros,
Portus,Funcef e os demais cujas denominações remetem sempre ou à empresa ou ao setorde onde provêm;
atuamnas bolsas de valores,foramos mais importantes e decisivos para definir as privatizações das estatais,
são proprietários-acionistas de grande número de empreendimentos de porte. A Constituição de 1988 criou,
para rematar essa financeirização, o FAT — Fundo de Amparo ao Trabalhador, que é hoje o principal
aportador de recursos ao BNDES, vale dizer, o principal fundo de acumulação a longo prazo. Seu
2. de sugar o Estado. Por isso mesmo, é tratada como burguesia progressista, tal como a
chamava o antigo Partido Comunista. Ela está sempre namorando com a esquerda,
ajudando esse pessoal da esquerda e paparicando intelectuais como o próprio Emir Sader.
Agora, esse negócio da burguesia ser uma classe privada que tira vantagens
através do Estado, o próprio Dr. Emir Sader ilustra isto com a sua pessoa de uma maneira
extraordinária. Veja a sua Enciclopédia Contemporânea da América Latina e do Caribe4
que ele dirigiu e publicou. É um volume de 1.348 páginas com capa dura, papel couchê,
que custa R$ 190,00. O livro como sempre tem um montão de patrocinadores: Petrobras,
Eletrobras, BNDES. Notem bem, é a burguesia tirando vantagem através do Estado.5 Há
também três apoiadores estatais: Caixa Econômica Federal, Banco do Brasil e Ministério
da Cultura.
Ora, o Dr. Sader para fazer esta porcaria recebeu 4 mil reais por mês durante dois
anos. Era para fazer o quê? Convidar os outros para escreverem alguma coisa, os verbetes.
Sabe quanto ganharam para cada verbete? 1.700,00 dólares o verbete. Percebem, é a
burguesia tirando vantagem através do Estado. O lançamento ocorreu no Hotel Glória,
um negócio muito chique. O livro saiu com 1.040 fotos, 136 tabelas.6 Essa Enciclopédia
é irmã gêmea daquele Dicionário Crítico do Pensamento de Direita7 que também foi obra
desse mesmo grupinho, também pago a peso de ouro por estas mesmas entidades estatais:
Petrobras, Banco do Brasil, etc.
Ainda apareceu o Fernando Barros e Silva escrevendo sobre o Marques de Sader
na Folha de São Paulo, disse ele:8 “como intelectual Emir Sader é um zero à esquerda,
representante por excelência era o ministro Gushiken, não por acaso, da Comunicação e Estratégia, mas
além dele a presença de funcionários da elite dos fundos no governo é notável.” (Oliveira, 2006, p.34-35).
Porém, a conclusão dissimuladora destes intelectuais era a de que o governo petista sucumbia às forças do
mercado, quando,na verdade, impunha aos setores privados a necessidade de se alinharem ao governo, ao
mesmo tempo que aumentava seu predomínio da esfera cultural e educacional, ou seja, no controle
psicológico das massas e, além disso, havia montado um esquema de financiamento partidário e eleitoral
que poderiam ter tornado o PT imbatível, tal como a operação Lava Jato demostraria.
4 Sobre tal obra, conforme dados da reportagem citada: “A tiragem foi de 10 mil exemplares, 2.500 deles
destinados aos patrocinadores e apoiadores”.Em 2019, esta edição estava esgotada e não havia sido laçada
uma segunda. Ver: <https://www.boitempoeditorial.com.br/produto/latinoamericana-135>.
5 Em 2006, as ligações comerciais de Emir Sader com órgãos governamentais não ficavam restritas aos
patrocínios e apoios aos livros que organizava, mas também havia palestras remuneradas. Conforme a
reportagem citada, nas palavras de Emir Sader, eram palestras de “análises de conjuntura da América
Latina”, para empresas como Eletrobras e Furnas.
6 Olavo de Carvalho não citou na transmissão, mas na reportagem há a informação de que: “Segundo Sader,
o patrocínio da enciclopédia ‘foi de R$2,052 milhões, pelas leis de incentivo à cultura’.
7 Ver: <http://www.faperj.br/?id=88.3.3>.
8 A coluna citada por Carvalho (2006) transborda para o público algumas das disputas não teóricas entre os
intelectuais esquerdistas da época. Anos atrás, Sader havia escrito um artigo ofendendo o Senador
Bornhausen (ex-PFL), que processou Sader e em 2006 havia saído sentença condenatória ao intelectual
petista. Sader, então, resolve fazer uma abaixo-assinado em sua defesa, mas Fernando de Barros Silva
3. não há nada de relevante ou minimamente inspirador no que escreve.” Aqui eu tenho que
protestar. O Marques de Sader é minha inspiração constante. Ele é muito inspirador. Não
posso aceitar essa declaração do Fernando Barros. Mas, eu achei mais lindo o comentário
do próprio Emir Sader sobre o que o Fernando escreveu dele: “fiquei chocado com a
virulência e o reducionismo.” Você sabe o que é reducionismo? É um vício teorético, no
qual todos os fatores em jogo são reduzidos a um só, por um viés teórico. O que isso tem
a ver com que o Fernando Barros disse? O Marques estava procurando alguma palavra
para acusar o Fernando de alguma coisa, não achou nada e disse “reducionismo.” Como
não achou nada, fica reducionismo mesmo, como se fosse um xingamento apenas. O
debate cultural no Brasil é realmente isso aqui.
lembrou do episódio em que Francisco de Oliveira foi processado porDelúbio Soares por fazer críticas ao
PT e, neste caso,não houve nenhuma defesa pública da liberdade de expressão. Diz o artigo: “A reeleição
de Lula destampou a sanha vingativa de parte do baixo clero petista e reacendeu a tentação autoritária que
ronda certos áulicos do Planalto, no governo e na mídia. A esquerda intelectual deve estar muito ocupada
com a defesa de Sader. Veremos logo quem será o próximo Chico de Oliveira do petismo?” Ver:
<https://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz0611200603.htm>.