Análise ideológica em letras de música da década de 80
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ANÁLISE SOBRE O DISCURSO IDEOLÓGICO PRESENTE EM
LETRAS DE MÚSICAS NA DÉCADA DE 80
Frederico Dias Freire *
Jaqueline Gomes*
Odiley de Aquino*
Paulo Henrique Vieira do Nascimento*
Talvez a melhor maneira de definir a década de 80 seja como uma época determinada
por transições. Para melhor compreendê-la, faz-se necessário realizar um pequeno apanhado
sobre alguns fatos ocorridos duas décadas antes, no caso, as décadas de 60 e 70. Como se
sabe, acontecera a implantação da ditadura militar no Brasil em 1964. As razões para essa
intitulada “Revolução de 64” vão desde latentes problemas sociais e econômicos a também
influências extraterritoriais, como o apoio tendencioso dos Estados Unidos, em decorrência da
Guerra Fria, conflito de influências – tecnológicas, territoriais e militares – travados entre as
duas maiores potências da época, aos países que se aliassem aosnorte-americanos, em
detrimento da URSS, atual Rússia. Nesse conflito, as duas frentes buscavam ao máximo
estender sua rede de influência. O Brasil sendo a maior potência da América do sul foi objeto
de disputa entre os dois pólos. O apoio norte-americano ao golpe militar consolidou a
conquista do mais importante ponto estratégico presente na zona sul-americana.
Nas mãos dos militares, o que se observa nos anos seguintes é uma série restrições a
vários direitos coletivos e individuais. Os meios de comunicação foram censurados de forma
veementemente repressora. Prisões arbitrárias, torturas e desaparecimentos de civis se
tornaram marcas indissociáveis da dita “revolução”. Toda essa gama de retaliação e violência
encontrava justificativa apoiando se no providencial argumento de combate às forças
comunistas em nosso território. Na década de setenta percebe-se gradual e lenta comoção em
desfavor aos exageros e injustiças praticados pelo governo dos militares. O final dos anos
setenta é marcado pela revogação do AI-5, mecanismo institucional responsável pelo ápice do
autoritarismo militar. Tal revogação deu início aos acontecimentos que mudariam as
estruturas políticas no Brasil na década seguinte.
A década de 80 é o momento das reconquistas. É o momento em que se finda o
governo ditador militar e, consequentemente, retornamos aos valores da democracia. Em 1982
o movimento das “diretas já” dava início ao processo de eleições diretas para presidente no
Brasil. Paulatinamente nota-se a mitigação da cultura de censura e repressão, entretanto é
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**** Acadêmicos do 6° período noturno do curso de Letras, do Instituto Superior de Educação da Faculdade
Alfredo Nasser, no semestre letivo 2013/2.
2. certo dizer que por se tratar de uma década de transição, retaliações e um forte combate às
manifestações aconteceram. Todavia, o velho regime não tinha mais forças para sustentar-se,
já tinha caído no descrédito popular, a economia brasileira nos anos oitenta se encontrava em
um estado de total decadência, o índice inflacionário nunca tinha sido tão alto. Somando-se
todo esse panorama político-econômico ás conquistas tecnológicas não é de se admirar que a
cultura da época reflita tal contexto. Porém de maneira diversa das décadas anteriores, pois a
realidade é outra, a visão de mundo pede novas formas de manifestar-se.
O objetivo da presente análise é justamente aprofundar-se nas consequências de tais
fatos ocorridos na década de oitenta eevidenciados no campo da cultura, mas especificamente
no ramo da música produzida nessa fase. Ao analisar a arte, de uma forma geral, seja na
pintura, na literatura ou na música, é perceptível que quase sempre, salvo algumas ocasiões na
história, ela reflete a realidade que cerca o homem. Ás vezes de forma tácita, como se nota
nas músicas produzidas durante o regime ditatorial pelos artistas que pertenciam ao
movimento da Tropicália; que expressavam suas indignações e protestos por meio de músicas
que não tratavam dos problemas de forma objetiva e clara, pois se assim o fizessem, sofreriam
com a repressão do regime. E, no caso dos anos oitenta, de forma mais direta, sem tanta
preocupação com a censura, a perseguição.
A análise se aterá a identificar os discursos defendidos nas letras escolhidas. Quais as
intenções e ideologias ali presentes e defendidas. Que fatores ocorridos no mundo que foram
tratados como importantes ao ponto de merecerem configurar-se como mote para tais
composições. As músicas escolhidas são: Voto em Branco, da banda brasiliense Plebe Rude;
Veraneio Vascaína, da banda Capital Inicial, também do Distrito Federal, e Geração CocaCola e Que país é esse, ambas do grupo Legião Urbana,também de Brasília, bandas formadas
no início da década de oitenta.
Antes de passar para a análise na íntegra das músicas propostas, faz-se necessário
definir previamente as teorias linguísticas que serão adotadas. No caso, a noção de discurso e
a noção de ideologia defendida pelo estudioso José Luiz Fiorin, em sua obra Linguagem e
ideologia.
Para ele, em consonância com Saussure, a língua é um sistema de cunho social e
abstrato, porém, diferente do último, Fiorin não se restringe somente ao estudo da língua em
si para buscar explicações no campo da linguagem, reconhecendo assim mais elementos como
significativos para a compreensão do fenômeno da linguagem. Segundo ele, a fala também se
configura como um elemento de importância, confrontando assim a linha de raciocínio de
linguístas que consideram o estudo da fala algo não apropriadamente adequado ás
3. metodologias utilizadas pela ciência da linguística, por causa do seu caráter individual, o que
dificulta o estabelecimento de padrões.
Sendo assim, Fiorin atribui a importância da fala, que considera um fenômeno psicofísico-fisiológico de exteriorização do discurso. Consideremos discurso aqui como a
combinação de elementos lingüísticos a fim de se construir, por meio da linguagem, é claro,
uma visão, concepção a respeito do mundo. Através do discurso exprimimos nossos
pensamentos, nossas reflexões. Assim como utilizamos o sentido do tato para sentir a
concretude da matéria do que nos rodeia, a fala é o mecanismo físico-biológico utilizado para
exprimir um discurso.
É relevante discorrer a respeito da influência do discurso sobre a formação de
ideologias. Conceituando ideologia como uma forma imaginária da realidade que é cultivada
pela classe dominante, a fim de manter no mesmo patamar social a “massa” popular, ou seja,
os não-membros da elite. Para melhor contextualizar esse raciocínio, o autor, em sua obra, faz
uso da concepção de Karl Marx sobre o salário:
No nível da aparência, o salário apresenta-se como o pagamento por um trabalho
realizado. Nesse nível, a relação de trabalho é uma troca entre indivíduos livres e
iguais. Eles são livres, porque não estão sujeitos a outros homens por laços de
dependência pessoal, como no modo de produção escravagista, mas podem vender
seu trabalho a quem quiserem. São iguais, pois todos são donos de uma mercadoria
e, portanto, podem estabelecer uma troca: uns vendem seu trabalho e outros o
combram. (FIORIN, 2007. p26.)
O trecho supracitado faz menção à “atmosfera imaginária” que é criada pela classe
dominante por meio da ideia falsa de que a relação de trabalho trata-se de uma instituição de
igualdade, de uma troca justa, o trecho seguinte desmonta tal aparência ideológica:
No entanto, se sairmos do nível da circulação de bens e passarmos para o da
produção, veremos que não há uma troca igualitária e que o operário não vende seu
trabalho, mas sua força de trabalho, o ato de produzir [...]. O operário que trabalha
oito horas por dia, não recebe, ao final, todo o valor que produziu, mas recebe
apenas uma parte dele. Se ele produziu cem e recebe como pagamento apenas vinte,
ele não vendeu o seu trabalho, mas a sua força de trabalho. Há dessa forma, aquele
tempo da jornada de trabalho em que o operário produz para pagar o seu salário, e
um que o operário produz um sobrevalor de que o capitalista se apropria. Se o
salário não é a retribuição do trabalho, mas da força de trabalho, então ele é, em
geral, o mínimo historicamente indispensável para a reprodução da mão de obra, ou
seja, o mínimo necessário para que o trabalhador sobreviva e continue a produzir.
(FIORIN, 2007. p 27.)
Após a análise do fragmento fica evidente que o conceito de ideologia, imposto pela
classe dominante, trabalha com dois diferentes níveis de formas de conceber-se a realidade.
Uma superficial, enganosa, inconsciente por consequência da credibilidade que determinado
discurso ideológico ganha com o passar do tempo, fazendo com que seus preceitos sejam
defendidos por pessoas que nem se quer entendem ao certo o fundamento de tais ideais,
4. fomentando assim mecanismos para a criação de uma consciência artificial, fruto da alienação
imposta pelos dominadores.
Apesar de existirem estudiosos que defendem que a ação de pensar podeseparar se da
linguagem, pelo menos em algum momento, o que seria um pensamento pré-linguístico, é
unânime a linha de pesquisas que considera o pensar conceptual indissociável da linguagem.
Essa linha cognitiva é a responsável pela formação dos valores, visões e constatações do
homem a respeito do mundo, e que, por conseguinte, formam o discurso. E o discurso retoma
sempre a uma ideologia. Baseando se nesses conceitos, partiremos agora para análise das
canções, tentando extrair quais discursos ideológicos essas defendem, pois já percebemos que
todo discurso tem uma intenção, ou seja, não é feito ao acaso. Devemos buscar olhar além das
“aparências” superficiais, buscando a camada “profunda” em que habita o real, o que
determinada camada social defende de fato.
Começaremos agora a analisar o discurso presente nas composições oitentistas.Seguindo a
ordem das músicas propostas, segue o trecho de Voto em Branco:
Imaginem uma eleição em que ninguém fosse eleito
Já estou vendo a cara do futuro prefeito
Vamos lá chapa, seja franco
Use o poder do seu voto, vote em branco
Voto em branco!
Seja alguém, vote em ninguém...
Percebe-se aqui a presença de um viés de origem anarquista, em que o descrédito por
qualquer forma de governo, poder é a ideologia predominante. É uma descrença no regime
defendido pelo movimento das “diretas já”, ou melhor, a música propõe que a ausência de
governo, até mesmo pelo sentido etimológico da palavra, seria a solução. Talvez tal postura
justifique se por conta de acontecimentos ocorridos na política brasileira antes da implantação
da ditadura, momento em que a democracia, mesmo sendo o regime adotado para a escolha
dos representantes do povo, não garantia a defesa dos interesses desses, mostrando assim, que
mesmo o regime de eleição sendo direto ou indireto, a massa nunca teria suas necessidades
tratadas como de fato merecessem. Tal descrédito pelo regime também é percebido na
próxima canção em ênfase.
A música em análise agora é Veraneio Vascaína, abaixo segue um trecho para análise:
Cuidado, pessoal, lá vem vindo a veraneio
Toda pintada de preto, branco, cinza e vermelho
Com números do lado, dentro dois ou três tarados
Assassinos armados, uniformizados
Veraneio vascaína vem dobrando a esquina
Porque pobre quando nasce com instinto assassino
Sabe o que vai ser quando crescer desde menino
Ladrão, pra roubar, marginal pra matar
Papai eu quero ser policial quando eu crescer...
5. Nessa canção nota se uma pequena preocupação com a censura, que ainda era
presente, não como nas duas décadas anteriores, porém ainda atuante. Embora a década de
oitenta seja o marco da revolução política, resgate da democracia, não é de se admirar que o
regime tentou, mesmo que de forma ineficaz, barrar tais levantes. A música é o retrato desse
cenário, pois camufla uma a crítica aos policiais militares, mãos operantes do regime ditador,
através da figuração de uma falsa crítica à torcida de um grande time carioca. Sabe-se que o
automóvel citado na composição, a veraneio, tratava-se do veículo utilizado pela polícia na
prática de suas atividades. As cores citadas, coincidentes com as do time carioca Vasco da
Gama, são também as são utilizadas pela força policial, com exceção do vermelho, que foi
introduzido para remeter ao sangue, fazendo alusão a tortura, aos abusos cometidos pelos
militares. Assim como na música anterior, percebemos que a ideia predominante é a do
protesto, da contestação. Analisemos agora a música seguinte.
Na música Geração Coca-Cola, apesar de tratar se também de uma crítica, assume
uma conotação diferente das músicas anteriores, pois não se atém ao campo político
contemporâneo. Essa canção é uma crítica a sociedade que vive uma dependência dos padrões
impostos pelos Estados Unidos, na cultura em geral. Renato Russo nos mostra isso logo em sua
primeira já na estrofe.
Quando nascemos fomos programados
A receber de vocês
No empurraram com os enlatados
Dos U.S.A das 9 às 6
O povo brasileiro foi ensinado que produtos importados de grandes países
industrializados, como os Estados Unidos para ser mais preciso, sempre foram os melhores,
tendo o refrigerante Cocaa-Cola como o exemplo mais influente. Geração Coca-Cola faz
também uma critica ao comportamento capitalista difundido e ensinado para a juventude por
meio de propagandas e músicas. A canção é uma afronta ao estilo norte-americano de ser.
Para encerrar a análise da ideologia presente nas letras da década de oitenta, passaremos agora
para a mais famosa dessas, a cançãoQue país é esse.
Abaixo segue um fragmento da composição:
Nas favelas, no senado
Sujeira por todo lado
Ninguém respeita a constituição
Mas todos acreditam no futuro da nação
A letra dessa música, apesar de refletir os sentimentos de indignação de meados de
oitenta, expõe muito bem o atual panorama da política em nosso país. É incrível e
incompreensível como mesmo tendo passadose mais de trinta anos desde o seu lançamento
muitos dos mesmos problemas ainda existam em nossa sociedade. Percebe se que nada
6. mudou na política brasileira, pois ainda podemos ver muitoda “sujeira” a qual a música
referia-se.Analisando a primeira estrofe, percebemos que favela e senado são bem
semelhantes no que se refere às relações de sujeira e poder. O senado representando o órgão
maior dos três poderes na esfera federal, e a favela representando o poder do traficante que faz
suas próprias leis, julga e as executa. A grande ironia da música encontra-se no trecho em que
é dito que, não explicitamente, mas compreendido pelo contexto proposto, apesar ta situação
decadente do país, “todos acreditam no futuro da nação”. Nota-se que de maneiras diferentes,
as três músicas, predominantemente, concentram suas temáticas em torno de criticar o cenário
político,
econômico
e
social
presente
da
época.
É
evidente
que
esses
três
pontosconfiguravam-se como os mais emblemáticos naquela ocasião. É notória como a arte
tem o poder de servir de reflexo claro e fiel do que se passa em determinado momento da
história. A música por possuir um viés mais populare lúdico pode ser utilizada como
importante instrumento educacional no que se refere a despertar o interesse dos alunos por
leitura crítica.
Não é novidade que em nosso país a prática do hábito de ler seja elitizado, entendendo
o termo aqui não como restrito à questão de classes sociais, apesar delas também terem certo
grau de influência, mas no sentido de ser para poucos, para um público celeto. Vivemos em
um país em que não se foi criada uma cultura de apreço pela leitura, por isso a tarefa dos
docentes torna-se tão complexa. Cabe ao profissional de educação, o professor, estabelecer
estratégias que visem desenvolver o interesse dos discentes pelo universo da leitura. Inseri-los
de forma brusca e arbitrária pode criar uma aversão que os acompanharão pelo resto de sua
jornada estudantil, ou até por toda a vida. E é exatamente nesse ponto que a utilização de
músicas como ferramentas pedagógicas pode auxiliar para a mudança desse quadro.
A música acompanha a raça humana desde os tempos que remontam a pré-história.
Portanto, acompanhando o homem por praticamente toda sua trajetória. Sua prática quase
sempre esteve associada ao prazer, à evasão, à diversão. Por mais relevantes que possam ser
os temas que elas tratem a em sua temática, é evidente que o resultado final soa muito mais
aprazível do que em um texto convencional, escrito em papel. A própria história da literatura
tem clara relação com a música, basta lembrar-se de Ilíada e Odisseia, clássica narrativa épica
escrita em versos, que contemplam o ritmo e a musicalidade. O Trovadorismo, movimento da
Idade Média em que poetasmusicavam suas poesias, também é um importante exemplo da
proximidade da música com a literatura. Essa relação não deve ser deixada de lado pelos
professores, pois é inegável como essa característica pode auxiliá-los em seu trabalho.
7. Vale ressaltar que a música, quando em uma folha de papel, trata-se de um texto, eis o
grande trunfo. Através de letras de músicas que sejammais atrativas aos alunos, o professor
pode trabalhar paulatinamente o desenvolvimento da leitura, a criação de uma consciência que
valorize tal prática. Partindo primeiramente de textos musicais simples, gradativamente,
apoiando-se em diagnósticos, pode-ser inserir novos graus de leitura. É interessante frisar que
ainda dentro desse campo, o professor pode abordar diferentes assuntos, trabalhando com a
formulação de conhecimentos que darão bagagem ao aluno, contribuirão para a sua visão de
mundo.
Baseados nos estudos de Fiorin a respeito da análise do discurso, mostra-se de forma
evidente que todo discurso possui uma intenção, e que essa intenção pauta-se na ideologia de
uma dada classe social. Percebe-se que todo discurso possui duas camadas, uma superficial e
outra profunda. Por meio da camada superficial o homem pode ser submetido a todo tipo de
ideologias sem que ele próprio perceba, se dê conta do que realmente esteja nas “entrelinhas”,
pois esse significado real encontra-se na camada profunda. Através do presente estudo
concluímos também que a utilização de músicas como instrumento fomentador da cultura de
leitura nas escolas pode ser muito eficiente para os profissionais da educação. O presente
trabalho pautou se também em evidenciar que a realidade de uma sociedade sempre é refletida
de alguma forma pela arte, seja ela sujeita a um contexto de ditadura, conflitos políticos,
violência e etc.
REFERÊNCIAS
FIORIN, José Luiz. Linguagem e ideologia. São Paulo, 8ª edição: Ática, 2007.