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1
Os conceitos de memória impedida, memória manipulada e esquecimento de reserva em
“A memória, a história, o esquecimento” de Paul Ricoeur: entre o trauma e a
conciliação
Caroline Cristina Souza Silva∗
Juliana Ventura de Souza Fernandes∗∗
Mateus Henrique de Faria Pereira***
I. Introdução
Sustentando-nos sobre a categoria da justa memória de Paul Ricoeur, propomo-nos a
discutir os conceitos de memória impedida, memória manipulada e esquecimento de
reserva, compreendidos por este autor na perspectiva dos usos e abusos da memória. A
questão revela-se importante diante de suas implicações à prática historiográfica e à análise
dos usos que o tempo presente possa fazer de seu passado histórico. Para tanto, retomaremos
as discussões conceituais e referências a outros autores, destacando seus apontamentos acerca
do lugar da historiografia na cultura. Os efeitos da memória impedida serão tratados
contiguamente à possibilidade de repetição de experiências traumáticas e à necessidade de
trabalho de luto na história. O campo da memória manipulada será retomado por sua
dimensão mais ampla de abuso da memória e o esquecimento de reserva por sua relação
com a transmissão e o indizível na história. Este último parece ligado àquilo que no
esquecimento estaria mais próximo à reversibilidade, podendo se constituir em alternativa
para elaboração histórica, no limiar entre o que há de destruidor e fundador no esquecimento.
As relações entre memória impedida, manipulada e esquecimento situar-se-ão, deste
modo, no campo da impossibilidade de narrativização completa e nos conduzirá à questão de
como o presente pode falar de seu passado e de que forma se pode transmitir determinada
experiência. Por fim, discutiremos em que medida o horizonte ideal, sugerido pelo autor, de
∗
Aluna do Curso de História da Universidade Federal de Ouro Preto. Integrante do Grupo de Estudos Ler
Ricoeur. Participante do Projeto de Pesquisa Perdão e História? Odisséias do conceito de perdão na obra de Paul
Ricoeur. Financiamento: FAPEMIG.
∗∗
Aluna do Curso de História da Universidade Federal de Ouro Preto. Bacharel em Psicologia e Psicóloga pela
Universidade Federal de São Carlos. Integrante do Grupo de Estudos Ler Ricoeur. Participante do Projeto de
Pesquisa Perdão e História? Odisséias do conceito de perdão na obra de Paul Ricoeur. Financiamento:
FAPEMIG.
***
Professor Adjunto do Departamento de História da Universidade Federal de Ouro Preto. Orientador.
Coordenador do Projeto de Pesquisa Perdão e História? Odisséias do conceito de perdão na obra de Paul
Ricoeur. Financiamento: FAPEMIG.
2
uma memória apaziguada bem como do esquecimento feliz é possível e desejável na
elaboração da narrativa histórica.
II. A Memória Impedida
Antes de adentrarmos nas discussões acerca de usos de abusos da memória, é relevante
ter em consideração o lugar destacado, que Paul RICOEUR (2008) confere à memória em seu
livro “A memória, A história, O esquecimento”. Não são poucas as passagens,
particularmente na primeira parte de seu livro intitulada “Da memória e da reminiscência” em
que a memória é tratada como o ponto de enraizamento da historiografia. Entretanto, pode-se
supor que Ricoeur compreende algumas conseqüências e perigos implícitos nesta opção
teórica e metodológica. Diante disto, dedica parte de sua narrativa1
ao esclarecimento das
dimensões abusivas da apropriação da memória para o tratamento dos vestígios e testemunhos
visando uma escrita historiográfica.
Os abusos da memória são tratados pelo autor a partir de três chaves interpretativas.
Referente à memória impedida, Paul Ricoeur recorre a categorias clínicas e terapêuticas
provenientes principalmente da psicanálise freudiana, procurando vincular essa “patologia”,
para utilizarmos seu termo, a experiências humanas e históricas fundamentais. Quanto à
manipulação da memória, retomará o conceito de instrumentalização, dependente da crítica às
ideologias, destacando que é neste ponto que as noções de abuso da memória e abuso do
esquecimento são mais pertinentes. A terceira chave, que não será alvo de nossa discussão
pormenorizada, é o dever de memória, categoria fundamental para a discussão da memória
obrigada.
Dito isto, tratemos da patologia da memória impedida.
Paul Ricoeur, ao fazer uso de categorias forjadas pelo debate analítico, questiona em
que medida é autorizável a aplicação destas à análise de memórias coletivas (RICOEUR,
2008: 83). Embora não nos pareça conclusivo quanto à resposta, seu debate posterior acerca
das relações entre memória coletiva e memória individual2
parece autenticar a existência
dessas duas dimensões da memória como entidades próprias; que seriam aproximáveis pelo
conceito de “próximos” que ligaria o eu e os coletivos. Desta maneira, Ricoeur, ainda que
1
Para esta discussão, ver principalmente “A memória exercitada: uso e abuso” (p. 71-104) e “O esquecimento”
(p. 423-462), do mesmo título.
2
“A Memória Coletiva” (p.105-142), do mesmo título.
3
reconheça seus problemas, utiliza-se dessas categorias analíticas para fundamentar sua
discussão sobre a memória, particularmente a memória impedida.
Para isto, apropria-se de dois textos fundamentais de Freud: “Recordar, Repetir e
Elaborar” (1914) e “Luto e Melancolia” (1915).
Quanto ao primeiro, Ricoeur evidencia logo ao início de sua análise que a imposição
destes três verbos seqüenciais sugere que, quando se trata da memória fala-se em um trabalho.
Trabalho do analista e trabalho do analisando. “Freud enuncia duas propostas terapêuticas que
serão para nós da maior importância no momento de transpormos a análise clínica ao plano de
memória coletiva, como nos consideramos autorizados a fazer nesse estágio da discussão”
(RICOEUR, 2008: 84). Ao analista caberia, por meio da transferência, proporcionar o espaço
para que a manifestação patológica pudesse ocorrer. Ao analisando, disposição para se
aproximar de dimensões mórbidas, não considerando desprezíveis suas ocorrências. É essa a
condição para que haja “reconciliação”, termo que retomamos de Ricoeur. Assim, estamos
diante de um trabalho, trabalho este que depende ativamente do analisando.
Em relação ao “Luto e Melancolia”, Ricoeur apontou uma dificuldade maior ainda na
transposição da memória individual para a coletiva. Se no primeiro artigo, o trabalho poderia
ser uma dimensão sugestiva dessa ligação do sujeito ao coletivo, em “Luto e Melancolia” essa
aproximação pode ser menos evidente. Entretanto, aos propósitos argumentativos de Ricoeur,
parece fundamental a categoria de “luto” elaborada por Sigmund Freud. Na apropriação do
autor, a perda de um objeto concreto não se refere a sua perda instantânea no plano psíquico.
Em um primeiro momento após a perda, conduz-se um superinvestimento na representação do
objeto em uma tentativa de mantê-lo vivo em sua representação. Está-se, a partir daí, diante
de duas possibilidades: a primeira refere-se à impossibilidade de abandono desse investimento
no objeto perdido, conduzindo à melancolia; a segunda é a realização de um trabalho de luto,
que embora doloroso, promove, ao final a liberação da energia psíquica para investimento em
outros campos.
Ricoeur, nos parece, encontrou nesta discussão duas categorias fundamentais para o
desenvolvimento de suas teses posteriores sobre o perdão: o trabalho de elaboração e o
trabalho de luto. A discussão em bases teóricas freudianas retoma também a questão
indestrutibilidade do passado vivido, cabendo, diante desta impossibilidade, a criação de
arranjos para lidar com o passado. A menção à teoria freudiana do recalque pôde levar à
sustentação conceitual sobre as teses acerca da dimensão traumática do vivido, caracterizada
por uma repetição que não pode ser interpretada como mera manifestação de lembrança.
4
Portanto, é possível compreender que o recalcado emergente no sujeito marcado pelo
trauma tem como principal função a substituição de lembranças, e provavelmente será através
da repetição da descrição dos fatos traumáticos e na resistência à elaboração que o analisando
se apoiará. Para Freud, a reprodução dos relatos de fatos traumáticos é interpretada como
ação, ou seja, o analisando, ao descrever o acontecimento não reproduz uma lembrança. Em
verdade, há todo um processo de trabalho pelo qual passa a memória na busca de
rememoração. O relato é, ativamente, modificado a partir da ocasião traumática. Ricoeur
apropria-se dessas formulações de Freud com o objetivo de superar o problema do recalque e
da compulsão pela repetição, chaves para elucidar problemas encontrados com relação à
memória coletiva. Em resposta a estes problemas, a categoria de “elaboração” seria evocada
para fazer frente às questões mencionadas. Por meio deste processo, a lembrança recalcada
será liberada e o analisando finalmente poderá construir uma relação de conformidade com
seu passado.
É com relação ao “passado indestrutível” a qual Freud menciona que Ricoeur faz uso
do trabalho “Psicopatologia da Vida Cotidiana” para explicar melhor o fator de desligamento
entre o presente e o passado. Os desenvolvimentos freudianos neste último, apoiados
principalmente no tema do esquecimento, serviriam à análise daquilo que ocorre nas relações
em espaço público, tendo, portanto, alguma função para a análise da memória coletiva. As
manifestações inconscientes cotidianas, por vezes quase imperceptíveis, seriam o elo que
representa essa indestrutibilidade do passado, afirmando suas permanências no tempo
presente. No entanto, o que haveria de patológico residiria no esquecimento consciente de
impressões de um passado distante associado à formação de alterações nas lembranças,
podendo ser consideradas, em alguma medida, como falsas lembranças, medida usada em
defesa do inconsciente.
Para Paul RICOUER (2008:452-455), essas defesas são também possíveis de serem
observadas na vida cotidiana pública e se apresentam como questões à memória coletiva. É
nesse contexto que autor defende a possibilidade de transposição das categorias psicanalíticas
ao âmbito público e procura lançar luz à problemática encontrada com relação aos usos e
abusos da memória coletiva, tendo por base categorias de repetição e demanda de luto na
história. E lança mais um argumento: se as identidades constituem-se em dois pólos, o público
e o privado, a análise da construção das mesmas não poderia deixar de contemplar estas duas
vertentes discursivas quando se trata da discussão do trauma.
Ricoeur, com relação à memória coletiva, ressalta que não se pode desagregar o luto
da melancolia, pois o trabalho de luto é a principal forma de elaboração e evitação da última.
5
Com isso, contextualiza a diferença entre o luto considerado uma experiência natural à perda,
e a melancolia, vista como patológica. A melancolia, além disso, seria mais avassaladora que
o luto, pois conduz a auto-condenações e culpa. O trabalho de luto, deste modo, quando bem
sucedido, tem como resultado aquilo que Ricoeur denomina “memória feliz”, a qual
proporciona, a partir de seu reconhecimento, a reconciliação com as lembranças traumáticas
com a minimização de danos psicológicos (RICOEUR, 2008: 425, 437-438, 453). Desse
modo, Ricoeur constrói um paralelo entre melancolia e compulsão à repetição e da elaboração
e o trabalho de luto.
Traumas desenvolvidos ao longo do processo histórico de uma comunidade podem, de
acordo com o autor, afetar a memória coletiva, tornando a construção dos sentidos do passado
um trabalho árduo e doloroso. É neste particular que a demanda de luto se insere. Como se
pode notar, o impedimento da memória é um obstáculo a elaboração de experiências
históricas traumáticas. Adverte Ricoeur que a ligação entre memória impedida e
esquecimento seria lesiva na medida em que impede que novas versões possam vir à
consciência e que no espaço público possam ser reconstruídas, conferindo sentidos outros ao
passado. O trauma não é apagável, mas pode ser conciliável.
III. A Memória Manipulada
Quando tratamos da memória manipulada, está-se no campo das relações de poder.
Poder na medida em que por meio das relações de força, versões da memória e esquecimento
são construídas e forjadas. Está-se no plano da instrumentalização da memória. De acordo
com o autor, “a especificidade dessa segunda abordagem situa-se no cruzamento entre a
problemática da memória e da identidade tanto coletiva como pessoal” (RICOEUR, 2008:
94). O problema aqui reside na consideração de que a mobilização de memórias está a serviço
da demanda e da reivindicação de identidades. Cognitivamente, a fragilidade que é cara a esta
discussão é a aproximação entre imaginação e memória.
As identidades se estabelecem em uma relação conflitiva com o tempo, tendo-se em
vista que, se identidade é aquilo que define, pode-se perguntar como ela pode ser garantida ao
longo do tempo. Outra questão reside na fragilidade que a identidade assume em confronto
com o outro, sendo que esta não pode ser presumida exclusivamente por seu possuidor; em
vez disso, ela é forjada nas relações sociais. Mencionamos a terceira causa de fragilidade da
identidade apontada por Ricoeur:
6
“A terceira fragilidade é a herança da violência fundadora. É fato não existir
comunidade histórica alguma que não tenha nascido de uma relação, a qual se pode
chamar de original, com a guerra. O que celebramos com o nome de acontecimentos
fundadores, são essencialmente atos violentos legitimados posteriormente por um
Estado de direito precário, legitimados, no limite, por sua própria antiguidade, por sua
vetustez. Assim, os mesmos acontecimentos podem significar glória para uns e
humilhação para outros” (RICOEUR, 2008: 95)
As manipulações da memória são inseridas, desta maneira, nas tentativas de
expressões públicas de identidades e memórias. Estão expressas, de acordo com o autor, em
processos ideológicos, opacos por dois motivos. Primeiro, porque permanecem dissimulados.
Depois, porque se tratam de processos profundamente complexos em sua apreensão. As
ideologias são fundamentais à construção de narrativas e o papel da narrativa é indispensável
para a constituição e modificação da identidade. Entre narrativa e memória encontramos
assim uma problemática comum: a impossibilidade de memória e narração completas, o que
conduz sempre à seletividade, que se sustenta em determinados sistemas simbólicos vigentes.
A ideologia, segundo Ricoeur, exerce sua função de legitimação de sistemas de poder
veiculando ações à cultura social. O autor conclui que a narrativa pode ser uma armadilha
para a formação das lembranças, pois é a partir desse domínio que a memória tem a
possibilidade de ser reconstruída.
A memória como organização do esquecimento é ponto chave para entender a questão
da manipulação, pois é em relação a este último que a memória manipulada pode ser mais
bem compreendida. Entramos no campo dos abusos de memória e do esquecimento. Podem-
se nomear dois tipos de esquecimento: passivo e ativo. O primeiro é considerado como a
forma patológica de esquecimento (mais aproximado à memória impedida). O segundo
constitui-se por meio das relações sociais marcadas pela ideologia, políticas e relações de
poder, estando em aproximação à dimensão manipulativa. A indissociabilidade das dimensões
da memória e do esquecimento coloca-nos na extensão dos abusos a este último.
Em relação à escrita da história, Ricoeur atenta aos perigos da narrativa. As
manipulações da memória servem-se da história formal, conduzindo a que memórias
construídas por determinados grupos sejam tornadas “oficiais”. Sua implicação à construção
de memórias coletivas e das identidades é evidente. É importante que a história seja, de fato,
problematizadora preocupando-se com a veiculação de narrativas mais amplas, atentando
7
criticamente às dimensões manipulativas. Redimensionar os sentidos do passado, por meio da
análise dos abusos de memória, é fundamental ao ofício.
IV. Esquecimento de Reserva
Para tratar do esquecimento, Ricoeur faz alusão à dimensão de profundidade.
“O esquecimento propõe uma nova significação dada à idéia de profundidade
que a fenomenologia da memória tende a identificar como distância, como o
afastamento, segundo uma fórmula horizontal da profundidade; o esquecimento
propõe, no plano existencial, uma espécie de perspectivação a que metáfora da
profundidade vertical tenta exprimir” (RICOEUR, 2008: 424).
É diante da questão da profundidade que o esquecimento de reserva é tratado. Em
oposição ao esquecimento por apagamento de rastros, o esquecimento de reserva contém em
si algo da ordem da reversibilidade. Neste sentido, ele se aproximaria de maneira mais
positiva à dimensão de elaboração histórica. O esquecimento de reserva é sustentado pela
hipótese de preservação da memória, por meio de mecanismos de latência, colocando-se
como a dimensão feliz do esquecimento proposta por Ricoeur.
O esquecimento de reserva está relacionado àquilo que o autor considerou o pequeno
milagre da memória feliz: o reconhecimento. Reconhecimento que pode assumir formas
distintas: daquilo que se teve e “retornou” e daquilo que parece da ordem do inédito.
“Reconhecer uma lembrança é reencontrá-la. Reencontrá-la é presumi-la
principalmente disponível, se não acessível. Disponível, como à espera de recordação,
mas não ao alcance da mão, como as aves do pombal de Platão que é possível possuir,
mas não agarrar. Cabe assim à experiência do reconhecimento remeter a um estado de
latência da lembrança da impressão primeira cuja imagem teve de se constituir ao
mesmo tempo em que a afecção originária” (RICOEUR, 2008: 441-442).
O que apontamos até aí sugere uma aproximação das dimensões do esquecimento e da
rememoração, proporcionando reconhecimento. Mas em que sentido se pode dizer que a
sobrevivência da lembrança tem valor de esquecimento? De acordo com Ricoeur, neste caso
não se trata mais de dizer do esquecimento que a ausência de materialidade nos coloca, o
esquecimento por apagamento dos rastros, mas o esquecimento por assim dizer de reserva ou
de recurso; esquecimento que designa o caráter despercebido da perseverança da lembrança,
sua subtração à vigilância da consciência. Em síntese, apropriando-nos dos desenvolvimentos
8
do autor, “o esquecimento reveste-se de uma significação positiva na medida em que o tendo-
sido prevalece sobre o não mais ser na significação vinculada à idéia de passado. O tendo-sido
faz do esquecimento o recurso imemorial oferecido ao trabalho da lembrança” (RICOEUR,
2008: 448-451).
Chegamos então a uma questão crucial: o esquecimento é destruidor ou fundador
quando se trata de pensar a história? Ao tratar do esquecimento de reserva Paul Ricoeur
redimensiona o estatuto do esquecimento destacamento seu papel cooperador. Poderíamos
dizer que o esquecimento é feliz na medida em que não se refere à eliminação dos rastros,
mas no sentido de situar-se na fronteira da reversibilidade. Isto quer dizer que o trabalho de
luto de experiências históricas traumáticas pode conduzir não a uma negação da lembrança,
mas a uma elaboração que permita que essa memória perca a qualidade intrusiva da repetição.
Neste horizonte, a lembrança não insiste em se fazer colocar a todo instante. Já elaborada ela
pode cessar de irromper, sem estar, no entanto, completamente perdida. É sob este prisma que
a instauração do novo pode acontecer no presente. A recordação é a prova de que o
esquecimento de reserva não extingue os rastros, apenas os aloca nas profundezas da
memória. É nesta perspectiva que Ricoeur projeta um horizonte ideal da memória apaziguada.
A problemática do esquecimento tem papel de importância na questão dos abusos da
memória. Quando falamos em memória manipulada podemos aludir, igualmente, a certo tipo
de esquecimento que denominaríamos “artificial”. Em relação à memória impedida podemos
nos referir ao esquecimento na forma de um arquivamento da memória. Na manipulação da
memória através do esquecimento camuflam-se fatos, experiências, acontecimentos que
podem ser também excluídos da escrita autorizada da história. Isto nos coloca em um debate
ético e político de primeira grandeza: até que ponto o esquecimento, em suas formas
patológicas, não vem sendo utilizado para a construção de uma política da memória coletiva?
E finalmente: é possível à história restituir o lugar de certas memórias não de uma maneira
que conduza a uma repetição, mas a uma verdadeira elaboração do traumático? Os abusos da
memória e esquecimento são o ponto mais curto para o apagamento de memórias incômodas
socialmente. No entanto, podem-se elencar uma série de experiências históricas mal sucedidas
a partir desses mecanismos. A escrita da história pode, quem sabe, ter papel importante para a
elaboração do luto. Seu papel pode ser o de restaurar perdas totais de rastros e narrativas,
evitando que continuem, por vias desfavoráveis, a ser executadas no tempo presente.
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
9
RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Tradução de Alain François. São
Paulo: Editora da UNICAMP,2008.

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  • 1. 1 Os conceitos de memória impedida, memória manipulada e esquecimento de reserva em “A memória, a história, o esquecimento” de Paul Ricoeur: entre o trauma e a conciliação Caroline Cristina Souza Silva∗ Juliana Ventura de Souza Fernandes∗∗ Mateus Henrique de Faria Pereira*** I. Introdução Sustentando-nos sobre a categoria da justa memória de Paul Ricoeur, propomo-nos a discutir os conceitos de memória impedida, memória manipulada e esquecimento de reserva, compreendidos por este autor na perspectiva dos usos e abusos da memória. A questão revela-se importante diante de suas implicações à prática historiográfica e à análise dos usos que o tempo presente possa fazer de seu passado histórico. Para tanto, retomaremos as discussões conceituais e referências a outros autores, destacando seus apontamentos acerca do lugar da historiografia na cultura. Os efeitos da memória impedida serão tratados contiguamente à possibilidade de repetição de experiências traumáticas e à necessidade de trabalho de luto na história. O campo da memória manipulada será retomado por sua dimensão mais ampla de abuso da memória e o esquecimento de reserva por sua relação com a transmissão e o indizível na história. Este último parece ligado àquilo que no esquecimento estaria mais próximo à reversibilidade, podendo se constituir em alternativa para elaboração histórica, no limiar entre o que há de destruidor e fundador no esquecimento. As relações entre memória impedida, manipulada e esquecimento situar-se-ão, deste modo, no campo da impossibilidade de narrativização completa e nos conduzirá à questão de como o presente pode falar de seu passado e de que forma se pode transmitir determinada experiência. Por fim, discutiremos em que medida o horizonte ideal, sugerido pelo autor, de ∗ Aluna do Curso de História da Universidade Federal de Ouro Preto. Integrante do Grupo de Estudos Ler Ricoeur. Participante do Projeto de Pesquisa Perdão e História? Odisséias do conceito de perdão na obra de Paul Ricoeur. Financiamento: FAPEMIG. ∗∗ Aluna do Curso de História da Universidade Federal de Ouro Preto. Bacharel em Psicologia e Psicóloga pela Universidade Federal de São Carlos. Integrante do Grupo de Estudos Ler Ricoeur. Participante do Projeto de Pesquisa Perdão e História? Odisséias do conceito de perdão na obra de Paul Ricoeur. Financiamento: FAPEMIG. *** Professor Adjunto do Departamento de História da Universidade Federal de Ouro Preto. Orientador. Coordenador do Projeto de Pesquisa Perdão e História? Odisséias do conceito de perdão na obra de Paul Ricoeur. Financiamento: FAPEMIG.
  • 2. 2 uma memória apaziguada bem como do esquecimento feliz é possível e desejável na elaboração da narrativa histórica. II. A Memória Impedida Antes de adentrarmos nas discussões acerca de usos de abusos da memória, é relevante ter em consideração o lugar destacado, que Paul RICOEUR (2008) confere à memória em seu livro “A memória, A história, O esquecimento”. Não são poucas as passagens, particularmente na primeira parte de seu livro intitulada “Da memória e da reminiscência” em que a memória é tratada como o ponto de enraizamento da historiografia. Entretanto, pode-se supor que Ricoeur compreende algumas conseqüências e perigos implícitos nesta opção teórica e metodológica. Diante disto, dedica parte de sua narrativa1 ao esclarecimento das dimensões abusivas da apropriação da memória para o tratamento dos vestígios e testemunhos visando uma escrita historiográfica. Os abusos da memória são tratados pelo autor a partir de três chaves interpretativas. Referente à memória impedida, Paul Ricoeur recorre a categorias clínicas e terapêuticas provenientes principalmente da psicanálise freudiana, procurando vincular essa “patologia”, para utilizarmos seu termo, a experiências humanas e históricas fundamentais. Quanto à manipulação da memória, retomará o conceito de instrumentalização, dependente da crítica às ideologias, destacando que é neste ponto que as noções de abuso da memória e abuso do esquecimento são mais pertinentes. A terceira chave, que não será alvo de nossa discussão pormenorizada, é o dever de memória, categoria fundamental para a discussão da memória obrigada. Dito isto, tratemos da patologia da memória impedida. Paul Ricoeur, ao fazer uso de categorias forjadas pelo debate analítico, questiona em que medida é autorizável a aplicação destas à análise de memórias coletivas (RICOEUR, 2008: 83). Embora não nos pareça conclusivo quanto à resposta, seu debate posterior acerca das relações entre memória coletiva e memória individual2 parece autenticar a existência dessas duas dimensões da memória como entidades próprias; que seriam aproximáveis pelo conceito de “próximos” que ligaria o eu e os coletivos. Desta maneira, Ricoeur, ainda que 1 Para esta discussão, ver principalmente “A memória exercitada: uso e abuso” (p. 71-104) e “O esquecimento” (p. 423-462), do mesmo título. 2 “A Memória Coletiva” (p.105-142), do mesmo título.
  • 3. 3 reconheça seus problemas, utiliza-se dessas categorias analíticas para fundamentar sua discussão sobre a memória, particularmente a memória impedida. Para isto, apropria-se de dois textos fundamentais de Freud: “Recordar, Repetir e Elaborar” (1914) e “Luto e Melancolia” (1915). Quanto ao primeiro, Ricoeur evidencia logo ao início de sua análise que a imposição destes três verbos seqüenciais sugere que, quando se trata da memória fala-se em um trabalho. Trabalho do analista e trabalho do analisando. “Freud enuncia duas propostas terapêuticas que serão para nós da maior importância no momento de transpormos a análise clínica ao plano de memória coletiva, como nos consideramos autorizados a fazer nesse estágio da discussão” (RICOEUR, 2008: 84). Ao analista caberia, por meio da transferência, proporcionar o espaço para que a manifestação patológica pudesse ocorrer. Ao analisando, disposição para se aproximar de dimensões mórbidas, não considerando desprezíveis suas ocorrências. É essa a condição para que haja “reconciliação”, termo que retomamos de Ricoeur. Assim, estamos diante de um trabalho, trabalho este que depende ativamente do analisando. Em relação ao “Luto e Melancolia”, Ricoeur apontou uma dificuldade maior ainda na transposição da memória individual para a coletiva. Se no primeiro artigo, o trabalho poderia ser uma dimensão sugestiva dessa ligação do sujeito ao coletivo, em “Luto e Melancolia” essa aproximação pode ser menos evidente. Entretanto, aos propósitos argumentativos de Ricoeur, parece fundamental a categoria de “luto” elaborada por Sigmund Freud. Na apropriação do autor, a perda de um objeto concreto não se refere a sua perda instantânea no plano psíquico. Em um primeiro momento após a perda, conduz-se um superinvestimento na representação do objeto em uma tentativa de mantê-lo vivo em sua representação. Está-se, a partir daí, diante de duas possibilidades: a primeira refere-se à impossibilidade de abandono desse investimento no objeto perdido, conduzindo à melancolia; a segunda é a realização de um trabalho de luto, que embora doloroso, promove, ao final a liberação da energia psíquica para investimento em outros campos. Ricoeur, nos parece, encontrou nesta discussão duas categorias fundamentais para o desenvolvimento de suas teses posteriores sobre o perdão: o trabalho de elaboração e o trabalho de luto. A discussão em bases teóricas freudianas retoma também a questão indestrutibilidade do passado vivido, cabendo, diante desta impossibilidade, a criação de arranjos para lidar com o passado. A menção à teoria freudiana do recalque pôde levar à sustentação conceitual sobre as teses acerca da dimensão traumática do vivido, caracterizada por uma repetição que não pode ser interpretada como mera manifestação de lembrança.
  • 4. 4 Portanto, é possível compreender que o recalcado emergente no sujeito marcado pelo trauma tem como principal função a substituição de lembranças, e provavelmente será através da repetição da descrição dos fatos traumáticos e na resistência à elaboração que o analisando se apoiará. Para Freud, a reprodução dos relatos de fatos traumáticos é interpretada como ação, ou seja, o analisando, ao descrever o acontecimento não reproduz uma lembrança. Em verdade, há todo um processo de trabalho pelo qual passa a memória na busca de rememoração. O relato é, ativamente, modificado a partir da ocasião traumática. Ricoeur apropria-se dessas formulações de Freud com o objetivo de superar o problema do recalque e da compulsão pela repetição, chaves para elucidar problemas encontrados com relação à memória coletiva. Em resposta a estes problemas, a categoria de “elaboração” seria evocada para fazer frente às questões mencionadas. Por meio deste processo, a lembrança recalcada será liberada e o analisando finalmente poderá construir uma relação de conformidade com seu passado. É com relação ao “passado indestrutível” a qual Freud menciona que Ricoeur faz uso do trabalho “Psicopatologia da Vida Cotidiana” para explicar melhor o fator de desligamento entre o presente e o passado. Os desenvolvimentos freudianos neste último, apoiados principalmente no tema do esquecimento, serviriam à análise daquilo que ocorre nas relações em espaço público, tendo, portanto, alguma função para a análise da memória coletiva. As manifestações inconscientes cotidianas, por vezes quase imperceptíveis, seriam o elo que representa essa indestrutibilidade do passado, afirmando suas permanências no tempo presente. No entanto, o que haveria de patológico residiria no esquecimento consciente de impressões de um passado distante associado à formação de alterações nas lembranças, podendo ser consideradas, em alguma medida, como falsas lembranças, medida usada em defesa do inconsciente. Para Paul RICOUER (2008:452-455), essas defesas são também possíveis de serem observadas na vida cotidiana pública e se apresentam como questões à memória coletiva. É nesse contexto que autor defende a possibilidade de transposição das categorias psicanalíticas ao âmbito público e procura lançar luz à problemática encontrada com relação aos usos e abusos da memória coletiva, tendo por base categorias de repetição e demanda de luto na história. E lança mais um argumento: se as identidades constituem-se em dois pólos, o público e o privado, a análise da construção das mesmas não poderia deixar de contemplar estas duas vertentes discursivas quando se trata da discussão do trauma. Ricoeur, com relação à memória coletiva, ressalta que não se pode desagregar o luto da melancolia, pois o trabalho de luto é a principal forma de elaboração e evitação da última.
  • 5. 5 Com isso, contextualiza a diferença entre o luto considerado uma experiência natural à perda, e a melancolia, vista como patológica. A melancolia, além disso, seria mais avassaladora que o luto, pois conduz a auto-condenações e culpa. O trabalho de luto, deste modo, quando bem sucedido, tem como resultado aquilo que Ricoeur denomina “memória feliz”, a qual proporciona, a partir de seu reconhecimento, a reconciliação com as lembranças traumáticas com a minimização de danos psicológicos (RICOEUR, 2008: 425, 437-438, 453). Desse modo, Ricoeur constrói um paralelo entre melancolia e compulsão à repetição e da elaboração e o trabalho de luto. Traumas desenvolvidos ao longo do processo histórico de uma comunidade podem, de acordo com o autor, afetar a memória coletiva, tornando a construção dos sentidos do passado um trabalho árduo e doloroso. É neste particular que a demanda de luto se insere. Como se pode notar, o impedimento da memória é um obstáculo a elaboração de experiências históricas traumáticas. Adverte Ricoeur que a ligação entre memória impedida e esquecimento seria lesiva na medida em que impede que novas versões possam vir à consciência e que no espaço público possam ser reconstruídas, conferindo sentidos outros ao passado. O trauma não é apagável, mas pode ser conciliável. III. A Memória Manipulada Quando tratamos da memória manipulada, está-se no campo das relações de poder. Poder na medida em que por meio das relações de força, versões da memória e esquecimento são construídas e forjadas. Está-se no plano da instrumentalização da memória. De acordo com o autor, “a especificidade dessa segunda abordagem situa-se no cruzamento entre a problemática da memória e da identidade tanto coletiva como pessoal” (RICOEUR, 2008: 94). O problema aqui reside na consideração de que a mobilização de memórias está a serviço da demanda e da reivindicação de identidades. Cognitivamente, a fragilidade que é cara a esta discussão é a aproximação entre imaginação e memória. As identidades se estabelecem em uma relação conflitiva com o tempo, tendo-se em vista que, se identidade é aquilo que define, pode-se perguntar como ela pode ser garantida ao longo do tempo. Outra questão reside na fragilidade que a identidade assume em confronto com o outro, sendo que esta não pode ser presumida exclusivamente por seu possuidor; em vez disso, ela é forjada nas relações sociais. Mencionamos a terceira causa de fragilidade da identidade apontada por Ricoeur:
  • 6. 6 “A terceira fragilidade é a herança da violência fundadora. É fato não existir comunidade histórica alguma que não tenha nascido de uma relação, a qual se pode chamar de original, com a guerra. O que celebramos com o nome de acontecimentos fundadores, são essencialmente atos violentos legitimados posteriormente por um Estado de direito precário, legitimados, no limite, por sua própria antiguidade, por sua vetustez. Assim, os mesmos acontecimentos podem significar glória para uns e humilhação para outros” (RICOEUR, 2008: 95) As manipulações da memória são inseridas, desta maneira, nas tentativas de expressões públicas de identidades e memórias. Estão expressas, de acordo com o autor, em processos ideológicos, opacos por dois motivos. Primeiro, porque permanecem dissimulados. Depois, porque se tratam de processos profundamente complexos em sua apreensão. As ideologias são fundamentais à construção de narrativas e o papel da narrativa é indispensável para a constituição e modificação da identidade. Entre narrativa e memória encontramos assim uma problemática comum: a impossibilidade de memória e narração completas, o que conduz sempre à seletividade, que se sustenta em determinados sistemas simbólicos vigentes. A ideologia, segundo Ricoeur, exerce sua função de legitimação de sistemas de poder veiculando ações à cultura social. O autor conclui que a narrativa pode ser uma armadilha para a formação das lembranças, pois é a partir desse domínio que a memória tem a possibilidade de ser reconstruída. A memória como organização do esquecimento é ponto chave para entender a questão da manipulação, pois é em relação a este último que a memória manipulada pode ser mais bem compreendida. Entramos no campo dos abusos de memória e do esquecimento. Podem- se nomear dois tipos de esquecimento: passivo e ativo. O primeiro é considerado como a forma patológica de esquecimento (mais aproximado à memória impedida). O segundo constitui-se por meio das relações sociais marcadas pela ideologia, políticas e relações de poder, estando em aproximação à dimensão manipulativa. A indissociabilidade das dimensões da memória e do esquecimento coloca-nos na extensão dos abusos a este último. Em relação à escrita da história, Ricoeur atenta aos perigos da narrativa. As manipulações da memória servem-se da história formal, conduzindo a que memórias construídas por determinados grupos sejam tornadas “oficiais”. Sua implicação à construção de memórias coletivas e das identidades é evidente. É importante que a história seja, de fato, problematizadora preocupando-se com a veiculação de narrativas mais amplas, atentando
  • 7. 7 criticamente às dimensões manipulativas. Redimensionar os sentidos do passado, por meio da análise dos abusos de memória, é fundamental ao ofício. IV. Esquecimento de Reserva Para tratar do esquecimento, Ricoeur faz alusão à dimensão de profundidade. “O esquecimento propõe uma nova significação dada à idéia de profundidade que a fenomenologia da memória tende a identificar como distância, como o afastamento, segundo uma fórmula horizontal da profundidade; o esquecimento propõe, no plano existencial, uma espécie de perspectivação a que metáfora da profundidade vertical tenta exprimir” (RICOEUR, 2008: 424). É diante da questão da profundidade que o esquecimento de reserva é tratado. Em oposição ao esquecimento por apagamento de rastros, o esquecimento de reserva contém em si algo da ordem da reversibilidade. Neste sentido, ele se aproximaria de maneira mais positiva à dimensão de elaboração histórica. O esquecimento de reserva é sustentado pela hipótese de preservação da memória, por meio de mecanismos de latência, colocando-se como a dimensão feliz do esquecimento proposta por Ricoeur. O esquecimento de reserva está relacionado àquilo que o autor considerou o pequeno milagre da memória feliz: o reconhecimento. Reconhecimento que pode assumir formas distintas: daquilo que se teve e “retornou” e daquilo que parece da ordem do inédito. “Reconhecer uma lembrança é reencontrá-la. Reencontrá-la é presumi-la principalmente disponível, se não acessível. Disponível, como à espera de recordação, mas não ao alcance da mão, como as aves do pombal de Platão que é possível possuir, mas não agarrar. Cabe assim à experiência do reconhecimento remeter a um estado de latência da lembrança da impressão primeira cuja imagem teve de se constituir ao mesmo tempo em que a afecção originária” (RICOEUR, 2008: 441-442). O que apontamos até aí sugere uma aproximação das dimensões do esquecimento e da rememoração, proporcionando reconhecimento. Mas em que sentido se pode dizer que a sobrevivência da lembrança tem valor de esquecimento? De acordo com Ricoeur, neste caso não se trata mais de dizer do esquecimento que a ausência de materialidade nos coloca, o esquecimento por apagamento dos rastros, mas o esquecimento por assim dizer de reserva ou de recurso; esquecimento que designa o caráter despercebido da perseverança da lembrança, sua subtração à vigilância da consciência. Em síntese, apropriando-nos dos desenvolvimentos
  • 8. 8 do autor, “o esquecimento reveste-se de uma significação positiva na medida em que o tendo- sido prevalece sobre o não mais ser na significação vinculada à idéia de passado. O tendo-sido faz do esquecimento o recurso imemorial oferecido ao trabalho da lembrança” (RICOEUR, 2008: 448-451). Chegamos então a uma questão crucial: o esquecimento é destruidor ou fundador quando se trata de pensar a história? Ao tratar do esquecimento de reserva Paul Ricoeur redimensiona o estatuto do esquecimento destacamento seu papel cooperador. Poderíamos dizer que o esquecimento é feliz na medida em que não se refere à eliminação dos rastros, mas no sentido de situar-se na fronteira da reversibilidade. Isto quer dizer que o trabalho de luto de experiências históricas traumáticas pode conduzir não a uma negação da lembrança, mas a uma elaboração que permita que essa memória perca a qualidade intrusiva da repetição. Neste horizonte, a lembrança não insiste em se fazer colocar a todo instante. Já elaborada ela pode cessar de irromper, sem estar, no entanto, completamente perdida. É sob este prisma que a instauração do novo pode acontecer no presente. A recordação é a prova de que o esquecimento de reserva não extingue os rastros, apenas os aloca nas profundezas da memória. É nesta perspectiva que Ricoeur projeta um horizonte ideal da memória apaziguada. A problemática do esquecimento tem papel de importância na questão dos abusos da memória. Quando falamos em memória manipulada podemos aludir, igualmente, a certo tipo de esquecimento que denominaríamos “artificial”. Em relação à memória impedida podemos nos referir ao esquecimento na forma de um arquivamento da memória. Na manipulação da memória através do esquecimento camuflam-se fatos, experiências, acontecimentos que podem ser também excluídos da escrita autorizada da história. Isto nos coloca em um debate ético e político de primeira grandeza: até que ponto o esquecimento, em suas formas patológicas, não vem sendo utilizado para a construção de uma política da memória coletiva? E finalmente: é possível à história restituir o lugar de certas memórias não de uma maneira que conduza a uma repetição, mas a uma verdadeira elaboração do traumático? Os abusos da memória e esquecimento são o ponto mais curto para o apagamento de memórias incômodas socialmente. No entanto, podem-se elencar uma série de experiências históricas mal sucedidas a partir desses mecanismos. A escrita da história pode, quem sabe, ter papel importante para a elaboração do luto. Seu papel pode ser o de restaurar perdas totais de rastros e narrativas, evitando que continuem, por vias desfavoráveis, a ser executadas no tempo presente. REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
  • 9. 9 RICOEUR, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Tradução de Alain François. São Paulo: Editora da UNICAMP,2008.