3. PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO
GRANDE DO SUL
CHANCELER- Dom Dadeus Grings
REITOR - Ir. Norberto Francisco Rauch
CONSELHO EDITORIAL
Antoninho Muza Naime
Antonio Mario Pascual Bianchi
Délcia Enricone
Jayme Paviani
Luiz Antônio de Assis Brasil e Silva
Regina Zilberman
Telmo Berthold
Urbano Zilles (Presidente)
Vera Lúcia Strube de Lima
Diretor da EDIPUCRS - Antoninho Muza Naime
EDIPUCRS
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C.P. 1429
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Fone/Fax.: (51) 3320-3523
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4. Constança JVIarcondes Cesar (Org.)
A HERMENÊUTICA FRANCESA
PAUL RICOEUR
Coleção:
FILOSOFIA- 140
EDIPUCRS
PORTO ALEGRE
2002
6. SUMÁRIO
Apresentação I 7
Daniel Desroches
A vida longa da compreensão em Paul Ricoeur I 9
Ricoeur, crítico do cogito I 27
Constança Marcondes Cesar
A ontologia hermenêutica de Paul Ricoeur I 43
O problema da tolerância em Paul Ricoeur I 57
Multiculturalismo: questões éticas I 67
Jeffrey Andrew Barash
A filosofia moral de Paul Ricoeur I 81
Por uma política da memória, a partir de uma interpretação da sa-
bedoria prática em Paul Ricoeur I 91
Solange Vergnieres e Constança Marcondes Cesar
A vida feliz em Aristóteles e Ricoeur I 105
Sonia Vásquez Garrido
A hermenêutica do si e sua dimensão ética I 129
Danilo Di Manno de Almeida
Por uma pluralidade de éticas: reflexões a propósito de P. Ricoeur
e E. Dussel I 135
coteçao t'IIosona- l4U
7.
8. APRESENTAÇÃO
Os estudos aqui reunidos foram cedidos por estudiosos de
Ricoeur. O Dr. Daniel Desroches é da Universidade de Lavai e es-
tivemos em contato por ocasião do congresso da ASPLF realizado
em Québec, quando concordou com a publicação dos seus traba-
lhos inicialmente na revista Reflexão, da PUC de Campinas e ulte-
riormente, traduzidos, no presente livro; meus capítulos são resul-
tado de pesquisas desenvolvidas na PUC de Campinas e foram
apresentados em congressos: o sobre a ontologia hermenêutica, no
Canadá, no congresso da ASPLF; o sobre a tolerância, nos EUA,
no Congresso Mundial de Filosofia, realizado em Boston, do qual
participei com apoio da CAPES; o sobre multiculturalismo, foi
conferência realizada na UFRJ.
Os trabalhos do Dr. Barash, da Universidade de Amiens,
foram cedidos para publicação neste livro; o capítulo da Dra. So-
lange Vergnieres, do CNRS, foi publicado na revista Rejlexüo e
sua tradução autorizada por ela para esta publicação. Resultou ele
trabalho em cooperação, em vista de pesquisa desenvolvida na
PUC de Campinas.
O capítulo da Dra. Sonia Garrido, da PUC do Chile, foi
publicado em espanhol na revista Reflexão e teve sua tradução e
publicação autorizadas para este volume. O capítulo do Dr. Danilo
Almeida, da Universidade Metodista, foi escrito especialmente.
Nossos agradecimentos a todos os colaboradores, que pos-
sibilitaram a realização dessa pesquisa e os resultados obtidos.
C.M.C.
Coleção Filosofia- 140 7
9.
10. A VIDA LONGA DA COMPREENSÃO
EM PAUL RICOEUR
Daniel Desroches
(Universidade de Lavai)
Ouve-se freqüentemente dizer que a hermenêutica de Ri-
coeur nunca se libertou das questões de método. Mas para fazer
justiça ao percurso do autor, ganharíamos recordando que toda a
obra inclina a compreensão em direção a algo (Stevens) ou enfatiza
tal assunto (Greisch). Na nossa opinião, a verdadeira contribuição
de Ricoeur dá-se sob diferentes figuras de uma única hermenêutica.
Vendo estritamente as coisas, trata-se de uma fórmula uti-
lizada por Ricoeur para demarcar, num momento preciso de seu
percurso, seu próprio projeto hermenêutica. Propomos fazer ver em
que sentido a expressão recobre diversas acepções (ontológica,
existencial e metodológica) e como pode se aplicar paralelamente a
todo o empreendimento de Ricoeur. Gostaríamos de dar uma idéia
geral desta abordagem pela lei do maior desvio, apresentando-a
brevemente assim: trata-se, simplesmente, para o hermeneuta, de
segurar o círculo hermenêutica pelas duas extremidades, a saber
enfocar sempre as duas vias possíveis de entrada na interpretação,
que constituem o grande desafio da exegese tradicional. Só a título
indicativo, o grande desafio de Ricoeur é reconciliar, arbitrar ou
praticar uma mediação entre as partes e o todo, o sujeito e seu ob-
jeto, a doação e a apropriação, o método e a verdade, o signo e a
significação, o distanciamento e o pertencimento, a explicação e a
compreensão, a crítica e a convicção, etc.
Coleção Filosofia- 140 9
11. Daniel Desroches
As fontes de uma via longa entre os existencialistas
Jaspcrs c Mareei
Se Mareei pode ser considerado como o primeiro mestre de
Ricoeur, Jaspers, em compensação, revelou-se como tal durante a
Segunda Guerra. Posto que as obras do historiador encerram as
grandes preocupações de Ricoeur1
, será preciso mostrar aqui em
que a via longa de compreensão no jovem Ricoeur se enraíza isto
é, acha fontes certas, nas teses existenciais de seus mestres. O que
Ricoeur retém, prioritariamente, de Jaspers, é sua doutrina das ci-
fras, ou, antes, a exigência da objetividade exigida pelo empreen-
dimento metafísico. Ora, a teoria das cifras permanece do lado do
objeto e Ricoeur encontrará, em Mareei, os recursos necessários
para ancorar a metafísica no sujeito concreto. Em suma, a contri-
buição de Jaspers aponta para uma Olltologia da via longa, en-
quanto que a de Mareei prefigura, uma via longa do conhecimento
de si, a do sujeito existencial.
A tal leitura das cifras, em Jaspers, parece corresponder
uma leitura das figuras simbólicas do mal em Ricoeur. Em conse-
qüência, é preciso ver como a decifração empreendida por Jaspers
conduz Ricoeur nessa direção. Em Jaspers, a metafísica tende a re-
conciliar a racionalidade da filosofia com a língua do ser, numa di-
alética paradoxal nunca rompida2
. Se se reconhece aqui a conclu-
são da Simbólica do mal, é preciso dizer, além disso, que há mais:
a leitura das cifras é, de certo modo, um círculo formado por três
ciclos que ousaremos aproximar do círculo hermenêutica, citando
um extrato que tiramos do livro sobre Jaspers:
"Toda teoria das cifras consiste em um movimento circular
que parte das cifras originais que são a língua do ser, atra-
vessa as mediações místicas e propriamente filosóficas que
são a língua dos homens, e retoma à presença imediata da
Transcendência nas suas cifras originais" (KJ 287).
1
B. STEVENS, L'apprelltissage des signes. op.cit.. p. 6.
2
Acrescentemos que os conceitos de atestação e de restauração do ser, próprios de
Jaspers (KJ 372) retornam, mais de quarenta anos depois no Si mesmo como w11
outro (345-4 lO) de modo a confirmar esta hipótese.
lO Coleção Filosofia- 140
12. A vida longa da compreen.rclo em E.icoeur
A reflexão é muito importante para esses dois filósofos da
existência3
, mas o lugar que Mareei lhe concede é considerável.
Em Mareei, é pela dialética da reflexão segunda como aproxima-
ção ao sujeito concreto, como ancoragem do cogito na existência4
,
que se perfila um longo desvio. Se, para Mareei, toda metafísica é
reflexão, há contudo dois graus da reflexão: a reflexão primária,
que busca as condições a priori do conhecimento objetivo (é o co-
gito), e a reflexão segunda, que se atém mais aos núcleos das expe-
riências fundadoras:
"[A] reflexão primária se transcende numa refiexüo de se-
gundo grau: perguntamos em que condições foi possível o
exílio e o domínio do st-(jeito despersonalizado (. ..) Tal é.
então, a reflexão segunda, uma recuperaçüo do concreto -
existência plena do mundo. presellça do transcendente -
uma restauração da participaçâo, uma reconstmçüo do
integral nas suas ligações concretas" (KJ 80 - I; cf. tam-
bém MJ 364).
Em outros termos, o que nos orienta para uma via longa,
em Mareei, é sua abordagem indireta do si, quer dizer, o fato de ele
recusar que a subjetividade se ponha como ponto de partida das
metafísicas, como sujeito fundador: (MJ 229).
Mas há mais: estimamos que a idéia de uma passagem da
reflexão abstrata à reflexão concreta é própria do projeto her-
menêutica de Ricoeur. Voltaremos a esse ponto, quando apresen-
tarmos a dialética entre explicar e compreender (talvez a figura
exemplar de via longa?) e virmos em que uma passagem pela abs-
tração, embora indispensável para toda forma de objetivação, é só
um desvio obrigatório em direção à apropriação do sentido. Se a
idéia de redefinir a reflexão é claramente expressa no Ensaio sobre
Freud (EF 54), e que a possibilidade de ancorar a dita ret1exão na
existência igualmente aparece aí (EF 63), é preciso contudo recor-
dar que no artigo importante publicado em 1963, uma correlação
3
Ricoeur escreve: (MJ 350).
4
A influência de Mareei é decisiva em O voluntário e o involuntário: (VI 12).
Coleção Filosofia - 140 11
13. Daniel Desroches
entre a reflexão concreta e a tarefa da apropriação, em hermenêuti-
ca, estava estabelecida. Faremos referência só a um extrato, no
qual, na nossa opinião, a influência da dialética marceliana conduz
o jovem Ricoeur a formular a inspiração de sua dialética futura en-
tre a explicação e a compreensão:
"Se a hermenêutica é uma fase da apropriaçcio do sentido,
uma etapa entre a reflexcio abstrata e a reflexão concreta,
se a hermenêutica é uma retomada do pensamento sobre o
sentido. em suspenso na simbólica, ela só pode reencontrar
o trabalho da antropologia estrutural como um apoio e ncio
como um repelente; só nos apropriamos do que, primeiro,
mantivemos à distância de nós" (Cl 34; L2 352; cf. também
CI 54; L2 374).
Figura 1. O grande desvio da consciência de si pelos sa-
beres históricos
Levantamos, nos escritos do jovem Ricoeur uma primeira
figura de via longa quando este encontra, em 19525
, as questões
relativas à subjetividade em história e à legitimidade da história da
filosofia como prática. Ricoeur opta, maciçamente, pela fórmula6
para qualificar o acabamento da história no ato filosófico, ou então
a tomada de consciência do filósofo em conexão com uma retoma-
da da história em segundo grau. O desvio do sujeito pela história
aparece aqui:
"Todas essas filosofia [reflexivas} estão em busca da ver-
dadeira subjetividade, do verdadeiro ato de consciência. O
que temos que descobrir e redescobrir sem cessar, é que
este itinerário do mim ao eu - que chamaremos de tomada
de consciência - passa por uma certa meditação sobre a
história, e que esse desvio da reflexão pela história é[...} a
maneira filosófica de completar, num leitor, o trabalho do
historiador" (HV 35-36).
5
O artigo de que se trata é: ( 1952), HV 23-44.
6
Cf. HV, 36, 55 e 69.
12 Coleção Filosofia- 140
14. A vida longa da compremsào em Ricoeur
E como a história da filosofia é também uma história da
consciência, eis a primeira incidência de nossa fórmula: o que o
filósofo espera da história, é o advento de um sentido (HV 37).
Ora, segundo Ricoeur, há contudo, duas maneiras de fazer
isso (HV 36). Dito de outro modo, compreender é compreender
pela unidade (HV 49), o que se ocupa disso, na qualidade de histo-
riador só obterá a unidade com a ajuda de dois modelos distintos ela
compreensão histórica7
. Donde os dois tipos de verdades históricas
que prevalecem: a compreensão pela totalidade do sistema ou pela
singularidade, segundo o modelo da adequação da questão à res-
posta.
Mas, vendo as coisas assim, uma busca de compreensão
total em história de filosofia (como em Hegel) exigirá... (HV 69).
E outros termos, a apreensão global de um pensamento exige agora
uma passagem de sua singularidade em direção à totalidade da
consciência histórica na qual se insere. Retomando a palavra de
Platão, Ricoeur acrescenta: (HV 69). É preciso notar, ademais, que
se Hegel é pertinente aqui, não é somente enquanto pensador da
totalidade, mas sobretudo enquanto filósofo da consciência históri-
ca.
Esboçada de modo exploratório, aparece, contudo, no iní-
cio dos anos cinquenta a idéia primitiva de uma reconquista do su-
jeito através dos signos mediadores dos saberes históricos. Se a
idéia de totalidade vai ser abandonada por um pensamento her-
menêutica conseqüente8
, a necessidade de objetivar o conheci-
mento de si foi conservada por Ricoeur. No Conflito das Interpre-
tações (CI 319) e no Ensaio sobre Freud a consciência não é nada
menos que a grande tarefa.
Figura 2. A aposta hermenêutica ou a via longa das fi-
guras simbólicas
No final da Simbólica do Mal somos postos no caminho de
uma via longa em dois momentos, quando Ricoeur emprega a ex-
7
Cf. HV, 36, 64 e 67.
8
Cf. Tempo e Narrativa III: O 1empo narrado. pp. 280-300.
Coleção Filosofia- 140 13
15. Daniel Desroches
pressão (SM 244, 9). Mas que diz Ricoeur, em que ele se aparenta
com uma via longa da compreensão dos símbolos?
Depois de ter elaborado sua própria interpretação dos mitos
que ilustram a entrada em cena do mal, o autor observa que preci-
sa, daí em diante, explorar uma via nova. No termo de sua dupla
abordagem, pela reflexão pura em O lzomem falível e pela lingua-
gem da confissão, na Simbólica do Mal, o fosso é manifesto e a
compreensão do mal permanece selada. O problema do mal per-
siste pois resiste a uma interpretação redutora; ao contrário, remete
a uma hermenêutica que abre a filosofia à plenitude ontológica do
homem. Com efeito, o estudo exegético dos símbolos revela não
somente a condição humana no coração do ser, mas também o
acréscimo de sentido que se desvela por uma hermenêutica do sa-
grado.
Como o filósofo busca compreender sempre mais, é preci-
so que avance numa terceira via; a da interpretação criadora de
sentido, a de uma restauração da linguagem simbólica inspirada no
adágio kantiano. O que esta fórmula significa é que é preciso pros-
seguir do lado da doação dos símbolos, mantendo sempre o empre-
endimento crítico da reflexão filosófica. Quando o jovem pensador
protestante escreve (SM 325) ou então (SM 327), entende que a
crença só é possível, hoje, ligada à interpretação e entrevê isso fa-
zendo uma revivificação da linguagem simbólica pela redação de
uma Poética da liberdade.
Não desejamos debater o destino da Poética que nunca foi
publicada embora em parte elaborada. É preciso, antes, mostrar que
a fonte de uma única via longa da compreensão está bem presente,
principalmente quando Ricoeur precisa como a hermenêutica en-
contra o problema da mediação crítica e da apropriação do simbo-
lismo religioso na imediatez da crença. Logo, é o círculo her-
menêutica de Agostinho, retomado e explicitado por Bultmann,
que Ricoeur escolhe, a fim de abrir a interpretação dos mitos em
direção à hermenêutica propriamente filosófica. O círculo é este.
Dado isso, o desafio ricoeuriano será superar a circularidade da
linguagem em direção ao ser. Em outros termos, é preciso quebrar
14 Coleção Filosofia- 140
16. A vida longa da compremsão em Ricomr
o privilégio concedido à reflexão primária tal como a reflexão se-
gunda, que Mareei propõe (MJ 364):
"O símbolo dá a pe11sar que o cogito está no interior do ser
e não o inverso(...) que o ser que se põe a si mesmo no co-
gito deve ainda descobrir que o aro mesmo pelo qual se se-
para da totalidade [a reflexão} não deixa de participar do
ser que o interpela em cada símbolo" (SM 331 ).
Em suma, dir-se-á que a aposta do hermeneuta não é nada
menos que a via longa de uma compreensão do ser do homem pela
exegese paciente e fiel da linguagem simbólica. Como o célebre
desafio de Pascal, o de Ricoeur é o de por suas convicções à prova
de sua crítica filosófica, como ele próprio admite na última página
da obra (SM 332). Retenhamos, enfim, que entre a crítica her-
menêutica e a apropriação fiel, há um desafio, que deve se trans-
formar pouco a pouco em um longo desvio da compreensão onto-
lógica da linguagem simbólica.
Figura 3. O enxerto do problema hermenêutico na fe-
nomenologia
Em O Conflito das lnterpretaçõel a via longa da compre-
ensão - no sentido próprio - se apresenta como uma reflexão que
aspira à ontologia, por graus. Com efeito, tratava-se, contra Heide-
gger, de sugerir um outro enxerto da hermenêutica na fenomenolo-
gia, posto que Ricoeur duvida que se possa praticar diretamente a
ontologia, a saber retirando-se do círculo hermenêutica. Eis como
Ricoeur entende a de Heidegger:
"A via curta, é a de uma ontologia da compreensão, à ma-
neira de Heidegger. Chamo de 'via curta' tal ontologia da
compreensão porque, rompendo com os debates do método,
ela se refere de uma só vez ao plano de uma ontologia do
ser finito, para encontrar aí o compreender não mais como
9
Cf. o artigo: CI 7-28.
Coleção Filosofia- 140 15
17. Daniel Desroches
um modo de conhecimento, mas como um modo de ser" (Cl
10).
Além do texto em pauta, dois outros artigos10
são particu-
lat·mente esclarecedores a respeito da inversão operada por Heide-
gger, a qual não é somente uma volta ao fundamento, mas igual-
mente a retirada da ontologia do círculo hermenêutica. Eis a répli-
ca que Ricoeur reserva à hermenêutica curta de Heidegger:
"A partir de Heidegger, com efeito, a hermenêutica está
inteiramente e11gajada no movimento de retorno ao fun-
damento que, de uma questão epistemológica concemindo
às condições de possibilidade, conduz à estrutura ontológi-
ca do compreender. Podemos então perguntar se o trajeto
do retomo é possível. É contudo sobre esse trajeto de re-
torno que se poderia atestar e confirmar a a.firrnaçüo de
que as questões de crítica exegética-histórica são questões,
que o círculo hermenêutica, no sentido das exegeses, está
na estmtura da antecipação da compreensão 110 plano on-
tológico fundamental" (TA 363; cf. também TA 94-5).
Percorrer duas etapas sucessivas torna-se, assim, o desvio
requerido por uma retomada da questão ontológica na seqüência da
inversão provocada por Heidegger. Com efeito, a reviravolta de
Heidegger omitiria duas coisas capitais, segundo Ricoeur: primo, a
necessidade de um método de exegese e secundo, a superação da
ontologia em direção à existência, isto é, em direção à compreen-
são de si. Tal é a intenção que preside à via longa da compreensão
ricoeuriana:
"Essas duas objeções contém ao mesmo tempo uma propo-
sição positiva: substituir a via curta da análitica do Dasein
pela via longa empregada pelas análises da linguagem; as-
sim manteremos constantemente contato com as disciplinas
que buscam praticar a interpretação de maneira metódica
e resistiremos à tentação de separar a verdade, própria da
10
Esses dois textos são: (1975) e (1973), artigos que foram reeditados com a pu-
blicação dos segundos Ensaios de hermenêutica (TA) em 1986.
16 Coleção Filosofia- 140
18. A vida lo11ga da compreen.rào et11 Ricomr
reflexão, do método utilizado pelas disciplinas nascidas da .. ·
exegese" (CI 14-5).
Dito isso, Ricoeur se aproximará da ontologia por etapas,
graças a uma hermenêutica da via longa que incluirá as seguintes
mediações: os desvios semântico e reflexivo.
No plano semântico, é preciso, de início, responder ao con-
flito das interpretações rivais encontrado no Ensaio sobre Freud
11
e
isso só é possível unificando o campo da hermenêutica por uma
elucidação do conceito de interpretação próprio a todas as discipli-
nas exegéticas. Depois de ter delimitado o campo hermenêutica do
lado do símbolo, Ricoeur do lado da interpretação projeta o que se
pode ter como uma autêntica interpretação, a dos símbolos:
"Ela começa por uma investigação em extensão das formas
simbólicas e por uma análise compreensiva das estruturas
simbólicas; continua por um confronto entre estilos her-
menêuticas e por uma crítica dos sistemas de interpretação.
(...) Prepara-se, assim, para.exercer sua tarefa mais alta,
que seria uma verdadeira arbitragem entre as pretensões
totalitárias de cada uma das interpretações (. ..) Tal é a
função crítica desta hermenêutica considerada em seu nível
simplesmente semântico" (CI I8-9).
Depois de ter esclarecido o campo semântico da her-
menêutica a partir da noção de símbolo, Ricoeur aborda a proble-
mática da existência como um segundo desvio em direção à onto-
logia. Ora, o desafio desta etapa, para a reflexão, é o de abrir a
hermenêutica à própria possibilidade do conhecimento de si: (CI
20). Esta mediação pela reflexão não reconduz absolutamente à
problemática tradicional do cogito, porque o si, que não tem aqui
mais nada do solipsismo cartesiano, só é recuperado ao termo de
um longo desvio: (CI 21). Em conseqüência, a etapa reflexiva
11
O conflito era o seguinte: "Tomar manifesta a crise da linguagem que faz co1n
que hoje oscilemos entre a desmistificação e a restauraçcio do sentido. tal é a
razcio projimda que motiva a posiçcio inicial de nosso problema/...} uma intro-
dução à psicanálise da cultura devia passar por esse grande desvio" (EF 36).
Coleção Filosofia- 140 17
19. Daniel Desroches
mantém a exigência metódica de uma apropriaçâo do sujeito práti-
co que só um longo desvio pelos signos mediadores pode assegu-
rar. Dito isso, se a reflexão não é mais imediata, como na tradição
moderna, e dado que os mestres da suspeita nos ensinaram que o
lugar do cogito está, desde sempre, preenchido por um falso cogito
(EF 36), é preciso então redefinir a reflexão. Segundo uma fórmula
ontológica que conheceu um certo sucesso, a reflexão de Ricoeur
se desencadeia (CI 21). Em suma, é a compreensão de si pelos sig-
nos que é o segundo desafio desta figura da via longa. enquanto
que a compreensão do ser será acrescida a ela em última instância.
Figura 4. A dialética entre explicar e compreender
Com esta quarta etapa, completamos nossa reconstrução
elementar do projeto hermenêutica de Ricoeur, abordando uma fi-
gura que não poderia ser mais exemplar, a da via longa da compre-
ensão. Como a precedente, trata-se de uma figura paradigmática da
via longa ricoeuriana, dado que coloca a compreensão ao termo de
uma longa mediação, no encontro desta vez com a explicação es-
trutural. Examinaremos a dialética percorrendo suas quatro etapas.
Observaremos, em primeiro lugar, que uma reflexão metodológica
referente às abordagens objetiva da explicação e interpretativa da
compreensão estava prefigurada pelos escritos do jovem Paul Ri-
coem. Introduziremos, em segundo lugar a oposição terminológica;
primeiro, a partir da aporia deixada pela hermenêutica de Wilhelm
Dilthey, depois num debate cerrado com a aplicação da lingüística
às ciências humanas, principalmente com o modelo de análise es-
trutural exposto por Lévi-Strauss. Em terceiro lugar, será o caso de
examinar a tese hermenêutica de Ricoeur; esta tese não tentarú
disjuntar· a explicação e a compreensão mas, antes. ar·ticulá-las uma
à outra, pela elaboração de uma dialética fecunda. Como conclu-
são, exporemos os traços principais que caracterizam o novo con-
ceito de interpretação que se acha enriquecido pela utilização da
dialética proposta pelo autor.
18 Coleção Filosofia- 140
20. A vida longa da compreen.rào em Ricoettr
Histórico de dialética no jovem Ricoeur
O interesse de retornar às obras de juventude, a fim de in-
troduzir a questão da dialética reside na intenção de considerar à
justa medida o projeto de Ricoeur. Eis nossas duas intenções. Es-
timamos que a idéia de articulação metodológica deve ser posta à
luz o mais claramente possível, mesmo se de modo geral Ricoeur é
mais atento ao que opõe a explicação e a compreensão. Estimamos
também que os textos referidos serão muito instrutivos porque se
atêm, respectivamente, à ação, à história e à textualidade; a saber,
justamente às três esferas às quais será ulteriormente aplicada a
dialética (TA 161-211). Dito isto, voltaremos aos extratos que fa-
zem pensar que esse problema já era tratado pelo jovem Ricoeur.
Embora a abordagem metodológica de O voluntário e o in-
voluntário seja, de ponta a ponta, fenomenológica, quer dizer des-
critiva, Ricoeur busca, contudo, marcar a oposição que existe entre
os modelos metodológicos próprios da psicologia da época. Par-se-
á bem de notar que não se trataria aqui de articular, uma à outra, a
explicação e a compreensão, numa teoria da ação, posto que o es-
tudo das esferas da vontade humana conduz a uma incompatibili-
dade irredutível:
"O primeiro princípio que nos guiou na descrição é a opo-
sição metodológica entre a descrição e a explicação. Expli-
car é sempre reconduzir o complexo ao simples. (...) Não
lzá inteligibilidade própria do involuntário. Só é inteligível
a relação entre o voluntário e o involuntário. É por essa
relação que a descrição é compreensão" (1950: VI 8; cf.
também a página 9).
Quatro anos mais tarde, num artigo que foi retomado por
ocasião de História e Verdade, o jovem Ricoeur retornava direta-
mente à oposição metodológica, mas desta vez na qualidade de
historiador da filosofia. Observava então que dois modelos da
compreensão histórica deviam se opor. Com efeito, a interpretação
filosófica inquire sobre a singularidade de uma doutrina, enquanto
Coleção Filosofia - 140 19
21. Daniel Desroches
a sociologia do conhecimento12
busca o conjunto de razões que ex-
plicam as causas de uma filosofia:
"O verdadeiro historiador crê em seu autor e joga até o fim
a carta da coerência; compreender é compreender pela
unidade; a compreensüo opõe, pois, um movimento centrí-
peto de camilthada em direção à intuição central ao movi-
mento centrifugo da explicação pelas fontes" (1954: HV
49-50).
Será, assim, preciso esperar até o Ensaio sobre Freud para
encontrar aí a famosa oposição de Dilthey claramente menciona-
da13. Enfim, é num artigo essencial, publicado em 1963, que a dia-
lética virá à luz na sua primeira forma. Certamente trata-se de um
esboço, posto que Ricoeur o admite de bom grado no momento de
concluir seu artigo: "A articulação dessas duas inteligências põe
lllais problemas que a sua distinçc7o. A questão é muito nova para
que possamos ir além de propósitos explorativos. Perguntaremos
primeiro se a explicação estrutural pode ser separada de toda ex-
plicação hermenêutica?" (CI 58; L2 379). Ademais, é preciso sa-
ber que o estudo já encerra a problemática bem como uma clara
formulação da questão para a qual é preciso encontrar resposta: (Cl
40; L2 359). Sempre a respeito desse assunto, é preciso seguir o
texto, posto que Ricoeur já tinha precisado (de certo modo, respon-
dido) o lugar da análise estrutural em relação à disciplina her-
menêutica. Certamente não se trata de uma dialética, mas as balizas
estão colocadas em bons lugares e será preciso retomar o assunto
desta questão dez anos mais tarde. Veremos adiante que este artigo
introduzia claramente a dialética entre explicar e compreender, que
já estava representada por um único arco hermenêutica entre duas
abordagens do texto. Veja-se a conclusão do estudo preparatório
12
Cf. a nota especial que Ricoeur consagra a esta questão na antologia: HY 60-5.
13
Eis a passagem: '"A distinção entre o motivo (...) e a causa (. .. ) ncio concerne
absolutamente ao grau de generalidade das proposições. É a distinçcio que
Brentano, Dilthey, Husserl tinham em mente, quando opuseram a compreensüo
do psíquico ou do histórico e a explicação da natureza(... )" (1965: EF 355).
20 Coleção Filosofia- 140
22. A IJtda longa da compreensão cttl Rimettr
que já situava a análise estrutural entre uma interpretação superfi-
cial e uma interpretação crítica (CI 63; L2 384).
O novo desafio da dialética: da aporia de Dilthey ao es-
truturalismo
Recordaremos, primeiro, que a forte oposição entre a ex-
plicação, que é o modelo de inteligibilidade própria das ciências da
natureza aplicada às ciências históricas, e a compreensão, caracte-
rística das ciências do espírito, percorre toda a obra de Dilthey.
Com efeito, é assim (TA 83). Tal oposição devia permitir às ciên-
cias do espírito, pelas quais um psiquismo é capaz de se transportar
a uma outra individualidade psicológica, dotarem-se de um método
tão válido quanto o das ciências naturais 14
• O destino aporético
desta dualidade, inspirada pela corrente positivista do século XIX,
é um traço importante da hermenêutica metodológica do último
Dilthey. É preciso recordar a aporia que Dilthey deixou para a teo-
ria de interpretação, posto que é precisamente aqui que se acha en-
raizada a contribuição de Ricoeur à hermenêutica:
"Mas a contrapartida de uma teoria hermenêutica fundada
na psicologia é que a psicologia permanece sua justifica-
ção última. A autonomia do texto só pode ser um fenôme-
no provisório e superficial. É por isso precisamente, que a
questão da objetividade permanece. em Dilthey, wn pro-
blema ao mesmo tempo inelutável e insolúvel. (. .. )a subor-
dinação do problema hermenêutica ao problema propria-
mente psicológico do conhecimento do outro o condenava a
buscar fora do campo próprio da interpretação a fonte de
toda objetivação" (Grifo nosso. TA 85; cf. também TA
145).
14
Esta cientificidade "[r]epousa sobre três argumentos: primeiro, os signos seio
fatos com direito igual aos fatos sobre os quais se edificam as ciências da nalll-
reza; em seguida, esses signos não se dão em estado disperso. mas em encade-
amentos, que dão às objetivações da vida uma forma de sistema; enfim, a indi-
viduação do mundo humano encontrou na jixaçüo pela escrita wn grau superi-
or de objetividade" (L2 452).
Coleção Filosofia- 140 21
23. Daniel Desroches
Ora, com a fecundidade da análise estrutural, tal como
Claude Lévi-Strauss a aplica às sociedades primitivas, a explicação
em ciências humanas não tem mais nada a invejar ao método das
ciências naturais, porque procede unicamente a partir dos recursos
internos que a língua lhe oferece. Mas este método estrutural, que é
muito bem sucedido em resolver problemas de antropologia cultu-
ral, pode ser radicalizar, sem restrição e ter direito de se estender a
todo o campo das ciências humanas, isto é, até a análise de seus
textos? Antes de reconhecer os limites do modelo de análise, é pre-
ciso responder à questão de saber o que é que significa, para ele,
explicar.
Dir-se-á, de modo geral, que a possibilidade de aplicar o
modelo lingüístico às ciências humanas funda-se no paralelismo,
até na homologia (L2 359), que é possível estabelecer entre as uni-
dades constitutivas da língua e as que formam a organização social.
Ora, é justamente a radicalização desta abordagem objetiva e inde-
pendente do observador que interessa a Ricoeur, posto que o es-
truturalismo será ulteriormente aplicado à explicação dos textos.
Eis a hipótese de toda análise estrutural que considera o texto: "ela
consiste em dizer que, sob certas condições, grandes unidades da
linguagem, isto é, as unidades de grau superior à frase, oferecem
organizações comparáveis às das pequenas unidades de linguagem
[...] aquelas que precisamente são da alçada da lingüística" (TA
147). Que tal hipótese seja legítima, Ricoeur não nega, mas sob a
condição, contudo, de que ela admita seus próprios limites episte-
mológicos. Segundo Ricoeur, seus limites são o corolário exato de
uma maneira de abordar a leitura que mantém em suspenso a trans-
cendência do texto:
22
"Podemos fazer um primeiro tipo de leitura do lexto, uma
leitura que atua (...)pela interceptação, pelo lexto, de todas
as relações com um mundo que se possa mostrar e com as
subjetividades que possam dialogar. Essa tran~ferência 110
centro do texto - lugar que é um não-lugar - constitui um
projeto particular quanto ao texto, o de prolongar a sus-
pensão da relação referencial ao mundo e ao sujeito fa -
lante. (...) na base dessa escolha, o texto não tem exteriori-
Coleção Filosofia- 140
24. A 1Jida longa da compremsào em Ricoeur
dade; só tem um dentro; não há perspectiva de transcen-
dência, como teria uma palavra dirigida a alguém a propó-
sito de alguma coisa (... ). A partir daí é possível um com-
portamento explicativo quanto ao texto" (TA 146).
Em conseqüência, (TA 149), Ricoeur será inteiramente
convincente a respeito disso, posto que a hermenêutica procede de
uma maneira diametralmente oposta, optando pelo verdadeiro des-
tino de uma obra: não mais o centro do texto, mas o ato de leitura
pelo qual se produz a efetuação de suas possibilidades semânticas.
A articulação das abordagens metodológicas e o arco
hermenêutico de Ricoeur
Dito isto, Ricoeur tratará de mostrar como, em virtude da
noção de texto e da primazia a ser atribuída ao ato de leitura, hoje
é possível repensar não a oposição entre as duas atitudes metodo-
lógicas, mas, antes, sua mútua correspondência numa dialética fe-
cunda. O problema de fundo com o qual o autor se vê confrontado
não é o de recusar a análise estrutural, mas de pensar, com ela, os
limites de validade de seu próprio empreendimento. Vendo as coi-
sas de modo estrito, o desafio da discussão de Ricoeur com o es-
truturalismo é o de conceber a articulação de duas compreensões
autônomas, à primeira vista, mas complementares, uma idéia ou-
trora apresentada nas suas análises exploratórias 15
. A respeito desse
ponto, Ricoeur se recusava inteiramente a fundar juntas as duas
atitudes em relação ao texto: (CI 57-8; L2 378). Se, como o autor
sugeria desde 1963, a hermenêutica deve criar uma alternativa16
à
15
Cl34; L2 352. Cf. também 54 e 58; L2 374 e 379. Quanto ao Do texto à ação, a
questão da articulação está nas páginas 146 e 154.
16
"Depende, em compensaçüo, de uma filosofia reflexiva, compreender-se a si
mesma como hermenêutica, afim de criar a estrutura de acolhimento para uma
alllropologia estrutural; quanto a isto, é função da hermenêutica fazer coincidir
a compreensüo do outro com a compreensão de si e do ser. A objetividade es-
trutural pode então aparecer como um momento abstrato - e validameme abs-
trato - da apropriaçüo e do reconhecimento pelo qual a reflexão abstrata se
torna reflexão concreta" (L2 374).
Coleção Filosofia- 140 23
25. Daniel Desroches
análise estrutural, não deixa de ser verdade que é sempre o próprio
estatuto e o lugar da objetividade no seio das atividades de com-
preensão que devem ser resolvidos. Ricoeur escreve sobre isso (TA
211 ).
Enfim, a dita hermenêutica será reformulada, mais tarde,
segundo os fins de uma dialética e se apresentará como um único
arco hermenêutica:
"Se, ao contrário, tem-se a análise estrutural como uma
etapa e uma etapa necessária - entre uma interpretação
ingênua e uma interpretação profunda, então parece possí-
vel recolocar a explicação e a compreensão num único
arco hermenêutica e integrar as atitudes opostas da exp/i-
caçüo e da compreensão numa concepção global da leitura
como retomada do sentido" (TA 155; cf. também p. 208).
Os traços do novo conceito de interpretação17
Vimos que há dois modos de abordar o texto e que a cir-
cularidade de um a outro constitui, em suma, o círculo hermenêuti-
ca. Ora, é esse círculo, ou antes o arco sobre o qual a explicação e
a interpretação são apenas momentos complementares de uma
compreensão profunda, que engaja a hermenêutica numa dialética.
É preciso ver em que sentido o conceito de interpretação se acha
enriquecido por esta.
Seguindo Ricoeur, velaremos para corrigir o novo conceito
de interpretação, fazendo-o percorrer este arco hermenêutica, pri-
meiro, e precisamente completando a inteligência do texto por uma
compreensão de si. Ricoeur entende por isso o que se chama, em
hermenêutica, de aplicação, isto é, o fato (TA 152). Evidentemen-
te, pelo fato de tornar próprio aquilo que, de início, era estranho, é
mantida uma luta contra a incompreensão: a apropriação faz-se
sempre na distância e pela distância. Ademais, o ato de leitura é, de
certo modo um acontecimento pelo qual se produz uma efetuação
17
Cf. TA 151-9 e também, para uma retomada paralela das mesmas idéias. o arti-
go. principalmente nas páginas 115-7.
24 Coleção Filosofia- 140
26. A vida longa da compreen.rào f lll Ricoeur
(como numa partitura musical) das potencialidades semânticas do
texto. A efetuação da língua no discurso permite, assim, que o sen-
tido se torne uma significação atual para nós.
Tal conceito de interpretação deve, logo, encontrar o es-
truturalismo. É integrando na passagem a contribuição do processo
de objetivação da análise estrutural que a apropriação se vê des-
psicologizada. O que ressalta, então, é que a interpretação não ten-
tará mais se apropriar da intenção do autor, a qual se mantém como
que retirada, atrás do texto, mas, antes, fazer uma proposição de
mundo, aberta pelo texto à leitura. A interpretação tratará então de
se apropriar do que a mantém perante o texto, ao modo de uma re-
ferência de segundo grau. Em conseqüência, "compreender um
texto, escrevia Ricoeur, é seguir seu movimento do sentido à refe-
rência, do que ele diz àquilo sobre o qual ele fala(. .. ) o papel me-
diador representado pela análise estrutural constitui ao mesmo
tempo a justificação da abordagem objetiva e a ret~ficação da
abordagem subjetiva" (TA 208). O processo de compreensão se
torna uma autêntica via longa; a saber, um arco que coloca a com-
preensão no termo de uma mediação pela análise dos signos. Con-
seqüentemente se (TA 116) é que (TA 152); Ricoeur sustenta então
que toda a problemática da compreensão de si se vê rebatida para o
fim do percurso hermenêutica.
Em resumo, os traços de uma interpretação revista são os
seguintes: 1) a interpretação é uma apropriação na medida mesma
em que a constituição do sentido e do si são contemporâneas; 2) é,
depois, uma luta contra o distanciamento do sentido na distância e
pela distância; mas, principalmente, 3) a interpretação se conclui
na leitura e se concebe, então, como efetuação das potencialidades
semânticas abertas pelo texto; e 4) a apropriação do si é conse-
qüentemente conduzida ao termo do percurso.
*
**
Eis as conclusões da presente investigação. 1) É evidente
que a via longa da compreensão encontrariajontes na teoria das ci-
Coleção Filosofia - 140 25
27. Daniel Desroches
fras de Jaspers e na reflexão segunda de Marcel. 2) Retraçaríamos
no jovem Ricoeur não somente quatro das múltiplas figuras da via
longa, mas também seus três objetos: a ontologia, o sujeito e a
metodologia. 3) Se a história da filosofia existe, é porque o histori-
ador toma consciência de que o si se enraíza numa história da qual
ele opera a retomada segundo uma via longa da compreensão his-
tórica. 4) A aposta hermenêutica, tal como um longo desvio pela
exegese das figuras simbólicas, abre a compreensão do mal à ple-
nitude ontológica do homem. 5) Que as duas primeiras filosofias
conduzam assim a uma terceira que é mais completa, dado que in-
tegra o caminho, considerando a contribuição das precedentes.
Com o enxerto da hermenêutica na fenomenologia reencontramos
no mesmo projeto hermenêutica uma tríplice via longa: primo, a
de um grande desvio em direção à ontologia que se edifica sobre a
base de duas mediações; secundo, a de uma via longa da compre-
ensão metodológica que passa pela clarificação dos conceitos pró-
prios das disciplinas exegéticas; e tertio, a de uma via longa em di-
reção à existência, a saber um desvio da reflexão em direção ao
sujeito concreto, ao modo de uma aprendizagem dos signos que
testemunham seu desejo de ser. E, enfim, 6) A dialética entre ex-
plicar e compreender é uma abordagem que coloca a compreensão
hermenêutica no termo de uma mediação com a análise estrutural.
Ao seu modo, a dialética é dupla; a do conceito metodológico de
interpretação redefinido à luz de uma hermenêutica dos textos, de-
pois a de um si que busca se compreender perante o texto, ao ter-
mo de um arco hermenêutica que necessita da mediação do si com
um outro diverso dele mesmo.
26 Coleção Filosofia- 140
28. RICOEUR, CRÍTICO DO COGITO
Daniel Desroches
(Universidade de Lavai)
Conhece-se bem as duas formulações do cogito de Des-
cartes; a primeira, extraída da quarta parte do Discurso: "penso,
logo existo"'; depois a segunda, extraída da segunda Meditação:
"Ego sum, ego existo"2
• Contudo, o que importa aqui não é buscar
uma diferença epistemológica qualquer entre essas duas formula-
ções. A crítica ricoeuriana do cogito refere-se mais ao princípio
que permite esses enunciados, o princípio famoso do qual Hegel
fará o fundamento da filosofia moderna3
e Husserl a necessidade de
estender o alcance da subjetividade constituinte até sua radicaliza-
ção na fenomenologia transcendental4
. Exporemos adiante em que
Ricoeur critica o privilégio concedido à reflexão a fim de redefinir
o que ela poderá ser para uma hermenêutica conseqüente, que não
colocará mais o sujeito no princípio, mas no termo do percurso fi-
losófico.
Contudo, a crítica do cogito não é nova5
. Com efeito, o
que Ricoeur propõe vai de encontro a outras tentativas similares
feitas por contemporâneos franceses, principalmente as de Fou-
1
Discurso do Método, tomo I, Ed. Alquié, Garnier, 1988, p. 603 (AT, VI, 32).
2
Meditações metajfsicas, ibidem, tomo li, Clássicos Garnier, 1967, p. 415 (AT.
IX, 19).
3
Cf. principalmente Heidegger, "O fim da filosofia e a reviravolta". in Questões
IV, Gallimard, 1976, p. 290.
4
Cf. a princira meditação in Meditações cartesianas, trad. G. Peiffer e E. Levinas,
Vrin, 1966, pp. 6-23.
5
Há muitas, de fato. As mais importantes são, para Ricoeur, as de Nietzsche (SA
22-7) e de Heidegger (cf. Ser e tempo, § 25 e TA 49).
Coleção Filosofia- 140 27
29. Daniel Desroches
cault6
, Levinas7
e Marcel. Este estudo logo se propor a como tare-
fa partir da herança deixada por Gabriel Mareei, com o objetivo de
por em relevo e de explicitar as três principais objeções que Rico-
eur reserva ao sujeito fundador. Para fazer isso, procederemos se-
gundo três etapas, o que nos permitirá, ademais, expor os diferen-
tes registros filosóficos que compõem a argumentação de Ricoeur.
Percorreremos três etapas, três réplicas ao cogito, segundo três re-
gistros distintos: uma etapa existencial, uma etapa epistemológica e
uma outra hermenêutica. Como conclusão, trataremos ele fazer ver
de que modo Ricoeur propõe, ele um lado, uma descentraçüo da
subjetividade e, de outro lado, uma reconquista hermenêutica desta
última.
1. A herança legada por Gabl"iel Mareei e a objeção
existencial
Se a influência deixada por esse primeiro mestre é muito
complexa, resulta claramente contudo que os ataques feitos por
este contra o cogito se dirigem prioritariamente à filosofia idealista,
a saber a intelectualista (MJ 13). Logo, é a primazia da existência
concreta sobre a reflexão especulativa que permanece seu leitmo-
tiv8. Com efeito, as reticências de G. Mareei em relação ao sujeito
fundador são de duas ordens9
. Primeiro ele se insurge contra a de-
sencarnação, posto que o corpo próprio constitui, a seus olhos, um
"indubitável" da experiência (MJ 97-120). Em seguida, não pode-
ria aprovar a pretensão à objetividade que determina a validade ele
todo conhecimento e evacua assim a segurança metafísica absoluta
de uma existência atestada pelo sentir. Isto se resumiria, segundo
6
Cf. História da loucura na idade clássica, Gall imard. 1972, pp. 56-8 e. princi-
palmente As palavras e as coisas, Gallimard, 1966: V, "O cogito e o impensa-
do", pp. 333-9.
7
Uma das críticas de Levinas é reportada na nota 17 deste estudo. na página qua-
torze.
8
Diálogos Paul Ricoeur - Gabriel Mareei, Aubier Montaigne, 1968. p. 39.
9
O retorno a esta herança. que Ricoeur propõe. no artigo em homenagem a seu
mestre: "Reflexão primeira e reflexão segunda em Gabriel Mareei''. é muito si-
gnificativo, quanto a isto. Este artigo foi retomado em L2. pp. 49-67.
28 Coleção Filosofia- 140
30. Ricoettr, critico do cogito
Ricoeur, em "desmantelar as duas faces do maciço cogito-
cogita/um. Do lado do objeto, é preciso reconquistar a primazia
do sentir e, do lado do sujeito, a de encarnação" (L2 53). No en-
saio "Existência e objetividade", Marcel sublinhava esses dois
pontos, invertendo, contudo, a ordem de sua exposição:
"A realidade que o cogito revela é de uma ordem total-
mente diferente da existência, que tentaremos aqui não
tanto estabelecer, mas reconhecer, constatar metafisica-
mente a prioridade absoluta. O cogito nos introduz 11um
sistema de afirmações das quais garallte a validade; guar-
da o umbral do válido(...).
É importante só reconhecer o mais claramente possível que
o existente não poderia, de modo algum, ser tratado como
um objeto incognoscível, isto é, liberto das condições que
definem precisamente um objeto como tal; o existente tem
como caráter essencial ocupar. em relação ao pensamento,
uma posição irredutível à que está implicada no próprio
fato da o~jetividade "10
.
Posto que esses dois pontos (a primazia do sentir e a en-
carnação) foram conservados pelo jovem Ricoeur, gostaríamos de
situar, agora, o projeto concreto que o estudo de um sujeito na
"primeira pessoa", a partir do corpo próprio, significava; porque é
pelo traço concreto de sua análise que o discípulo herda e pretende
superar o mestre (VI 10).
Por ocasião do Voluntário, primeiro tomo da Filosofia da
Vontade, mostrava-se necessário ao jovem Ricoeur apreender um
novo cogito; um cogito encarnado que assumiria o corpo próprio
que o envolve tanto quanto o involuntário que o nutre. Trata-se do
coração da herança legada por Mareei: a análise eidética do sujeito
volitivo devia chegar até os "confins da afetividade mais confusa";
quer dizer, aquém de todo dualismo intelectualista. É a razão de a
obra toda estar possuída por esta augusta ambição: "A tarefa (da
descrição) é, com efeito, a de aceder a uma experiência integral
10
Existência e objetividade. Posição e abordagells do mistério Olltológico. Pa-
raí'tre. 1995, p. 17.
Coleção Filosofia- 140 29
31. Daniel Desroches
do cogito" (VI 12). Em conseqüência, é pois desde a abertura de
Voluntário que a réplica é estruturada. O cogito de Descartes, ex-
plicava Ricoeur, está "ferido por dentro", porque se dá num "dua-
lismo do entendimento", a saber em duas "linhas heterogêneas de
inteligibilidade": uma remete a alma à reflexão, a outra remete o
corpo à geometria (VI 13).
Dado isso, a extensão do cogito ao corpo próprio se mos-
traria como a única saída praticável para uma fenomenologia que
leva em conta o "índice existencial" de Gabriel Mareei. Eis um
texto que dá uma idéia bastante justa da problemática e da objeção
existenciais:
"Como reconquistar. sobre as disjunções do enlendimento,
o sentimento de estar altemalivamente entregue a meu cor-
po e sendo senhor dele, senão por uma conversão do pen-
samento que, se afastando de por à distância de si idéias
claras e distintas, trata de coincidir com uma cer/a prova
da existência que é, em rnim, corporal? (VI 18).
Nesse estágio, importa entrever que a conquista do sujeito
agente prefiguraria não só o projeto dos anos cinquenta, mas talvez
também de toda a obra. Na obra de historiador que ele consagra
aos existencialismos de Mareei e de Jaspers em 1947, Ricoeur já
sabia11
que em sua filosofia a subjetividade não seria um funda-
mento, à maneira do cogito, mas um destino. Encontrando eco em
seu mestre da época, como aliás em Karl Jaspers 12
, Ricoeur fará
sua uma das fórmulas de G. Mareei: "Ser sujeito não é um fato ou
um ponto de partida, mas uma conquista e um objetivo" (MJ 229).
Talvez toda a obra filosófica de Ricoeur encontre neste enunciado
uma direção central, que vai de A Filosofia da vontade a Si-mesmo
11
Poderíamos, sem dúvida, remontar historicamente à influência decisiva que o
professor R. Dalbiez exerceu sobre o jovem Ricoeur. A propósito disso, ver o
ensaio autobiográfico: RF 12-13.
12
Acha-se justamente, segundo Ricoeur, tal "conquista de si'' em Karl Jaspers
(MJ, 85). Donde talvez o caráter programático desta ambição: fazer da subjeti-
vidade antes um termo, que um ponto de partida.
30 Coleção Filosofia- 140
32. Ricoeur, critico do cogito
como um outro13
. Ademais, herdeiro de Mareei, cuja obra é, sem
dúvida, a origem de muitas análises do Voluntário, o problema de
um cogito "radicalmente desancorado ", "desde que o corpo pró-
prio é arrastado no desastre dos corpos", retornará quando anos
mais tarde no Si mesmo como um outro (SA 16).
A descentração da subjetividade em Ricoeur
Propomo-nos a desenvolver, no que segue, a idéia segundo
a qual a descentração da subjetividade, que Ricoeur busca, se opera
em favor da transcendência que lhe conferem os significados pos-
tos à luz pela interpretação textual. Com essa finalidade, procede-
remos em dois tempos: mostrando, primeiramente, que Ricoeur
crítica a epistemologia do cogito fundador e que opera, assim, uma
primeira descentração em relação à subjetividade; segundo, que
essa descentração conduz, em seguida, a uma reapropriação do su-
jeito pela reflexão, a qual não será mais aplicada a si mesma num
solipsismo metódico, mas aos signos mediadores que o objetivi-
zam. Finalmente, pela função hermenêutica do distanciamento, a
questão do texto se volta, assim, para o "mundo" que se desdobra à
leitura, e a compreensão de si se acha no termo do percurso her-
menêutica num ato de leitura que coincide, em última análise, com
uma interpretação de si.
2. A segunda objeção: a crítica da auto-posição
Assim, propomo-nos a examinar o segundo argumento: a
reviravolta pela qual o cogito se põe como primeira verdade na fi-
losofia reflexiva, do mesmo modo que, a título de fundamento úl-
timo no idealismo fenomenológico, conduz a uma aporia. Ou o
cogito é uma verdade filosófica, ou é seu fundamento. A fim de
13
Assim B. Stevens teria razão em afirmar que "Ricoeur propõe uma concepçüo
do s1úeito onde este ll(lO é mais o ponto de partida.fimdanle de uma constituiçüo
do lllundo, 1nas o ponto de chegada de uma lzer111enêutica do si". Cf. A aprendi-
zagem dos signos: Leitura de Paul Ricoeur, Kluwer Academic Publishers, 1991 ,
pp. l e 20.
Coleção Filosofia- 140 31
33. Daniel Desroches
fazer justiça a esta nova objeção, procederemos em dois tempos:
do lado de Descartes, primeiro, em seguida do lado de Husserl.
Primeiro, seguiremos Ricoeur quando ele critica o ponto de partida
radical das filosofias reflexivas; segundo, será posta em questão a
idéia de fundamentação última no idealismo fenomenológico.
1) Evidentemente o jovem Ricoeur se mostrava crítico
desde o Voluntário, principalmente a propósito da auto-posição e
da alienação de um si autonomo por si mesmo (VI 32): "O cogito
tende à auto-posição. O gênio cartesiano consiste em ter levado
às últimas conseqüências esta intuição de um pensamento que cir-
cula sobre si ao se por e que só acolhe em si a efígie de seu corpo
e a efígie do outro. (. .. ) A consciência de si tende a ter primazia
sobre o acolhimento ao outro. Esta é a razão mais profunda da
expulsão do corpo ao reino das coisas" (VI 17). Assim se estende
a crítica do cogito à epistemologia.
Que o cogito se põe como verdade primeira, como um
"ponto de partida radical", merece agora ser explicitado. Em
"Existência e hermenêutica", um artigo publicado primeiro em
1965 e reeditado mais tarde no Conflito das Interpretações, Rico-
eur observava, sem aludir à menor alternativa perigosa, que o co-
gito não poderia mais ter o valor de verdade e de fundamento que
se lhe atribuía outrora. Na página 21, leremos o que consideramos
uma objeção epistemológica:
"O famoso Cogito cartesiano (. ..) é uma verdade tão vã
quanto invencível; não nego que seja uma verdade; é uma
verdade que se põe a si mesma; a esse título, não pode nem
ser verificada, nem deduzida; é, ao mesmo tempo, a posi-
ção de um ser e de um ato; de uma existência e de uma
operação de pensamento (. ..). Mas esta verdade é uma
verdade vã, é como um primeiro passo que não pode ser
seguido por nenhum outro(...)" (CI 21).
Desejamos reformular o argumento, insistindo na alternati-
va perigosa entre verdade e fundamento, tal como a encontramos
em Si mesmo como um outro. Numa palavra, a auto-posição do
cogito é assegurada, como bem viu o historiador M. Guérroult, por
32 Coleção Filosofia- 140
34. Ricoeur, critico do cogito
uma confusão tácita na ordem das razões: há uma inversão da or-
dem do conhecimento em favor da ordem da essência, quando
Descartes, tendo descoberto a primeira verdade, a justifica em se-
guida por sua prova da existência de Deus. Dito de outro modo,
"O cogito seria verdadeiramente absoluto, sob todos os pontos de
vista, se pudesse mostrar que só existe uma ordem, aquela onde ele
é efetivamente primeiro e que a outra ordem, que o faz regressar
ao segundo nível [ordem ontológica], deriva da primeira. Ora,
parece que a Terceira Meditação inverte a ordem, colocando a
certeza do cogito em posição subordinada em relação à veracida-
de divina, a qual é primeira segundo a ordem da 'verdade da coi-
sa"' (SM 19). Assim, o cogito é uma verdade, ou então seu fun-
damento.
À guisa de transição para a crítica do idealismo fenome-
nológico, que nos seja permitido acrescentar que a Simbólica do
Mal não poderia ser exceção a esse propósito crítico, porque já
conteria um protesto contra a própria idéia de fundamentação radi-
cal. Caminhando em direção à hermenêutica filosófica, onde o cír-
culo do mesmo oblitera toda possibilidade de uma verdade primei-
ra, Ricoeur deveria estar atento aos limites de querer fundamentar
tudo, sem qualquer preconceito:
"O começo não é o que encontramos primeiro; é preciso
aceder ao ponto de partida; é preciso conquistá-lo. A
compreensão dos símbolos pode pertencer ao movimento
em direção ao ponto de partida; porque para aceder ao
começo, é preciso primeiro que o pensamento habite a ple-
nitude da linguagem. Conhecemos a rápida fuga para trás
do pensamento em busca da primeira verdade[...]; a ilusão
ncio é buscar o ponto de partida, mas buscá-lo sem pressu-
postos; ncio há filosofia sem pressupostos" (SM 324, ver
também a contingência do lugar SM 305 e EF 55).
2) Abordaremos a segunda janela da crítica epistemológi-
ca, a respeito da fundamentação principal do cogito na fenomeno-
logia, fundamentação que é justamente da ordem da intuição; ela
omite a condição necessária a toda compreensão, posto que o cír-
Coleção Filosofia- 140 33
35. Daniel Desroches
culo hermenêutica exige que todo compreender seja mediatizado
pela linguagem. Diremos, simplesmente, que a auto-fundação vai
contra a finitude ontológica de todo compreender (TA 41). Com
efeito, o ideal de uma fundamentação intuitiva e última seria uma
"mediação total", isto é um significado sem dependência do inter-
prete em relação à situação histórica e lingüística em que está situ-
ado. Daí, à questão: "Em que sentido esse desembocar de toda
compreensão na interpretação se opõe ao projeto de Husserl?", Ri-
coeur responder em Do texto à ação, como se devesse concluir de
novo sua própria Simbólica do Mal:
cogito
"que toda interpretação pãe o intérprete in media res e
nunca no começo ou no fim. Advimos, de algum modo, bem
no meio de uma conversação que já começou (. ..). Ora, o
ideal de uma fundamentação intuitiva é a de wHa inteJpre-
tação que, num certo momento, passaria à visão(...). Ora,
a própria hipótese da hermenêutica é que a interpretação é
um processo aberto, que nenhuma visão conclui" (TA 48-
9). .
3. A crítica hermenêutica do ideal de transparência do
A necessidade de "retomar" o cogito em lugar diverso do
de uma primeira verdade leva a crítica ao segundo ponto. É a ter-
ceira objeção que nos propomos a examinar: o ideal de transparên-
cia do cogito, que tem a pretensão de ser imediato a si mesmo e .
imanente aos objetos de pensamento, deverá ser posto em causa,
em nome do conhecimento de si. Exporemos estas réplicas em du-
as etapas: primeiro em Descartes, depois, em seguida, em Husserl.
A opacidade do sujeito será abordada no sentido de uma filosofia
reflexiva que só considera o primado da subjetividade: se a refle-
xão não é uma intuição, deverá, em compensação, permitir um re-
torno do sujeito a si mesmo. Quanto ao alcance desta objeção no
quadro da fenomenologia, sua conseqüência mais interessante é
não só estabelecer a possibilidade do conhecimento de si por um
34 Coleção Filosofia - 140
36. Ricoe11r, crítico do cogito
enxerto da hermenêutica, mas recusar sobretudo o ideal fenome-
nológico.
1 ) No Ensaio sobre Freud, Ricoeur examina a idéia de
proceder a partir da tradição reflexiva14
, a fim de determinar o lu-
gar de interpretação no conhecimento de si. Põe em relevo então
dois componentes da reflexão: o primeiro, que acabamos de men-
cionar, é a posição do sujeito como ponto de partida radical, tal
como foi desdobrado pela tradição moderna que vai de Descartes a
Fichte; o segundo (que nos interessa, aqui) é a "transformação de
problemática do cogito", que toda filosofia reflexiva que não pre-
tenda soçobrar num idealismo subjetivo deverá compreender. A
resposta à imediatez que caracteriza o cogito já orienta Ricoeur em
direção a uma reconquista do sujeito reflexivo; não como evidência
num solipsismo metódico, mas via uma reapropriação hermenêuti-
ca de sua condição de ser-no-mundo. Um texto do Ensaio sobre
Freud põe à luz a objeção de Ricoeur ao ideal de transparência:
"[A decifração do sujeito} só pode ser entendida quando a
reflexão aparece como um retomo à pretensa evidência da
consciência imediata; é-nos preciso introduzir um segundo
traço da reflexão: reflexão não é intuição, ou, em termos
positivos: a reflexão é o esforço para retomar o Ego do
Ego cogito no espelho de seus objetos, de suas obras e fi-
nalmente de seus atos. (... )A primeira verdade permanece
tão abstrata e vazia, quanto Ílzvencível; é preciso que seja
mediatiz.ada pelas representações, as ações, as obras, os
monumentos que a objetivam" (EF 51).
No plano hermenêutica, esse ceticismo em relação à trans-
parência do cogito permitirá a Ricoeur ir além da descentração da
subjetividade que emprendeu. Nesta ótica, o Ensaio sobre Freud
14
"Porfilosofía reflexiva, entendo de modo amplo o modo de pensar nascido do
cogito cartesiano, através de Kant e de filoso.fi'a pós-kantiana francêsa, pouco
conhecida 110 estrangeiro e da qual Jean Nabert foi, para mim. o pensador mais
marcallfe. Os problemas.filosóficos de wna.filoso.fia reflexiva mais radicais são
os concemellfes à possibilidade da compreensão de si como sujeito das opera-
ções de conhecimemo, de volição(...)" (TA 25).
Coleção Filosofia- 140 35
37. Daniel Desroches
(IF 61) e O Conflito das interpretações põem em cena os dispositi-
vos necessários à realização, não somente de uma descentração do
sujeito, mas propõem também os meios de reconquistar esse últi-
mo. Em conseqüência disso, a reconquista hermenêutica do sujeito
constitui, talvez, a pedra angular da hermenêutica de Ricoeur. No
Ensaio, o autor assinalava a contribuição indispensável das disci-
plinas exegéticas ao quadro de uma crítica das distorções do eu
empírico:
"Mas o cogito não é somente uma verdade tão vã quanto
invencível; é preciso acrescentar ainda que é COIIIO um lu-
gar vazio que desde sempre foi preenchido por um falso
Cogito; com efeito, aprendemos, com todas as disciplinas
exegéticas(...) que a consciência pretensamente imediata é,
primeiro, "consciência falsa"; Mao:, Nietzsclze e Freud
nos ensinaram a desmascarar seus ardís" (EF 22).
2) Consideremos, encerrando a veneziana fenomenológi-
ca, a presente crítica da transparência. A "visada intencional" tal
como a fenomenologia teorizou, já podia prefigurar a perda do ide-
al de transparência do cogito husserliano: porque se a intencionali-
dade, "em seu sentido menos técnico, é o primado da consciência
de alguma coisa sobre a consciência de si" (TA 26), então a apro-
priação do sujeito por si mesmo vê-se indefinidamente empurrada
para o "reino das coisas". Com efeito, Ricoeur atentara judiciosa-
mente para o caráter inacabado da fenomenologia. A propósito do
exercício fenomenológico da constituição, que revela sem cessar as
camadas de significações sempre mais fundamentais para explorar,
e que a Lebenswelt está sempre fora de alcance, Ricoeur deveria
concluir enfim que: ''a fenomenologia, no seu exercício efetivo e
não mais na teorização que implica para si mesmo e para suas
pretensões últimas, já marca o afastamento, mais que a realização
do sonho de tal fundamentação radical na transparência do sujeito
a si mesmo" (TA 26).
36 Coleção Filosofia- 140
38. Ricoelír, critico do cogito
A reapropriação do sujeito pela reflexão
e a hermenêutica dos textos
Por via de conseqüência, o espaço aberto pelo ego medi-
tons de Husserl, o qual não poderia escapar completamente das
distorções do conhecimento empírico de si, deveria ser preenchido
por uma hermenêutica. A fim de não cair diretamente na proble-
mática tradicional do cogito, Ricoeur proporá uma nova concepção
de "reflexão". Esta se tornará, doravante, "a apropriação de nosso
esforço de existir e de nosso desejo de ser através das obras que
testemunham esse esforço e esse desejo" (CI 21). É por isso que
uma hermenêutica conseqüente deve manter a exigência metódica
de uma apropriação do sujeito prático que só um desvio pelos sig-
nos mediadores da objetividade pode assegurar. A propósito de tal
interpretação do sujeito, esta corresponde afinal a um nódulo her-
menêutica, posto que "o cogito só pode ser reapropriado segundo
uma via longa, um desvio pelos signos" (Cl 21). Evidencia-se, de
resto, somente nesse ponto, que Ricoeur permanece bastante pró-
ximo do projeto de Dilthey. Com efeito, é uma espécie ele via lon-
ga da compreensão que Dilthey buscava, como observou Ricoeur
na sua história da hermenêutica (TA 85):
"Para Dilthey, a objetivaçüo começa extremamente cedo,
desde a interpretaçüo de si mesmo. O que sei por mim
mesmo só pode ser atingido através das objetivações de
minha própria vida; o conhecimento de si já é uma inter-
pretaçüo, que não é mais fácil que as dos outros, e até,
provavelmente, mais difícil, porque só compreendo a mim
mesmo pelos sinais que dou de minha própria vida e que
me süo reenviados pelos outros. Todo conhecimento de si é
mediato, através dos signos e obras".
Enfim, concernindo à meditação textual, de que o artigo "a
função hermenêutica do distanciamento" 15
constitui um estudo
exemplar, Ricoeur se mostra ainda mais consciente. Posto que não
15
CF. TA 101-18; mas também. para uma boa síntese, "Hermenêutica e crítica
das ideologias": TA 366-7.
Coleção Filosofia- 140 37
39. Daniel Desroches
seria o caso, aqui, de empreender um resumo deste artigo, nós nos
limitaremos simplesmente a recordar como a problemática do co-
gito se acha renovada por uma hermenêutica atenta à textualidade.
Uma vez reconhecido que o distanciamento, antes de ser
um obstáculo ao ideal de pertencimento ontológico16
já é uma con-
dição própria de toda interpretação, a idéia de explorar a função
textual na hermenêutica se torna mais clara: ela se apóia na auto-
nomia do texto face à intenção do autor, a seu contexto cultural de
produção e a seu destinatário original (TA 366). Por esta tríplice
autonomia, acha-se assim aberta à compreensão hermenêutica uma
objetividade inédita que Dilthey não tinha podido ver, posto que o
objeto da interpretação não será mais a manifestação de uma vida
psíquica por signos, mas o mundo da obra, desdobrado pelo texto.
Notaremos que o conceito de apropriação ou de aplicação
do texto à subjetividade do leitor é que é revisto por uma her-
menêutica do texto. Depois de ter efetuado o distanciamento, "a
apropriação, observa Ricoeur. é exatamente o contrário da con-
temporaneidade e da co-genialidade; é compreensão pela distân-
cia e compreensão à distância" (TA 116). Em seguida, esta apro-
priação subjetiva responde ao "sentido do texto" e não mais ao
autor: "contrariamente à tradição do cogito e à pretensão do su-
jeito de conhecer a si mesmo por intuição imediata, é preciso dizer
que só 1zos compreendemos pelo grande desvio dos signos de !ut-
manidade depositados nas obras de cultura" (ibid.). Enfim, o que
a apropriação reitera, é uma proposta de mundo aberta pelo texto;
"esta não está atrás do texto, como uma intenção oculta estaria,
16
A contribuição de Ricoeur à hermenêutica não se inscreve no mesmo projeto de
Gadamer. A oposição entre distanciamento metodológico e experiência de per-
tencimento é vista por Ricoeur como "uma autonomia porque suscita uma al-
temativa insustelllável; de ll/11 lado. dissemos, o distanciamelllo alienante é a
atitude a partir da qual é possível a objetivação que reina nas ciências do espí-
rito ou ciências humanas: mas este distanciamento, que condici01w o estatlllo
científico das ciências é. ao mesmo tempo, o fracasso que arruina a rela~·clo
fundamellfal e primordial que nos faz pertencer e participar da realidade histó-
rica que pretendemos erigir como objeto. (. ..) ou praticamos a atitude metodo-
lógica, mas perdemos a densidade ontológica da realidade estudada, ou prati-
camos a Mitude de busca da verdade, mas ente/o devemos renunciar à o~jetivi
dcu/e das ciências humanas" (TA 101).
38 Coleção Fi losofia- 140
40. Ricoeurj critico do cogito
mas diante dele, como o que a obra desdobra, descobre, revela.
Logo, compreender, é se compreender perante o texto" (lbid.). Ri-
coeur conclui que a mediação pelo texto e a inversão da problemá-
tica comporta um reverso inegável para o cogito...
"A conseqüência mais importante é que é posto definitiva-
mente ponto.final no ideal cartesiano, fichteano, e, de outro
lado também. husserliano, de uma transparência do sujeito
a si mesmo. O desvio pelos signos e os símbolos é ao mes-
mo tempo amplificado por esta mediação pelos textos que
se desligam da condição intersubjetiva do diálogo" (TA
31).
Em conseqüência disso, aliás de acordo com Levinas 17
, a
reflexão de Ricoeur permanecerá muito crítica face a todo idealis-
mo, ou a todo "consensualismo" que eleve o sujeito racional ou re-
flexivo a senhor do significado18
.
Ora, qual é o lugar da crítica do cogito na hermenêutica de
Ricoeur?
Poder-se-ia concluir este estudo resumindo a idéia segundo
a qual a descentração da subjetividade, que Ricoeur busca, se opera
em favor da transcendência que confere os significados postos à
luz pela interpretação textual. Seria então apropriado considerar
dois movimentos de pensamento: primeiro, que Ricoeur critica ra-
dicalmente o cogito com suas objeções existencial e epistemológi-
17
Cf. uma crítica levinasiana do cogito: "É sem dtívida esse saber implícito [viver
ao modo do J>erj que justifica o amplo emprego que Descartesfm:. do termo co-
gito nas Meditações. E esse verbo 1w primeira pessoa diz bem a unidade do eu,
onde todo saber se basta". Levinas não se estende provavelmente nesse senti-
do, interrogando assim: "O sentido é sempre correlativo a uma tematizaçüo e a
uma representaçüo? O pensamento está inteiramente votado à adequaçüo e à
verdade? O pellSamellfo é, por essência, relaçüo com o que lhe é igual, isto é.
essencialmente ateu'!" "A consciência não intencional'' in Cahier de l'Herne.
l'Herne, 1991, pp. 77-9.
18
Cf. a réplica dada a Ch. Bouchindhomme, in "Tempo e narrativa" de Paul Ri-
coeur em debate, Cerf, 1990. pp. 211-2. Ricoeur distingue, dentre outros temas.
"a lzybris que leva nosso pensamento a se colocar como senhor do sentido" em
Tempo e Narrativa fll, p. 375 e também 391-2.
Coleção Filosofia - 140 39
41. Daniel Desroches
ca; e que opera isto fazendo uma primeira descentração em relação
à subjetividade fundadora; segundo, que essa descentração conduz,
em seguida, pela crítica hermenêutica da transparência presumida,
a uma reapropriação do sujeito pela reflexão, a qual não será mais
aplicada a si mesma num solipsismo monológico, mas, antes, aos
diferentes signos mediadores de objetividade, isto é os signos que a
superam em direção a um mundo habitável, o mundo do texto, ou o
mundo do leitor. Quanto a este longo novelo hermenêutica, cujo
objetivo é reconquistar o sujeito prático e ancorar o cogito na
existência, foi iniciado durante os anos cinquenta e depois prosse-
guiu até Si mesmo como um outro.
Talvez seja aqui, aliás, por essa descentração crítica e esta
reconquista hermenêutica do sujeito que se teça o fio vermelho de
toda a hermenêutica de Ricoeur?
SIGLAS
KJ Karl Jaspers et la philosophie de l'existence, Seuil, Paris,
1947.
MJ Gabriel Mareei et Karl Jaspers: Philosophie du mystere et
·philosophie du paradoxe, Temps Présent, Paris, 1947.
HV Histoire et Vérité, Seuil, Paris, 1955 (Citamos a reedição
de 1964).
VI Philosophie de la volonté I. Le volontaire et l'involontaire,
Aubier. Paris, 1950.
HF Philosophie de la volonté. tomo li. Finitude et culpabilité:
I L'hommefailible. Aubier, Paris, 1960.
SM Philosophie de la volonté. tomo li. Finitude et culpabilité:
2. La Symbolique du mal, Aubier, Paris, 1960.
EF De l'interprétation. Essai sur Freud, Seuil, Paris, 1965.
CI Le conjlit des interprétations. Essais d'herméneutique,
Seuil, Paris, 1969.
TA Du texte à l'action. Essais d'herméneutique, Il, Seuil, Pa-
ris, 1986.
SA Soi-même comme un autre, Seuil, Paris, 1992.
L2 Lectures 2. La contrée des philosophes, Seuil, Paris, 1992.
40 Coleção Filosofia- 140
42. Ricoeur, crítico do cogito
RF Réjlexion faite. Autobiographie intellectuelle, Esprit, Paris,
1995.
CC La critique et la conviction, entretien avec F. Azouvi e M.-
B de Launay, Calmann-Lévy, Paris, 1995.
Coleção Filosofia- 140 41
43.
44. A ONTOLOGIA HERMENÊUTICA
DE PAUL RICOEUR
Constança Marcondes Cesar
(PUC-Campinas)
Pode-se assinalar três sentidos da palavra hermenêutica na
obra de Ricoeur: a hermenêutica dos símbolos, a hermenêutica do
texto, a hermenêutica da ação (R~flexion faite, p. 61). Esses três
sentidos da palavra indicam três etapas do pensamento do filósofo:
a do primeiro Ricoeur, cujo ponto de partida é a meditação feno-
menológica e cujo eixo da inquietação reflexiva é o questiona-
mento a respeito do voluntário e do involuntário, a meditação sobre
as questões metafísicas sobre a verdade e a liberdade, a descrição
da condição humana. É no horizonte desta meditação, que se de-
senrola entre I947 (Gabriel Mareei e Karl Jaspers) e I965 (De l'
interprétation), que Ricoeur desenvolve a hermenêutica como deci-
fração do desejo de ser e como compreensão da eidética da vontade
humana. Pode-se dizer que, nesse primeiro momento da obra do
filósofo, o segundo volume da Philosophie de la volonté: la S}l/11-
bolique du mal, rep~esenta um papel muito importante. É n~sta
obra que Ricoeur examina a condição humana, tomando como
ponto de partida o estudo da mítica da má vontade, os müos da
queda e do exílio, enfocados como descrição da finitude do ho-
mem. Esta onto-antropologia desvela a dualidade finito I infinito, a
dualidade do voluntário e do involuntário, e mostra a possibilidade
da transcendência, inscrita no próprio coração da existência huma-
na. La symbolique du mal propõe pois uma ontologia da finitude e
do mal, onde os símbolos são encarados como conceitos existenci-
ais , como meios de eaminar a condição humana e de levar o ho-
Coleção Filosofia - 140 43
45. Constança Marcondes Ccsar
mem à libertação. A meditação filosófica que se ocupa,dos símbo-
los faz da hermenêutica uma crítica da existência, uma reflexão
que conduz o home da alienação à superação do mêdo e da angús-
tia, à descoberta do sentido da vida. Esta hermenêutica desvela as
três dimensões do símbolo: a dimensão cósmica, a dimensão oníri-
ca e a dimensão poética, para buscar aí um meio de aproximação
ao mistério da existência, ao mistério do ser.
A hermenêutica dos símbolos trata de reencontrar o núcleo
de toda hermenêutica: a arquitetura do sentido, a linguagem de du-
plo sentido, cujo papel é desvelar/velar. A hermenêutica assim
concebida se inscreve no grande debate filosófico que, desde
Schleiermacher e Dilthey, Heidegger e Gaclamer, fez ela her-
menêutica a questão mais importante ele uma ontologia da compre-
ensão: compreender é o projeto elo Dasein; a verdade não é mais
questão de método (Dilthey), mas de desvelamento do Ser, por um
ser cuja essência é a existência, entendida como tarefa de decifra-
ção do Ser. O campo da hermenêutica é o campo dos símbolos,
onde um sentido direto assinala um outro sentido, indireto, mais
rico, figurado. Interpretar é a decifração do sentido velado no sen-
tido manifesto, é por à luz a pluralidade de sentidos, a polissemia
das palavras.
La symbolique du mal põe em relêvo o laço entre o homem
e o sagrado: é nesse livro que o filósofo enfocao problema do mal
e a busca da superação da crise da existência humana; essa supera-
ção é vista como a recuperação da plenitude ontológica do homem.
"O símbolo dá a pensar", diz Ricoeur: a linguagem simbólica
mostra a problemática contemporânea --- de um lado, a perda ela
dimensão mítica: o espaço e o tempo do mito não são mais recupe-
ráveis, porque nosso mundo vive uma radical demitização; de outro
lado, pode-se tentar reconquistar a dimensão mítica, uma desmito-
logização, reconhecendo o poder de desvelamento do ser que os
mitos possuem.
A universalidade do homem, sua história essencial e o
enigma de sua existência são retomados: os mitos dizem a discor-
dância entre o ser do homem e sua existência, desvelam a condição
humana. O exame dos mitos que falam da dor e da finitude huma-
44 Coleção Filosofia- 140
46. A ontologia benmnê11tica de Pa11/ Ricoeur
mas levou Ricoeur a estabelecer uma tipologia dos mitos: o drama
da criação, judaico-cristão; o mito da alma exilada (orfismo, plato-
nismo) ; o mito trágico, o mito da queda.
A hermenêutica dos símbolos trata de pensar a partir dos
símbolos o laço entre o homem e o sagrado; busca, nos mitos, indi-
cações para estabelecer uma ontologia da finitude: "É pois final-
mente como índice da situação do homem no coração do ser no
qual se move, existe e quer, que o símbolo nos fala (...) Todos os
símbolos da culpa (...) todos os mitos (...) dizem a situação do ser
do homem no ser do mundo ..." (La symbolique du mal ,p. 331).
A meditação hermenêutica do filósofo estabelece, ao nível
metodológico, três procedimentos: primeiro, uma investigação e
uma análise, as mais amplas possíveis, das formas simbólicas; em
seguida, o estabelecimento de uma criteriologia, que exponha a es-
trutura das formas linguísticas aparentadas, tais como a metáfora e
a alegoria, constitutivas da linguagem de duplo sentido; faz, de-
pois, a comparação entre estilos hermenêuticas e a crítica dos sis-
temas de interpretação. Sua hermenêutica, ao nível da reflexão .fi-
losófica, mostra que a compreensão dos símbolos é, para o homem,
um momento da compreensão de si mesmo; ao nível da existência,
faz nascer uma nova imagem do homem e desencadeia uma super-
ação da modernidade.
Esta reflexão sobre o homem tem primeiro uma ancoragem
na meditação sobre o mal e o sagrado; num segundo momento, a
compreensão do homem apóia-se na contribuição da psicanálise.
De l' interprétation (1965) é a obra que marca o fim da primeira
etapa do pensamento de Ricoeur, onde a hermenêutica é considera-
da "como interpretação amplificadora das expressões simbólicas
(...)"(Réflexion faite, p. 59). Trata-se de compreender o que quer
dizer interpretar, para a psicanálise; de mostrar a nova compreen-
são do homem que decorre da interpretação freudiana; de com·de-
nar a interpretação freudiana a outras interpretações.
As fontes desta meditação são os escritos de Freud, Ni-
etzsche e Marx, que têm em comum o exercício da dúvida ares-
peito da consciência imediata de si; são "mestres da suspeita", pen-
sadores que recusaram as certezas da consciência imediata e que
Coleção Filosofia- 140 45
47. Constança Marcondes Cesar
assinalaram a possibilidade da ilusão a respeito de si mesmo. A
crítica da modernidade (Descartes, Kant), desencadeada pelo ques-
tionamento dessas certezas, sublinhou a importância do sonho, da
decifração da linguagem onírica, para a compreensão do homem.
Os problemas filosóficos implicados são a discussão do estatuto
epistemológico da psicanálise e a descoberta da crise da noção de
consciência. Trata-se de reconhecer que a consciência não está na
origem de nossa existência, mas que ela é uma tarefa; trata-se de
descobrir o sentido do inconsciente para um ser que tem a consci-
ência como tarefa, como objetivo de vida; trata-se de compreender
o que quer dizer essa tarefa, para um ser ligado ao inconsciente.
Trata-se, ademais, para esta hermenêutica, de compreender
que nova concepção da verdade foi desencadeada pela invenção
desta arte de interpretar, que afirma: que toda compreensão é her-
menêutica; que buscar o sentido é decifrar uma linguagem; que é
preciso superar o conflito das interpretações, a fim de que o ho-
mem possa chegar a se compreender.
Le conflit des intoprétations (1969), é um resumo desta
primeira etapa do pensamento de Ricoeur, e um anúncio de suas
investigações ulteriores. Podemos encontrar nessa obra uma apre-
sentação da exegese dos símbolos que tem como ponto de partida o
estabelecimento de relações entre as contribuições da fenomenolo-
gia da religião, da psicanálise e da linguística, para a análise dos
mitos, dos sonhos e da poesia, utilisando a linguagem de duplo
sentido como instrumento de conhecimento do homem e a proposi-
ção de valores ontológicos (ser si mesmo), como objetivo da vida.
Nessa obra encontramos também a delimitação do campo
da hermenêutica: a meditação sobre a linguagem, a busca do nú-
cleo semântico de toda hermenêutica, cujo elemento comum é a
busca de uma arquitetura do sentido e a reflexão sobre a linguagem
.simbólica, c~1jo papel é o desvelamento de um significado profundo
sob o significado imediato, nas expressões de duplo sentido.
A segunda etapa do pensamento de Ricoeur é caracteriza-
da pelo trabalho hermenêutica a respeito de textos. Este segundo
período da obra do filósofo se desenrola entre 1975 (La métaphore
vive) e 1985 (Temps et récit I, 11, 1/1).
46 Coleção Filosofia- 140
48. A ontologia hermenelttica de Paul Ricoem·
O pensador francês, em La métaphore vive examina a retó-
rica aristotélica, cuja finalidade é "a ' persuasão' no discurso oral e
a mimesis das ações humanas na poesia trágica" (p. 7). Ricoeur
trata de mostrar, aí, "a função heurística do discurso poético" (id.).
A nova problemática hermenêutica que ele descobre decorre da
perspectiva que adotou: a de pensar a metáfora como uma "estraté-
gia do discurso que, preservando e desenvolvendo o poder criador
da linguagem, preserva e desenvolve o poder heurístico desdobra-
do pela ficção" (id.,p. 10). O que interessa a nosso filósofo é pois o
valor de verdade "do enunciado metafórico, enquanto poder de '
redescrever' a realidade" (La métaphore vive, p. 10). Ricoeur mos-
tra que Aristóteles põe em relação mimesis e mythos na poiesis trá-
gica, dado que a "a poesia ... é uma imitação das ações humanas ;
(...) esta mimesis passa pela criação de uma fábula, de uma intriga
..." (p. 308); e ademais, "a tragédia só atinge seu efeito de mimesis
pela invenção do mythos, o mythos está a serviço da mimesis (...)
(id.). A tragédia, na perspectiva de Aristóteles, diz Ricoeur "ensina
a ' ver ' a vida humana 'como' aquilo que o mythos ·exibe" (id.). A
obra de Aristóteles evidencia, então, que no discurso poético "in-
ventar e descobrir (...) criar e revelar coincidem" (p. 310). Esse
discurso desvela uma certa verdade, a verdade metafórica: a metá-
fora "despoja o discurso de sua função de descrição direta", para
"aceder ao nível mítico, onde sua função de descoberta é liberada"
(p. 311).
A mimesis não é apenas uma cópia da realidade: é ação
criadora. Mimesis e mythos têm como finalidade a refiguração da
ação humana; acedem, assim, a uma promoção de ser, põem em
relêvo a dimensão qualitativa do.homem e o valor de verdade do
imaginário, bem como o poder de desvelamento ontológico da poe-
Sia.
O mito, ao nível do poema, a metáfora, ao nível da lingua-
gem, têm uma função ontológica e hermenêutica: são instrumentos
para o homem decifrar a condição humana, descobrir valores, esta-
belecer critérios éticos para avaliar as ações (i,d., p. 58 e segs.).
Esta meditação sobre a linguagem desemboca numa onto-
logia e numa epistemologia, na obra monumental Temps et récit.
Coleção Filosofia- 140 47
49. Constança Marcondes Cesar
Nosso filósofo, no primeiro volume desta obra, examina "o círculo
entre narrativa e temporalidade" (p. 19 e segs.) e os problemas
epistemológicos que a reflexão sobre a história e a narrativa pôs
em evidência no pensamento contemporâneo (p. 137 e segs.). As
aporias da meditação sobre o tempo em Santo Agostinho, a dor da
condição humana e o contraste entre o tempo mortal do homem e
seu desejo de eternidade, são estudados aí. O exame da Poética de
Aristóteles permite a Ricoeur retomar o par mimesis-mythos, já
estudado em La métaphore vive, a fim de mostrar "o caráter tempo-
ral da experiência humana (....)" e que "o tempo torna-se humano
na medida em que é articulado de maneira narrativa; em troca, a
narrativa é significativa na medida em que desenha os traços da
experiência temporal" (Temps et récit I , p. 17). Trata-se de com-
preeder a relação entre tempo e narrativa, explorando três momen-
tos da mimesis: no primeiro, Ricoeur estuda a pré-compreensão do
mundo da ação, de suas estruturas, de sua temporalidade; no se-
gundo, examina os campos da ficção, da história, da configuração
narrativa do tempo. Considera a diferença entre narrativa de ficção
e narrativa histórica, bem como seu ponto de convergência: a tes-
situra da intriga, que torna possível "uma síntese do heterogêneo"
(id.,p. 103). A mimesis, ademais, "marca a intersecção do mundo
do texto e do mundo do ouvinte ou do leitor. A intersecção, pois,
do mundo refigurado pelo poema e do mundo no qual a ação efeti-
va se desdobra e desdobra sua temporalidade específica" (id., p.
109). Para nosso pensador, seguir "o destino do tempo préfigurado
a um tempo refigurado, pela mediação de um tempo configurado"
(id., p. 87) , é uma das tarefas de sua filosofia hermenêutica. Pode-
se dizer que, para esta filosofia, muitos desafios, muitos paradoxos
se apresentam: o paradoxo do ser-para-a-morte, atravessado pela
sêde de eternidade; as dificuldades, as aporias que se referem ao
estatuto das ciências humanas, tais como a historiografia e a nar-
ratologia contemporâneas; a dificuldade "de pensar juntos o tempo
mortal da fenomenologia e o tempo público das ciências da narra-
ção" (id., p. 129); o problema da verdade e da arte, que se opõem à
fugacidade das coisas; o desafio de pensar juntas "a eternidade e a
morte" (id.).
48 Coleção Filosofia- 140
50. A ontologia hermenêutica de Paul Ricoeur
As relações entre o romance moderno e o mito trágico, en-
tre a arte e a verdade, são postos em relêvo em Temps et récit. Ri-
coeur estabelece uma complexificação dos conceitos de intriga e
de tempo narrativo, e mostra que o sentido do tempo vivido é sem-
pre o resultado de uma interpretação, não é nunca um dado imedi-
ato (Temps et récit Ill, p. 119). Buscar o sentido da vida humana é
sempre interpretar, é sempre hierarquizar os diferentes níveis da
experiência, tanto no campo da história quanto no campo da ficção.
Ricoeur mostra (Temps et récit 11), através do exame do
problema do tempo em Proust (Á la recherche ...), em Thomas
Mann (La montagne magique) e em Virgínia Woolf (Mrs.
Dalloway), o poder da "narrativa de ficção de descobrir e de
transformar o mundo efetivo da ação"(id., p. 234).
O horror da condição humana, a experiência da finitude e
da dor, "a experiência da mortal discordância entre o tempo íntimo
e o tempo monumental" (id., pp. 161-162), entre o tempo mortal e
a eternidade, são considerados no texto. O exame desse contraste,
bem como o da melancolia da condição humana, atravessam a obra
de Ricoeur; a ficção e a história, a poesia e os mitos, são alguns dos
meios que o homem encontrou para superar a dor de viver, através
da criação artística e científica. A arte, "exaltação do extra-
temporal" (id., p. 217), permite "a decifração dos signos" (id.,p.
223), a descoberta do sentido da existência e de uma orientação, no
espaço do mundo.
O que Ricoeur trata de mostrar, o que constitui a maior e
mais original contribuição de sua meditação sobre o tempo, é ter
assinalado que o "problema da refiguração do tempo pela narrativa
só será levado a termo quando estivermos em condições de entre-
cruzar as perspectivas referenciais respectivas da narrativa históri-
ca e da narrativa de hermenêutica" (id.,p. 234); toda narrativa im-
plica uma arte de interpretar, uma arte de chegar a uma síntese do
heterogêneo mediante um mythos; apluralidade adquire, assim, um
significado.
A meditação de Ricoeur tem como eixo uma hipótese cen-
tral: "o trabalho de pensamento em obra em toda configuração
narrativa termina numa refiguração da experiência temporal (...)"
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51. Constança Marcondes Cesar
(Temps et récit II/,p. 9). Trata-se, pois, de mostrar como a poética
da narrativa pode conduzir à solução da aporia entre o tempo cos-
mológico (Aristóteles) e o tempo psicológico (Santo Agostinho),
entre o tempo do mundo e o tempo da alma, mediante o exame das
obras de Hegel, Kant, Husserl, Heidegger; trata-se de fazer ver
como a poética da nanativa pode assegurar "a reinscrição do tem-
po vivido no tempo cósmico" (id., p. 147). Trata-se de evidenciar a
"relação de complementaridade entre a história e a ficção, tomando
como pedra angular o problema clássico da relação da narrativa,
tanto histórica quanto fictícia, à realidade" (id., p. 148).
A hipótese de Ricoeur é que a temporalidade humana não
pode ser dita diretamente; "requer a mediação do discurso indireto
da nanação" (id.,p. 349). Se a questão epistemológica que se pro-
põe aqui é a da "configuração do tempo pela narrativa" (id., p.
340), a questão ontológica é a da "refiguração do tempo pela nar-
rativa" (id.). A ontologia hermenêutica de Ricoeur, meditando so-
bre o tempo, acha-se frente às aporias da temporalidade: a da iden-
tidade narrativa, dado que a vida do homem é "uma trama de his-
tórias narradas" (p. 356) e que o "si do conhecimento de si é o
fruto de uma vida examinada (...), depurada, clarificada pelos
efeitos catárticos das narrativas tanto históricas quanto fictícias,
veiculadas por nossa cultura" (id.). A outra aporia é a da totaliza-
ção do tempo, em virtude do perpétuo fluxo dos acontecimentos; o
filósofo constata que "não existe intriga de todas as intrigas, capaz
de se igualar à idéia de humanidade una e de história una" (id., p.
372). A terceira aporia da temporalidade implica a constatação da
inescrutabilidade e do mistério do fluxo inesgotável, e da perenida-
de do tempo fundamental, radicalmente oposto ao tempo humano;
este é submetido à destruição e à morte: "É (...) sob o modo da
queixa(...) (id., p. 379) que o homem descobre o além do tempo. A
poética do tempo, examinada por Ricoeur através de sua expressão
em obras-primas da literatura contemporânea: Mrs. Dalloway. La
montagne magique, La recherche ...proustiana, responde às aporias
do tempo e desvela a relação do tempo com seu outro, a eternidade.
Esta poética oferece ao homem a experiência supra-temporal da
beleza.
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52. A ontologia IJermenêlttica de Paul Rimet1r
A segunda etapa do pensamento de nosso filósofo mostra-o
liberto de "sua" própria concepção inicial da hermenêutica como
interpretação amplificadora das expressões simbólicas: formula a
idéia de uma compreensão de si mediatizada pelos signos, os sím-
bolos e os textos(...) (Réflexionfaite, p. 59). Ele compreende que a
hermenêutica "não pode mais se definir simlesmente pela inter-
pretação dos símbolos (...)" (id.), e leva em consideração "a defini-
ção mais técnica da hermenêutica pela interpretação textual (...)"
(id.). A refiguração da vida pela narrativa parecia-lhe, antes, cons-
tituir uma ativa reorganização de nosso ser-no-mundo, conduzida
pelo leitor; ele próprio convidado, segundo a palavra de Proust, "a
se tornar leitor de si mesmo" (id.,p.74).
O terceiro sentido da hermenêutica, segundo Ricoeur, é o
da hermenêutica da ação. Nosso autor estuda o caráter linguageiro
da experiência humana; em seguida, analisa a relação entre a nar-
rativa histórica e a narrativa de ficção, cujo ponto de convergência
é o mythos entendido como intriga, tessitura de ações e desvela-
menta da condição humana. O homem se compreende pela narra-
tiva, pela narração de suas experiências, porque apreende, assim,
os acontecimentos como uma totalidade significativa. Mas é consi-
derando a própria ação do homem como um texto que se pode ler e
decifrar, que Ricoeur amplia sua meditação, para definir uma on-
tologia do agir humano e estabelecer laços estreitos entre a ontolo-
gia, a ética e a política.
Esta meditação é precedida por um exame da noção de su-
jeito e por uma crítica do "Cogito cartesiano e kantiano, enquanto
instância fundadora do verdadeiro. Esta crítica (...) tinha sido pro-
gressivamente estendida, por ocasião das investigações [de Rico-
em] sobre a narrativa, ao primado da primeira pessoa gramatical e
do eu psicológico na operação reflexiva: a nanativa não era fre-
quentemente(...) uma meditação na primeira pessoa, uma autobio-
grafia ?" (Réflexion faite, p. 75). Esta investigação foi feita em três
direções: a que o levou a distinguir entre o eu imediato e o si refle-
xivo, a que o conduziu a distinguir entre a identidade-mesmidade e
a identidade-ipseidade, entre selbig e sebst, same e self, a terceira
"concernia ao componente de passividade (...) que a identidade-
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53. Constança Marcondes Cesar
ipseidade devia assumir em contrapartida da orgulhosa iniciativa
que era a marca distintiva de um sujeito falante, agente e narrando
a si próprio" (id., p.77). A idéia de alteridade foi ampliada, para si-
gnificar o corpo próprio, "o outro enquanto outrem" (id.), e o outro
dentro de nós mesmos, a consciência moral.
É nos livros Du texte á l' action (1986) e Soi-même comme
un autre (1990), que nosso filósofo desenvolve a tese: o texto é
considerado como paradigma da ação ; trata-se de mostrar que "os
discursos são, eles próprios, ações" (Du texte á l' action, p.8); trata-
se de mostrar o laço profundo, complexo, entre a ação e a palavra,
e o papel da imaginação na 'configuração' do texto e (...) refigura-
ção da ação (id.). Ricoeur encara "a ação sensata (...) como um
texto" (id.,p.183), isto é, para ele, a ação projeta um mundo, ela "se
dirige (,,) a uma série indefinida de ' leitores' possíveis" (id.,p.
197), "está aberta a quem quer que saiba ler" (id.), desencadeia
"uma espécie de objetivação semelhante à fixação operada pela es-
crita" (id.,p. 191).
Ricoeur propõe as grandes linhas de uma teoria geral da
imaginação, mostrando "a força heurística da ficção" (id.p. 220),
para redescrever a realidade. Afirma claramente: "não há ação sem
imaginação (id., p. 224), isto é, ensaiamos no imaginátio nossas
possibilidades de ser. A ideologia e a utopia são as expressões
maiores do imaginário: redescrevendo o mundo fazem de todo ho-
mem nosso semelhante e permitem esclarecer a dimensão profunda
do agir humano.
A ontologia hermenêutica de nosso filósofo considera "o
agir humano como um modo de ser fundamental" (Soi-mêrne com-
me un autre, p. 32). O problema que se põe a esta ontologia é o se-
guinte: "de que maneira o comoponente narrativo da compreensão
de si pede como complemento as determinações éticas próprias de
seu agente ?" (id.,p.93). O conceito-chave que Ricoeur desenvolve,
para responder a esta questão, é o de identidade narrativa. O estu-
do da linguagem, da ação e da narração permite a nosso filósofo
mostrar que "o si narrador e narrado [desempenha] o papel de um
mediador entre teoria da ação e teoria moral" (Réjlexion faite, p.
81). O filósofo trata de estabelecer uma transição, "pelo estrato éti-
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54. A ontologia !JerlJJme!ttica de Pa11! Ricoeur
co-moral (...) entre a hermenêutica do si (...) e a ontologia ..." (id.).
O elo entre metafísica e moral é a ação (id., p. 91). As fontes desta
metafísica são: Platão, com sua meditação sobre o tema do outro;
Aristóteles, em virtude da sua análise da polissemia da noção de
ser e do exame do par energeia-dynamis; Brunschvicg e Ravaisson,
que fundaram a Revue de métaphysique et de mora/e e refletiram a
respeito desse assunto.
A hermenêutica da ação implica, primeiro, o desdobra-
mento da problemática do si nos diversos níveis de acepção do
verbo agir (id.,p.94: "falar, fazer, narrar, imputar" (id., p. 97).
Trata-se de examinar a dialética do mesmo e do outro, fora
do indivíduo e no seu interior. O caráter polissêmico da alteridade
é o núcleo desta meditação. Ricoeur sublinha, ademais, o laço entre
a identidade narrativa e o juízo moral e mostra que "a ética e a mo-
ral já estão implicadas, sob o modo imaginário, nas narrativas de
ficção. As ficções literárias podem, então ser tidas como variações
imaginativas sobre o tema da vida boa(...) primeira pedra do edifí-
cio ético-moral (...) as experiências do dramaturgo ou do roman-
cista são suscetíveis de se tornarem paradigmas ela ação pelo texto"
(id.,p.ll3).
A identidade narrativa permite ao indivíduo responder à
questão: "Quem sou eu ?" (Soi même comme 1111 autre, p. 198). E,
deste modo, tornar-se reconhecível por suas ações, identificável
por seu caráter (id.,p. 195).
O indivíduo, narrando sua vida, refigura suas experiências,
sua existência, e, deste modo, dá-lhes um sentido.
O recurso à metafísica platônica e à metafísica aristotélica,
a meditação a respeito do mesmo e do outro, da polissemia do ser,
do par energeia-dynamis; a reflexão sobre a metafísica de Bruns-
chvicg e Ravaisson, foram as fontes do registro metafísico próprio
de Ricoeur, "o de uma hermenêutica do agir" (Réflexion .faite, p.
91).
O desdobramento da problemática do si , através do exame
dos "múltiplos níveis de acepção do verbo agir" (id.,p. 94), levou
nosso pensador a uma investigação cujo primeiro nível foi "o de
uma fenomenologia hermenêutica (...) guiada por um feixe de
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