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Resumo
As reflexões sobre a atividade tradutória têm mani-
festado, por mais de dois mil anos, posicionamentos por
vezes radicais ou frontalmente opostos. A velha tensão en-
tre tradução literal e livre, por exemplo, ainda não foi sa-
tisfatoriamente resolvida. Mesmo se manifestando,
contemporaneamente, sob rótulos diferentes, é sempre, es-
sencialmente, a mesma velha tensão que vem à tona. Par-
tindo do pressuposto de que as posições extremas sempre
erram o alvo, uma vez que geralmente enfatizam um aspec-
to em detrimento de outros, este artigo defende uma visão
integrada do fenômeno tradutório. Anexo ao artigo, encon-
tra-se um questionário com perguntas e respostas sobre te-
orias da tradução.
Palavras-chave: tradução; tradução literal; tradução livre.
Abstract
Reflections on the activity of translation have
manifested, for over two thousand years, both radical and
diametrically opposed postures. The old tension between
literal and free translation, for example, has still not been
satisfactorily resolved. Despite manifesting itself, in the
present day, under different labels, it is always, essentially,
the same old tension that arises. Starting with the assumption
that extreme positions always miss the mark, as they
generally emphasize one aspect at the expense of others,
this article defends an integrated view of the phenomenon
of translation. In the appendix to the article, a questionnaire
may be found with questions and answers about theories of
translation.
Key words: translation; literal translation; free translation.
1 INTRODUÇÃO
O título do artigo é “teorias” (e não “teoria”) da tra-
dução, porque
ainda não existe nenhuma teoria unificada da tradu-
ção no sentido técnico de “um conjunto coerente de
proposições gerais usadas como princípios para ex-
plicar uma classe de fenômenos”, mas existem algu-
mas “teorias” no sentido lato de “um conjunto de
princípios úteis para compreender a natureza da tra-
dução ou para estabelecer critérios de avaliação de
um texto traduzido” (Nida, 1993:155).1
Por não haver nenhuma teoria unificada da tradu-
ção, também não existe definição de tradução que seja aceita
por todos.
O próprio termo tradução é polissêmico e pode signi-
ficar (a) o produto (ou seja, o texto traduzido; (b) o processo
do ato tradutório; (c) o ofício (a atividade de traduzir); ou (d)
a disciplina (o estudo interdisciplinar e/ou autônomo).
O modo de conceituar a tradução varia, de acordo
com a polissemia do termo e com as diferentes perspectivas
dos teóricos da tradução. Existem diversas posturas teóri-
cas, algumas bastante radicais e outras que são frontalmente
opostas. Neste artigo, analisaremos apenas algumas posições
opostas, sobretudo as que são relacionadas com a velha ten-
são bimilenar entre tradução literal e tradução livre, procu-
rando equilibrar e integrar as forças contrárias.
2 TRADUÇÃO LITERAL E LIVRE
A controvérsia mais antiga em torno da tradução diz
respeito à tensão entre tradução literal e livre, duas posições
TEORIAS DA TRADUÇÃO:
UMA VISÃO INTEGRADA*
José Pinheiro de Souza
* Nossos agradecimentos ao Prof. Myrson Lima, da Universidade Estadual do Ceará, e ao Prof. Marcus Vinícius Fontes Dodt, da Universidade
Federal do Ceará, pela colaboração que emprestaram ao aspecto redacional deste artigo.
1
É de nossa autoria a tradução de citações ocorrentes neste artigo.
Rev. de Letras - N0
. 20 - Vol. 1/2 - jan/dez. 199852
frontalmente opostas. Ao conceito de tradução literal está
associada a idéia de tradução fiel, neutra, objetiva, e ao de
tradução livre, a idéia de tradução infiel, parcial, subjetiva.
Essa controvérsia, de fato, já vem desde os antigos
romanos. Cícero (1º. século A. C.), por exemplo, mostrava
preferência pela tradução livre, ou seja, pela tradução do
sentido, e não pela tradução literal, palavra-por-palavra (non
verbum e verbo sed sensum exprimere de sensu).
São Jerônimo (384 AD), o santo protetor dos tradu-
tores, que traduziu a Bíblia inteira para o latim, também
mostrou preferência pela tradução do sentido, opondo-se,
desta maneira, à tendência dominante de seu tempo de se
fazer tradução literal de obras sagradas por respeito à “Pala-
vra de Deus” (cf. Delisle & Woodsworth, 1995:168).
A tradução livre de um texto sagrado poderia ser in-
terpretada como “infiel” e herética e o seu tradutor poderia
ser condenado pela Inquisição.
No século XVI, Martinho Lutero, ao traduzir a Bíblia
para o alemão, defendeu o mesmo princípio básico de Cícero
e de São Jerônimo, ou seja, o princípio da tradução do sen-
tido e não, da tradução literal.
Essa discussão continua até hoje. Entre os que,
contemporaneamente, defendem a tradução literal, podemos
citar Peter Newmark (Newmark, 1988:69), ao afirmar que
“a tradução literal é correta e não deve ser evitada, uma vez
que assegure a equivalência referencial e pragmática em rela-
ção ao original”.2
Entre os que a combatem, podemos citar
Vázquez-Ayora (1977, apud Gonçalves, 1996:43), que “pre-
tende libertar a tradução do literalismo milenar”. Ele define
tradução “como transferência de idéias de uma língua-cul-
tura para outra” (ibid., p. 42).
As diferenças quanto à função predominante da lin-
guagem também exercem um papel importante nas divergên-
cias de pontos de vista dos especialistas. Assim, enquanto para
alguns tradutores a expressão literária é a função predomi-
nante da linguagem, para outros é a sua função referencial que
predomina (ou seja, a sua função de informar).
A fim de conciliar e integrar essas posições extremis-
tas, pode-se argumentar que elas podem ser vistas como com-
plementares, uma vez que, dependendo do seu objetivo, do
tipo de texto, da sua função predominante, e do maior ou
menor grau de convergência ou de divergência lingüística e
cultural entre as duas línguas envolvidas na tradução (cf.
Barbosa, 1990:91-101), uma tradução pode ser mais ou me-
nos literal, ou mais ou menos livre.3
Não se pode negar, portanto, que haja, sob essa pers-
pectiva, dois tipos válidos de tradução: (a) tradução literal,
centrada mais na forma e (b) tradução livre, centrada mais
no sentido (nas idéias ou conceitos). O tradutor pode focali-
zar sua atenção em uma ou outra dessas duas modalidades
de tradução, sem, contudo, supervalorizar uma alternativa
em detrimento da outra.
3 POSSIBILIDADE E IMPOSSIBILIDADE DA
TRADUÇÃO
Tem havido na história das teorias da tradução o pon-
to de vista de alguns teóricos (filósofos, antropólogos, lin-
güistas e poetas) que chegam até mesmo a negar teoricamen-
te a possibilidade da tradução. Segundo alguns, como é pos-
sível a tradução, se “os sistemas gramaticais são impenetrá-
veis entre si”? (Meillet, apud Mounin, 1975:20). Como é
possível traduzir, se, de acordo com os argumentos
humboldtianos e neo-humboldtianos, “cada língua constitui
uma visão de mundo diferenciada e única a que só se pode
ter acesso por via dessa mesma língua e de nenhuma outra”?
(Paes, 1990:33)
Esta é a visão extremista defendida pelos adeptos da
Hipótese Sapir-Whorf, ou hipótese do relatividade lingüís-
tica, segundo a qual,
a língua determina a maneira como as pessoas per-
cebem e organizam o mundo. Esta visão (de ‘determi-
nismo lingüístico’) foi exposta primeiramente pelo
etnólogo alemão Wilhelm von Humboldt (1767-1835);
no presente século, veio a ser conhecida como a HI-
PÓTESE DE SAPIR-WHORF”. (Crystal, 1988:226)
É verdade que, até certo ponto, pensamos deste ou
daquele modo por causa da língua que falamos, “o que re-
flete uma diferença no modo como as línguas interpretam a
experiência do real” (Barbosa, op. cit.:67). Por exemplo, em
português, pensamos distâncias em quilômetros, e não em
milhas, como em inglês, porque nossa língua categoriza as
distâncias em quilômetros e não em milhas. Outros exem-
plos são dados por Barbosa (ibid.): keyhole (‘buraco da fe-
chadura’) e like the back of my hand (‘como a palma da
minha mão’). Esses casos, porém, são bastante isolados, em
relação ao conjunto total dos fatos lingüísticos e, portanto,
não invalidam a tese da universalidade da linguagem e da
experiência humana, uma vez que o pensamento e as línguas
manifestam, subjacentemente, mais semelhanças do que di-
ferenças, o que explica a possibilidade da comunicação e da
própria tradução.
Écomumouvirem-setambém,naliteraturaespecializa-
da, afirmações por demais negativas a respeito da possibilida-
de da tradução, particularmente da tradução de poesia.
2
Ver também o artigo de Francis Aubert (Aubert, 1987): “A tradução literal: impossibilidade, inadequação ou meta?”
3
Convém lembrar que o conceito de tradução literal varia bastante de lingüista para lingüista. (Ver, por exemplo, Vinay e Darbelnet 1977, Catford
1965/1980, Newmark 1981/1995, e Aubert 1987, entre outros.)
Rev. de Letras - N0
. 20 - Vol. 1/2 - jan/dez. 1998 53
Um discípulo de Benedetto Croce, assim escreveu:
Devemos acolher como realidade irrefutável o con-
ceito da intradutibilidade da expressão lingüística e,
particularmente, da expressão ‘par excellence’, que é
a poesia. (M. Fubini, 1963:789, apud Theodor,
1986:121)
Voltaire (apud Paes, op. cit.:34-35) assim advertia os
leitores de suas traduções: “Lembrai-vos, sempre, quando
virdes uma tradução, que vedes uma fraca estampa de um
belo quadro”. Robert Frost (ibid.) “definiu poesia como tudo
aquilo que se perde na tradução”. Roman Jakobson
(Jakobson, 1971:72) afirma que “a poesia, por definição, é
intraduzível”. Para Sílvio Romero (apud, Paes, op. cit.:9), “a
poesia não se traslada sem perder a maior parte de sua
essência”. E também “Manuel Bandeira que, embora tenha
traduzido poesia praticamente durante toda a sua vida, não
hesitou em afirmar, mais de uma vez, ser ela, em essência,
intraduzível” (Paes, op. cit.:35). Pode-se ver, através dessas
afirmações, uma grande contradição entre o que se diz e o
que se faz.
Não obstante todas essas afirmações de desespero,
permanece o fato de que a atividade de traduzir vem ocor-
rendo, e com bastante sucesso, há mais de dois mil anos. E
“sem a tradução, o mundo de hoje, com o rápido intercâm-
bio de informações, seria impensável” (Snell-Hornby,
1995:131).
É bem verdade que não existe tradução perfeita, do
mesmo modo que não existe comunicação perfeita, ou abso-
luta.Toda comunicação humana é limitada, mas normalmente
é satisfatória para atingir seus objetivos. Comunicação limi-
tada, parcial, não significa, contudo, comunicação ilusória
ou falsa. Do mesmo modo, também não pode haver tradução
perfeita. Toda tradução é parcial, limitada (mas nem por isso
ilusória), podendo, porém, ser aperfeiçoada. (Cf. Buzzetti,
1987:58).
Sabemos, igualmente, que “a maior parte da popula-
ção do mundo é bilingüe ou multilingüe” (Malmkjaer,
1997:60), o que faz da tradução um processo natural e ne-
cessário da comunicação humana.
Aliás, toda comunicação verbal humana, seja ela
intralingual ou interlingual, sempre envolve, necessariamen-
te, algum tipo de tradução. No dizer de Murata (1996:69),
“tudo o que se diz é uma tradução do que já se disse”. E, nas
palavras de Octavio Paz (apud Arrojo, 1986:11), “a própria
língua, em sua essência, já é uma tradução: em primeiro lu-
gar, do mundo não verbal e, em segundo, porque todo signo
e toda frase é uma tradução de outro signo e de outra frase”.
O mesmo ponto é elucidado por George Steiner
(Steiner, 1998:xii), em seu famoso livro, After Babel: Aspects
of Language & Translation:
After Babel fundamenta-se no postulado de que o ato
de traduzir está implícito, formal e pragmaticamente,
em todo e qualquer ato de comunicação, na emissão
e recepção de todo e qualquer modo de significação.
(...) Compreender é decifrar. Entender significados é
traduzir. (...) A tradução entre línguas diferentes é uma
aplicação particular de um modelo fundamental da
comunicação humana através da linguagem (...) .
Mas quem melhor esclarece esse ponto é Jakobson
(1971:64), ao afirmar que
(. . .) o significado de um signo lingüístico não é mais
que sua tradução por um outro signo que lhe pode ser
substituído, especialmente um signo ‘no qual ele se ache
desenvolvido de modo mais completo’, como insisten-
temente afirmou Peirce, o mais profundo investigador
da essência dos signos. (...) Distinguimos três manei-
ras de interpretar um signo verbal: ele pode ser tradu-
zido em outros signos da mesma língua, em outra lín-
gua, ou em outro sistema de símbolos não-verbais.
Assim, conforme o mesmo autor (ibid., p. 64-65),
existem três espécies de tradução (intralingual, interlingual
e intersemiótica):
1) A tradução intralingual ou reformulação
(“rewording”) consiste na interpretação dos signos
verbais por meio de outros signos da mesma língua.
2) A tradução interlingual ou tradução propriamente
dita consiste na interpretação dos signos verbais por
meio de alguma outra língua. 3) A tradução
intersemiótica ou transmutação consiste na interpre-
tação dos signos verbais por meio de sistemas de sig-
nos não verbais.
O mesmo lingüista nos esclarece que
as línguas diferem essencialmente naquilo que devem ex-
pressar, e não naquilo que podem expressar (ibid., p. 69).
Em outros termos, as línguas não diferem essencial-
mente no que podem dizer, mas no modo de dizer. Por isso,
nos afirma Jakobson (op. cit., p. 67) que
toda experiência cognitiva pode ser traduzida e clas-
sificada em qualquer língua existente. Onde houver
uma deficiência, a terminologia poderá ser modifica-
da por empréstimos, calcos, neologismos, transferên-
cias semânticas e, finalmente, por circunlóquios.
Em suma, não existe equivalência total entre as lín-
guas no nível da forma, mas existe equivalência no nível do
conteúdo comunicativo. Em outras palavras, cada língua é
um sistema sui generis, um código próprio, com suas própri-
as formas e regras, mas é também, ao mesmo tempo, um
sistema de comunicação, o que torna possível a tradução.
Essa natureza dual da linguagem é bem expressa por Bell
(1991:6-7) nos seguintes termos:
Toda língua é uma estrutura formal - um código - que
consiste em elementos que podem combinar-se para
Rev. de Letras - N0
. 20 - Vol. 1/2 - jan/dez. 199854
veicular ‘sentido’ semântico e, ao mesmo tempo, um
sistema de comunicação que emprega as formas do
código para referir-se a entidades (do mundo real
ou imaginário) e cria sinais que possuem ‘valor’co-
municativo.
Acrescenta ainda o mesmo autor (p. 7) que
o tradutor tem opção, então, de focalizar quer as equi-
valências formais, que ‘preservam’o sentido semântico
do texto original, (...) quer as equivalências funcionais,
que ‘preservam’o valor comunicativo do texto (...) .
A tradução só é impossível, por conseguinte, para
quem vê a língua apenas por uma de suas dimensões (cf.
citação de Bell acima), ou seja, a de ser um sistema sui
generis, um código próprio, imanente, semioticamente fe-
chado. Mas é preciso não esquecer que toda língua é, igual-
mente, um sistema de comunicação, transcendente, o que
torna possível a comunicação interlingual, que é a tradu-
ção (ibid.).4
É verdade que nem sempre existem correspondênci-
as exatas de valores entre as línguas (no sentido saussuriano
do termo), mas há correspondências de significação. Do con-
trário, qualquer tradução seria impossível.
No dizer de Mounin (op. cit., p. 35-36),
(...) a crítica de Saussure abala profundamente a an-
tiga segurança das pessoas para as quais a língua é
uma nomenclatura, um repertório, um inventário.
Todavia, a análise saussuriana da noção de sentido
não compromete a validade das operações de tradu-
ção visto como, baseada na psicologia clássica, ela
não põe realmente em dúvida, em parte alguma, a
natureza universal dos conceitos - seja qual for a sua
distribuição em valores - que refletem a experiência
humana universal. (grifos nossos)
4 TRADUÇÃO COMO OPERAÇÃO
LINGÜÍSTICA E LITERÁRIA
Há os que vêem tradução exclusivamente como arte,
como empreendimento de ordem literária e artística, e os que
a encaram como operação essencialmente lingüística (cf.
Mounin, op. cit., p.24). Essa polêmica está intimamente re-
lacionada com a tensão entre tradução literal e livre, pois os
que a definem como arte, normalmente tradutores poetas,
não-lingüistas (cf. Mounin, ibid.), defendem mais a tradução
livre, enquanto os que a definem como operação essencial-
mente lingüística, privilegiam mais a tradução literal ou di-
reta, sem negar, contudo a tradução livre ou oblíqua.
Como afirmamos na Seção 2, cada uma dessas duas
posições extremas enfatiza apenas um dos aspectos da tra-
dução, que, dependendo do tipo de texto, da sua função pre-
dominante (expressiva, descritiva ou apelativa), do seu ob-
jetivo e do seu público-alvo, pode e deve ser realizada mais
livre e subjetivamente (como operação artístico-literária), ou
como operação predominantemente lingüística, voltada mais
para os aspectos literais/referenciais do que para os efeitos
literários/expressivos.
5 TRADUÇÃO COMO SUBSTITUIÇÃO E
PRODUÇÃO DE SIGNIFICADOS
Em oposição frontal às definições tradicionais de tra-
dução como reprodução ou “transferência de significados de
um código lingüístico para outro” (Barbosa, 1990:11, con-
cordando com Bordenave, 1987:2), algumas visões igual-
mente unilaterais de leitura e tradução (por exemplo, Arro-
jo, 1986/1992) concebem leitura e tradução como processos
essencialmente criativos de produção de significados, apa-
rentemente esquecendo que todo texto é também um código
lingüístico, preexistente e imposto aos indivíduos, portador
de marcas significativas relativamente estáveis e objetivas,
que precisam ser identificadas por todo aquele que desejar
compreendê-lo e/ou traduzi-lo.
O conceito mais comum de tradução, segundo os lin-
güistas, contudo, não é o de “transferência”, mas o de “subs-
tituição”, de significados. Catford (1980:53), embora admi-
ta alguns casos de “transferência” de significado em tradu-
ções, esclarece bem que esse não é o processo normal. Eis
suas palavras:
Por meio dos exemplos como os precedentes deveria
ficar claro que é possível uma espécie restrita de “trans-
ferência de significado” de uma língua para outra; mas
fica igualmente claro que isso não é o que normalmen-
te se entende por tradução. Em “tradução” há substi-
tuição de significados da LF [Língua-Fonte] por sig-
nificados da LM [Língua-Meta]: não transferência de
significados da LF para a LM. Na transferência há
uma implantação de significados da LF no texto da
LM. Esses dois processos devem ser claramente dife-
renciados em qualquer teoria de tradução.
Catford, por conseguinte, nega que a tradução seja es-
sencialmente um processo de “transcodificação” (op. cit.:45),
ou seja, um processo de “transferência” de significados, pois
o significado, a nosso ver, é uma propriedade da lín-
gua. Um texto da LF tem um significado que é da
LF, e um texto da LM tem um significado que é da
LM: um texto russo, por exemplo, tem um significa-
do russo (...), e um texto equivalente inglês tem um
significado inglês.
4
Ver também Benveniste, 1989, capítulos 1, 3, e 15.
Rev. de Letras - N0
. 20 - Vol. 1/2 - jan/dez. 1998 55
Por isso, para Catford (op. cit.:22),
tradução pode definir-se como a substituição de ma-
terial textual numa língua (LF) por material textual
equivalente noutra língua (LM)”.
Esse é essencialmente o mesmo conceito básico de
tradução adotado por outros lingüistas famosos, como Vinay
e Darbelnet (1977), Bell (1991), Nida (1993) etc. Para Nida
(apud Mounin, op. cit.:252),
a tradução consiste em produzir na língua de chega-
da o equivalente natural mais próximo da mensagem
da língua de partida, em primeiro lugar no que diz
respeito à significação e em seguida no que diz res-
peito ao estilo.
O conceito de “tradutor como ‘produtor’ de signifi-
cados” e o “caráter essencialmente criativo do processo de
tradução” acham-se bem explícitos em Arrojo (1986:78-9):
Na medida em que questiona a estabilidade de qual-
quer texto, seja “original” ou não, e na medida em
que chama atenção para o papel do tradutor como
“produtor” de significados, Oficina de tradução
questiona, também o termo original. (...).
O que Oficina de tradução propõe é o reconheci-
mento do caráter essencialmente criativo do processo
de tradução.
Para se compreender o processo de tradução (e as
teorias que tentam explicar esse processo), é preciso tentar
entender, em primeiro lugar, o processo de leitura, uma vez
que todo tradutor é necessariamente um leitor. Por isso, nes-
ta seção analisaremos também a natureza da leitura, em ge-
ral, e a do leitor-tradutor, em particular.
Vamos, inicialmente, refletir um pouco sobre a natu-
reza da leitura. O que é ler? Seguindo o modelo interativo de
leitura de David Eskey (Eskey, 1986:16-18), consideremos
o que envolve a leitura da seguinte frase:
If you tell the truth long enough you are bound to be
found out.
(Se contarmos toda a verdade, com certeza seremos
descobertos.)5
Para entender essa frase, o leitor precisa, em primeiro
lugar, conhecer as formas ortográficas e os significados das
estruturas e das palavras que compõem a frase (o que obvia-
mente pressupõe o conhecimento do sistema alfabético que
usamos), bem como certas convenções (tais como a ordem
das palavras, que em inglês e em português é da esquerda
para a direita, o emprego de letras maiúsculas e minúsculas,
o uso da pontuação, etc.). Mais precisamente, o leitor deve
saber, por exemplo, que a forma gramatical da frase expressa
uma relação de causa/efeito entre a oração (ou cláusula) su-
bordinada ( “if”, “se”) e a oração independente, ou seja, que
a oração principal deve ser entendida como resultado da ora-
ção subordinada. O leitor deve reconhecer e corretamente
decodificar a forma passiva do sintagma verbal da oração
principal, isto é, deve entender que a frase diz respeito à pos-
sibilidade de “sermos descobertos por alguém” e não vice-
versa, isto é, de “nós descobrirmos alguém”. O leitor deve
ainda saber que o pronome you, empregado na frase inglesa,
é um pronome indefinido que pode referir-se a qualquer pes-
soa (e não apenas ao leitor) e que a locução to be found out
(além de seu sentido básico de “ser descoberto”) expressa a
conotação de que seu sujeito está envolvido em algum tipo
de ação desonesta.
Além desse conhecimento lingüístico, porém, o leitor
precisa possuir conhecimentos extralingüísticos, tais como as
atitudes com relação ao comportamento social ou moral das
pessoas, de tal modo que “falar a verdade” seja normalmente
considerado uma ação digna de louvor. O leitor deve compre-
ender ainda que existe na frase acima uma certa pitada de hu-
mor (ou de ironia), uma vez que há uma inversão do que nor-
malmente se esperaria na oração principal (o louvor esperado
por quem diz a verdade). Na ausência de tal conhecimento
extralingüístico, a força (o efeito) principal da frase, o con-
traste entre a expectativa sugerida pela oração subordinada e a
surpresa pela inversão dessa expectativa (e daí a pitada de
humor) na oração principal, desaparece completamente para
o leitor, mesmo que faça uso dos melhores dicionários.
A compreensão da frase acima, como estamos obser-
vando (ver também Figuras 1 e 2 abaixo, traduzidas e adap-
tadas de Eskey, op. cit.:15 e 18, respectivamente), depende
de uma complexa interação entre conhecimentos lingüísticos
(Conhecimento de Forma), de um lado, e conhecimentos
não lingüísticos (Conhecimento de Substância), do outro.
Em outros termos, a compreensão dessa frase, como a de
qualquer outro texto, envolve um processo de interação en-
tre identificação de formas lingüísticas, de um lado, e um
processo de interpretação da frase, com base em conheci-
mentos não lingüísticos, de outro. Isso fica mais claro nos
diagramas das Figuras 1 e 2, abaixo, que esquematizam os
princípios básicos do processo interativo de leitura, segundo
o modelo de David Eskey, que adotamos.
De acordo com esse modelo (cf. Eskey, op. cit.:14-
15), a leitura é um tipo particular de comportamento
cognitivo, baseado em certos tipos de conhecimento que for-
mam parte da estrutura cognitiva do leitor.Assim, a Figura 1
começa com a estrutura cognitiva na mente do leitor, ou seja,
com o que ele já sabe, com o que está armazenado como
esquemas em sua memória de longo prazo. Ele deve, por
exemplo, conhecer bem a língua em sua forma escrita, e ter
suficiente conhecimento do assunto do texto a fim de que o
5
A frase original é de Eskey (op. cit.:16) e os comentários que se seguem são uma tradução e adaptação nossa do mesmo autor, p. 16-18.
Rev. de Letras - N0
. 20 - Vol. 1/2 - jan/dez. 199856
mesmo lhe seja compreensível. Seu conhecimento de forma
(formas grafofônicas, lexicais, sintáticas, semânticas e retó-
ricas) cria-lhe determinadas expectativas sobre a linguagem
do texto. Com essas expectativas, durante o ato físico da lei-
tura, ele terá condições de fazer, rápida e automaticamente,
identificações precisas das formas lingüísticas, utilizando um
número mínimo de pistas visuais. Simultaneamente, seu co-
nhecimento de substância (conhecimento cultural, pragmá-
tico e do assunto específico) cria-lhe determinadas expecta-
tivas sobre a estrutura conceptual do texto como um todo.
Com essas expectativas, durante o processo da leitura, ele
poderá fazer predições corretas sobre a interpretação do sig-
nificado global do texto e atingir, assim, a compreensão, ou
seja, uma reconstrução (ou produção) do significado do tex-
to como um todo. A seta apontando da Compreensão de
volta para a Estrutura Cognitiva (Figura 1) significa o es-
tágio do processo quando o leitor integra a compreensão glo-
bal do texto à sua estrutura cognitiva.
Vemos, portanto, por esse modelo de leitura, que a
compreensão leitora envolve uma interação entre leitor e
texto, e entre conhecimento lingüístico, de um lado, e co-
nhecimento não lingüístico, de outro. Graças ao primeiro
tipo de conhecimento, o leitor identifica/percebe os signi-
ficados (valores) lingüísticos (relativamente objetivos e es-
táveis) do texto e, ao mesmo tempo, através do segundo
tipo de conhecimento, ele produz interpretações subjetivas
da compreensão leitora.
Qual a implicação desse modelo de leitura para a teo-
ria da tradução? Com base nessa perspectiva, já que todo
tradutor é, antes, um leitor, toda tradução terá que ser, em
Figura 1: Leitura como comportamento cognitivo: um modelo interativo
Figura 2: Conhecimentos Indispensáveis à Leitura.
Rev. de Letras - N0
. 20 - Vol. 1/2 - jan/dez. 1998 57
primeiro lugar, um processo de identificação e de interpreta-
ção/produção de significados, em relação à compreensão
leitora do texto original e, em segundo lugar, um processo de
substituição e de produção de significados em relação ao
texto de chegada.6
Analogamente ao processo de leitura, o ato tradutório
envolve uma interação (ou negociação) entre leitor-tradutor
e texto, e entre conhecimento lingüístico, de um lado, e co-
nhecimento não lingüístico, de outro, tanto em relação ao
texto de partida quanto em relação ao texto de chegada. Gra-
ças ao primeiro tipo de conhecimento, o tradutor identifica e
substitui os significados (valores) lingüísticos (relativamen-
te objetivos e estáveis) da língua de partida por significados
equivalentes (também relativamente objetivos e estáveis) da
língua de chegada e, simultaneamente, graças ao segundo
tipo de conhecimento (e demais liberdades e/ou finalidades
tradutórias), ele produz o lado subjetivo/interpretativo de sua
tradução. O ato tradutório envolve, em suma, dois processos
complementares e simultâneos, mas distintos: substituição
(relativamente objetiva/literal) e produção (relativamente
subjetiva/livre) de significados.
6 O TEXTO TRADUZIDO COMO
“PALIMPSESTO”
Ao conceito tradicional/estruturalista de texto como
objeto relativamente estável, e de tradução como “reprodu-
ção fiel” (ou transporte, ou transferência, ou substituição) de
significados (ou de mensagens) de uma língua para outra,
mais associado ao conceito de tradução literal, visão, obvia-
mente, limitada, unilateral, da realidade, opõe-se, frontalmen-
te, o conceito “pós-estruturalista/desconstrutivista” de texto
traduzido como “palimpsesto”, assim definido:
O texto, como o signo, deixa de ser a representação
“fiel” de um objeto estável que possa existir fora do
labirinto infinito da linguagem e passa a ser uma má-
quina de significados em potencial. A imagem exem-
plar do texto “original” deixa de ser, portanto, a de
uma seqüência de vagões que contêm uma carga
determinável e totalmente resgatável. Ao invés de con-
siderarmos o texto, ou o signo, como um receptáculo
em que algum “conteúdo” possa ser depositado e man-
tido sob controle, proponho que sua imagem exem-
plar passe a ser a de um palimpsesto (grifos nossos).
Segundo os dicionários, o substantivo masculino
palimpsesto, do grego palímpsestos (“raspado nova-
mente”), refere-se ao “antigo material de escrita, prin-
cipalmente o pergaminho, usado, em razão de sua es-
cassez ou alto preço, duas ou três vezes [...] mediante
raspagem do texto anterior” (Arrojo, 1986:23)7
Essa visão é unilateral, pois, se, por um lado, enfatiza
o aspecto da interpretação subjetiva da leitura e da tradução
de um texto, por outro lado, pretende anular o outro pólo da
verdade, ou seja, o aspecto objetivo da compreensão e tra-
dução de um texto.
Como já afirmamos alhures (Souza, 1999) e como
foi visto em seções anteriores deste artigo, o elemento da
interpretação criativa está presente não somente em qual-
quer tradução, mas, antes, em qualquer tipo de processamento
textual, uma vez que a compreensão de um texto sempre en-
volve negociação entre autor, texto e leitor. Em outros ter-
mos, o sentido de um texto não está nem totalmente no autor,
nem totalmente no texto, nem totalmente no leitor. É o resul-
tado de uma negociação entre todas as partes envolvidas.
Inversamente, podemos afirmar que o sentido de um texto
está parcialmente: no autor, no texto (enquanto objeto
lingüístico), no leitor e no contexto situacional. E o sentido
de um texto traduzido não pode fugir a esta regra.
Como elucida Komissarov (1987:418-419),
a comunicação interlingual (ou tradução) tem tam-
bém por objetivo a transmissão de algum conteúdo
cognitivo do autor do texto-fonte para o receptor do
texto-alvo, e uma tradução equivalente deveria
viabilizar esta transmissão. (...) Atualmente, põe-se
muita ênfase no papel dos traços individuais do ato
de comunicação. Enfatiza-se muito a tradução
centrada no receptor. Assim, a pergunta ‘Esta tradu-
ção é equivalente?’ é respondida com outra pergun-
ta: ‘Equivalente para quem?’ Esta atitude inevitavel-
mente resulta numa diminuição (ou depreciação) do
papel dos aspectos lingüísticos no processo de tradu-
ção. (...) A visão limitada de texto como produto de
um ato individual de comunicação, produzido sob
condições únicas, irreproduzíveis, tem o perigo de es-
quecer alguns traços essenciais do texto como veícu-
lo de comunicação que pode expressar e fixar os pen-
samentos humanos. (...)
A semântica do texto é de relativa estabilidade. O tex-
to e seu conteúdo semântico continuam a existir de-
pois de completado o ato individual de comunicação
para o qual ele foi produzido. O texto se perpetua em
sua forma escrita e se distancia por isso da comuni-
cação original, preservando, contudo, seu potencial
comunicativo. Ele pode agora transmitir sua infor-
mação inerente repetidas vezes a todos os leitores que
conhecem a língua. Esta é a função mais importante
das unidades lingüísticas gravadas (ou escritas) que
fixam e preservam o conteúdo cognitivo em sua se-
6
A expressão “substituição de significados” está sendo usada, aqui, no sentido de “reposição dos significados (valores) lingüísticos” da LF,
identificados no ato da compreensão leitora, por significados (valores) lingüísticos equivalentes da LM, conforme a definição lingüística de
tradução proposta por Catford (1980:22).
7
Para a visão “desconstrutivista/pós-estruturalista” de tradução, ver também Arrojo (1992/1993) e Ottoni (1998).
Rev. de Letras - N0
. 20 - Vol. 1/2 - jan/dez. 199858
mântica, tornando-o disponível, acessível, a qualquer
receptor do presente ou do futuro. (...)
Em resumo, podemos dizer que, por um lado, o texto
expressa, aqui e agora, alguma mensagem específica
que é produzida em determinadas circunstâncias para
um determinado receptor, com sua própria estrutura
cognitiva (sua experiência única, seus conhecimen-
tos prévios). Este é o aspecto subjetivo (interpretativo)
da compreensão da mensagem. Mas, por outro lado,
o texto contém informação acessível a qualquer lei-
tor que conheça a língua, informação esta que de-
pende, exclusivamente, dos significados das unida-
des lingüísticas e que, portanto, não depende das
possíveis diferenças na estrutura cognitiva de cada
leitor. Este é o aspecto objetivo da compreensão do
texto. (grifos nossos)
Nesse contexto, concordamos plenamente com o Prof.
Mário Laranjeira (Laranjeira, 1996:18), ao fazer as seguin-
tes ponderações acerca das posições “objetivistas” de lin-
güistas estruturalistas em confronto com as atitudes
“subjetivistas” dos desconstrutivistas:
Cabe consignar primeiro a grande contribuição que
as várias correntes lingüísticas rotuladas lato sensu
como estruturalistas deram à reflexão e aos estudos
da linguagem no decorrer deste século e que não se
pode simplesmente descartar. Um traço comum subjaz
às teorias estruturalistas, de Saussure a Chomsky: a
linguagem, oral ou escrita, é vista como um objeto a
ser descrito, fora do sujeito. Ou não há, pelo menos,
uma preocupação com a teoria do sujeito na produ-
ção do sentido em suas várias instâncias. A conseqü-
ência disso é que, quando alguns lingüistas estrutu-
ralistas incursionaram pelo terreno da tradutologia,
deixaram a impressão de que o texto, objeto perceptí-
vel e analisável, seria uma espécie de vasilha a con-
ter um produto: o sentido. A operação tradutória se-
ria comparável a uma troca de vasilhas, de suporte,
de código lingüístico, mantendo-se intacto e incólu-
me o conteúdo, o sentido. Reagindo a essas coloca-
ções a que poderíamos chamar de objetivistas, certos
teóricos, que se autodenominam desconstrutivistas,
pós-estruturalistas ou pós-modernos, assumem posi-
ção diametralmente oposta. Escudados na autorida-
de da palavra (ou em sua leitura da palavra) de auto-
res como Jacques Derrida, Michel Foucault,
Jean-François Lyotard e outros (cujos seguidores, no
Brasil, costumam citar em traduções inglesas), não
aceitam que o texto seja um objeto significante, que
ele tenha “marcas” capazes de produzir sentido. Só
existiria sentido na leitura concreta e particular que
cada sujeito faz do texto. Não há verdade. Ela seria
uma mera ilusão, uma projeção dos desejos do sujei-
to sobre a realidade exterior. Negam que se possa es-
tabelecer qualquer distinção, a partir do texto, entre
o literário e o não literário, entre uma oitava de
Camões e uma bula de remédio, entre um soneto de
Antero de Quental ou de Cruz e Souza e um teorema
de matemática. Chegam mesmo a contestar a objeti-
vidade dos conceitos de língua materna e de língua
estrangeira. Tal posicionamento teórico, se levado às
suas últimas conseqüências, conduz a negar qualquer
hipótese de tradução ou, paradoxalmente, a conside-
rar que tudo é tradução. Apagam-se todos os limites.
Em nome da diferença, eliminam-se as diferenças. A
nosso ver, tanto a posição estruturalista pura como a
posição desconstrutivista extremada são insuficien-
tes para dar conta do problema do sentido, da leitura
e da sua reescrita que é a tradução. A primeira é in-
suficiente por não considerar o sujeito, e a segunda é
insuficiente por só considerar o sujeito da leitura.
Além de concordarmos inteiramente com a crítica do
Prof. Mário Laranjeira, queremos aprofundar um pouco mais
essa reflexão acerca das duas visões em confronto, fazendo
uma síntese dos pressupostos epistemológicos de ambas e
das conseqüências desastrosas de se ter uma visão unilateral
de qualquer fenômeno da realidade.
Para a posição desconstrutivista, ler e traduzir, como
vimos na seção anterior, são processos essencialmente cria-
tivos. Nega-se a estabilidade relativa de qualquer texto, tan-
to para o leitor como para o tradutor. Tudo parece ser cria-
ção subjetiva na leitura e na tradução. Desaparece completa-
mente, assim, o conceito tradicional, milenar, de “fidelidade”
à obra traduzida. Mas, se os textos traduzidos são pura cria-
ção subjetiva, sem relação alguma com o original, uma vez
que os textos originais seriam “raspados”, como “palim-
psestos”, com que direito podemos ainda afirmar que eles
são “tradução” de outro, e mesmo, texto? No dizer de Croata
(1986:33), “se há muitas interpretações de um mesmo texto,
todas partem do mesmo texto, e então deve haver alguma
forma de convergência”. Diríamos que se trata, aqui, do ve-
lho problema filosófico da unidade na multiplicidade (o
“Uno” do “Verso”), que as várias leituras e traduções de um
mesmo texto não podem fugir à regra: todas são, em parte,
diferentes, mas, essencialmente, a mesma coisa, uma vez que
todas revelam, necessariamente, a unidade na multiplicidade,
pois todas são manifestações diferentes da mesma unidade
fundamental contida no texto original. Se essa unidade do
texto original for “raspada”, para dar lugar a outra unidade
no texto de chegada, então, sim, o texto de chegada será re-
almente outro texto, e não mais terá direito a ser chamado de
“tradução” de outro, e mesmo, texto.
Todavia, se o texto lido ou traduzido é visto como um
“palimpsesto”, então não existe mais correspondência (uni-
dade) alguma entre o que se diz e o que se ouve, entre o que
se escreve e o que se lê, entre o que texto original afirma e o
que o texto traduzido reafirma. Em outros termos, desapare-
ce, então, a possibilidade de qualquer comunicação, de qual-
quer leitura e de qualquer tradução.
O bom senso e os fatos nos dizem que tanto a posição
estruturalista/objetivista quanto a subjetivista/desconstrutivista
são unilaterais, por enfatizarem apenas aspectos parciais da
verdade tradutória. A nosso ver, os dois pontos de vista são
complementares, pois o tradutor se utiliza das duas perspecti-
vas ao mesmo tempo: da objetivista e da subjetivista. Não há,
Rev. de Letras - N0
. 20 - Vol. 1/2 - jan/dez. 1998 59
portanto, motivos para separá-las, fechando-nos em barreiras
preconcebidas, num ou no outro pólo.
Essa tensão entre objetivistas e subjetivistas em tor-
no de teorias de leitura e de tradução está vinculada à conhe-
cida tensão filosófica, acerca da teoria do conhecimento, entre
realismo, de um lado, e idealismo, de outro. O realismo de-
fende a objetividade do conhecimento, enquanto o idealis-
mo a nega. Para o realismo, o conhecimento é uma “desco-
berta” da realidade, enquanto para o idealismo o conheci-
mento é uma “construção” da realidade (cf. Franca,
1978:245). Para o realismo (mas não para o idealismo), existe
uma distinção clara entre sujeito e objeto, distinção essa que
é negada pelos idealistas, os quais vêem no conhecimento
uma imanência (e não uma transcendência) entre sujeito e
objeto. Para o realismo (cf. Franca, ibid.:251), “o conheci-
mento não cria o seu objeto, mas é uma relação entre seres
que preexistem independentemente desta relação”.
Tentando explicar essas posições opostas de maneira
mais explícita, diremos (com Franca, op. cit.:182-185) que,
para os realistas, o conhecimento humano resulta de um pro-
cesso interativo (que envolve análise e síntese) entre um su-
jeito cognoscente e um objeto cognoscível. Há nesse proces-
so uma clara distinção entre o sujeito e o objeto. Além disso,
o sujeito, no ato de conhecer, percebe o objeto e se adapta às
suas leis. Para os idealistas, ao contrário, o conhecimento
não é a percepção do objeto, mas sim a criação (a produção,
a construção inteiramente subjetiva) do objeto. Não é o su-
jeito que se adapta às leis dos seres, e sim os seres que se
amoldam às leis do sujeito. Em outros termos, o sujeito cria
o seu objeto, sendo o conhecimento uma produção puramente
subjetiva da realidade.
A visão tradicional/estruturalista de leitura e de tra-
dução enfatiza o pólo realista/objetivo do conhecimento,
enquanto a visão desconstrutivista enfoca o outro pólo, a di-
mensão idealista/subjetiva do conheciemnto, da leitura e da
tradução, negando que haja uma distinção clara e objetiva
entre sujeito e objeto, como se pode constatar em Arrojo
(1992:9-10), ao tentar definir o que seja “desconstrução”,
fazendo referência ao filósofo francês, Jacques Derrida, o
criador da palavra:
Derrida propõe a ‘de-sedimentação, a desconstrução de
todas as significações que brotam da significação do
logos [a razão, a palavra de Deus, a fala, o discurso].
Em especial a significação de verdade. (...) Dentre as
dicotomias e hierarquias que a precisão do bisturi
desconstrutor de Derrida tem atingido, talvez a primei-
ra e a mais abrangente seja a possibilidade - plenamen-
te autorizada por nossa tradição logocêntrica - de uma
distinção clara e objetiva entre sujeito e objeto.
Pior do que isso, os idealistas/desconstrutivistas, apoi-
ados no pensamento filosófico de Frederico Nietzsche (e na
psicanálise de Sigmund Freud), negam a própria noção tra-
dicional de “verdade”, ou que o homem seja capaz de “des-
cobrir verdades”, como se pode observar na seguinte passa-
gem de Arrojo e Kanavillil (1992:54-55):
Assim, de acordo com a perspectiva descortinada por
Nietzsche, o homem não é um descobridor de “verda-
des” independentes de seu desejo de poder ou de seu
instinto de sobrevivência, mas, sim um produtor de
significados e, portanto, de conhecimentos que se con-
sagram através das convenções que disciplinam os
homens em grupos sociais. (...) Como lembra Stanley
Fish (1980) “todos os objetos são criados e não des-
cobertos, e são criados pelas estratégias interpre-
tativas que colocamos em ação (op. cit.:331)”. (...)
Além do pensamento de Nietzsche, podemos conside-
rar a psicanálise de Sigmund Freud e, principalmen-
te, o conceito do “inconsciente” que mudou radical-
mente a própria noção de sujeito. A partir do insight
freudiano de que o homem carrega consigo um lado
desejante e desconhecido, todo o conhecimento, to-
das as ciências, todas as “verdades”, todos os senti-
dos “literais” têm de ser necessariamente relativi-
zados e reconhecidos como produto - ou sintoma - de
uma interpretação, mediação inevitável entre homem
e mundo.8
Em suma, a “verdade”, segundo essa visão, é pura
ilusão, um mero impulso dos desejos do inconsciente. Essa
postura tenta, igualmente (com base em Nietzsche e Freud),
em nome do inconsciente, anular a própria racionalidade
consciente do ser humano, o que logicamente implica tam-
bém negar a liberdade e a responsabilidade humanas. De fato,
se o homem não é mais consciente dos seus atos, também
não pode mais ser responsável por eles, o que acarretaria o
caos social e moral da sociedade. Essa desvalorização ou
anulação do aspecto consciente do ser humano, que nada
mais seria nessa visão do que mero produto do inconsciente,
é expressa por Arrojo (1992:15), nos seguintes termos:
o homem ocidental, forjado no culto ao racionalismo,
ilude-se com sua suposta autonomia “consciente” - que
não passa de uma instância derivada de processos in-
conscientes - e crê poder separar-se do “real”, ou seja,
crê poder olhar o “real” e o outro com olhos neutros;
crê, em suma, poder “descobrir” “verdades” que não
sejam construídas por ele mesmo, nem “contamina-
das” pelo seu desejo. É, portanto, a partir da des-
construção da noção de sujeito enquanto ser presente
a si mesmo que Nietzsche passa à desconstrução do
impulso à verdade e do próprio conceito clássico de
verdade. A noção do impulso à verdade, do desejo de
saber, é, para Nietzsche, outra grande ilusão humana.
Na tentativa de conciliar as duas posições antagô-
nicas discutidas nesta seção, podemos argumentar, como já
8
Ver também Arrojo (1993:18).
Rev. de Letras - N0
. 20 - Vol. 1/2 - jan/dez. 199860
o fizemos, até certo ponto, em seções anteriores deste artigo,
que o processo do conhecimento, como o de leitura e tradu-
ção, envolve aspectos objetivos e subjetivos, conscientes e
inconscientes. O conhecimento, como a leitura de um texto
original ou traduzido, é sempre um processo interativo (um
jogo) entre partes distintas: de um lado, a realidade objetiva
que é conhecida (ou lida, ou traduzida), e, de outro, um su-
jeito que a conhece (que a lê, que a traduz). Nessa interação
(nesse jogo) entre sujeito e objeto, há muito campo para va-
riação no pólo do sujeito, consciente e inconsciente (aspecto
subjetivo do conhecimento, da leitura ou da tradução), que
depende obviamente da estrutura cognitiva subjetiva (cons-
ciente e inconsciente) de cada sujeito cognoscente. Nesse
sentido, cada conhecimento (cada compreensão, cada leitura
ou tradução) da realidade é único, pois os conhecimentos
prévios e os condicionamentos circunstanciais de cada su-
jeito cognoscente são únicos. Mas, por outro lado, não se
pode esquecer o outro pólo do conhecimento (da leitura ou
da tradução), uma vez que para haver interação (jogo) é con-
dição necessária que haja duas partes envolvidas. Negando-
se uma, nega-se também a outra.
Se é verdade, de acordo com a posição idealista/
desconstrutivista, que todo conhecimento é uma pura criação
individual, desprovida da dimensão objetiva, relativamente
estável, do objeto conhecido, nega-se, então, teoricamente, a
própriaciência,quenãoésimplesmentecriaçãosubjetivadeste
ou daquele sujeito, mas é, ao mesmo tempo, conhecimento
partilhado, comum a todos, universal. Além disso, a ciência,
em seu aspecto objetivo, é também descoberta, é percepção
de leis que existem nos objetos (e não apenas em nossas cabe-
ças). A realidade (a “verdade”), por exemplo, da gravidade
dos corpos já existia antes e independentemente de sua desco-
berta pela ciência. O sistema heliocêntrico preexistia à sua
descoberta por Copérnico. E a partir de Copérnico, ninguém
mais aceita o sistema geocêntrico (= conhecimento falso acer-
ca de uma realidade objetiva do mundo), o que prova que po-
demos errar ao conhecer a realidade que nos rodeia. O pró-
prio fato de existir o erro, o conhecimento falso, acerca da
realidade extra-subjetiva, prova que a verdade do conhecimen-
to não está simplesmente no sujeito (o homem não é a medida
de todas as coisas).
7 CONCLUSÃO
Queremos concluir nossas avaliações acerca das teo-
rias da tradução, narrando duas pequenas histórias que se
assemelham bastante com as visões opostas de tradução (de
leitura e de conhecimento), discutidas neste artigo.
Eis a primeira:
Conta-se que, certa vez, um mesmo elefante foi ob-
servado por vários cegos de nascença, sendo que cada
cego só conseguiu focalizar (pelo tato) uma parte di-
ferente do elefante. O resultado é que quando cada
cego tentou descrever o elefante, cada um o fez de
modo diferente, porque cada cego só “viu” o elefante
por um lado. Nenhum deles teve uma “visão” de con-
junto do elefante inteiro, uma vez que cada um só o
observou por um lado. 9
O mesmo se aplica às teorias antagônicas de tradução
revisadas neste artigo. São iguais aos cegos de nosso relato,
pois só vêem, ou só querem ver, a tradução (a leitura e o co-
nhecimento) por um de seus lados ou aspectos. Vale lembrar
também o velho ditado: o pior cego é o que não quer ver.
Eis a segunda história:
Conta-se que um professor foi dar uma aula de avali-
ação comportamental e chegando à classe estendeu
sobre o quadro de giz um imenso lençol alvo; depois
tomou de um pincel e na ponta do lençol colocou pe-
quena mancha, e perguntou aos alunos: que vêem?
Todos, em uníssono: uma mancha! Ninguém viu o len-
çol. A mancha era mil vezes menor que o lençol; é a
tendência para ver desenfocada a realidade. Ninguém
sequer diz: vejo o lençol com uma mancha. É nosso
atavismo ver o lado negativo.10
Neste artigo, vimos que algumas posições extrema-
das se comportam como os alunos dessa segunda historieta,
porquanto exageram ou supervalorizam apenas um aspecto
do fenômeno, perdendo, assim, a visão do todo. Como se-
ria bom se os teóricos de várias perspectivas fossem mais
humildes e se juntassem para partilhar a visão de cada um,
sem idéias preconcebidas, e sem querer anular ou negar as
visões concorrentes, a fim de poderem alcançar, com um
diálogo franco e respeitoso, um retrato mais amplo e pro-
fundo do fenômeno estudado em todas as suas dimensões
e, no caso em apreço, uma visão integrada do processo
tradutório.11
9
Adaptado de uma palestra que ouvimos.
10
Esse texto foi extraído da Revista Visão Espírita, vol. 2, nº 17, 1999, p. 39.
11
As referências bibliográficas do artigo encontram-se após o anexo.
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1. Por que o nome “teorias” da tradução, e não “teoria” da
tradução?
R. Porque “ainda não existe nenhuma Teoria Unificada da
Tradução no sentido técnico de ‘um conjunto coerente de
proposições gerais usadas como princípios para explicar
uma classe de fenômenos’, mas existem algumas “teori-
as” no sentido lato de ‘um conjunto de princípios úteis
para compreender a natureza da tradução ou para esta-
belecer critérios de avaliação de um texto traduzido’ ”
(Nida, 1993:155).
2. Distinga “teoria” de “modelo”.
R. “Teoria” é um conjunto de proposições integradas, coe-
rentes, para explicar um determinado fenômeno, enquanto
“modelo” é uma representação externa (uma fórmula, um
diagrama, um esquema, etc.) de uma teoria. (Cf. Bell,
1991:24-25).
3. O que é “abordagem”?
R. É a maneira de encarar (de ver ou de estudar) um assun-
to ou um fenômeno. Muitas vezes, se usa esse termo como
sinônimo de teoria.
4. Pode haver teoria separada da prática e, vice-versa, prá-
tica sem teoria?
R. Em termos absolutos, dizemos que não. Toda prática su-
põe e gera teoria e toda boa teoria gera prática, donde o
famoso aforismo de Kurt Lewin: ‘Nada existe de mais prá-
tico do que uma boa teoria’ (apud Ur, 1996:4) (Ver tam-
bém Arrojo, 1992:107-112).
5. Qual a relação entre teoria/prática e ideologia? (O que é
ideologia?)
R. Ideologia é o conjunto de convicções que produzem os
significados que impomos aos objetos e constituem a pers-
pectiva a partir da qual teorizamos e classificamos o mun-
do (Arrojo, op. cit., p. 111-112). Assim, tanto a teoria quan-
to a prática são ideológicas; exemplificando com a tra-
dução, quando um tradutor produz uma tradução, seu tra-
balho terá de se enquadrar dentro das normas que regem
a produção de trabalho, estabelecidas, explícita ou im-
plicitamente, pela comunidade sócio-cultural a que per-
tence. (Arrojo, ibid.)
6. Explique a polissemia do termo “tradução”.
R. O termo “tradução” é polissêmico e pode significar:
a) o produto (ou seja, o texto traduzido);
b) o processo do ato tradutório;
c) o ofício (a atividade de traduzir); e
d) a disciplina (a ciência que estuda o fenômeno da
tradução).
7. Qual a controvérsia mais antiga em torno da tradução?
R. “Tradução literal” (ou seja: tradução do estilo e do modo
de escrever do autor original) vs. “tradução livre” (ou
seja: tradução só do sentido e do espírito do original.
(Bell, 1991:11) Ao conceito de tradução literal está asso-
ciada a idéia de tradução “fiel” e ao conceito de tradu-
ção livre, a idéia de tradução “infiel”.
8. Como podemos especificar a competência do tradutor?
(Que tipos de conhecimentos e de habilidades deve o tra-
dutor possuir?)
R. a) conhecimento de duas línguas (nos níveis fonético-
fonológico, morfossintático, semântico, retórico/dis-
cursivo, pragmático, ortográfico e estilístico);
b) conhecimento de duas culturas;
c) conhecimento da área do assunto;
d) conhecimento contrastivo (lingüístico e cultural);
e) conhecimento do mundo;
f) habilidades de leitura e de composição (redação);
g) competência sociolingüística;
h) conhecimento das teorias da comunicaçào e da infor-
mação;
i) qualidades artísticas (inatas ou adquiridas);
j) conhecimento de língüistica textual;
k) conhecimento da arte literária;
l) conhecimento de princípios e de procedimentos técni-
cos da tradução; etc.
ANEXO
TEORIAS DA TRADUÇÃO/QUESTIONÁRIO BÁSICO12
12
Esse questionário vem sendo utilizado na disciplina Teorias da Tradução, por nós ministrada no Curso de Mestrado em Lingüística Aplicada
da Universidade Estadual do Ceará (UECE).
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. 20 - Vol. 1/2 - jan/dez. 199862
9. Quais as disciplinas que têm servido de embasamento para
teorias ou comentários sobre tradução?
R. A lingüística, a semiótica, a crítica literária, a psico-
lingüistica, a sociolingüística, as teorias da comunica-
ção e da informação, etc.
10. As teorias da tradução filiadas aos estudos literários vêem
a tradução como essencialmente uma operação lingüís-
tica, ou como uma ‘arte”?
R. Como uma arte.
11. Que dizer da atitude daqueles que, fundamentados em anos
de experiência profissional, tendem a desprezar as teori-
as e a defender que a tradução é um “ofício” e, como tal,
deve ser compreendida e aprendida “na prática”?
R. Quem manifesta essa atitude contradiz-se, pois já está, a
partir de uma convicção/ideologia, fazendo uma afir-
mação teórica, segundo o qual a tradução é um “ofí-
cio” que deve ser compreendido e aprendido “na prá-
tica”. Como já foi dito na resposta da pergunta nº 4,
“nada existe de mais prático do que uma boa teoria”
(Kurt Lewin, apud Ur, 1996:4).
12. Como é possível traduzir, se, de acordo com muitos lin-
güistas, não existem correspondências ou equivalências
exatas entre as palavras e estruturas de duas línguas? Os
sistemas gramaticais não são impenetráveis entre si? (cf.
Mounin, 1975:20)
R. É verdade que nem sempre existem correspondências exa-
tas de valores entre as línguas (no sentido saussuriano
do termo, ou seja, de significados formais), mas há cor-
respondências de significação entre os códigos lin-
güísticos e a experiência humana por eles expressa, o
que possibilita a tradução. Em outros termos, se, por um
lado, cada língua é um sistema sui generis, um código
próprio, com seus significados (valores) próprios, por
outro lado, toda língua é também um sistema de comuni-
cação que emprega as formas do código para referir-se
a entidades do mundo real ou imaginário (cf. Bell,
1991:7). Além disso, as representações semânticas pro-
fundas são esencialmente as mesmas, independentemen-
te de suas distribuições em valores lingüísticos (cf.
Mounin, 1975:35-36). Pode-se adiantar ainda que, do
mesmo modo como estruturas diferentes de uma mesma
língua podem significar coisas semelhantes (por ex.: a
chuva continua/chove sem parar), assim também línguas
diferentes podem significar coisas semelhantes. É isso que
permite as traduções intralinguais e interlinguais, res-
pectivamente (cf. Mounin, op. cit.:239-240).
13. Como é possível traduzir, se, de acordo com o ponto de
vista de muitos lingüistas e antropólogos, cada língua
impõe aos seus falantes uma visão de mundo diferente?
R. Se, por um lado, cada língua, até certo ponto, impõe aos
seus falantes uma visão de mundo diferente, por ser um
código próprio, por outro lado, como já foi dito na res-
posta da pergunta anterior, toda língua é também um sis-
tema de comunicação que emprega as formas do código
para referir-se a entidades do mundo real ou imaginário
(cf. Bell, 1991:7). Além disso, os elementos da experiên-
cia humana são bastante semelhantes, de tal modo que
quase tudo que pode ser dito numa língua pode ser dito
também em outra (cf. Mounin, op. cit.:242). No dizer de
Jakobson (1971:65), “a tradução envolve duas mensa-
gens equivalentes em dois códigos diferentes”. O mesmo
lingüista nos esclarece que “as línguas diferem essenci-
almente naquilo que devem expressar, e não naquilo que
podem expressar” (ibid.:69).
14. O que significa entender um texto?
R. Entender um texto significa compreendê-lo, através de
um processo de interação entre leitor e texto, que envol-
ve aspectos objetivos (de identificação de formas lingüís-
ticas/valores, presentes no texto) e aspectos subjetivos
(de interpretação), com base nos esquemas mentais pró-
prios de cada leitor.
15. É possível haver uma leitura neutra de um texto, sem
nenhuma interferência do leitor e de seu contexto sócio-
cultural e histórico?
R. Não, porque a leitura se realiza através de um jogo
interativo em que o leitor lança mão de toda a sua baga-
gem de conhecimentos prévios e é influenciado por todos
os condicionamentos de ordem psico-sócio-cultural, etc.
16 .O “significado” está todo no texto?
R. Os significados formais (em termos de valores estritamen-
te lingüísticos) se encontram no texto, mas o significado
reconstruído pelo leitor (enquanto intéprete particular)
resulta de uma negociação entre o leitor e o texto, ou seja,
negociação entre as informações contidas no texto e a
interpretação individual de cada leitor, condicionada por
uma série de fatores, tais como seus conhecimentos prévi-
os, seus esquemas mentais, seu conhecimento do assunto,
seu contexto psico-social-histórico, etc.
17. É possível haver uma tradução “literal”, próxima do “ori-
ginal”, que não apresente nenhuma interferência do tra-
dutor, em oposição a uma tradução “literária”, que reve-
laria a interferência da interpretação e do julgamento do
tradutor?
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R. Dependendo do tipo de texto (uma bula de remédio vs.
um conto ou uma poesia, por exemplo), de sua função
predominante (expressiva, descritiva ou apelativa), de
seu objetivo e de seu público-alvo, uma tradução pode
ser mais ou menos literal (ou mais ou menos livre). O
fenômeno da interferência do leitor-tradutor, contudo,
em maior ou menor grau, é inevitável, uma vez que toda
leitura/tradução envolve interpretação e produção ou re-
construção do sentido.
18. Como é possível traduzir, se um mesmo termo usado por
duas pessoas diferentes jamais significa a mesma coisa?
(Steiner, 1998:263)
R. Um mesmo termo (por exemplo, “mãe”, “mamãe”,
“maezinha”) usado por duas pessoas diferentes jamais
significa a mesma coisa do ponto de vista da fala, do
discurso (aspecto individual da línguagem), uma vez que
pode ter muitas conotações pessoais, mas, do ponto de
vista do sistema lingüístico, ou seja, do código (da
“langue”), um mesmo termo usado por duas ou mais
pessoas diferentes, num mesmo contexto, sempre signifi-
ca a mesma coisa, pois, os significados (os valores) es-
tritamente lingüísticos (incluindo os valores estilísticos)
são, em parte, de propriedade coletiva, social, e não in-
dividual. Do contrário, não haveria possibilidade de co-
municação verbal entre as pessoas, e muito menos de
tradução entre línguas diferentes. Se a comunicação e a
tradução existem, é porque os termos e as frases de qual-
quer língua (“langue”) têm valores comunicativos co-
muns, relativamente constantes e estáveis.
19 .Qual a problemática em torno da tradução de textos sa-
grados?
R. Os textos sagrados são considerados “Palavra de Deus”
e, por isso, a sua tradução nem sempre é oficialmente per-
mitida (como ocorre com o Alcorão, por exemplo, livro
sagrado dos muçulmanos. Mesmo quando a tradução de
tais textos é permitida, privilegia-se a tradução literal,
para garantir a “fidelidade” ao texto original. Mesmo
assim, São Jerônimo e Martinho Lutero privilegiaram a
tradução do sentido em suas traduções da Bíblia cristã.
Poderíamos, aqui, perguntar: Por que a Bíblia, sendo,
supostamente, “Palavra de Deus”, admite tantas tradu-
ções e tantas interpretações diferentes? É que a Bíblia é
“texto” e, como qualquer texto, é, semioticamente, sem-
pre aberto a múltiplas leituras e a múltiplas interpreta-
ções. Todo texto, como objeto de significação, é sempre
polissêmico, aberto a muitas leituras, mas, como objeto
de comunicação, é sempre monossêmico, porque, no ato
particular de sua leitura, cada leitor o interpreta, até cer-
to ponto, diferentemente, pelas razões que já foram apon-
tadas em respostas de questões anteriores deste questio-
nário, acerca da compreensão leitora (cf. Croata, 1986) .
20. Explique a seguinte pergunta (ou fórmula) socio-
lingüística: QUEM TRADUZ O QUE, PARA QUEM,
QUANDO, ONDE, POR QUÊ, E EM QUE CIRCUNS-
TÂNCIAS?
R. Essa conhecida fórmula sociolingüística mostra os di-
versos fatores circunstanciais que podem determinar ou
afetar a tradução como produto. Assim, uma tradução
pode ser feita desta, ou daquela maneira, dependendo da
competência de quem traduz, do tipo de texto que se tra-
duz, do público-alvo para o qual se traduz, da época e do
lugar em que se traduz, do objetivo para o qual se tra-
duz, e das circunstâncias (sócio-econômicas, políticas,
culturais, religiosas, etc.) em que se traduz.
21. Existe tradução perfeita? Explique.
R. Não existe tradução perfeita, como não existe comunica-
ção humana perfeita. Tudo o que é humano é imperfeito,
mas nem por isso ilusório. Assim, toda tradução é uma
operação relativamente imperfeita, mas sempre possível
de aperfeiçoamento, podendo tornar-se uma operação
relativamente satisfatória para os objetivos a que se pro-
põe, à luz dos outros fatores circunstanciais indicados
na questão anterior.
22. É verdade que todo tradutor é um traidor (conforme.o
conhecido provérbio italiano: traduttore traditore)?
R. Se por tradução se entende uma reprodução fiel, literal,
neutra, do original, que não apresente nenhuma interfe-
rência por parte do tradutor, então, nesse caso, todo tra-
dutor seria um “traidor”. Mas esse tipo de tradução só
existe na imaginação das pessoas que não refletem ade-
quadamente sobre o processo tradutório, o qual, como
já foi dito em questões anteriores deste questionário,
nunca pode ser completamente neutro, literal, objetivo,
isento de qualquer interferência por parte do tradutor.
Nesse sentido, o conhecido provérbio italiano, segundo
o qual os tradutores são traidores, é agora reescrito como
“tradutores têm que ser traidores” (cf. Vieira, 1996:138).
23. O que é a “paralaxe” da linguagem humana (Nida,
1993:6)? A esse respeito, comente também a visão de
linguagem como fotografia ou mapa da realidade (Ibid.).
R. A paralaxe é conceituada por Nida (ibid.) como o fato de
que a linguagem não apenas representa a realidade,
como também a distorce. Por exemplo, continuamos a
dizer que o sol nasce, o sol se põe, quando de fato sabe-
mos que o sol nem nasce nem se põe, mas que é a Terra
que gira em volta dele. Algumas pessoas também conce-
bem a língua como fotografia ou mapa da realidade e,
raramente, se dão conta de que mapas e fotos, inevita-
velmente, envolvem escolhas e distorções. Tanto fotogra-
fias quanto mapas sofrem do fenômeno da paralaxe.
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. 20 - Vol. 1/2 - jan/dez. 199864
24. O que são traços semanticamente pertinentes de uma
língua?
R. São os mínimos traços objetivos, socialmente comuns ao
falante e ao ouvinte, graças aos quais se pode definir
um termo para todos os falantes de uma mesma língua
(cf. Mounin, op. cit.:165 e Buzzetti, 1987). São chama-
dos também de traços denotativos, em oposição aos tra-
ços conotativos, que se referem aos que podem, ou não,
ser percebidos pelo ouvinte num ato de comunicação.
25. A linguagem expressa fielmente o pensamento humano?
R. Não. A linguagem não expressa todos os traços e nuanças
particulares de um pensamento ou de uma dada situa-
ção, mas, obrigatoriamente, apenas os traços semanti-
camente pertinentes para a comunicação. Como afirma
Catford (op. cit.:41), “apenas pouquíssimos traços da
situação são lingüísticamente relevantes” .
26. Por que motivo nos acontece com tanta freqüência não
saber como dizer tudo que queremos, ou ter a impressão
de haver dito muito mal o que pensávamos?
R. É uma prova clara da distinção entre linguagem e pensa-
mento. De fato, muitas vezes, queremos dizer uma coisa e
expressamos outra, ou temos a impressão de ter dito mal
o que pensávamos dizer. Outras vezes, queremos dizer al-
guma coisa, mas não sabemos como expressá-la. Não
encontramos a forma para expressá-la verbalmente.
27. Como explicar o fato de que o mesmo pensamento pode
ser expresso de várias maneiras numa mesma língua?
(Exemplos: venta; está ventando; sopra um vento; o tem-
po está meio ventoso; o dia está meio ventoso, etc.)13
R. É mais uma prova da independência do pensamento em
relação à linguagem, e que tem uma profunda implica-
ção para a teoria da tradução, no sentido de que é essa
independência relativa do pensamento em relação a lin-
guagem que permite ao ser humano expressar o mesmo
pensamento, de várias maneiras, não só numa mesma
língua mas também em línguas diferentes.
28. Como explicar pensamentos novos?
R. A mente humana é criativa, capaz de produzir pensa-
mentos novos, indefinidamente, e de os expressar e tra-
duzir em qualquer língua, o que, mais uma vez, compro-
va a relativa independência do pensamento em relação
à linguagem.
29. Como explicar a transmissão telepática do pensamento?
R.Pelaindependênciaessencialentrelinguagemepensamento,
como já foi esclarecido nas últimas três questões acima.
30. É verdade que pensamos do modo como pensamos, por-
que falamos do modo como falamos?
R. Até certo ponto, é verdade que pensamos deste ou daque-
le modo por causa da língua que falamos, “o que reflete
uma diferença no modo como as línguas interpretam a
experiência do real” (Barbosa, op. cit.:67). Por exem-
plo, em português, pensamos distâncias em quilômetros,
e não em milhas (como em inglês) porque nossa língua
categoriza as distâncias em quilômetros e não em mi-
lhas. Outros exemplos são dados por Barbosa (ibid.):
keyhole (‘buraco da fechadura’) e like the back of my
hand (‘como a palma da minha mão’). Esses casos, po-
rém, são bastante isolados, em relação ao conjunto total
dos fatos lingüísticos e, portanto, não invalidam a tese
da universalidade da linguagem e da experiência huma-
na, uma vez que o pensamento e as línguas manifestam,
subjacentemente, mais semelhanças do que diferenças,
o que explica a possibilidade da comunicação e da pró-
pria tradução.
31. O que é cultura e até que ponto uma língua reflete a cul-
tura de uma sociedade?
R. Pela conceituação de Nida, cultura é definida como “a
totalidade das crenças e práticas de uma sociedade”
(Nida, op. cit.:105). Cultura é tudo o que é criado pelo
homem: “O complexo dos padrões de comportamento,
das crenças, das instituições e doutros valores espiritu-
ais e materiais transmitidos coletivamente e caracterís-
ticos de uma sociedade” (Novo Dicionário Aurélio da
Língua Portuguesa, 2ª edição, revista e aumentada).
Sendo uma língua parte da cultura e meio de sua ex-
pressão, é lógico que reflita a cultura da sociedade que
a utiliza.
32. Como explicar o fato de que uma mesma língua pode
expressar culturas diferentes? (Por exemplo: o inglês, o
espanhol, etc.)
R. Isso é possível porque a relação entre língua e cultura
não é absoluta, mas relativa. O inglês e o espanhol são
exemplos típicos, pois são usados para expressar cultu-
ras bastante diferentes.
33. Como explicar que, a despeito da heterogeneidade dos
diversos sistemas lingüísticos, os homens se comunicam
de língua para língua?
13
Exemplos extraídos de Mounin (op.cit.:240).
Rev. de Letras - N0
. 20 - Vol. 1/2 - jan/dez. 1998 65
R. Os homens se comunicam de língua para língua, porque
existem traços comuns a todas as línguas do mundo -
vale dizer - “universais lingüísticos” (Mounin, op.
cit.:190), ou seja, a despeito da heterogeneidade dos di-
versos sistemas lingüísticos, “o conteúdo latente de toda
linguagem é o mesmo” (Sapir, apud Mounin, op. cit.:197).
“Não existe na linguagem particularidade mais impres-
sionante que a sua universalidade” (Id., ibid.:191).
34. Terá razão o lingüista e tradutor Eugene NIDA (Nida,
1993:106), ao afirmar que “pelo menos 90% (noventa
por cento) das estruturas fundamentais de todas as lín-
guas são muito semelhantes e que os universais da lin-
guagem superam em muito as diferenças”?
R. Tudo leva a crer que sim, como já foi visto em diversas
questões anteriores.
35. O que é o conflito de interpretações?
R. É a atitude gerada pela pretensão de cada leitor de jul-
gar que a sua interpretação de um texto (sobretudo polí-
tico/ideológico/religioso) é a interpretação verdadeira,
e que as demais interpretações do mesmo texto são fal-
sas. Nasce, daí, a luta pela apropriação do sentido de
um texto (cf. Croata, 1986:31).
36. O que é sentido referencial de um texto?
R. É o seu sentido designativo (descritivo/ denotativo).
37. O que é sentido estrutural?
R. É o sentido (ou significado) gramatical ou formal, ou
seja, a significação interna, estabelecida pelos morfemas
flexionais, pelas relações sintáticas e pelo tipo de frase
(interrogativa etc.). (Cf. Dicionário de Lingüística de
Z. S. Jota).
38. O que é sentido denotativo?
R. É “o significado em sua função meramente intelectiva,
sem a carga de conotação; é a representação mental co-
mum e constante evocada pela palavra. Mesa, por exem-
plo, sempre nos evoca certo objeto, representação men-
tal única” (Dicionário de Lingüística de Z. S. Jota).
39. O que é sentido conotativo (ou expressivo)?
R. É “tudo o que se acrescenta à frase intelectiva (a entoa-
ção, as circunstâncias do momento etc.” (Ibid.). Por exem-
plo, “se digo para quem comigo passeia, “Olho o abis-
mo”, há nisso predominância do caráter informativo. Mas
se digo o mesmo para quem, distraído, se aproxima peri-
gosamente do precipício, eis que a frase, já agora com
carga emotiva e apelativa em alto grau, e pela situação
que envolve o fato, muda completamente de figura” (ibid.).
40. Quais as principais funções da linguagem?
R. Funções descritiva (designativa/referencial), expressiva e
apelativa (conativa / sugestiva).
41. Para que alguém possa compreender o significado da
palavra “queijo” é preciso ter um conhecimento não
lingüístico de queijo? Justifique sua resposta. (Ver
Jakobson, 1971).
R. De modo algum é preciso saborear o alimento queijo para
compreender o significado da palavra “queijo”. Como
esclarece o próprio Jakobson (op. cit.:63), “ninguém po-
derá compreender a palavra queijo se não conhecer o
significado atribuído a esta palavra no código lexical do
português. (...) O significado das palavras queijo, maçã,
néctar, conhecimento, mas, mero, ou de qualquer outra
palavra ou frase, é decididamente um fato lingüístico - ou
para sermos mais precisos e menos restritos - um fato
semiótico”.
42. A que recorrer se se quiser fazer compreender uma pala-
vra nova? (Id., ibid.)
R. “Será necessário recorrer a toda uma série de signos
lingüísticos se se quiser fazer compreender uma palavra
nova” (ibid.:64). “Para o lingüista, como para o usuá-
rio comum das palavras, o significado de um signo
lingüístico não é mais que sua tradução por um outro
signo que lhe pode ser substituído, especialmente um sig-
no ‘no qual ele se ache desenvolvido de modo mais com-
pleto’, como insistentemente afirmou Peirce, o mais pro-
fundo investigador da essência dos signos” (ibid.).
43. De quantas maneiras se pode interpretar ou traduzir um
signo verbal? (Id., ibid.)
R. De três maneiras: “ele pode ser traduzido em outros sig-
nos da mesma língua, em outra língua, ou em outro sis-
tema de símbolos não verbais” (ibid.).
44. Conceitue: tradução intralingual, interlingual e
intersemiótica. (Id., ibid.)
R. “A tradução intralingual ou reformulação (rewording)
consiste na interpretação dos signos verbais por meio
de outros signos da mesma língua. A tradução
interlingual ou tradução propriamente dita consiste na
interpretação dos signos verbais por meio de alguma
outra língua. A tradução intersemiótica ou transmutação
consiste na interpretação dos signos verbais por meio
de sistemas de signos nãoverbais. A tradução intralingual
Rev. de Letras - N0
. 20 - Vol. 1/2 - jan/dez. 199866
de uma palavra utiliza outra palavra, mais ou menos
sinônima, ou recorre a um circunlóquio. Entretanto, nor-
malmente, quem diz sinonímia não diz equivalência com-
pleta” (ibid.:65). Aplicando esse mesmo princípio à tra-
dução interlingual, podemos também dizer que um texto
bem traduzido é uma espécie de sinônimo do texto origi-
nal, mas sabendo-se que “quem diz sinonímia não diz
equivalência completa” ou total.
45. Comente o princípio segundo o qual “as línguas diferem
essencialmente naquilo que devem expressar e não na-
quilo que podem expressar” (id., ibid., p. 65).
R. Além do que já foi dito na resposta da questão nº 13,
podemos acrescentar a afirmação de Jakobson (op.
cit.:67) de que “toda experiência cognitiva pode ser
traduzida e classificada em qualquer língua existente.
Onde houver uma deficiência, a terminologia poderá ser
modificada por empréstimos, calcos, neologismos, trans-
ferências semânticas e, finalmente, por circunlóquios”.
Por conseguinte, as línguas não diferem essencialmente
no que podem dizer, mas no modo de dizer.
46. A poesia é traduzível?
R. Para muitos, a poesia é teoricamente intraduzível. As-
sim, Robert Frost (apud Paes, 1990:34) “definiu poesia
como tudo aquilo que se perde na tradução”. O próprio
Roman Jakobson (op. cit.:72) afirma que “a poesia, por
definição, é intraduzível”. Para Sílvio Romero (apud
Paes, op. cit.:9), “a poesia não se traslada sem perder a
maior parte de sua essência”. Essas afirmações não
correspondem à realidade dos fatos, pois, na prática,
sempre houve e continua havendo inúmeras traduções
de poesias. É o que se pode comprovar, por exemplo,
com “Manuel Bandeira que, embora tenha traduzido
poesia durante toda a sua vida, não hesitou em afirmar,
mais de uma vez, ser ela, em essência, intraduzível” (apud
Paes, op. cit.:35). Pode-se observar, através de afirma-
ções como essas, uma grande contradição entre o que se
diz e o que se faz.
47. O tradutor nasce, ou se faz?
R. Há os que nascem e os que se fazem. Tem havido na his-
tória da tradução excelentes tradutores que nunca tive-
ram conhecimentos científicos de lingüística ou de
semiótica, etc e, entretanto, realizaram trabalhos bem
sucedidos de tradução, e, por utro lado, tem havido os
que aprenderam a traduzir mediante cursos específicos
sobre teoria e prática da tradução.
48. Por que, conforme Catford (1980:53), a tradução não
pode ser vista essencialmente como um processo de
“transcodificação” (ou de “transferência” de significa-
dos) entre línguas?
R. Porque cada código lingüístico é um sistema único de
significados (de valores) próprios, em si mesmos
intransferíveis, semioticamente falando.
49. Qual a distinção que o referido autor (ibid.) faz entre
tradução como “transferência” e tradução como “substi-
tuição” de significados?
R. Na transferência há uma implantação de significados da LF
no texto da LM, enquanto que na substituição o que há é
reposição de significados da LF por significados da LM.
50. O que, segundo o mesmo autor (ibid.), normalmente se
entende por tradução?
R. A substituição de significados da LF por significados da
LM. Em termos mais explícitos, “Tradução pode defi-
nir-se como a substituição de material textual numa lín-
gua (LF) por material textual equivalente noutra língua
(LM)”. (Id., ibid., p.22).
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Teorias da tradução: uma visão integrada

  • 1. Rev. de Letras - N0 . 20 - Vol. 1/2 - jan/dez. 1998 51 Resumo As reflexões sobre a atividade tradutória têm mani- festado, por mais de dois mil anos, posicionamentos por vezes radicais ou frontalmente opostos. A velha tensão en- tre tradução literal e livre, por exemplo, ainda não foi sa- tisfatoriamente resolvida. Mesmo se manifestando, contemporaneamente, sob rótulos diferentes, é sempre, es- sencialmente, a mesma velha tensão que vem à tona. Par- tindo do pressuposto de que as posições extremas sempre erram o alvo, uma vez que geralmente enfatizam um aspec- to em detrimento de outros, este artigo defende uma visão integrada do fenômeno tradutório. Anexo ao artigo, encon- tra-se um questionário com perguntas e respostas sobre te- orias da tradução. Palavras-chave: tradução; tradução literal; tradução livre. Abstract Reflections on the activity of translation have manifested, for over two thousand years, both radical and diametrically opposed postures. The old tension between literal and free translation, for example, has still not been satisfactorily resolved. Despite manifesting itself, in the present day, under different labels, it is always, essentially, the same old tension that arises. Starting with the assumption that extreme positions always miss the mark, as they generally emphasize one aspect at the expense of others, this article defends an integrated view of the phenomenon of translation. In the appendix to the article, a questionnaire may be found with questions and answers about theories of translation. Key words: translation; literal translation; free translation. 1 INTRODUÇÃO O título do artigo é “teorias” (e não “teoria”) da tra- dução, porque ainda não existe nenhuma teoria unificada da tradu- ção no sentido técnico de “um conjunto coerente de proposições gerais usadas como princípios para ex- plicar uma classe de fenômenos”, mas existem algu- mas “teorias” no sentido lato de “um conjunto de princípios úteis para compreender a natureza da tra- dução ou para estabelecer critérios de avaliação de um texto traduzido” (Nida, 1993:155).1 Por não haver nenhuma teoria unificada da tradu- ção, também não existe definição de tradução que seja aceita por todos. O próprio termo tradução é polissêmico e pode signi- ficar (a) o produto (ou seja, o texto traduzido; (b) o processo do ato tradutório; (c) o ofício (a atividade de traduzir); ou (d) a disciplina (o estudo interdisciplinar e/ou autônomo). O modo de conceituar a tradução varia, de acordo com a polissemia do termo e com as diferentes perspectivas dos teóricos da tradução. Existem diversas posturas teóri- cas, algumas bastante radicais e outras que são frontalmente opostas. Neste artigo, analisaremos apenas algumas posições opostas, sobretudo as que são relacionadas com a velha ten- são bimilenar entre tradução literal e tradução livre, procu- rando equilibrar e integrar as forças contrárias. 2 TRADUÇÃO LITERAL E LIVRE A controvérsia mais antiga em torno da tradução diz respeito à tensão entre tradução literal e livre, duas posições TEORIAS DA TRADUÇÃO: UMA VISÃO INTEGRADA* José Pinheiro de Souza * Nossos agradecimentos ao Prof. Myrson Lima, da Universidade Estadual do Ceará, e ao Prof. Marcus Vinícius Fontes Dodt, da Universidade Federal do Ceará, pela colaboração que emprestaram ao aspecto redacional deste artigo. 1 É de nossa autoria a tradução de citações ocorrentes neste artigo.
  • 2. Rev. de Letras - N0 . 20 - Vol. 1/2 - jan/dez. 199852 frontalmente opostas. Ao conceito de tradução literal está associada a idéia de tradução fiel, neutra, objetiva, e ao de tradução livre, a idéia de tradução infiel, parcial, subjetiva. Essa controvérsia, de fato, já vem desde os antigos romanos. Cícero (1º. século A. C.), por exemplo, mostrava preferência pela tradução livre, ou seja, pela tradução do sentido, e não pela tradução literal, palavra-por-palavra (non verbum e verbo sed sensum exprimere de sensu). São Jerônimo (384 AD), o santo protetor dos tradu- tores, que traduziu a Bíblia inteira para o latim, também mostrou preferência pela tradução do sentido, opondo-se, desta maneira, à tendência dominante de seu tempo de se fazer tradução literal de obras sagradas por respeito à “Pala- vra de Deus” (cf. Delisle & Woodsworth, 1995:168). A tradução livre de um texto sagrado poderia ser in- terpretada como “infiel” e herética e o seu tradutor poderia ser condenado pela Inquisição. No século XVI, Martinho Lutero, ao traduzir a Bíblia para o alemão, defendeu o mesmo princípio básico de Cícero e de São Jerônimo, ou seja, o princípio da tradução do sen- tido e não, da tradução literal. Essa discussão continua até hoje. Entre os que, contemporaneamente, defendem a tradução literal, podemos citar Peter Newmark (Newmark, 1988:69), ao afirmar que “a tradução literal é correta e não deve ser evitada, uma vez que assegure a equivalência referencial e pragmática em rela- ção ao original”.2 Entre os que a combatem, podemos citar Vázquez-Ayora (1977, apud Gonçalves, 1996:43), que “pre- tende libertar a tradução do literalismo milenar”. Ele define tradução “como transferência de idéias de uma língua-cul- tura para outra” (ibid., p. 42). As diferenças quanto à função predominante da lin- guagem também exercem um papel importante nas divergên- cias de pontos de vista dos especialistas. Assim, enquanto para alguns tradutores a expressão literária é a função predomi- nante da linguagem, para outros é a sua função referencial que predomina (ou seja, a sua função de informar). A fim de conciliar e integrar essas posições extremis- tas, pode-se argumentar que elas podem ser vistas como com- plementares, uma vez que, dependendo do seu objetivo, do tipo de texto, da sua função predominante, e do maior ou menor grau de convergência ou de divergência lingüística e cultural entre as duas línguas envolvidas na tradução (cf. Barbosa, 1990:91-101), uma tradução pode ser mais ou me- nos literal, ou mais ou menos livre.3 Não se pode negar, portanto, que haja, sob essa pers- pectiva, dois tipos válidos de tradução: (a) tradução literal, centrada mais na forma e (b) tradução livre, centrada mais no sentido (nas idéias ou conceitos). O tradutor pode focali- zar sua atenção em uma ou outra dessas duas modalidades de tradução, sem, contudo, supervalorizar uma alternativa em detrimento da outra. 3 POSSIBILIDADE E IMPOSSIBILIDADE DA TRADUÇÃO Tem havido na história das teorias da tradução o pon- to de vista de alguns teóricos (filósofos, antropólogos, lin- güistas e poetas) que chegam até mesmo a negar teoricamen- te a possibilidade da tradução. Segundo alguns, como é pos- sível a tradução, se “os sistemas gramaticais são impenetrá- veis entre si”? (Meillet, apud Mounin, 1975:20). Como é possível traduzir, se, de acordo com os argumentos humboldtianos e neo-humboldtianos, “cada língua constitui uma visão de mundo diferenciada e única a que só se pode ter acesso por via dessa mesma língua e de nenhuma outra”? (Paes, 1990:33) Esta é a visão extremista defendida pelos adeptos da Hipótese Sapir-Whorf, ou hipótese do relatividade lingüís- tica, segundo a qual, a língua determina a maneira como as pessoas per- cebem e organizam o mundo. Esta visão (de ‘determi- nismo lingüístico’) foi exposta primeiramente pelo etnólogo alemão Wilhelm von Humboldt (1767-1835); no presente século, veio a ser conhecida como a HI- PÓTESE DE SAPIR-WHORF”. (Crystal, 1988:226) É verdade que, até certo ponto, pensamos deste ou daquele modo por causa da língua que falamos, “o que re- flete uma diferença no modo como as línguas interpretam a experiência do real” (Barbosa, op. cit.:67). Por exemplo, em português, pensamos distâncias em quilômetros, e não em milhas, como em inglês, porque nossa língua categoriza as distâncias em quilômetros e não em milhas. Outros exem- plos são dados por Barbosa (ibid.): keyhole (‘buraco da fe- chadura’) e like the back of my hand (‘como a palma da minha mão’). Esses casos, porém, são bastante isolados, em relação ao conjunto total dos fatos lingüísticos e, portanto, não invalidam a tese da universalidade da linguagem e da experiência humana, uma vez que o pensamento e as línguas manifestam, subjacentemente, mais semelhanças do que di- ferenças, o que explica a possibilidade da comunicação e da própria tradução. Écomumouvirem-setambém,naliteraturaespecializa- da, afirmações por demais negativas a respeito da possibilida- de da tradução, particularmente da tradução de poesia. 2 Ver também o artigo de Francis Aubert (Aubert, 1987): “A tradução literal: impossibilidade, inadequação ou meta?” 3 Convém lembrar que o conceito de tradução literal varia bastante de lingüista para lingüista. (Ver, por exemplo, Vinay e Darbelnet 1977, Catford 1965/1980, Newmark 1981/1995, e Aubert 1987, entre outros.)
  • 3. Rev. de Letras - N0 . 20 - Vol. 1/2 - jan/dez. 1998 53 Um discípulo de Benedetto Croce, assim escreveu: Devemos acolher como realidade irrefutável o con- ceito da intradutibilidade da expressão lingüística e, particularmente, da expressão ‘par excellence’, que é a poesia. (M. Fubini, 1963:789, apud Theodor, 1986:121) Voltaire (apud Paes, op. cit.:34-35) assim advertia os leitores de suas traduções: “Lembrai-vos, sempre, quando virdes uma tradução, que vedes uma fraca estampa de um belo quadro”. Robert Frost (ibid.) “definiu poesia como tudo aquilo que se perde na tradução”. Roman Jakobson (Jakobson, 1971:72) afirma que “a poesia, por definição, é intraduzível”. Para Sílvio Romero (apud, Paes, op. cit.:9), “a poesia não se traslada sem perder a maior parte de sua essência”. E também “Manuel Bandeira que, embora tenha traduzido poesia praticamente durante toda a sua vida, não hesitou em afirmar, mais de uma vez, ser ela, em essência, intraduzível” (Paes, op. cit.:35). Pode-se ver, através dessas afirmações, uma grande contradição entre o que se diz e o que se faz. Não obstante todas essas afirmações de desespero, permanece o fato de que a atividade de traduzir vem ocor- rendo, e com bastante sucesso, há mais de dois mil anos. E “sem a tradução, o mundo de hoje, com o rápido intercâm- bio de informações, seria impensável” (Snell-Hornby, 1995:131). É bem verdade que não existe tradução perfeita, do mesmo modo que não existe comunicação perfeita, ou abso- luta.Toda comunicação humana é limitada, mas normalmente é satisfatória para atingir seus objetivos. Comunicação limi- tada, parcial, não significa, contudo, comunicação ilusória ou falsa. Do mesmo modo, também não pode haver tradução perfeita. Toda tradução é parcial, limitada (mas nem por isso ilusória), podendo, porém, ser aperfeiçoada. (Cf. Buzzetti, 1987:58). Sabemos, igualmente, que “a maior parte da popula- ção do mundo é bilingüe ou multilingüe” (Malmkjaer, 1997:60), o que faz da tradução um processo natural e ne- cessário da comunicação humana. Aliás, toda comunicação verbal humana, seja ela intralingual ou interlingual, sempre envolve, necessariamen- te, algum tipo de tradução. No dizer de Murata (1996:69), “tudo o que se diz é uma tradução do que já se disse”. E, nas palavras de Octavio Paz (apud Arrojo, 1986:11), “a própria língua, em sua essência, já é uma tradução: em primeiro lu- gar, do mundo não verbal e, em segundo, porque todo signo e toda frase é uma tradução de outro signo e de outra frase”. O mesmo ponto é elucidado por George Steiner (Steiner, 1998:xii), em seu famoso livro, After Babel: Aspects of Language & Translation: After Babel fundamenta-se no postulado de que o ato de traduzir está implícito, formal e pragmaticamente, em todo e qualquer ato de comunicação, na emissão e recepção de todo e qualquer modo de significação. (...) Compreender é decifrar. Entender significados é traduzir. (...) A tradução entre línguas diferentes é uma aplicação particular de um modelo fundamental da comunicação humana através da linguagem (...) . Mas quem melhor esclarece esse ponto é Jakobson (1971:64), ao afirmar que (. . .) o significado de um signo lingüístico não é mais que sua tradução por um outro signo que lhe pode ser substituído, especialmente um signo ‘no qual ele se ache desenvolvido de modo mais completo’, como insisten- temente afirmou Peirce, o mais profundo investigador da essência dos signos. (...) Distinguimos três manei- ras de interpretar um signo verbal: ele pode ser tradu- zido em outros signos da mesma língua, em outra lín- gua, ou em outro sistema de símbolos não-verbais. Assim, conforme o mesmo autor (ibid., p. 64-65), existem três espécies de tradução (intralingual, interlingual e intersemiótica): 1) A tradução intralingual ou reformulação (“rewording”) consiste na interpretação dos signos verbais por meio de outros signos da mesma língua. 2) A tradução interlingual ou tradução propriamente dita consiste na interpretação dos signos verbais por meio de alguma outra língua. 3) A tradução intersemiótica ou transmutação consiste na interpre- tação dos signos verbais por meio de sistemas de sig- nos não verbais. O mesmo lingüista nos esclarece que as línguas diferem essencialmente naquilo que devem ex- pressar, e não naquilo que podem expressar (ibid., p. 69). Em outros termos, as línguas não diferem essencial- mente no que podem dizer, mas no modo de dizer. Por isso, nos afirma Jakobson (op. cit., p. 67) que toda experiência cognitiva pode ser traduzida e clas- sificada em qualquer língua existente. Onde houver uma deficiência, a terminologia poderá ser modifica- da por empréstimos, calcos, neologismos, transferên- cias semânticas e, finalmente, por circunlóquios. Em suma, não existe equivalência total entre as lín- guas no nível da forma, mas existe equivalência no nível do conteúdo comunicativo. Em outras palavras, cada língua é um sistema sui generis, um código próprio, com suas própri- as formas e regras, mas é também, ao mesmo tempo, um sistema de comunicação, o que torna possível a tradução. Essa natureza dual da linguagem é bem expressa por Bell (1991:6-7) nos seguintes termos: Toda língua é uma estrutura formal - um código - que consiste em elementos que podem combinar-se para
  • 4. Rev. de Letras - N0 . 20 - Vol. 1/2 - jan/dez. 199854 veicular ‘sentido’ semântico e, ao mesmo tempo, um sistema de comunicação que emprega as formas do código para referir-se a entidades (do mundo real ou imaginário) e cria sinais que possuem ‘valor’co- municativo. Acrescenta ainda o mesmo autor (p. 7) que o tradutor tem opção, então, de focalizar quer as equi- valências formais, que ‘preservam’o sentido semântico do texto original, (...) quer as equivalências funcionais, que ‘preservam’o valor comunicativo do texto (...) . A tradução só é impossível, por conseguinte, para quem vê a língua apenas por uma de suas dimensões (cf. citação de Bell acima), ou seja, a de ser um sistema sui generis, um código próprio, imanente, semioticamente fe- chado. Mas é preciso não esquecer que toda língua é, igual- mente, um sistema de comunicação, transcendente, o que torna possível a comunicação interlingual, que é a tradu- ção (ibid.).4 É verdade que nem sempre existem correspondênci- as exatas de valores entre as línguas (no sentido saussuriano do termo), mas há correspondências de significação. Do con- trário, qualquer tradução seria impossível. No dizer de Mounin (op. cit., p. 35-36), (...) a crítica de Saussure abala profundamente a an- tiga segurança das pessoas para as quais a língua é uma nomenclatura, um repertório, um inventário. Todavia, a análise saussuriana da noção de sentido não compromete a validade das operações de tradu- ção visto como, baseada na psicologia clássica, ela não põe realmente em dúvida, em parte alguma, a natureza universal dos conceitos - seja qual for a sua distribuição em valores - que refletem a experiência humana universal. (grifos nossos) 4 TRADUÇÃO COMO OPERAÇÃO LINGÜÍSTICA E LITERÁRIA Há os que vêem tradução exclusivamente como arte, como empreendimento de ordem literária e artística, e os que a encaram como operação essencialmente lingüística (cf. Mounin, op. cit., p.24). Essa polêmica está intimamente re- lacionada com a tensão entre tradução literal e livre, pois os que a definem como arte, normalmente tradutores poetas, não-lingüistas (cf. Mounin, ibid.), defendem mais a tradução livre, enquanto os que a definem como operação essencial- mente lingüística, privilegiam mais a tradução literal ou di- reta, sem negar, contudo a tradução livre ou oblíqua. Como afirmamos na Seção 2, cada uma dessas duas posições extremas enfatiza apenas um dos aspectos da tra- dução, que, dependendo do tipo de texto, da sua função pre- dominante (expressiva, descritiva ou apelativa), do seu ob- jetivo e do seu público-alvo, pode e deve ser realizada mais livre e subjetivamente (como operação artístico-literária), ou como operação predominantemente lingüística, voltada mais para os aspectos literais/referenciais do que para os efeitos literários/expressivos. 5 TRADUÇÃO COMO SUBSTITUIÇÃO E PRODUÇÃO DE SIGNIFICADOS Em oposição frontal às definições tradicionais de tra- dução como reprodução ou “transferência de significados de um código lingüístico para outro” (Barbosa, 1990:11, con- cordando com Bordenave, 1987:2), algumas visões igual- mente unilaterais de leitura e tradução (por exemplo, Arro- jo, 1986/1992) concebem leitura e tradução como processos essencialmente criativos de produção de significados, apa- rentemente esquecendo que todo texto é também um código lingüístico, preexistente e imposto aos indivíduos, portador de marcas significativas relativamente estáveis e objetivas, que precisam ser identificadas por todo aquele que desejar compreendê-lo e/ou traduzi-lo. O conceito mais comum de tradução, segundo os lin- güistas, contudo, não é o de “transferência”, mas o de “subs- tituição”, de significados. Catford (1980:53), embora admi- ta alguns casos de “transferência” de significado em tradu- ções, esclarece bem que esse não é o processo normal. Eis suas palavras: Por meio dos exemplos como os precedentes deveria ficar claro que é possível uma espécie restrita de “trans- ferência de significado” de uma língua para outra; mas fica igualmente claro que isso não é o que normalmen- te se entende por tradução. Em “tradução” há substi- tuição de significados da LF [Língua-Fonte] por sig- nificados da LM [Língua-Meta]: não transferência de significados da LF para a LM. Na transferência há uma implantação de significados da LF no texto da LM. Esses dois processos devem ser claramente dife- renciados em qualquer teoria de tradução. Catford, por conseguinte, nega que a tradução seja es- sencialmente um processo de “transcodificação” (op. cit.:45), ou seja, um processo de “transferência” de significados, pois o significado, a nosso ver, é uma propriedade da lín- gua. Um texto da LF tem um significado que é da LF, e um texto da LM tem um significado que é da LM: um texto russo, por exemplo, tem um significa- do russo (...), e um texto equivalente inglês tem um significado inglês. 4 Ver também Benveniste, 1989, capítulos 1, 3, e 15.
  • 5. Rev. de Letras - N0 . 20 - Vol. 1/2 - jan/dez. 1998 55 Por isso, para Catford (op. cit.:22), tradução pode definir-se como a substituição de ma- terial textual numa língua (LF) por material textual equivalente noutra língua (LM)”. Esse é essencialmente o mesmo conceito básico de tradução adotado por outros lingüistas famosos, como Vinay e Darbelnet (1977), Bell (1991), Nida (1993) etc. Para Nida (apud Mounin, op. cit.:252), a tradução consiste em produzir na língua de chega- da o equivalente natural mais próximo da mensagem da língua de partida, em primeiro lugar no que diz respeito à significação e em seguida no que diz res- peito ao estilo. O conceito de “tradutor como ‘produtor’ de signifi- cados” e o “caráter essencialmente criativo do processo de tradução” acham-se bem explícitos em Arrojo (1986:78-9): Na medida em que questiona a estabilidade de qual- quer texto, seja “original” ou não, e na medida em que chama atenção para o papel do tradutor como “produtor” de significados, Oficina de tradução questiona, também o termo original. (...). O que Oficina de tradução propõe é o reconheci- mento do caráter essencialmente criativo do processo de tradução. Para se compreender o processo de tradução (e as teorias que tentam explicar esse processo), é preciso tentar entender, em primeiro lugar, o processo de leitura, uma vez que todo tradutor é necessariamente um leitor. Por isso, nes- ta seção analisaremos também a natureza da leitura, em ge- ral, e a do leitor-tradutor, em particular. Vamos, inicialmente, refletir um pouco sobre a natu- reza da leitura. O que é ler? Seguindo o modelo interativo de leitura de David Eskey (Eskey, 1986:16-18), consideremos o que envolve a leitura da seguinte frase: If you tell the truth long enough you are bound to be found out. (Se contarmos toda a verdade, com certeza seremos descobertos.)5 Para entender essa frase, o leitor precisa, em primeiro lugar, conhecer as formas ortográficas e os significados das estruturas e das palavras que compõem a frase (o que obvia- mente pressupõe o conhecimento do sistema alfabético que usamos), bem como certas convenções (tais como a ordem das palavras, que em inglês e em português é da esquerda para a direita, o emprego de letras maiúsculas e minúsculas, o uso da pontuação, etc.). Mais precisamente, o leitor deve saber, por exemplo, que a forma gramatical da frase expressa uma relação de causa/efeito entre a oração (ou cláusula) su- bordinada ( “if”, “se”) e a oração independente, ou seja, que a oração principal deve ser entendida como resultado da ora- ção subordinada. O leitor deve reconhecer e corretamente decodificar a forma passiva do sintagma verbal da oração principal, isto é, deve entender que a frase diz respeito à pos- sibilidade de “sermos descobertos por alguém” e não vice- versa, isto é, de “nós descobrirmos alguém”. O leitor deve ainda saber que o pronome you, empregado na frase inglesa, é um pronome indefinido que pode referir-se a qualquer pes- soa (e não apenas ao leitor) e que a locução to be found out (além de seu sentido básico de “ser descoberto”) expressa a conotação de que seu sujeito está envolvido em algum tipo de ação desonesta. Além desse conhecimento lingüístico, porém, o leitor precisa possuir conhecimentos extralingüísticos, tais como as atitudes com relação ao comportamento social ou moral das pessoas, de tal modo que “falar a verdade” seja normalmente considerado uma ação digna de louvor. O leitor deve compre- ender ainda que existe na frase acima uma certa pitada de hu- mor (ou de ironia), uma vez que há uma inversão do que nor- malmente se esperaria na oração principal (o louvor esperado por quem diz a verdade). Na ausência de tal conhecimento extralingüístico, a força (o efeito) principal da frase, o con- traste entre a expectativa sugerida pela oração subordinada e a surpresa pela inversão dessa expectativa (e daí a pitada de humor) na oração principal, desaparece completamente para o leitor, mesmo que faça uso dos melhores dicionários. A compreensão da frase acima, como estamos obser- vando (ver também Figuras 1 e 2 abaixo, traduzidas e adap- tadas de Eskey, op. cit.:15 e 18, respectivamente), depende de uma complexa interação entre conhecimentos lingüísticos (Conhecimento de Forma), de um lado, e conhecimentos não lingüísticos (Conhecimento de Substância), do outro. Em outros termos, a compreensão dessa frase, como a de qualquer outro texto, envolve um processo de interação en- tre identificação de formas lingüísticas, de um lado, e um processo de interpretação da frase, com base em conheci- mentos não lingüísticos, de outro. Isso fica mais claro nos diagramas das Figuras 1 e 2, abaixo, que esquematizam os princípios básicos do processo interativo de leitura, segundo o modelo de David Eskey, que adotamos. De acordo com esse modelo (cf. Eskey, op. cit.:14- 15), a leitura é um tipo particular de comportamento cognitivo, baseado em certos tipos de conhecimento que for- mam parte da estrutura cognitiva do leitor.Assim, a Figura 1 começa com a estrutura cognitiva na mente do leitor, ou seja, com o que ele já sabe, com o que está armazenado como esquemas em sua memória de longo prazo. Ele deve, por exemplo, conhecer bem a língua em sua forma escrita, e ter suficiente conhecimento do assunto do texto a fim de que o 5 A frase original é de Eskey (op. cit.:16) e os comentários que se seguem são uma tradução e adaptação nossa do mesmo autor, p. 16-18.
  • 6. Rev. de Letras - N0 . 20 - Vol. 1/2 - jan/dez. 199856 mesmo lhe seja compreensível. Seu conhecimento de forma (formas grafofônicas, lexicais, sintáticas, semânticas e retó- ricas) cria-lhe determinadas expectativas sobre a linguagem do texto. Com essas expectativas, durante o ato físico da lei- tura, ele terá condições de fazer, rápida e automaticamente, identificações precisas das formas lingüísticas, utilizando um número mínimo de pistas visuais. Simultaneamente, seu co- nhecimento de substância (conhecimento cultural, pragmá- tico e do assunto específico) cria-lhe determinadas expecta- tivas sobre a estrutura conceptual do texto como um todo. Com essas expectativas, durante o processo da leitura, ele poderá fazer predições corretas sobre a interpretação do sig- nificado global do texto e atingir, assim, a compreensão, ou seja, uma reconstrução (ou produção) do significado do tex- to como um todo. A seta apontando da Compreensão de volta para a Estrutura Cognitiva (Figura 1) significa o es- tágio do processo quando o leitor integra a compreensão glo- bal do texto à sua estrutura cognitiva. Vemos, portanto, por esse modelo de leitura, que a compreensão leitora envolve uma interação entre leitor e texto, e entre conhecimento lingüístico, de um lado, e co- nhecimento não lingüístico, de outro. Graças ao primeiro tipo de conhecimento, o leitor identifica/percebe os signi- ficados (valores) lingüísticos (relativamente objetivos e es- táveis) do texto e, ao mesmo tempo, através do segundo tipo de conhecimento, ele produz interpretações subjetivas da compreensão leitora. Qual a implicação desse modelo de leitura para a teo- ria da tradução? Com base nessa perspectiva, já que todo tradutor é, antes, um leitor, toda tradução terá que ser, em Figura 1: Leitura como comportamento cognitivo: um modelo interativo Figura 2: Conhecimentos Indispensáveis à Leitura.
  • 7. Rev. de Letras - N0 . 20 - Vol. 1/2 - jan/dez. 1998 57 primeiro lugar, um processo de identificação e de interpreta- ção/produção de significados, em relação à compreensão leitora do texto original e, em segundo lugar, um processo de substituição e de produção de significados em relação ao texto de chegada.6 Analogamente ao processo de leitura, o ato tradutório envolve uma interação (ou negociação) entre leitor-tradutor e texto, e entre conhecimento lingüístico, de um lado, e co- nhecimento não lingüístico, de outro, tanto em relação ao texto de partida quanto em relação ao texto de chegada. Gra- ças ao primeiro tipo de conhecimento, o tradutor identifica e substitui os significados (valores) lingüísticos (relativamen- te objetivos e estáveis) da língua de partida por significados equivalentes (também relativamente objetivos e estáveis) da língua de chegada e, simultaneamente, graças ao segundo tipo de conhecimento (e demais liberdades e/ou finalidades tradutórias), ele produz o lado subjetivo/interpretativo de sua tradução. O ato tradutório envolve, em suma, dois processos complementares e simultâneos, mas distintos: substituição (relativamente objetiva/literal) e produção (relativamente subjetiva/livre) de significados. 6 O TEXTO TRADUZIDO COMO “PALIMPSESTO” Ao conceito tradicional/estruturalista de texto como objeto relativamente estável, e de tradução como “reprodu- ção fiel” (ou transporte, ou transferência, ou substituição) de significados (ou de mensagens) de uma língua para outra, mais associado ao conceito de tradução literal, visão, obvia- mente, limitada, unilateral, da realidade, opõe-se, frontalmen- te, o conceito “pós-estruturalista/desconstrutivista” de texto traduzido como “palimpsesto”, assim definido: O texto, como o signo, deixa de ser a representação “fiel” de um objeto estável que possa existir fora do labirinto infinito da linguagem e passa a ser uma má- quina de significados em potencial. A imagem exem- plar do texto “original” deixa de ser, portanto, a de uma seqüência de vagões que contêm uma carga determinável e totalmente resgatável. Ao invés de con- siderarmos o texto, ou o signo, como um receptáculo em que algum “conteúdo” possa ser depositado e man- tido sob controle, proponho que sua imagem exem- plar passe a ser a de um palimpsesto (grifos nossos). Segundo os dicionários, o substantivo masculino palimpsesto, do grego palímpsestos (“raspado nova- mente”), refere-se ao “antigo material de escrita, prin- cipalmente o pergaminho, usado, em razão de sua es- cassez ou alto preço, duas ou três vezes [...] mediante raspagem do texto anterior” (Arrojo, 1986:23)7 Essa visão é unilateral, pois, se, por um lado, enfatiza o aspecto da interpretação subjetiva da leitura e da tradução de um texto, por outro lado, pretende anular o outro pólo da verdade, ou seja, o aspecto objetivo da compreensão e tra- dução de um texto. Como já afirmamos alhures (Souza, 1999) e como foi visto em seções anteriores deste artigo, o elemento da interpretação criativa está presente não somente em qual- quer tradução, mas, antes, em qualquer tipo de processamento textual, uma vez que a compreensão de um texto sempre en- volve negociação entre autor, texto e leitor. Em outros ter- mos, o sentido de um texto não está nem totalmente no autor, nem totalmente no texto, nem totalmente no leitor. É o resul- tado de uma negociação entre todas as partes envolvidas. Inversamente, podemos afirmar que o sentido de um texto está parcialmente: no autor, no texto (enquanto objeto lingüístico), no leitor e no contexto situacional. E o sentido de um texto traduzido não pode fugir a esta regra. Como elucida Komissarov (1987:418-419), a comunicação interlingual (ou tradução) tem tam- bém por objetivo a transmissão de algum conteúdo cognitivo do autor do texto-fonte para o receptor do texto-alvo, e uma tradução equivalente deveria viabilizar esta transmissão. (...) Atualmente, põe-se muita ênfase no papel dos traços individuais do ato de comunicação. Enfatiza-se muito a tradução centrada no receptor. Assim, a pergunta ‘Esta tradu- ção é equivalente?’ é respondida com outra pergun- ta: ‘Equivalente para quem?’ Esta atitude inevitavel- mente resulta numa diminuição (ou depreciação) do papel dos aspectos lingüísticos no processo de tradu- ção. (...) A visão limitada de texto como produto de um ato individual de comunicação, produzido sob condições únicas, irreproduzíveis, tem o perigo de es- quecer alguns traços essenciais do texto como veícu- lo de comunicação que pode expressar e fixar os pen- samentos humanos. (...) A semântica do texto é de relativa estabilidade. O tex- to e seu conteúdo semântico continuam a existir de- pois de completado o ato individual de comunicação para o qual ele foi produzido. O texto se perpetua em sua forma escrita e se distancia por isso da comuni- cação original, preservando, contudo, seu potencial comunicativo. Ele pode agora transmitir sua infor- mação inerente repetidas vezes a todos os leitores que conhecem a língua. Esta é a função mais importante das unidades lingüísticas gravadas (ou escritas) que fixam e preservam o conteúdo cognitivo em sua se- 6 A expressão “substituição de significados” está sendo usada, aqui, no sentido de “reposição dos significados (valores) lingüísticos” da LF, identificados no ato da compreensão leitora, por significados (valores) lingüísticos equivalentes da LM, conforme a definição lingüística de tradução proposta por Catford (1980:22). 7 Para a visão “desconstrutivista/pós-estruturalista” de tradução, ver também Arrojo (1992/1993) e Ottoni (1998).
  • 8. Rev. de Letras - N0 . 20 - Vol. 1/2 - jan/dez. 199858 mântica, tornando-o disponível, acessível, a qualquer receptor do presente ou do futuro. (...) Em resumo, podemos dizer que, por um lado, o texto expressa, aqui e agora, alguma mensagem específica que é produzida em determinadas circunstâncias para um determinado receptor, com sua própria estrutura cognitiva (sua experiência única, seus conhecimen- tos prévios). Este é o aspecto subjetivo (interpretativo) da compreensão da mensagem. Mas, por outro lado, o texto contém informação acessível a qualquer lei- tor que conheça a língua, informação esta que de- pende, exclusivamente, dos significados das unida- des lingüísticas e que, portanto, não depende das possíveis diferenças na estrutura cognitiva de cada leitor. Este é o aspecto objetivo da compreensão do texto. (grifos nossos) Nesse contexto, concordamos plenamente com o Prof. Mário Laranjeira (Laranjeira, 1996:18), ao fazer as seguin- tes ponderações acerca das posições “objetivistas” de lin- güistas estruturalistas em confronto com as atitudes “subjetivistas” dos desconstrutivistas: Cabe consignar primeiro a grande contribuição que as várias correntes lingüísticas rotuladas lato sensu como estruturalistas deram à reflexão e aos estudos da linguagem no decorrer deste século e que não se pode simplesmente descartar. Um traço comum subjaz às teorias estruturalistas, de Saussure a Chomsky: a linguagem, oral ou escrita, é vista como um objeto a ser descrito, fora do sujeito. Ou não há, pelo menos, uma preocupação com a teoria do sujeito na produ- ção do sentido em suas várias instâncias. A conseqü- ência disso é que, quando alguns lingüistas estrutu- ralistas incursionaram pelo terreno da tradutologia, deixaram a impressão de que o texto, objeto perceptí- vel e analisável, seria uma espécie de vasilha a con- ter um produto: o sentido. A operação tradutória se- ria comparável a uma troca de vasilhas, de suporte, de código lingüístico, mantendo-se intacto e incólu- me o conteúdo, o sentido. Reagindo a essas coloca- ções a que poderíamos chamar de objetivistas, certos teóricos, que se autodenominam desconstrutivistas, pós-estruturalistas ou pós-modernos, assumem posi- ção diametralmente oposta. Escudados na autorida- de da palavra (ou em sua leitura da palavra) de auto- res como Jacques Derrida, Michel Foucault, Jean-François Lyotard e outros (cujos seguidores, no Brasil, costumam citar em traduções inglesas), não aceitam que o texto seja um objeto significante, que ele tenha “marcas” capazes de produzir sentido. Só existiria sentido na leitura concreta e particular que cada sujeito faz do texto. Não há verdade. Ela seria uma mera ilusão, uma projeção dos desejos do sujei- to sobre a realidade exterior. Negam que se possa es- tabelecer qualquer distinção, a partir do texto, entre o literário e o não literário, entre uma oitava de Camões e uma bula de remédio, entre um soneto de Antero de Quental ou de Cruz e Souza e um teorema de matemática. Chegam mesmo a contestar a objeti- vidade dos conceitos de língua materna e de língua estrangeira. Tal posicionamento teórico, se levado às suas últimas conseqüências, conduz a negar qualquer hipótese de tradução ou, paradoxalmente, a conside- rar que tudo é tradução. Apagam-se todos os limites. Em nome da diferença, eliminam-se as diferenças. A nosso ver, tanto a posição estruturalista pura como a posição desconstrutivista extremada são insuficien- tes para dar conta do problema do sentido, da leitura e da sua reescrita que é a tradução. A primeira é in- suficiente por não considerar o sujeito, e a segunda é insuficiente por só considerar o sujeito da leitura. Além de concordarmos inteiramente com a crítica do Prof. Mário Laranjeira, queremos aprofundar um pouco mais essa reflexão acerca das duas visões em confronto, fazendo uma síntese dos pressupostos epistemológicos de ambas e das conseqüências desastrosas de se ter uma visão unilateral de qualquer fenômeno da realidade. Para a posição desconstrutivista, ler e traduzir, como vimos na seção anterior, são processos essencialmente cria- tivos. Nega-se a estabilidade relativa de qualquer texto, tan- to para o leitor como para o tradutor. Tudo parece ser cria- ção subjetiva na leitura e na tradução. Desaparece completa- mente, assim, o conceito tradicional, milenar, de “fidelidade” à obra traduzida. Mas, se os textos traduzidos são pura cria- ção subjetiva, sem relação alguma com o original, uma vez que os textos originais seriam “raspados”, como “palim- psestos”, com que direito podemos ainda afirmar que eles são “tradução” de outro, e mesmo, texto? No dizer de Croata (1986:33), “se há muitas interpretações de um mesmo texto, todas partem do mesmo texto, e então deve haver alguma forma de convergência”. Diríamos que se trata, aqui, do ve- lho problema filosófico da unidade na multiplicidade (o “Uno” do “Verso”), que as várias leituras e traduções de um mesmo texto não podem fugir à regra: todas são, em parte, diferentes, mas, essencialmente, a mesma coisa, uma vez que todas revelam, necessariamente, a unidade na multiplicidade, pois todas são manifestações diferentes da mesma unidade fundamental contida no texto original. Se essa unidade do texto original for “raspada”, para dar lugar a outra unidade no texto de chegada, então, sim, o texto de chegada será re- almente outro texto, e não mais terá direito a ser chamado de “tradução” de outro, e mesmo, texto. Todavia, se o texto lido ou traduzido é visto como um “palimpsesto”, então não existe mais correspondência (uni- dade) alguma entre o que se diz e o que se ouve, entre o que se escreve e o que se lê, entre o que texto original afirma e o que o texto traduzido reafirma. Em outros termos, desapare- ce, então, a possibilidade de qualquer comunicação, de qual- quer leitura e de qualquer tradução. O bom senso e os fatos nos dizem que tanto a posição estruturalista/objetivista quanto a subjetivista/desconstrutivista são unilaterais, por enfatizarem apenas aspectos parciais da verdade tradutória. A nosso ver, os dois pontos de vista são complementares, pois o tradutor se utiliza das duas perspecti- vas ao mesmo tempo: da objetivista e da subjetivista. Não há,
  • 9. Rev. de Letras - N0 . 20 - Vol. 1/2 - jan/dez. 1998 59 portanto, motivos para separá-las, fechando-nos em barreiras preconcebidas, num ou no outro pólo. Essa tensão entre objetivistas e subjetivistas em tor- no de teorias de leitura e de tradução está vinculada à conhe- cida tensão filosófica, acerca da teoria do conhecimento, entre realismo, de um lado, e idealismo, de outro. O realismo de- fende a objetividade do conhecimento, enquanto o idealis- mo a nega. Para o realismo, o conhecimento é uma “desco- berta” da realidade, enquanto para o idealismo o conheci- mento é uma “construção” da realidade (cf. Franca, 1978:245). Para o realismo (mas não para o idealismo), existe uma distinção clara entre sujeito e objeto, distinção essa que é negada pelos idealistas, os quais vêem no conhecimento uma imanência (e não uma transcendência) entre sujeito e objeto. Para o realismo (cf. Franca, ibid.:251), “o conheci- mento não cria o seu objeto, mas é uma relação entre seres que preexistem independentemente desta relação”. Tentando explicar essas posições opostas de maneira mais explícita, diremos (com Franca, op. cit.:182-185) que, para os realistas, o conhecimento humano resulta de um pro- cesso interativo (que envolve análise e síntese) entre um su- jeito cognoscente e um objeto cognoscível. Há nesse proces- so uma clara distinção entre o sujeito e o objeto. Além disso, o sujeito, no ato de conhecer, percebe o objeto e se adapta às suas leis. Para os idealistas, ao contrário, o conhecimento não é a percepção do objeto, mas sim a criação (a produção, a construção inteiramente subjetiva) do objeto. Não é o su- jeito que se adapta às leis dos seres, e sim os seres que se amoldam às leis do sujeito. Em outros termos, o sujeito cria o seu objeto, sendo o conhecimento uma produção puramente subjetiva da realidade. A visão tradicional/estruturalista de leitura e de tra- dução enfatiza o pólo realista/objetivo do conhecimento, enquanto a visão desconstrutivista enfoca o outro pólo, a di- mensão idealista/subjetiva do conheciemnto, da leitura e da tradução, negando que haja uma distinção clara e objetiva entre sujeito e objeto, como se pode constatar em Arrojo (1992:9-10), ao tentar definir o que seja “desconstrução”, fazendo referência ao filósofo francês, Jacques Derrida, o criador da palavra: Derrida propõe a ‘de-sedimentação, a desconstrução de todas as significações que brotam da significação do logos [a razão, a palavra de Deus, a fala, o discurso]. Em especial a significação de verdade. (...) Dentre as dicotomias e hierarquias que a precisão do bisturi desconstrutor de Derrida tem atingido, talvez a primei- ra e a mais abrangente seja a possibilidade - plenamen- te autorizada por nossa tradição logocêntrica - de uma distinção clara e objetiva entre sujeito e objeto. Pior do que isso, os idealistas/desconstrutivistas, apoi- ados no pensamento filosófico de Frederico Nietzsche (e na psicanálise de Sigmund Freud), negam a própria noção tra- dicional de “verdade”, ou que o homem seja capaz de “des- cobrir verdades”, como se pode observar na seguinte passa- gem de Arrojo e Kanavillil (1992:54-55): Assim, de acordo com a perspectiva descortinada por Nietzsche, o homem não é um descobridor de “verda- des” independentes de seu desejo de poder ou de seu instinto de sobrevivência, mas, sim um produtor de significados e, portanto, de conhecimentos que se con- sagram através das convenções que disciplinam os homens em grupos sociais. (...) Como lembra Stanley Fish (1980) “todos os objetos são criados e não des- cobertos, e são criados pelas estratégias interpre- tativas que colocamos em ação (op. cit.:331)”. (...) Além do pensamento de Nietzsche, podemos conside- rar a psicanálise de Sigmund Freud e, principalmen- te, o conceito do “inconsciente” que mudou radical- mente a própria noção de sujeito. A partir do insight freudiano de que o homem carrega consigo um lado desejante e desconhecido, todo o conhecimento, to- das as ciências, todas as “verdades”, todos os senti- dos “literais” têm de ser necessariamente relativi- zados e reconhecidos como produto - ou sintoma - de uma interpretação, mediação inevitável entre homem e mundo.8 Em suma, a “verdade”, segundo essa visão, é pura ilusão, um mero impulso dos desejos do inconsciente. Essa postura tenta, igualmente (com base em Nietzsche e Freud), em nome do inconsciente, anular a própria racionalidade consciente do ser humano, o que logicamente implica tam- bém negar a liberdade e a responsabilidade humanas. De fato, se o homem não é mais consciente dos seus atos, também não pode mais ser responsável por eles, o que acarretaria o caos social e moral da sociedade. Essa desvalorização ou anulação do aspecto consciente do ser humano, que nada mais seria nessa visão do que mero produto do inconsciente, é expressa por Arrojo (1992:15), nos seguintes termos: o homem ocidental, forjado no culto ao racionalismo, ilude-se com sua suposta autonomia “consciente” - que não passa de uma instância derivada de processos in- conscientes - e crê poder separar-se do “real”, ou seja, crê poder olhar o “real” e o outro com olhos neutros; crê, em suma, poder “descobrir” “verdades” que não sejam construídas por ele mesmo, nem “contamina- das” pelo seu desejo. É, portanto, a partir da des- construção da noção de sujeito enquanto ser presente a si mesmo que Nietzsche passa à desconstrução do impulso à verdade e do próprio conceito clássico de verdade. A noção do impulso à verdade, do desejo de saber, é, para Nietzsche, outra grande ilusão humana. Na tentativa de conciliar as duas posições antagô- nicas discutidas nesta seção, podemos argumentar, como já 8 Ver também Arrojo (1993:18).
  • 10. Rev. de Letras - N0 . 20 - Vol. 1/2 - jan/dez. 199860 o fizemos, até certo ponto, em seções anteriores deste artigo, que o processo do conhecimento, como o de leitura e tradu- ção, envolve aspectos objetivos e subjetivos, conscientes e inconscientes. O conhecimento, como a leitura de um texto original ou traduzido, é sempre um processo interativo (um jogo) entre partes distintas: de um lado, a realidade objetiva que é conhecida (ou lida, ou traduzida), e, de outro, um su- jeito que a conhece (que a lê, que a traduz). Nessa interação (nesse jogo) entre sujeito e objeto, há muito campo para va- riação no pólo do sujeito, consciente e inconsciente (aspecto subjetivo do conhecimento, da leitura ou da tradução), que depende obviamente da estrutura cognitiva subjetiva (cons- ciente e inconsciente) de cada sujeito cognoscente. Nesse sentido, cada conhecimento (cada compreensão, cada leitura ou tradução) da realidade é único, pois os conhecimentos prévios e os condicionamentos circunstanciais de cada su- jeito cognoscente são únicos. Mas, por outro lado, não se pode esquecer o outro pólo do conhecimento (da leitura ou da tradução), uma vez que para haver interação (jogo) é con- dição necessária que haja duas partes envolvidas. Negando- se uma, nega-se também a outra. Se é verdade, de acordo com a posição idealista/ desconstrutivista, que todo conhecimento é uma pura criação individual, desprovida da dimensão objetiva, relativamente estável, do objeto conhecido, nega-se, então, teoricamente, a própriaciência,quenãoésimplesmentecriaçãosubjetivadeste ou daquele sujeito, mas é, ao mesmo tempo, conhecimento partilhado, comum a todos, universal. Além disso, a ciência, em seu aspecto objetivo, é também descoberta, é percepção de leis que existem nos objetos (e não apenas em nossas cabe- ças). A realidade (a “verdade”), por exemplo, da gravidade dos corpos já existia antes e independentemente de sua desco- berta pela ciência. O sistema heliocêntrico preexistia à sua descoberta por Copérnico. E a partir de Copérnico, ninguém mais aceita o sistema geocêntrico (= conhecimento falso acer- ca de uma realidade objetiva do mundo), o que prova que po- demos errar ao conhecer a realidade que nos rodeia. O pró- prio fato de existir o erro, o conhecimento falso, acerca da realidade extra-subjetiva, prova que a verdade do conhecimen- to não está simplesmente no sujeito (o homem não é a medida de todas as coisas). 7 CONCLUSÃO Queremos concluir nossas avaliações acerca das teo- rias da tradução, narrando duas pequenas histórias que se assemelham bastante com as visões opostas de tradução (de leitura e de conhecimento), discutidas neste artigo. Eis a primeira: Conta-se que, certa vez, um mesmo elefante foi ob- servado por vários cegos de nascença, sendo que cada cego só conseguiu focalizar (pelo tato) uma parte di- ferente do elefante. O resultado é que quando cada cego tentou descrever o elefante, cada um o fez de modo diferente, porque cada cego só “viu” o elefante por um lado. Nenhum deles teve uma “visão” de con- junto do elefante inteiro, uma vez que cada um só o observou por um lado. 9 O mesmo se aplica às teorias antagônicas de tradução revisadas neste artigo. São iguais aos cegos de nosso relato, pois só vêem, ou só querem ver, a tradução (a leitura e o co- nhecimento) por um de seus lados ou aspectos. Vale lembrar também o velho ditado: o pior cego é o que não quer ver. Eis a segunda história: Conta-se que um professor foi dar uma aula de avali- ação comportamental e chegando à classe estendeu sobre o quadro de giz um imenso lençol alvo; depois tomou de um pincel e na ponta do lençol colocou pe- quena mancha, e perguntou aos alunos: que vêem? Todos, em uníssono: uma mancha! Ninguém viu o len- çol. A mancha era mil vezes menor que o lençol; é a tendência para ver desenfocada a realidade. Ninguém sequer diz: vejo o lençol com uma mancha. É nosso atavismo ver o lado negativo.10 Neste artigo, vimos que algumas posições extrema- das se comportam como os alunos dessa segunda historieta, porquanto exageram ou supervalorizam apenas um aspecto do fenômeno, perdendo, assim, a visão do todo. Como se- ria bom se os teóricos de várias perspectivas fossem mais humildes e se juntassem para partilhar a visão de cada um, sem idéias preconcebidas, e sem querer anular ou negar as visões concorrentes, a fim de poderem alcançar, com um diálogo franco e respeitoso, um retrato mais amplo e pro- fundo do fenômeno estudado em todas as suas dimensões e, no caso em apreço, uma visão integrada do processo tradutório.11 9 Adaptado de uma palestra que ouvimos. 10 Esse texto foi extraído da Revista Visão Espírita, vol. 2, nº 17, 1999, p. 39. 11 As referências bibliográficas do artigo encontram-se após o anexo.
  • 11. Rev. de Letras - N0 . 20 - Vol. 1/2 - jan/dez. 1998 61 1. Por que o nome “teorias” da tradução, e não “teoria” da tradução? R. Porque “ainda não existe nenhuma Teoria Unificada da Tradução no sentido técnico de ‘um conjunto coerente de proposições gerais usadas como princípios para explicar uma classe de fenômenos’, mas existem algumas “teori- as” no sentido lato de ‘um conjunto de princípios úteis para compreender a natureza da tradução ou para esta- belecer critérios de avaliação de um texto traduzido’ ” (Nida, 1993:155). 2. Distinga “teoria” de “modelo”. R. “Teoria” é um conjunto de proposições integradas, coe- rentes, para explicar um determinado fenômeno, enquanto “modelo” é uma representação externa (uma fórmula, um diagrama, um esquema, etc.) de uma teoria. (Cf. Bell, 1991:24-25). 3. O que é “abordagem”? R. É a maneira de encarar (de ver ou de estudar) um assun- to ou um fenômeno. Muitas vezes, se usa esse termo como sinônimo de teoria. 4. Pode haver teoria separada da prática e, vice-versa, prá- tica sem teoria? R. Em termos absolutos, dizemos que não. Toda prática su- põe e gera teoria e toda boa teoria gera prática, donde o famoso aforismo de Kurt Lewin: ‘Nada existe de mais prá- tico do que uma boa teoria’ (apud Ur, 1996:4) (Ver tam- bém Arrojo, 1992:107-112). 5. Qual a relação entre teoria/prática e ideologia? (O que é ideologia?) R. Ideologia é o conjunto de convicções que produzem os significados que impomos aos objetos e constituem a pers- pectiva a partir da qual teorizamos e classificamos o mun- do (Arrojo, op. cit., p. 111-112). Assim, tanto a teoria quan- to a prática são ideológicas; exemplificando com a tra- dução, quando um tradutor produz uma tradução, seu tra- balho terá de se enquadrar dentro das normas que regem a produção de trabalho, estabelecidas, explícita ou im- plicitamente, pela comunidade sócio-cultural a que per- tence. (Arrojo, ibid.) 6. Explique a polissemia do termo “tradução”. R. O termo “tradução” é polissêmico e pode significar: a) o produto (ou seja, o texto traduzido); b) o processo do ato tradutório; c) o ofício (a atividade de traduzir); e d) a disciplina (a ciência que estuda o fenômeno da tradução). 7. Qual a controvérsia mais antiga em torno da tradução? R. “Tradução literal” (ou seja: tradução do estilo e do modo de escrever do autor original) vs. “tradução livre” (ou seja: tradução só do sentido e do espírito do original. (Bell, 1991:11) Ao conceito de tradução literal está asso- ciada a idéia de tradução “fiel” e ao conceito de tradu- ção livre, a idéia de tradução “infiel”. 8. Como podemos especificar a competência do tradutor? (Que tipos de conhecimentos e de habilidades deve o tra- dutor possuir?) R. a) conhecimento de duas línguas (nos níveis fonético- fonológico, morfossintático, semântico, retórico/dis- cursivo, pragmático, ortográfico e estilístico); b) conhecimento de duas culturas; c) conhecimento da área do assunto; d) conhecimento contrastivo (lingüístico e cultural); e) conhecimento do mundo; f) habilidades de leitura e de composição (redação); g) competência sociolingüística; h) conhecimento das teorias da comunicaçào e da infor- mação; i) qualidades artísticas (inatas ou adquiridas); j) conhecimento de língüistica textual; k) conhecimento da arte literária; l) conhecimento de princípios e de procedimentos técni- cos da tradução; etc. ANEXO TEORIAS DA TRADUÇÃO/QUESTIONÁRIO BÁSICO12 12 Esse questionário vem sendo utilizado na disciplina Teorias da Tradução, por nós ministrada no Curso de Mestrado em Lingüística Aplicada da Universidade Estadual do Ceará (UECE).
  • 12. Rev. de Letras - N0 . 20 - Vol. 1/2 - jan/dez. 199862 9. Quais as disciplinas que têm servido de embasamento para teorias ou comentários sobre tradução? R. A lingüística, a semiótica, a crítica literária, a psico- lingüistica, a sociolingüística, as teorias da comunica- ção e da informação, etc. 10. As teorias da tradução filiadas aos estudos literários vêem a tradução como essencialmente uma operação lingüís- tica, ou como uma ‘arte”? R. Como uma arte. 11. Que dizer da atitude daqueles que, fundamentados em anos de experiência profissional, tendem a desprezar as teori- as e a defender que a tradução é um “ofício” e, como tal, deve ser compreendida e aprendida “na prática”? R. Quem manifesta essa atitude contradiz-se, pois já está, a partir de uma convicção/ideologia, fazendo uma afir- mação teórica, segundo o qual a tradução é um “ofí- cio” que deve ser compreendido e aprendido “na prá- tica”. Como já foi dito na resposta da pergunta nº 4, “nada existe de mais prático do que uma boa teoria” (Kurt Lewin, apud Ur, 1996:4). 12. Como é possível traduzir, se, de acordo com muitos lin- güistas, não existem correspondências ou equivalências exatas entre as palavras e estruturas de duas línguas? Os sistemas gramaticais não são impenetráveis entre si? (cf. Mounin, 1975:20) R. É verdade que nem sempre existem correspondências exa- tas de valores entre as línguas (no sentido saussuriano do termo, ou seja, de significados formais), mas há cor- respondências de significação entre os códigos lin- güísticos e a experiência humana por eles expressa, o que possibilita a tradução. Em outros termos, se, por um lado, cada língua é um sistema sui generis, um código próprio, com seus significados (valores) próprios, por outro lado, toda língua é também um sistema de comuni- cação que emprega as formas do código para referir-se a entidades do mundo real ou imaginário (cf. Bell, 1991:7). Além disso, as representações semânticas pro- fundas são esencialmente as mesmas, independentemen- te de suas distribuições em valores lingüísticos (cf. Mounin, 1975:35-36). Pode-se adiantar ainda que, do mesmo modo como estruturas diferentes de uma mesma língua podem significar coisas semelhantes (por ex.: a chuva continua/chove sem parar), assim também línguas diferentes podem significar coisas semelhantes. É isso que permite as traduções intralinguais e interlinguais, res- pectivamente (cf. Mounin, op. cit.:239-240). 13. Como é possível traduzir, se, de acordo com o ponto de vista de muitos lingüistas e antropólogos, cada língua impõe aos seus falantes uma visão de mundo diferente? R. Se, por um lado, cada língua, até certo ponto, impõe aos seus falantes uma visão de mundo diferente, por ser um código próprio, por outro lado, como já foi dito na res- posta da pergunta anterior, toda língua é também um sis- tema de comunicação que emprega as formas do código para referir-se a entidades do mundo real ou imaginário (cf. Bell, 1991:7). Além disso, os elementos da experiên- cia humana são bastante semelhantes, de tal modo que quase tudo que pode ser dito numa língua pode ser dito também em outra (cf. Mounin, op. cit.:242). No dizer de Jakobson (1971:65), “a tradução envolve duas mensa- gens equivalentes em dois códigos diferentes”. O mesmo lingüista nos esclarece que “as línguas diferem essenci- almente naquilo que devem expressar, e não naquilo que podem expressar” (ibid.:69). 14. O que significa entender um texto? R. Entender um texto significa compreendê-lo, através de um processo de interação entre leitor e texto, que envol- ve aspectos objetivos (de identificação de formas lingüís- ticas/valores, presentes no texto) e aspectos subjetivos (de interpretação), com base nos esquemas mentais pró- prios de cada leitor. 15. É possível haver uma leitura neutra de um texto, sem nenhuma interferência do leitor e de seu contexto sócio- cultural e histórico? R. Não, porque a leitura se realiza através de um jogo interativo em que o leitor lança mão de toda a sua baga- gem de conhecimentos prévios e é influenciado por todos os condicionamentos de ordem psico-sócio-cultural, etc. 16 .O “significado” está todo no texto? R. Os significados formais (em termos de valores estritamen- te lingüísticos) se encontram no texto, mas o significado reconstruído pelo leitor (enquanto intéprete particular) resulta de uma negociação entre o leitor e o texto, ou seja, negociação entre as informações contidas no texto e a interpretação individual de cada leitor, condicionada por uma série de fatores, tais como seus conhecimentos prévi- os, seus esquemas mentais, seu conhecimento do assunto, seu contexto psico-social-histórico, etc. 17. É possível haver uma tradução “literal”, próxima do “ori- ginal”, que não apresente nenhuma interferência do tra- dutor, em oposição a uma tradução “literária”, que reve- laria a interferência da interpretação e do julgamento do tradutor?
  • 13. Rev. de Letras - N0 . 20 - Vol. 1/2 - jan/dez. 1998 63 R. Dependendo do tipo de texto (uma bula de remédio vs. um conto ou uma poesia, por exemplo), de sua função predominante (expressiva, descritiva ou apelativa), de seu objetivo e de seu público-alvo, uma tradução pode ser mais ou menos literal (ou mais ou menos livre). O fenômeno da interferência do leitor-tradutor, contudo, em maior ou menor grau, é inevitável, uma vez que toda leitura/tradução envolve interpretação e produção ou re- construção do sentido. 18. Como é possível traduzir, se um mesmo termo usado por duas pessoas diferentes jamais significa a mesma coisa? (Steiner, 1998:263) R. Um mesmo termo (por exemplo, “mãe”, “mamãe”, “maezinha”) usado por duas pessoas diferentes jamais significa a mesma coisa do ponto de vista da fala, do discurso (aspecto individual da línguagem), uma vez que pode ter muitas conotações pessoais, mas, do ponto de vista do sistema lingüístico, ou seja, do código (da “langue”), um mesmo termo usado por duas ou mais pessoas diferentes, num mesmo contexto, sempre signifi- ca a mesma coisa, pois, os significados (os valores) es- tritamente lingüísticos (incluindo os valores estilísticos) são, em parte, de propriedade coletiva, social, e não in- dividual. Do contrário, não haveria possibilidade de co- municação verbal entre as pessoas, e muito menos de tradução entre línguas diferentes. Se a comunicação e a tradução existem, é porque os termos e as frases de qual- quer língua (“langue”) têm valores comunicativos co- muns, relativamente constantes e estáveis. 19 .Qual a problemática em torno da tradução de textos sa- grados? R. Os textos sagrados são considerados “Palavra de Deus” e, por isso, a sua tradução nem sempre é oficialmente per- mitida (como ocorre com o Alcorão, por exemplo, livro sagrado dos muçulmanos. Mesmo quando a tradução de tais textos é permitida, privilegia-se a tradução literal, para garantir a “fidelidade” ao texto original. Mesmo assim, São Jerônimo e Martinho Lutero privilegiaram a tradução do sentido em suas traduções da Bíblia cristã. Poderíamos, aqui, perguntar: Por que a Bíblia, sendo, supostamente, “Palavra de Deus”, admite tantas tradu- ções e tantas interpretações diferentes? É que a Bíblia é “texto” e, como qualquer texto, é, semioticamente, sem- pre aberto a múltiplas leituras e a múltiplas interpreta- ções. Todo texto, como objeto de significação, é sempre polissêmico, aberto a muitas leituras, mas, como objeto de comunicação, é sempre monossêmico, porque, no ato particular de sua leitura, cada leitor o interpreta, até cer- to ponto, diferentemente, pelas razões que já foram apon- tadas em respostas de questões anteriores deste questio- nário, acerca da compreensão leitora (cf. Croata, 1986) . 20. Explique a seguinte pergunta (ou fórmula) socio- lingüística: QUEM TRADUZ O QUE, PARA QUEM, QUANDO, ONDE, POR QUÊ, E EM QUE CIRCUNS- TÂNCIAS? R. Essa conhecida fórmula sociolingüística mostra os di- versos fatores circunstanciais que podem determinar ou afetar a tradução como produto. Assim, uma tradução pode ser feita desta, ou daquela maneira, dependendo da competência de quem traduz, do tipo de texto que se tra- duz, do público-alvo para o qual se traduz, da época e do lugar em que se traduz, do objetivo para o qual se tra- duz, e das circunstâncias (sócio-econômicas, políticas, culturais, religiosas, etc.) em que se traduz. 21. Existe tradução perfeita? Explique. R. Não existe tradução perfeita, como não existe comunica- ção humana perfeita. Tudo o que é humano é imperfeito, mas nem por isso ilusório. Assim, toda tradução é uma operação relativamente imperfeita, mas sempre possível de aperfeiçoamento, podendo tornar-se uma operação relativamente satisfatória para os objetivos a que se pro- põe, à luz dos outros fatores circunstanciais indicados na questão anterior. 22. É verdade que todo tradutor é um traidor (conforme.o conhecido provérbio italiano: traduttore traditore)? R. Se por tradução se entende uma reprodução fiel, literal, neutra, do original, que não apresente nenhuma interfe- rência por parte do tradutor, então, nesse caso, todo tra- dutor seria um “traidor”. Mas esse tipo de tradução só existe na imaginação das pessoas que não refletem ade- quadamente sobre o processo tradutório, o qual, como já foi dito em questões anteriores deste questionário, nunca pode ser completamente neutro, literal, objetivo, isento de qualquer interferência por parte do tradutor. Nesse sentido, o conhecido provérbio italiano, segundo o qual os tradutores são traidores, é agora reescrito como “tradutores têm que ser traidores” (cf. Vieira, 1996:138). 23. O que é a “paralaxe” da linguagem humana (Nida, 1993:6)? A esse respeito, comente também a visão de linguagem como fotografia ou mapa da realidade (Ibid.). R. A paralaxe é conceituada por Nida (ibid.) como o fato de que a linguagem não apenas representa a realidade, como também a distorce. Por exemplo, continuamos a dizer que o sol nasce, o sol se põe, quando de fato sabe- mos que o sol nem nasce nem se põe, mas que é a Terra que gira em volta dele. Algumas pessoas também conce- bem a língua como fotografia ou mapa da realidade e, raramente, se dão conta de que mapas e fotos, inevita- velmente, envolvem escolhas e distorções. Tanto fotogra- fias quanto mapas sofrem do fenômeno da paralaxe.
  • 14. Rev. de Letras - N0 . 20 - Vol. 1/2 - jan/dez. 199864 24. O que são traços semanticamente pertinentes de uma língua? R. São os mínimos traços objetivos, socialmente comuns ao falante e ao ouvinte, graças aos quais se pode definir um termo para todos os falantes de uma mesma língua (cf. Mounin, op. cit.:165 e Buzzetti, 1987). São chama- dos também de traços denotativos, em oposição aos tra- ços conotativos, que se referem aos que podem, ou não, ser percebidos pelo ouvinte num ato de comunicação. 25. A linguagem expressa fielmente o pensamento humano? R. Não. A linguagem não expressa todos os traços e nuanças particulares de um pensamento ou de uma dada situa- ção, mas, obrigatoriamente, apenas os traços semanti- camente pertinentes para a comunicação. Como afirma Catford (op. cit.:41), “apenas pouquíssimos traços da situação são lingüísticamente relevantes” . 26. Por que motivo nos acontece com tanta freqüência não saber como dizer tudo que queremos, ou ter a impressão de haver dito muito mal o que pensávamos? R. É uma prova clara da distinção entre linguagem e pensa- mento. De fato, muitas vezes, queremos dizer uma coisa e expressamos outra, ou temos a impressão de ter dito mal o que pensávamos dizer. Outras vezes, queremos dizer al- guma coisa, mas não sabemos como expressá-la. Não encontramos a forma para expressá-la verbalmente. 27. Como explicar o fato de que o mesmo pensamento pode ser expresso de várias maneiras numa mesma língua? (Exemplos: venta; está ventando; sopra um vento; o tem- po está meio ventoso; o dia está meio ventoso, etc.)13 R. É mais uma prova da independência do pensamento em relação à linguagem, e que tem uma profunda implica- ção para a teoria da tradução, no sentido de que é essa independência relativa do pensamento em relação a lin- guagem que permite ao ser humano expressar o mesmo pensamento, de várias maneiras, não só numa mesma língua mas também em línguas diferentes. 28. Como explicar pensamentos novos? R. A mente humana é criativa, capaz de produzir pensa- mentos novos, indefinidamente, e de os expressar e tra- duzir em qualquer língua, o que, mais uma vez, compro- va a relativa independência do pensamento em relação à linguagem. 29. Como explicar a transmissão telepática do pensamento? R.Pelaindependênciaessencialentrelinguagemepensamento, como já foi esclarecido nas últimas três questões acima. 30. É verdade que pensamos do modo como pensamos, por- que falamos do modo como falamos? R. Até certo ponto, é verdade que pensamos deste ou daque- le modo por causa da língua que falamos, “o que reflete uma diferença no modo como as línguas interpretam a experiência do real” (Barbosa, op. cit.:67). Por exem- plo, em português, pensamos distâncias em quilômetros, e não em milhas (como em inglês) porque nossa língua categoriza as distâncias em quilômetros e não em mi- lhas. Outros exemplos são dados por Barbosa (ibid.): keyhole (‘buraco da fechadura’) e like the back of my hand (‘como a palma da minha mão’). Esses casos, po- rém, são bastante isolados, em relação ao conjunto total dos fatos lingüísticos e, portanto, não invalidam a tese da universalidade da linguagem e da experiência huma- na, uma vez que o pensamento e as línguas manifestam, subjacentemente, mais semelhanças do que diferenças, o que explica a possibilidade da comunicação e da pró- pria tradução. 31. O que é cultura e até que ponto uma língua reflete a cul- tura de uma sociedade? R. Pela conceituação de Nida, cultura é definida como “a totalidade das crenças e práticas de uma sociedade” (Nida, op. cit.:105). Cultura é tudo o que é criado pelo homem: “O complexo dos padrões de comportamento, das crenças, das instituições e doutros valores espiritu- ais e materiais transmitidos coletivamente e caracterís- ticos de uma sociedade” (Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa, 2ª edição, revista e aumentada). Sendo uma língua parte da cultura e meio de sua ex- pressão, é lógico que reflita a cultura da sociedade que a utiliza. 32. Como explicar o fato de que uma mesma língua pode expressar culturas diferentes? (Por exemplo: o inglês, o espanhol, etc.) R. Isso é possível porque a relação entre língua e cultura não é absoluta, mas relativa. O inglês e o espanhol são exemplos típicos, pois são usados para expressar cultu- ras bastante diferentes. 33. Como explicar que, a despeito da heterogeneidade dos diversos sistemas lingüísticos, os homens se comunicam de língua para língua? 13 Exemplos extraídos de Mounin (op.cit.:240).
  • 15. Rev. de Letras - N0 . 20 - Vol. 1/2 - jan/dez. 1998 65 R. Os homens se comunicam de língua para língua, porque existem traços comuns a todas as línguas do mundo - vale dizer - “universais lingüísticos” (Mounin, op. cit.:190), ou seja, a despeito da heterogeneidade dos di- versos sistemas lingüísticos, “o conteúdo latente de toda linguagem é o mesmo” (Sapir, apud Mounin, op. cit.:197). “Não existe na linguagem particularidade mais impres- sionante que a sua universalidade” (Id., ibid.:191). 34. Terá razão o lingüista e tradutor Eugene NIDA (Nida, 1993:106), ao afirmar que “pelo menos 90% (noventa por cento) das estruturas fundamentais de todas as lín- guas são muito semelhantes e que os universais da lin- guagem superam em muito as diferenças”? R. Tudo leva a crer que sim, como já foi visto em diversas questões anteriores. 35. O que é o conflito de interpretações? R. É a atitude gerada pela pretensão de cada leitor de jul- gar que a sua interpretação de um texto (sobretudo polí- tico/ideológico/religioso) é a interpretação verdadeira, e que as demais interpretações do mesmo texto são fal- sas. Nasce, daí, a luta pela apropriação do sentido de um texto (cf. Croata, 1986:31). 36. O que é sentido referencial de um texto? R. É o seu sentido designativo (descritivo/ denotativo). 37. O que é sentido estrutural? R. É o sentido (ou significado) gramatical ou formal, ou seja, a significação interna, estabelecida pelos morfemas flexionais, pelas relações sintáticas e pelo tipo de frase (interrogativa etc.). (Cf. Dicionário de Lingüística de Z. S. Jota). 38. O que é sentido denotativo? R. É “o significado em sua função meramente intelectiva, sem a carga de conotação; é a representação mental co- mum e constante evocada pela palavra. Mesa, por exem- plo, sempre nos evoca certo objeto, representação men- tal única” (Dicionário de Lingüística de Z. S. Jota). 39. O que é sentido conotativo (ou expressivo)? R. É “tudo o que se acrescenta à frase intelectiva (a entoa- ção, as circunstâncias do momento etc.” (Ibid.). Por exem- plo, “se digo para quem comigo passeia, “Olho o abis- mo”, há nisso predominância do caráter informativo. Mas se digo o mesmo para quem, distraído, se aproxima peri- gosamente do precipício, eis que a frase, já agora com carga emotiva e apelativa em alto grau, e pela situação que envolve o fato, muda completamente de figura” (ibid.). 40. Quais as principais funções da linguagem? R. Funções descritiva (designativa/referencial), expressiva e apelativa (conativa / sugestiva). 41. Para que alguém possa compreender o significado da palavra “queijo” é preciso ter um conhecimento não lingüístico de queijo? Justifique sua resposta. (Ver Jakobson, 1971). R. De modo algum é preciso saborear o alimento queijo para compreender o significado da palavra “queijo”. Como esclarece o próprio Jakobson (op. cit.:63), “ninguém po- derá compreender a palavra queijo se não conhecer o significado atribuído a esta palavra no código lexical do português. (...) O significado das palavras queijo, maçã, néctar, conhecimento, mas, mero, ou de qualquer outra palavra ou frase, é decididamente um fato lingüístico - ou para sermos mais precisos e menos restritos - um fato semiótico”. 42. A que recorrer se se quiser fazer compreender uma pala- vra nova? (Id., ibid.) R. “Será necessário recorrer a toda uma série de signos lingüísticos se se quiser fazer compreender uma palavra nova” (ibid.:64). “Para o lingüista, como para o usuá- rio comum das palavras, o significado de um signo lingüístico não é mais que sua tradução por um outro signo que lhe pode ser substituído, especialmente um sig- no ‘no qual ele se ache desenvolvido de modo mais com- pleto’, como insistentemente afirmou Peirce, o mais pro- fundo investigador da essência dos signos” (ibid.). 43. De quantas maneiras se pode interpretar ou traduzir um signo verbal? (Id., ibid.) R. De três maneiras: “ele pode ser traduzido em outros sig- nos da mesma língua, em outra língua, ou em outro sis- tema de símbolos não verbais” (ibid.). 44. Conceitue: tradução intralingual, interlingual e intersemiótica. (Id., ibid.) R. “A tradução intralingual ou reformulação (rewording) consiste na interpretação dos signos verbais por meio de outros signos da mesma língua. A tradução interlingual ou tradução propriamente dita consiste na interpretação dos signos verbais por meio de alguma outra língua. A tradução intersemiótica ou transmutação consiste na interpretação dos signos verbais por meio de sistemas de signos nãoverbais. A tradução intralingual
  • 16. Rev. de Letras - N0 . 20 - Vol. 1/2 - jan/dez. 199866 de uma palavra utiliza outra palavra, mais ou menos sinônima, ou recorre a um circunlóquio. Entretanto, nor- malmente, quem diz sinonímia não diz equivalência com- pleta” (ibid.:65). Aplicando esse mesmo princípio à tra- dução interlingual, podemos também dizer que um texto bem traduzido é uma espécie de sinônimo do texto origi- nal, mas sabendo-se que “quem diz sinonímia não diz equivalência completa” ou total. 45. Comente o princípio segundo o qual “as línguas diferem essencialmente naquilo que devem expressar e não na- quilo que podem expressar” (id., ibid., p. 65). R. Além do que já foi dito na resposta da questão nº 13, podemos acrescentar a afirmação de Jakobson (op. cit.:67) de que “toda experiência cognitiva pode ser traduzida e classificada em qualquer língua existente. Onde houver uma deficiência, a terminologia poderá ser modificada por empréstimos, calcos, neologismos, trans- ferências semânticas e, finalmente, por circunlóquios”. Por conseguinte, as línguas não diferem essencialmente no que podem dizer, mas no modo de dizer. 46. A poesia é traduzível? R. Para muitos, a poesia é teoricamente intraduzível. As- sim, Robert Frost (apud Paes, 1990:34) “definiu poesia como tudo aquilo que se perde na tradução”. O próprio Roman Jakobson (op. cit.:72) afirma que “a poesia, por definição, é intraduzível”. Para Sílvio Romero (apud Paes, op. cit.:9), “a poesia não se traslada sem perder a maior parte de sua essência”. Essas afirmações não correspondem à realidade dos fatos, pois, na prática, sempre houve e continua havendo inúmeras traduções de poesias. É o que se pode comprovar, por exemplo, com “Manuel Bandeira que, embora tenha traduzido poesia durante toda a sua vida, não hesitou em afirmar, mais de uma vez, ser ela, em essência, intraduzível” (apud Paes, op. cit.:35). Pode-se observar, através de afirma- ções como essas, uma grande contradição entre o que se diz e o que se faz. 47. O tradutor nasce, ou se faz? R. Há os que nascem e os que se fazem. Tem havido na his- tória da tradução excelentes tradutores que nunca tive- ram conhecimentos científicos de lingüística ou de semiótica, etc e, entretanto, realizaram trabalhos bem sucedidos de tradução, e, por utro lado, tem havido os que aprenderam a traduzir mediante cursos específicos sobre teoria e prática da tradução. 48. Por que, conforme Catford (1980:53), a tradução não pode ser vista essencialmente como um processo de “transcodificação” (ou de “transferência” de significa- dos) entre línguas? R. Porque cada código lingüístico é um sistema único de significados (de valores) próprios, em si mesmos intransferíveis, semioticamente falando. 49. Qual a distinção que o referido autor (ibid.) faz entre tradução como “transferência” e tradução como “substi- tuição” de significados? R. Na transferência há uma implantação de significados da LF no texto da LM, enquanto que na substituição o que há é reposição de significados da LF por significados da LM. 50. O que, segundo o mesmo autor (ibid.), normalmente se entende por tradução? R. A substituição de significados da LF por significados da LM. Em termos mais explícitos, “Tradução pode defi- nir-se como a substituição de material textual numa lín- gua (LF) por material textual equivalente noutra língua (LM)”. (Id., ibid., p.22). REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARROJO, R. (1986). Oficina de tradução: a teoria na prá- tica. São Paulo: Ática. ARROJO, R. (org.) (1992). O signo desconstruído: impli- cações para a tradução, a leitura e o ensino. Campi- nas/SP: Pontes. ARROJO, R. (1993). Tradução, desconstrução e psicaná- lise. Rio de Janeiro: Imago. ARROJO,R.,&Rajagopalan,K..(1992).Anoçãodeliteralidade: metáfora primordial. InArrojo, R. (org.), p. 47-55. 1992. AUBERT, F. (1987). A tradução literal: impossibilidade, inadequação ou meta? In: Costa,W. C. (org.) Translation/ tradução. Ilha do Desterro, 17, Florianópolis: Editora da UFSC. BARBOSA, H. G. (1990). Procedimentos técnicos da tra- dução: uma nova proposta. Campinas/SP: Ponters. BELL, R. T. (1991). Translation and translating: Theory and practice. London: Longman. BEVENISTE, E. (1989). Problemas de lingüística geral II. Campinas: Editora Pontes. BORDENAVE, M. C. R. (1987). Fundamentos de uma metodologia de ensino da tradução. Trabalho apresenta- do no 3º. Encontro Nacional de Tradutores, Porto Ale- gre: Mimeografado. BUZZETTI, C. (1987). La Bibbia come texto letterario da tradurre. In: Meta 32, 1:55-63. CATFORD, J. C. (1965). A linguistic theory of translation. Oxford: Oxford University Press. CATFORD, F. C. (1980). Uma teoria lingüística da tra- dução. São Paulo: Cultrix.
  • 17. Rev. de Letras - N0 . 20 - Vol. 1/2 - jan/dez. 1998 67 CROATA, J. S. 1986. Hermenêutica bíblica: para uma teo- ria da leitura como produção de significado. São Paulo: Editora Sinodal. CRYSTAL, D. (1980). Dicionário de lingüística e fonética, 3 ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. DELISLE, J., &Woodsworth, J. (1980). Translators through history.Amsterdam:JohnBenjaminsPublishingCompany. ESKEY, D. E. (1980). Theoretical foundations. In: Dubin, F., Eskey, D. E. e Grabe, W. (orgs.). Teaching second language reading for academic purposes. Massachusetts: Addison-Wesley Publishing Company. p. 3-32. FRANCA, L. (1980). Noções de história da filosofia, 22ª edição. Rio de Janeiro: Livraria Agir Editora. GONÇALVES, J. L. V. R. (1980). Heloísa Barbosa: procedi- mentos técnicos da tradução. In: Vieira, E. R. P. (org.) Teorizando e contextualizando a tradução. Belo Hori- zonte: UFMG. p. 59-67. JACOBSON, R. (1971). Aspectos lingüísticos da tradução. In: Lingüística e Comunicação. São Paulo: Cultrix, p. 63-72. JOTA, Z. S. (1976). Dicionário de lingüística. Rio de Ja- neiro: Presença. KOMISSAROV, V. (1987). The semantic and the cognitive in the text: a problem in equivalence. In Meta 32, 4:416-419. LARANJEIRA, M. (1996). Poetas de França hoje (1945- 1995): seleção, tradução e introdução. São Paulo: EDUSP/FAPESP. MALMKJAER, K. (1997). Translation and language teach- ing. In: AILA Review, No . 12 . 1995/6, p. 56-64. MOUNIN, G. (1975). Os problemas teóricos da tradução. São Paulo: Cultrix. MURATA, Y. (1996). Translation as spiritual community. In: Tradterm: Revista do Centro Interdepartamental de Tradução e Terminologia - FFLCH-USP, nº 3, p. 66-75. NIDA, E. (1993). Language, culture and translating. Shang- hai: Foreign Language Press. NEWMARK, P. (1988). A texbook of translation. London: Prentice Hall. OTTONI, P. (org.). (1998). Tradução: a prática na diferença. Campinas/SP: Editora da UNICAMP, FAPESP. PAES, J. P. (1990). Tradução: a ponte necessária. São Paulo: Ática. SNELL-HORNBY, M. (1988). Translation studies: an in- tegrated approach. Amsterdam: John Benjamins Pub- lishing Company. SOUZA, J. P. (1999). Tradução e ensino de línguas. Revista do GELNE (Grupo de Estudos Lingüísticos do Nordeste), no prelo. STEINER, G. (1998). After babel: aspects of language and translation.3rd edition. Oxford: Oxford Univer- sity Press. THEODOR, E. (1986). Tradução: ofício e arte. São Paulo: Cultrix. VINAY, J. P. & Darbelnet, J. (1977). Stylistique comparée du français et de l’anglais: méthode de traduction. Paris: Didier. (Nova edição revista e corrigida. Primeira edição: 1958).