Este documento resume uma pesquisa sobre como os conceitos bakhtinianos podem ser aplicados à análise do discurso tradutório e da subjetividade do tradutor. Analisa como o tradutor apreende o discurso do autor original e como conceitos como dialogismo e polifonia são úteis para entender a produção do texto traduzido.
1. CONCEITOS BAKTINIANOS NA ANÁLISE DA INSCRIÇÃO DA SUBJETIVIDADE NO
DISCURSO TRADUTÓRIO
Elsa Maria Nitsche Ortiz 1
RESUMO: Esta comunicação integra pesquisa desenvolvida no PPG–Letras (UFRGS), que visa verificar
como os atuais estudos lingüístico-enunciativos podem ser vinculados às investigações sobre o fazer
tradutório, e a conseqüente inscrição do sujeito que o realiza. Atualmente, analisa a contribuição dos estudos
bakhtinianos, mais especificamente, a apreensão das palavras do outro e o conceito central de dialogismo e
de polifonia — essenciais em análises sobre a produção de discursos e de seus sentidos, quer em textos
originais, quer em textos traduzidos.
RÉSUMÉ: Ce travail appartient à une recherche menée au PPG-Letras (UFRGS) et qui a comme but
étudier les rapports (possibles et/ou souhaitables) des théories lingüístques énonciatives et l’acte de traduire.
À cette étape-ci, ce sont l’appréhension du discours de l’autre aussi bien que les notions de dialogisme et de
polyphonie (Bakhtine) qui ont toute notre attention.
1. À guisa de introdução
Este trabalho faz parte de uma pesquisa maior, atualmente por mim realizada, no âmbito do Programa
de Pós-Graduação em Letras da UFRGS e que tem como objetivo investigar os possíveis aportes de teorias
lingüístico-enunciativas ao estudo do discurso tradutório. Tal pesquisa tem como ponto de partida a concepção
da tradução como paráfrase discursiva interlingual, desenvolvida por C. Fuchs, em suas indagações sobre a
paráfrase. Da teoria da paráfrase (Fuchs e Martin), passou-se à teoria dos topói (Ducrot) e, agora, aos
conceitos desenvolvidos por Bakhtin. Tomou-se, todavia, o maior cuidado para não se deixar seduzir pela
tentação de aproveitar Bakhtin de qualquer maneira, transformando sua teoria densa, mas não isenta de
contradições, na “casa da mãe Joana”, como critica Jacqueline Authier-Revuz, em seu conhecido estudo de
1982 sobre as heterogeneidades. Fui à procura de apoio no próprio texto de Bakhtin. E tive sucesso, pois é o
próprio Bakhtin (1970) que, no capítulo conclusivo de sua tese sobre Rabelais, ao referir-se à “imensa
importância” da tradução, diz textualmente:
As línguas são concepções do mundo, não abstratas, mas concretas, sociais, atravessadas
pelo sistema das apreciações, inseparáveis da prática corrente e da luta de classes. Por isso,
cada objeto, cada noção, cada ponto de vista, cada apreciação, cada entonação, que se
encontra no ponto de intersecção das fronteiras das línguas – concepções do mundo – é
englobado em uma luta ideológica violenta (Bakhtin, 1970, p.467).
Minha comunicação orienta-se sobre dois eixos da teoria de Bakhtin. Em um primeiro eixo, procuro
analisar a apreensão do discurso de outrem (1988, cap. 9 e 10, p. 144 e ss.) realizada pelo ato tradutório. No
segundo, faço uso de alguns conceitos baktinianos, estudados nas mais diversas áreas, tais como dialogismo
e polifonia.
2. A apreensão do discurso de outrem
Bakhtin (1988) estuda o discurso de outrem visto através do discurso citado. Devo, de antemão,
ressaltar que o ato tradutório apreende o discurso de outrem, — autor do texto que está sendo traduzido —
sem fazer uso das estratégias lingüísticas do discurso citado, sem alteração aparente da trama lingüística
1
Professora do Programa de Pós-Graduação em Letras, Universidade Federal do Rio Grande do Sul. elsa.ortiz@ufrgs.br
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anteriormente produzida, a não ser o emprego de outro código lingüístico, de uma outra língua, o que acarreta
o efeito de um apagamento das palavras do outro — o autor primeiro.
Assim, para analisar a atividade tradutória, valho-me de alguns tópicos salientados por Bakhtin quanto
ao discurso citado. Primeiramente, o autor do discurso-fonte, original, transforma-se no “outro”, sem que, no
entanto, tal transformação seja levada em conta por leitores do texto traduzido, pois nada, ou muito pouco, da
presença física das palavras e construções por este autor escolhidas e usadas permanece: os termos
temáticos tentam permanecer nessa nova, porém antiga enunciação, havendo, entretanto, uma diluição da
palavra desse outro (autor original) na estrutura lingüístico-discursiva, relativamente estável e semelhante do
novo texto. O tradutor, já então integrado na posição de tradutor-autor, ao apoderar-se das palavras do autor
original, procura amalgamar-se, fundir-se, dando origem, assim, a um “outro” que é o “mesmo”2
. Dá, assim,
origem também a uma interação de, pelo menos, duas enunciações, sob a aparência de um mesmo e único
discurso — resultado da recepção ativa e fágica do discurso do primeiro, do discurso do agora considerado
“outro”.
Como o tradutor apreende a palavra do outro? Como esta palavra age, influenciando a compreensão,
a interpretação e o posterior refazer do mesmo discurso, que, na verdade, é um discurso-outro?
Para responder a tal questionamento, tomo emprestada a afirmação de Bakthin (id. p.146) que
declara que “as tendências sociais estáveis características da apreensão ativa do discurso de outrem (...) se
manifestam nas formas da língua”. Em outras palavras, o tradutor, para apreender ativa e apreciativamente o
discurso do outro e para posteriormente transmiti-lo, leva em conta a pertinência social e fundamental dos
dois códigos, das duas línguas, que se encontram em relação tradutória, obedecendo aos limites nelas
existentes. Embora procure manter as relações sociais estáveis presentes no discurso-fonte, na transmissão,
isto é, na tradução, pode haver uma re-orientação social3
.
Todavia, é importante salientar que, novamente faço minhas as palavras de Bakhtin (id. p.147),
“aquele que apreende a enunciação de outrem não é um ser mudo, privado da palavra, mas ao contrário, um
ser cheio de palavras interiores”. Está pleno de “atividade mental”, que mediatiza o discurso apreendido:
como diz Bakhtin, “a palavra vai à palavra” (id. ib.), resultando em uma “interação dinâmica dessas duas
dimensões” — a apreensão e a transmissão, que, entretanto, têm uma única “existência real”, pois “só se
formam e vivem através dessa inter-relação, e não de maneira isolada” (id. ib.).
Há um verdadeiro “contrato de leitura”4
entre o autor-fonte e o tradutor-autor, em um processo
dialógico interativo de compreensão, o que uma competência simplesmente lingüística não permitiria explicar.
Para uma boa tradução e para que as perdas — sempre existentes — sejam as menores possíveis, esse
contrato deverá ser o mais perfeito possível para ambos os lados. Ao autor-fonte é cobrada a perfeição entre
aquilo que ele quer ou procura para significar e o enunciado que ele consegue produzir. Ao tradutor-leitor,
entre o que ele consegue apreender/significar como leitor-primeiro e, posteriormente, como tradutor-autor
transmitir o que foi apreendido e significado na produção do texto traduzido. Este contrato de leitura, que
considero indispensável para a apreensão social do discurso do outro, faz-se necessário, pois as comunidades
lingüísticas envolvidas no fazer tradutório não só têm particularidades estilístico-discursivas diferentes, como
também as percebem diferentemente.
Mas como primeiramente se apreende essa interação dinâmica e posteriormente se a transmite?
2
“Mesmo” e “outro”são noções utilizadas por teorias psicanalíticas que analisam a heterogeneidade constitutiva do sujeito. O autor-
primeiro, o “mesmo”, passa a ser o “outro”, quando seu discurso é apreendido pelo tradutor que, ao fazer suas as palavras do autor
original, o “mesmo”, o relega à posição de “outro”, ao mesmo tempo em que assume a posição-primeira que era ocupada pelo autor
original.
3
Como exemplo, o que ocorreu quando da tradução de Un long dimanche de fiançailles, de Sébastien Japrisot, realizada por mim e por
Vincent Leclercq. Havia, no texto, uma passagem em que a personagem principal, ainda criança, tomava seu desjejum em um “bol”,
coisa comum em qualquer classe social francesa da época. Em português, a tradução escolhida foi “tigela”, que, entretanto, remete a
uma classe diferente daquela original francesa, pois tomar leite em tigela não pertence a muitas classes sociais brasileiras.
4
Tomo emprestada a expressão cunhada por U. Eco, Lector in Fabula.
3. LINGÜÍSTICA: CAMINHOS E DESCAMINHOS EM PERSPECTIVA 24
Geralmente, leva-se em conta o tipo de discurso que deve ser traduzido5
.O discurso do outro pode ser
recebido tanto como “um único bloco de comportamento social” (Bakthin 1988, p.149), quando somente o “o
quê” do discurso é apreendido, como também pode ser recebido como blocos dinâmicos de enunciações. No
caso do “bloco de comportamento social”, o tradutor irá esforçar-se em conservar a integridade do texto-
primeiro, protegendo-o de “infiltrações” próprias do tradutor, usando um “estilo linear” (p. 150) de citação das
palavras, do ipsis litteris, na tentativa de um recobrimento linear, resultando, assim, em um discurso
despersonalizado, mas “objetivo”, claramente reduzido a uma voz (tradução simultânea). Ainda neste primeiro
grupo, mas em se tratando de traduções consecutivas, a infiltração — sempre presente — do tradutor torna-
se muito clara, desestruturando o texto do outro, ao resumi-lo para o auditório, transformando-o em um todo
compacto, praticamente não individualizado.
Na tradução de textos escritos, observam-se também dois blocos comportamentais de apreensão e
transmissão. No primeiro, na tradução de textos não literários, há a tentativa de recobrimento total da palavra
do outro, resultando em uma transmissão praticamente impessoal e quase isenta de inscrições de
subjetividade do tradutor-autor, pois a própria natureza do texto não é livre e requer autenticidade.
Em relação a textos literários, em que as traduções são mais elaboradas e estudadas, há atualmente,
a tendência de descartar-se a tradução linear, literal, pois se sabe que, por ser a tradução um processo
relacional dialógico de compreensão/transmissão, é impossível o apagamento total da inscrição da presença
do tradutor, que, agora, também já se vê como uma voz inserida no resultado tradutório.
Assim, com a tradução, mesclam-se os contornos, anteriormente mais nítidos, das enunciações, já que
a nova língua do discurso tem meios e estruturas diversas, instaurando-se assim, uma re-orientação sócio-
verbal, resultante da inserção do subjetivismo verbal da nova parte, de uma nova enunciação simultânea e
inseparável do ato tradutório. Enfatizamos que a transposição de uma língua para outra feita através de
calcos lingüísticos, ou através de procedimentos gramaticais idênticos, sem que sua pertinência no novo
código seja questionada, sem as devidas modificações — estilísticas e conseqüentemente sociais —
correspondentes, tem como resultado uma tradução falha e pobre, já que cada comunidade lingüística “recria
a sua maneira a enunciação”, o que gera uma “orientação particular e específica” (id. ib., p. 158).
Em resumo, textos apreendidos monoliticamente têm tendência de serem traduzidos por esquemas
semelhantes ao esquema-primeiro e original: a nova língua tende a reproduzir estruturas lingüísticas no intuito
de recobrir a primeira enunciação em uma quase absoluta literalidade. É a tradução “palavra por palavra”,
verdadeiros calcos lingüísticos, adaptações em que as diferenças de etno-saberes não são neutralizadas.
O emprego de estruturas diferentes ou de variantes das formas estruturais primeiras dá indícios de
que o tradutor colocou-se também na posição de autor, inscrevendo sub-repticiamente sua enunciação no
discurso do outro. Deste modo, peculiaridades de construção, de léxico, de representação de elementos
supra-segmentais raramente são transpostos de forma idêntica em traduções: outros elementos, outros
matizes são ali inseridos, já que, além de uma analise subjetiva do discurso do texto primeiro, o tradutor-autor
aplica-lhe simultaneamente uma análise estilística. Essas palavras, essas maneiras de dizer raramente são
percebidas pelo leitor do segundo texto, pois o tradutor-autor, ao velar consciente ou inconscientemente sua
intromissão, procura diminuir a distância entre os textos que estão em uma relação tradutória.
Deve-se, entretanto, reconhecer que existem sempre perdas e acréscimos, quer na forma, quer no
conteúdo semântico da tradução, embora o leitor comum não os note. Somente leitores mais especializados
podem atentar ao aparecimento de uma nova voz, de uma subjetividade, de uma outra enunciação, de tal
modo cristalizada a ponto de formar uma nova imagem, o emergir de um “outro” — agora o tradutor — no
discurso do autor do texto-primeiro.
Mas não creio que se possa sequer aventar a possibilidade da existência de dois discursos diferentes,
existem, sim, interferências de discurso, de uma nova voz, que faz uso de particularidades de um outro código
5
Em teorias da tradução, as traduções orais são chamadas de interpretações: elas podem ser simultâneas ou consecutivas. Nas
simultâneas, o tradutor enuncia quase que ao mesmo tempo físico que o autor, quando não tem em mãos o texto original. Nas
consecutivas sem texto, um resumo é feito, em que tópicos são salientados. No primeiro caso, isto é, nas traduções simultâneas, as
estruturas lingüísticas são, na medida do possível, idênticas às do texto-fonte, quase palavra por palavra, mesmo que o resultado
deixe, às vezes, a desejar, na ilusão de um recobrimento total dos elementos e construções de uma língua pelos elementos e
construções da outra; no segundo caso, nas traduções consecutivas, as estruturas lingüísticas são alteradas, dando lugar, geralmente,
a formas gramaticais semelhantes às empregadas no discurso indireto.
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lingüístico, com suas construções frasais, suas “rupturas de sintaxe”, suas peculiaridades de estilo, suas
singularidades.
3. Introdução da voz do tradutor
A inscrição da voz do tradutor se faz sem maiores atritos e problemas graças ao caráter social,
dialógico e polifônico de toda e qualquer enunciação. Temos aí dois novos termos: dialogismo e polifonia.
Faço aqui um parêntese: embora muitas vezes Bakhtin os empregue como sinônimos, geralmente o termo
dialogismo é usado quando se quer referir ao principio dialógico constitutivo tanto da linguagem quanto do
discurso; e polifonia, quando o dialogismo constitutivo se deixa perceber na estrutura material lingüística do
texto como efeito de sentido que tem sua origem no próprio procedimento discursivo. E, sem dúvida, a
tradução deve ser vista como um procedimento discursivo, e, por isto mesmo, dialógico e polifônico
Entretanto, embora dialogismo não seja diálogo, mostra a existência de interação entre locutores,
entre sujeitos, e é essa relação que constrói o sentido do texto e o significado das palavras, quer na produção
quer na interpretação discursiva.
Assim, quando do ato tradutório, tal interação se constitui da seguinte maneira: o tradutor interpreta o
texto do autor-primeiro e, ao produzir o novo texto, o texto traduzido, coloca-se na posição de autor-segundo,
estabelecendo um novo outro enfoque relacional com o autor-primeiro. A relação entre estes dois sujeitos
poderia ser assim esquematizada:
Sujeito-autor f—————————g Sujeito-leitor1
j— — — — — — — —m
Sujeito-leitor1-tradutor f—————————g Sujeito-leitor2
Pode-se notar, claramente, três tipos de relação dialógica: aquela estabelecida entre o sujeito-autor e
o sujeito-leitor1, o futuro tradutor que, provavelmente estabelecerá um contrato de leitura diferente daquele de
um leitor comum (1). Esse contrato de leitura, geralmente mais abrangente que o normal, será o conduto da
transformação do leitor em sujeito-leitor1-tradutor, que, por sua vez, terá que estabelecer um novo contrato de
leitura com o sujeito-leitor2(2). Entretanto, este, por sua vez, relacionará seu contrato ao sujeito-autor,
apagando o sujeito tradutor (3).
Estes três tipos de relação serão, assim, subservientes a uma relação maior — aquela estabelecida
entre os sujeitos e a sociedade6
— uma relação dialógica que deve ser considerada como constitutiva da
linguagem, da enunciação, essencial para a própria produção de sentido.
Para Bakhtin, a situação social sempre determina a enunciação, e esta situação social é sempre mais
imediata — uma relação de duas vias: “a palavra é determinada tanto pelo fato de que procede de alguém,
como pelo fato de que se dirige a alguém” (ib., p.113). É, pois, um produto de uma interação social. A
alteridade define, pois, o ser humano (e também seu discurso), já que é impossível buscar o homem fora de
suas relações com outros seres humanos, isto porque a “vida é dialógica por natureza” (id, 1992, p. 35/36).
Ou seja, a linguagem, produto da própria vida, não é individual, porque é usada por seres sociais. Também as
condições de sentido do(s) discurso(s) não são individuais, já que são construídos como um diálogo entre
discursos.
O fazer tradutório não foge à regra: a relação dialógica também lhe é constitutiva — não só o diálogo
entre os sujeitos (visto anteriormente), mas igualmente o diálogo entre os textos que estão em relação
tradutória. Esta relação parece-me ser extremamente forte, até mesmo “canibalesca”, já que o texto
traduzido toma literalmente o lugar do texto original, que é esquecido. “Adoro Camus/ Shakespeare/ Goethe”,
dito pela maioria dos leitores médios brasileiros, passa obrigatoriamente por um texto traduzido, pelo filtro e
pela voz de um tradutor.
6
O sujeito-leitor do texto traduzido, por sua vez, estabelecerá vínculos relacionais tanto com a sociedade inserida no texto original,
quanto com aquela em que o código lingüístico do texto traduzido se insere.
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E o que dizer dos autores clássicos, já que a maioria das traduções baseia-se também em traduções
anteriores e, às vezes, em verdadeiras versões interpretativas?
Assim, se já o texto-fonte, dada a sua concepção dialógica, prevê uma leitura de muitos fios, de
muitas vozes, de muitos outros textos e discursos que aí se inserem ou que lhe são constitutivos, o quê dizer
do texto traduzido? À presença da palavra do outro, da consciência do outro, já constitutivas de qualquer
texto, acresce-se a voz do tradutor, inscrito em determinado grupo social e ideológico e, na maioria das vezes,
diverso daquele que está presente no texto-fonte. O tradutor, de modo semelhante ao do autor, faz uso do
discurso já pleno da palavra do outro, da heterogeneidade enunciativa da palavra do outro.
Parece-me interessante analisar a interlocução dialógica do texto traduzido. A quem ele se destina?
Quem é este leitor, fruto primeiramente das formações imaginárias do tradutor? Impossível responder
adequadamente a tais questões. Entretanto sabe-se que este leitor sempre está indelevelmente presente em
qualquer trabalho tradutório — seja na tradução de uma grande obra, seja na tradução de um “simples” título
de filme.
Os tradutores que se dedicam a este último tipo de tradução bem conhecem a pressão que lhes é
exercida pelas distribuidoras: muitas vezes, por inúmeras razões (mas quase sempre por razões comerciais),
os títulos são acrescidos de apostos explicativos7
, principalmente quando o titulo original é um nome próprio,
socialmente conhecido ou percebido em seu lugar de origem, mas desconhecido no país para o qual se destina
a tradução. Há clara presença de uma nova voz — de uma voz “econômica”. Essa voz econômica não é
privilégio da indústria cinematográfica. Ela pode também estar presente nas casas de edição8
. Como vemos,
muitas são as vozes que se introduzem no discurso-traduzido, acrescendo à trama polifônica original novos
matizes.
4. Concluindo
O texto traduzido procura não estabelecer uma relação especial com os sujeitos que dele se valem9
.
Pelo contrário, vela, até onde é possível, a visibilidade da inscrição dessas outras vozes: quer que a relação
com o leitor/ouvinte seja, na medida do possível, igual ou, no mínimo, semelhante àquela que o destinatário
original estabeleceria com o texto-primeiro. O tradutor sabe de sua presença, reconhece suas marcas
lingüístico-discursivas, mas o leitor/ouvinte, não.
Do tradutor provém enunciados com força de autoria, embora sua interpretação possa ser, algumas
poucas vezes, questionada10
. Mas, se na maioria das vezes, o destinatário — leitor/ouvinte — por ser leigo
em estudos tradutórios — não tem como contestar e também não o faz, a relação dialógica entre textos-
primeiros e textos-traduzidos continua inconteste.
5.Referências Bibliográficas
AUTHIER-REVUZ, J. Hétérogénéité montrée et hétérogénéité constitutive: éléments pour une
approche de l’autre dans le discours. DRLAV, 26, Paris: Université de Paris VIII – Vincennes, 1982.
BAKHTIN, M. L`oeuvre de François Rabelais et la culture populaire au Moyen Age et sous la
Renaissance.Paris: Gallimard, 1970.
7
O filme francês “Amélie Poulain” recebeu, no Brasil., o nome de “O fabuloso destino de Amélie Poulain”, o que, segundo os
distribuidores, tornaria o filme mais vendável.
8
Na tradução brasileira de “Structure et événement?” de Michel Pêcheux, o ponto de interrogação do título, essencial para uma
adequada leitura do texto, foi retirado. Razões? Com a palavra a editora.
9
Com exceção de traduções críticas, com notas ou glossários explicativos.
10
É o que ocorre, por exemplo, com as primeiras traduções brasileiras da obra de Bakhtin, fortemente criticadas por serem feitas a
partir do texto bakhtiniano traduzido para o francês e não do original russo.
6. LINGÜÍSTICA: CAMINHOS E DESCAMINHOS EM PERSPECTIVA 27
______. Problèmes de la poétique de Dostoievski. Lausanne: L`Age d`homme, 1970.
______. (VOLOCHINOV. V. N.) Marxisme et philosophie du langage. Paris: Minuit, 1977. (Tradução
brasileira: São Paulo: Hucitec, 1988)
DUCROT, O. “Topoï et formes topiques”, in ANSCOMBRE (org.) Théorie des topoï. Paris: Kimé, 1995.
FUCHS, C. Paraphrase et énonciation. Paris: Ophrys, 1994.
JAPRISOT, J. Un long dimanche de fiançailles. Paris: Denoël, 1991.
MARTIN, R. Inférence, antonymie et paraphrase. Strasbourg: Klincksieck, 1976.