Este documento apresenta:
1) Uma pesquisa sobre as narrativas (auto)biográficas de licenciandos em Matemática para compreender a constituição de suas identidades docentes.
2) A análise da trajetória de formação de uma licencianda chamada "Esforço-Força de Vontade" através de seus memoriais de formação entre 2009-2012.
3) A metodologia da pesquisa que utilizou interpretação narrativa das histórias da licencianda para entender como sua identidade docente foi se formando.
O PROCESSO DE ESFORÇO-FORÇA DE VONTADE, DANDO FORMA À SUA COLCHA-VIDA-FORMAÇÃO DOCENTE
1. Práticas de ensino na formação inicial do professorado
INFORME DE INVESTIGAÇÃO
O PROCESSO DE ESFORÇO-FORÇA DE VONTADE, DANDO FORMA À SUA
COLCHA-VIDA-FORMAÇÃO DOCENTE
MARTINS, Rosana Maria
rosanamariamartins13@gmail.com
UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO CARLOS – UFSCar (Bolsista CNPq)
ROCHA, Simone Albuquerque da
sa.rocha@terra.com.br
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO
Palavras-chave: (Auto)biografia - Narrativas de si - Memorial de Formação -
Identidade Docente - Licenciandos em Matemática.
1 Introdução
O presente texto origina-se da dissertação de Mestrado defendida em 2012, que se
apropriou de narrativas (auto)biográficas – memoriais de formação – para acompanhar e
compreender melhor os processos pelos quais passam os futuros professores de
Matemática, sem experiência na docência em sua formação, relatos esses cunhados pelo
próprio sujeito em uma escrita “narrativa de si”, constituindo-se, assim, um enfoque
recente nas pesquisas sobre formação e identidade docentes. É importante informar que
essa pesquisa integra um projeto maior aprovado no Observatório da Educação em 2009,
entre duas instituições brasileiras, sendo uma pública, Universidade Federal de Mato
Grosso, campus de Rondonópolis – UFMT/CUR e uma confessional, Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP.
Para tanto, objetivamos apresentar como se dá o processo de tornar-se professora de
uma licencianda da UFMT/CUR, que se autonomeou Esforço-Força de Vontade, a fim de
evidenciar o movimento constitutivo de sua identidade profissional. Os dados foram
coletados durante seu processo de formação, compreendendo o período de 2009 a 2012,
inicialmente, com 18 licenciados, sendo que, nos últimos dois anos, passam a compor a
investigação somente 03 acadêmicos.
Entendemos, então, que o levantamento de dados se pautou na investigação
interpretativa, numa perspectiva qualitativa, pois supomos que a realidade, de alguma
maneira, vai sendo construída pelo investigador.
Recorremos a Bolívar (2012, p. 7), quando afirma que a investigação narrativo-biográfica,
como um ramo da investigação interpretativa, converte alguns princípios gerais da
investigação qualitativa, especialmente, a perspectiva interpretativa ou hermenêutica.
Desse modo, se pode entender que, no fundo, toda investigação qualitativa é de fato uma
investigação narrativa.
2. Quanto ao uso do método, o (auto) biográfico, apoiamo-nos em Nóvoa (2010) e Passeggi
(2003). Segundo esses autores, a (auto)biografia apresenta-se como uma das
possibilidades de formação, a qual estimula os sujeitos a se autoformarem, na medida
em que forem explicitando as trajetórias de vida e de formação.
Neste sentido, com ênfase na pesquisa (auto)biográfica, a partir de memoriais de
formação, buscaremos “sistematizar e apreender aspectos concernentes à construção da
identidade [docente] [...], ao evidenciar marcas e dispositivos experienciados nas
trajetórias e percursos de vida-formação” (Souza, 2008, p. 43).
De acordo com Fiorentini (2012), dezenas de dissertações e teses brasileiras, nos últimos
quinze anos, têm como foco de estudo as narrativas ou as histórias de vida de
professores de Matemática. Retrata o autor que tais investigações apontam evidências
da existência de múltiplos modos de construção de experiências de vida narradas por
professores.
Ao prefaciar a obra “Viver e Contar: experiências e práticas de professores de
Matemática”, esse autor demonstra estar diante de “uma nova modalidade de meta-
análise qualitativa ou metassíntese de estudos narrativos ou (auto)biográficos de
professores de matemática” (Fiorentini, 2012, pp.14-15, grifo do autor). O autor
proporciona grande contribuição, ao trazer, pelo menos, quatro modalidades analíticas ou
hermenêuticas de tratamento de narrativas as quais expressam diferentes modos de
escutá-las, sendo elas: as análises de narrativas; as análises ou interpretações
narrativas, as análises mistas e as análises alternativas ou dialógicas. Assim, a partir do
suporte oferecido por Fiorentini, este trabalho adotará as análises ou interpretações
narrativas para apresentar os indícios da constituição da identidade docente de Esforço-
Força de Vontade. Vale informar que faremos uma analogia entre as lembranças e
trajetórias desta protagonista por entender que os trechos extraídos do memorial
cunhado por ela, tais como retalhos, vão construindo, costurando, cosendo sua colcha,
sua identidade de professor.
2 Os memoriais de formação como organizadores das histórias contadas:
narrativas (auto)biográficas
A formação do professor deve ser repensada conforme a necessidade social da escola
pública, sempre aberta ao novo e capaz de oferecer, ao aluno, caminhos para a busca de
respostas às questões que enfrenta no cotidiano. Entendemos que a docência é uma
atividade profissional complexa, que envolve saberes e práticas diversificadas.
Desse modo, o futuro docente precisa construir uma identidade profissional com os
saberes pedagógicos próprios da profissão, atendendo às exigências da população
envolvida e às demandas que se apresentam na escola.
Compreendemos, também, que o desenvolvimento profissional dos professores e a
construção da sua identidade se evidenciam “na forma como definem a si mesmos e aos
outros, configurando-se em um complexo emaranhado de histórias, conhecimentos,
processos e rituais” (Marcelo, 2009, p.07).
Nosso posicionamento se justifica a partir de Placco e Souza (2010) quando afirmam que
o processo de formação dos sujeitos e de suas identidades profissionais abarca um
movimento de tensão permanente, contínuo, fluido, em que esses sujeitos se identificam
3. com determinadas formas identitárias, sendo estas sempre provisórias, mas constituídas
da maneira de agir e pensar sobre o que fazem e vivem.
Neste sentido, não é fácil conceituar identidade. Por isso, recorremos a Ciampa (2001), a
Dubar (2005), a Stuart Hall (2006) e a Larrosa (2004), a fim de avançar nossa
compreensão, nosso entendimento, do que seja identidade.
De acordo com Faria & Souza (2011, pp. 41-42), Ciampa trata da identidade enquanto
conjunto das personagens que atuam em um processo de tensão permanente com os
papéis sociais pré-estabelecidos e se transformam, ainda que, algumas vezes, a
aparência seja de não mudança. Já Dubar (2005) enfoca a identidade no trabalho,
destacando os eixos biográfico e relacional pelo estudo do papel das instituições em sua
constituição, numa perspectiva dialética em que a identidade equivale a um processo de
tensão permanente entre o individual e o social. De acordo com os autores, Hall situa a
identidade na pós-modernidade e a conceitua de identidades culturais, alegando não ser
possível afirmar o que seja identidade, pois envolve múltiplos fatores. Para Hall, o sujeito
pós-moderno é caracterizado por manter sua identidade aberta, devido à mudança, à
diferença e à inconstância, abrindo, assim, a possibilidade de desenvolvimento de novos
sujeitos. São as identidades múltiplas, permanentemente abertas.
Outro autor que nos ajuda a avançar no conceito de identidade é Larrosa (2004). Para
ele, o que vamos dizendo de nós, atravessado pelos discursos dos outros sobre nós,
colabora com a constituição de nossa identidade, já que os sujeitos se instituem pela
linguagem. Deste modo, o tempo de nossas vidas está determinado pelo que sucede ao
passarmos por nossas experiências. A interpretação da experiência pressupõe uma
articulação temporal. Segundo Larrosa (2004, p. 17), “o que acontece enquanto
experiência só pode ser interpretado narrativamente”. A narrativa, então, permite o
mergulho em si mesmo, estabelecendo sua relação com o mundo.
Assim, como organizadora das memórias narradas, a pesquisa aponta, como principal
instrumento, os memoriais de formação já que, no processo da escrita das narrativas, a
memória aparece como fator preponderante, expondo os fatos vivenciados pelo sujeito e
dando vida a eles. Segundo Passeggi (2003), o memorial é um ato de linguagem que se
materializa sob a forma de narrativa (auto)biográfica.
Diante do exposto, nossa expectativa com relação à presente investigação é que ela
disponibilize dados relativos aos modos pelos quais Esforço-Força de Vontade projeta
suas percepções de como vai constituindo sua identidade profissional docente e, ao
mesmo tempo, refletem sobre sua trajetória e prática.
3 As Pesquisadoras no Processo de escrita narrativa sobre Esforço-Força de
Vontade
Vale informar que os licenciandos, a cada semestre, eram provocados a essa reflexão,
via memoriais de formação. As narrativas pessoais de Esforço-Força de Vontade foram
escritas a partir de roteiros sugestão, elaborados com a contribuição dos licenciandos. Os
alunos determinaram o que não poderia faltar no texto e, assim, em acordo coletivo -
pesquisadores e licenciandos - os memoriais foram sendo escritos na perspectiva de
narrativas de si, nos quais registravam tudo que acreditavam ser importante relatar
acerca de sua (auto)formação docente.
4. Os roteiros foram estruturados em eixos, sendo eles: trajetória de vida e de escolaridade
e as expectativas da construção profissional e identidade docente; a dimensão social da
profissão; os aspectos fundantes para a sua formação docente, a partir da proposta
curricular vigente no Curso.
Destacamos que os relatos dos sujeitos, em suas narrativas (auto)biográficas,
desencadeavam em nós muitas reflexões e, em diversos momentos, víamo-nos neles e,
em outros, considerávamos que nossas histórias de vida e de formação eram muito
diferentes. Essas constatações convidaram-nos a escutar os sujeitos da pesquisa e
ajudaram nossa interpretação pela qual acabamos entendendo que a colcha de retalhos
é a junção das suas, da nossa história... Ora eles são os tecelões, ora nós tecelãs, e
assim vamos dando atribuições de significados à realidade vivida pelos envolvidos na
pesquisa.
Foi, então, que nos perguntamos: O que evidenciam os licenciandos em suas narrativas
acerca do processo de constituição da identidade docente?
Iniciamos, nesta parte do texto, nossa escrita narrativa sobre Esforço-Força de Vontade,
vendo-a como uma pessoa guerreira, firme, dócil, alegre, entusiástica, esforçada... que
busca alcançar um ideal... É assim que a enxergamos, que a escutamos... Cada
lembrança trazida por ela nos transporta à representação de sua realidade, pois partimos
da premissa de que suas narrativas (auto)biográficas estão carregadas de significados,
de reflexões e de (re)interpretações.
Lembramo-nos de Fiorentini (2012), quando ressalta que há diversas maneiras de
interpretar, analisar e compreender o que os professores fazem, pensam, sentem e
sofrem ao enfrentarem o desafio de ensinar e aprender Matemática. Entendemos que
nosso olhar sobre Esforço-Força de Vontade vai seguir esse direcionamento.
Apresentamos, a seguir, sua (auto)biografia, pois entendemos que, a partir de suas
narrativas, poderemos realmente proceder à análise longitudinal da constituição de sua
identidade docente, ou seja, de uma licencianda sem experiência na docência.
Ao discorrer sobre sua história de vida/formação, percebemos que é importante conhecer
um pouco mais de Esforço-Força de Vontade. Os excertos que trazemos, neste
momento, são extraídos dos seis memoriais de formação a fim de tecer a (auto)biografia
de Esforço-Força de Vontade. Informamos, também, que a tessitura das narrativas serão
baseadas nos autores anteriormente citados, em especial, em Teixeira, et al. (2012), a
começar pela escuta que fazemos da escrita de si, desta protagonista. As narrativas
foram ordenadas, reordenadas, nem sempre em ordem cronológica porque, no
movimento da escrita narrativa, é comum o ir e vir do autor ao escrever os fatos que mais
marcaram sua trajetória. Em muitos casos, houve a necessidade de limpar “vícios de
linguagem” e alguns erros da escrita, a fim de que o texto propiciasse melhor
entendimento ao leitor. A licencianda, em suas narrativas, cita nomes de seus
professores, para os quais atribuiremos letras aleatórias do alfabeto a fim de identificá-
los, resguardando suas identidades.
Iniciar uma narrativa é como montar um mosaico, é unir fragmentos por fragmentos, com
contornos irregulares, cores marcantes, espessuras diferentes, ... mas, quando juntos,
transformam-se em algo maior, particular, significativo, retratando a imensidão de quem o
criou, constituiu a colcha de retalhos, neste caso, a história, ou seja, Esforço-Força de
Vontade.
5. As narrativas de Esforço-Força de Vontade encaminhavam-nos a diferentes sentimentos
e, conhecendo sua história, houve momentos em que nos víamos nela. E, assim, íamos
costurando seus retalhos aos nossos. Esse movimento de encaixar as peças de retalhos
esteve presente no percurso da escrita, compondo a narrativa sobre o processo de
constituição da identidade docente da mesma.
Pedimos licença e vamos, agora, fazer uma transcriação entre as lembranças em cada
trecho extraído do memorial de Esforço-Força de Vontade, tal como retalho, na
constituição da identidade de professora, isto é, a colcha desta personagem (Ciampa,
2001).
As narrativas de si são carregadas de significados e de (re)significações que o sujeito
vivencia. Portanto, ao tecer a colcha de retalhos de Esforço-Força de Vontade, pomo-nos
a acrescentar novos fios e novas costuras aos seus relatos de vida. Como
pesquisadoras, entendemos que a narrativa desta protagonista seja acumulada de
histórias, porém vamos nos centrar nas marcas de trajetórias de vida e de formação e,
ainda, nos indícios de constituição de identidade ao longo do curso.
Esforço-Força de Vontade, na sua narrativa, explicita a estrutura familiar e social mais
ampla e anuncia o contexto familiar paupérrimo em que viveu e anuncia: “passamos por
muitas dificuldades, inclusive fome [...]”. E, mais adiante revela que todos da casa saíam
para trabalhar e que ela, aos quatro anos, além de ficar sozinha, cuidava da casa, sendo
a sua “infância muito solitária”.
Em meio as suas vivências e experiências, demarcadas por uma infância não vivida, não
se coloca como vítima dessa situação. Pelo contrário, Esforço-Força de Vontade vai se
(trans)formando à medida que vão ocorrendo transformações identitárias, as quais,
simultaneamente, provocam mudanças de consciência, do medo, do pavor de estar com
outras pessoas, pois “[...] quando chegava alguém na minha casa, até mesmo parente,
eu entrava debaixo da cama de tanto medo”, relata Esforço-Força de Vontade.
Porém, o caminho se abre às novas aprendizagens. Nesse espaço, há um tempo
marcado pela luta, pela sobrevivência, o qual não é assinalado apenas pelas condições
históricas determinadas. Ela vive uma metamorfose, uma inquietude que a mobiliza para
a busca de melhores condições de vida. “[...] aprendi a pintar e a bordar em panos de
pratos e comecei a vender, fui juntando dinheiro e nunca me esqueço da felicidade que
tive em poder comprar uma cama com colchão para mim e outra para minha mãe, que
até então nós não tínhamos, nós dormíamos num sofá que minha mãe tinha ganhado
[...].” E assim ela encara as primeiras pinturas... os primeiros bordados... os primeiros
retalhos começam a ser costurados um a um, como em uma colcha de retalhos. Esforço-
Força de Vontade é um sujeito em constante transformação, movimento expresso
claramente em suas memórias-narrativas. Chega a dizer: “[...] hoje eu olho para trás e
vejo o quanto eu progredi”.
Sua entrada no ensino formal traz marcas de violências sofridas em sua escolaridade no
Ensino Fundamental, frente aos antimodelos de docência adotados por professores como
forma de controle da turma. E, em determinados momentos, os retalhos não se encaixam
na feitura da colcha; é preciso redimensioná-los, apará-los, ajustá-los ou, ainda, rejeitá-
los para uma costura posterior. Isso, Esforço-Força de Vontade comprova fazer, quando
sua memória narra os professores que serviram como antimodelos de docência, mas os
devidos ajustes e reinterpretações à luz dos conhecimentos fizeram-na compreender que
é possível decidir-se por um perfil docente, tendo nos antimodelos o molde do que não
6. deve constituir sua docência. A esse respeito, ela foi contundente: “Com o contato que
tenho com meus professores, sempre observo o jeito que eles transmitem o
conhecimento e tenho certeza que vou me espelhar em alguns deles para formar o meu
perfil profissional”.
Assim, ora aqui, ora ali, a licencianda vai pegando seus retalhos e colocando-os como
num quebra-cabeças, observando entre eles a harmonia, ligação, arte, formas e modos
de perceber como um pode interligar-se ao outro, quando, então, a estética dá a arte final
e as mãos de Esforço-Força de Vontade vão costurando a colcha.
Nessa tessitura (auto)biográfica, expõe seu percurso escolar, faz referência ao apoio da
família, ao incentivo da mãe para que os filhos estudem, destaca os incentivos de alguns
professores de Matemática que a levam a identificar-se com a docência. Nesse sentido,
os relatos expõem tanto um cercamento familiar para o estudo, quanto um cercamento
que a estimula a estudar e buscar a licenciatura em Matemática. Acerca disso, ela relata:
“[...] o professor P que deu aula para mim da sexta a oitava série é que me incentivou a
fazer a faculdade de Matemática, pois era a matéria que eu mais gostava”. E, mais
adiante, confirma essa identificação, ao afirmar que um professor do Ensino Médio só
“[...] ajudou a ter certeza que um dia eu queria ser professora de Matemática”. Nesse
processo, a Matemática se fez presente em sua narrativa.
Ela também aponta outras formas de identificação com a profissão: “Como venho de
família em que tenho dois irmãos que são professores e minha mãe também já foi
professora, isso me incentivou a seguir esta profissão e sempre tive muitos amigos que
são professores, isso tornou as minhas relações sociais mais estreitas”.
No processo de tornar-se professora, o trajeto vivido confere-lhe identidades sociais
demarcadas pelo nível de formação, pela situação de emprego e pelas posições
ocupadas no mundo do trabalho. Em suas memórias, reconhecem-se rastros da etnia
negra e da baixa renda familiar. Aqui, sua identidade tem lugar singular, por pertencer a
essa comunidade. O cursinho ofertado pelo Movimento Negro, em Rondonópolis-MT,
atende-a em duas categorias: negritude e renda familiar. A entrada nesse cursinho lhe
devolve a chance de sonhar com a Universidade e ser professora de Matemática. Em
janeiro de 2009, sai a lista dos aprovados para o curso de Licenciatura em Matemática,
deixando-a muito feliz a ponto de narrar: “[...] quase não aguentei de tanta emoção”.
Tomando metaforicamente as palavras de Gilberto Gil, anunciamos: como se a
Matemática fosse o pano e ela “fosse a linha e agulha do real nas mãos da fantasia” (Gil,
1983).
Ficamos a nos indagar: Seria a docência um constitutivo de muitos recortes, estudos,
teorias, lembranças, associações, interações, práticas, que, guiados pelas concepções e
modos de ser e de ensinar, vão dando contorno à prática e, assim, compondo a colcha?
É assim que acontece quando se torna professor? Esforço-Força de Vontade demonstra,
passo a passo, como vai se constituindo professora.
A entrada na Universidade e os primeiros movimentos do processo formativo são
demarcados por movimentos de tensão e de avanços contínuos; em vários momentos,
reitera: “Consegui superar minhas dificuldades através de muito estudo, pois eu sabia
que a única pessoa que podia me ajudar era eu mesma [...]”. Chega a fazer uma síntese
identitária: “[...] Se eu tivesse que dar um nome para mim, seria “Esforço-Força de
Vontade.” É sua colcha de retalhos sendo tecida por várias nuances, cores e formas,
7. todas diferentes, alinhavadas pelos sonhos com os fios das conquistas ao longo da
caminhada e da esperança de tornar-se professora.
Nesta direção, são fortes e não raros os momentos em que ela narra sobre a sua
formação, da insegurança em adentrar na sala de aula e, no seu percurso formativo,
expõe sua inexperiência e a importância de participar do Programa Institucional de Bolsa
de Iniciação à Docência (PIBID), menciona o Estágio e os projetos de iniciação científica.
Para Esforço-Força de Vontade, essas atividades são contributos importantes ao
desenvolvimento profissional como futura professora. Nas suas palavras: “[...] o que me
ajudou muito foi participar de um projeto da CAPES, o PIBID [...] Os bolsistas fazem
acompanhamento das aulas junto com o professor da turma e depois em contra turno
que os alunos estudam damos aulas de apoio. E através disso, pude estar dentro de uma
sala de aula no dia a dia com os alunos, o que me ajudou, pois eu tinha certa dificuldade
em explicar o conteúdo a outras pessoas e com esse contato eu melhorei muito, hoje me
sinto mais preparada para dar aula”.
Em suas narrativas, é possível constatar o quanto o Estágio é significativo em suas
vivências e experiências. “E o Estágio Supervisionado [...], que é a forma em que se pode
ter o contato mais direto com os alunos e poder observar o professor e tentar buscar
alguma identidade para o meu perfil profissional”. Na memória de futuro, sua identidade
vai se constituindo como acadêmica em Matemática, isto é, vai se enquadrando no perfil
matemático, enquanto a maioria tem rejeição, desiste, muda de curso, fatores esses,
muitas vezes, marcados pela matriz curricular; outros adentram nesse enquadramento,
sujeitando-se a esse processo.
Esforço-Força de Vontade consegue estabelecer o processo de identificação com a
docência, a partir de uma atividade curricular: “[...] estou fazendo Estágio e estou
gostando muito desse contato que estou tendo com os alunos, gosto de ensinar e é muito
gratificante para mim quando consigo fazer com que os alunos entendam e aprendam
[...]”. Neste sentido, a identidade profissional de Esforço-Força de Vontade vai ganhando
contornos, pois, na experiência da ação de ensinar, o ato de ensinar vai dando força para
a constituição de identidade profissional, a partir do momento em que acontece a
aprendizagem.
“As situações em que me sinto mais envolvida nessa formação é quando estou dando
aulas de apoio para os alunos da EEMOP no projeto PIBID, pois quando estou lá me vejo
com a responsabilidade de ajudá-los a compreender os conteúdos que eles estão em
dificuldade”.
Há, em seus relatos, a descrição de contato com a escola, as articulações pedagógicas
possíveis que dotam os futuros professores de novas experiências, permitindo que
reflitam sobre a escola enquanto espaço do fenômeno educativo. Nesse ínterim, ela vai
ganhando consciência da futura profissão, fato exposto em sua narrativa: “Na escola em
que desenvolvo esse projeto, somos muito bem aceitos pelos professores,
coordenadores e todos os funcionários da escola, inclusive no início do ano todos os
alunos que participam do PIBID participaram da Semana Pedagógica da escola, e foi
muito bom, pois proporcionou a visualização prática dos profissionais da Educação; como
proceder para tornar o ensino mais proveitoso; discussão e o alinhamento entre os
professores dos conteúdos e projetos que serão aplicados durante o ano letivo e
momentos de integração através da cultura, informação e lazer”.
8. Ela também apresenta a importância das disciplinas no seu processo de constituição
identitária, destacando o valor das matérias pedagógicas para sua compreensão sobre o
planejamento de ensino, a avaliação do processo ensino-aprendizagem, a relação teoria
e prática, a estrutura do ensino, as políticas educacionais públicas. Destaca, ainda, as
disciplinas matemáticas, deixando visível a compreensão do mérito das mesmas para o
ensino da Matemática. “E os conteúdos mais voltados à matemática também foram de
fundamental importância, pois cada disciplina cursada além do conhecimento, me traz
mais segurança para explicar os conteúdos aos alunos, por ter uma base mais sólida em
conhecimentos matemáticos”.
Descreve, ainda, a licencianda, que “todas as disciplinas contribuíram para esse
crescimento, mas principalmente as disciplinas de estágio, pois esta experiência ajudou
na compreensão sobre o meu perfil de professora”.
Assim, como aprendiz de professora, os arremates em forma de ziguezague e o alinhavo
das escolhas de Esforço-Força de Vontade vão dando o contorno à sua colcha-vida-
formação docente. Tanto é verdade que Esforço-Força de Vontade fala da relevância da
profissão docente, como também de sua desvalorização: “Hoje em dia poucas pessoas
querem seguir a carreira da docência, devido à desvalorização do profissional, à baixa
remuneração e até mesmo ao vandalismo encontrado em algumas escolas [...].”
Vemos que as narrativas de sua (auto)biografia dão indícios de como a licencianda vai
constituindo sua identidade docente. Os movimentos desse percurso não são fixos, eles
são provisórios e essa provisoriedade a impele a agir e a pensar o modo de ser e de
encarar a futura profissão.
Mas, já não temos certeza de que sua identidade caminha para a docência, ao
percebermos que há um processo de mudança identitária, um projeto de futuro, quando
diz: “Desde o segundo semestre a minha identidade de aluno mudou muito, quando eu
entrei na faculdade eu queria fazer uma faculdade para ter uma profissão, mas hoje eu
penso em continuar meus estudos quando terminar minha graduação, pretendo fazer um
Mestrado e futuramente um Doutorado, pois a cada dia que passa eu me sinto mais
envolvida, mais apaixonada pelos meus estudos”. Tal incerteza recai por não
conseguirmos visualizar se deseja seguir a carreira acadêmica ou se pensa na pós-
graduação stricto sensu como uma possibilidade de melhor qualificação e, assim,
proporcionar uma docência de melhor qualidade aos seus alunos, ou, ainda, como
perspectiva para o acesso à carreira docente em nível superior.
Expomos isso, pois a licencianda questiona o movimento grevista e registra “no ano que
vem eu já precisava estar trabalhando, mas se não tiver concluído até o início de 2013,
época em que começam as contratações nas escolas, não vou conseguir emprego”.
Percebemos aqui que a profissão que veio buscar na Universidade, isto é, a docência,
articula-se ao ser bem sucedida e ao gostar de estudar. Essa identificação provoca o
desejo de continuar estudando e, desse modo, aprende a estabelecer relações e começa
a projetar possibilidades. É assim que a escutamos.
Nas análises das narrativas de Esforço-Força de Vontade, temos a certeza de não haver
esgotado o olhar e os estudos sobre esta pesquisa, pois estamos convictas de que a
cada dia temos a probabilidade de efetuar novas buscas (teóricas e coleta de dados) e
desvendar outros horizontes, já que a vida lhe deu retalhos de vários tamanhos, que se
concentram com todas as suas histórias e fantasias em sua tessitura. Em se tratando de
costurar a colcha de retalhos da docência, é interessante afirmar que esta se tece com
9. muitos fios e muitas cores.... Assim está Esforço-Força de Vontade... com os retalhos da
formação... costurando fio a fio...sua colcha... que caminhos vai seguir?
Não sabemos... só conseguimos visualizar que sua constituição de identidade docente
está em constante movimento, tal como afirma Hall (2006, p.3): “ [...] somos confrontados
por uma multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades possíveis, [...] [que]
poderíamos nos identificar — ao menos temporariamente”, pois sob certas
circunstâncias, os diversos elementos e identidades podem articular-se. Articulação é
sempre parcial: a estrutura da identidade permanece aberta.
4 As narrativas de si: percursos da constituição identitária de Esforço-Força de
Vontade
E, assim, lançamo-nos aos contornos finais da colcha de retalhos que nos propusemos
tecer e que agora, em nossas mãos, ganha forma, encanto, formosura e cor. Trabalhar
com memoriais de formação foi instigante e, de certa maneira, desafiador, pois esse
instrumento, enquanto processo, visa desencadear a rememoração com reflexão sobre
os fatos narrados. Nesta pesquisa, os memoriais se apresentaram por escrito, a cada
semestre, formando uma trama; aqui, a colcha, tecida pela licencianda, compondo,
assim, sua (auto)biografia.
Percebemos nesta trajetória de formação que a agulha não parava de costurar e, a cada
ponto, os sujeitos sofriam a ação e refletiam sobre a ação, demonstrando o movimento
constitutivo da identidade docente.
Ao analisar diacronicamente a (auto)biografia de Esforço-Força de Vontade, presente em
seu memorial de formação, percebemos que essa licencianda, ao longo dos quatro anos
de formação, foi constituindo-se professora de Matemática, em movimentos alternados,
passando por modelos de antigos professores e por outras formas de identificação,
incluindo familiares e amigos, por reflexões sobre as práticas vivenciadas no PIBID
(Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência) e principalmente no Estágio.
Esforço-Força de Vontade intui que sua formação para docência entrelaça-se às suas
vivências pessoais e de formação com outras histórias, ela crê ser capaz de superar as
dificuldades, projeta sonhos, acredita no aprender a aprender e, principalmente, deseja
alçar voos. Sendo assim, com a linha e agulha do real nas mãos da fantasia, segue
Esforço-Força de Vontade a costurar novos retalhos em sua Colcha... Nesse percurso
vivenciado pelos protagonistas desta pesquisa e por nós, pesquisadoras,
compreendemos que a Colcha de retalhos costurada por Esforço-Força de Vontade é um
resultado
da minha,
da sua,
da nossa história!
Acredito que cada troca que realizamos,
cada aprendizado, cada sorriso, cada lágrima,
são fios que vão tecendo a colcha de retalhos
da minha,
da sua,
da nossa alma...
Cada retalhinho com sua cor, forma, espessura, beleza...
Acredito que a cada instante a "agulha" não para de costurar
10. as infinitas possibilidades de construção do meu Ser...
que se junta ao seu,
que se junta ao todo...
e todos nós
formando este grande tear...
esta grande colcha!!!
(Carella, 2009)
REFERÊNCIAS
Bolívar, A. (2012). Metodología de la investigación biográfico-narrativa: recogida y
análisis de datos. In: Passeggi, M. da C., & Abrahão, M. H. B. (orgs.). Dimensões
epistemológicas e metodológicas da pesquisa (auto) biográfica. Tomo II. Natal: EDUFRN;
Porto Alegre: EDIPUCRS; Salvador: EDUNEB, pp.79-109.
Carella, R. (2009). Retalhos da Colcha. Retirado em Outubro 23, 2012 de
http://rossana.carella.blogspot.com.br.
Ciampa, A. C. (2001). Identidade. A estória do Severino e a História da Severina. Um
ensaio da Psicologia Social. São Paulo: Brasiliense.
Dubar, C. (2005). A Socialização: construção das identidades sociais e profissionais.
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