A Ética a Nicômaco de Aristóteles expõe sua concepção teleológica e eudaimonista de ética, centrada na noção de virtude como mediania e na prudência. Aristóteles discute as idéias de Platão sobre o bem supremo e a felicidade, propondo uma ética das virtudes terrenas e da política.
1. Ética a Nicômaco, de Aristóteles
Ética a Nicômaco é a principal obra de ética de Aristóteles. ethos que funciona como elo entre as esferas jurídica e
Nela se expõe sua concepção teleológica e eudaimonista política. As ordens jurídica e política pressupõem o ethos.
de racionalidade prática, sua concepção da virtude como
A obra de Aristóteles é sistemática. E orientada ao fim
mediania e suas considerações acerca do papel do hábito
último, o Bem Supremo, identificada com a felicidade, ou
e da prudência na Ética. É considerada a mais
eudemonia, em grego. É por isso que inicia a sua
amadurecida e representativa do pensamento aristotélico.
argumentação negando o postulado platônico, muito
O título da obra advém do nome de seu filho, e também embora tal investigação se torne penosa pelo fato de as
discípulo, Nicômaco. Supõe-se que a obra resulte das Formas terem sido introduzidas na filosofia por um amigo.
“anotações de aula” deste e publicadas pelos discípulos de Mas, o fato de Aristóteles ter dedicado à amizade dois
Aristóteles depois da morte prematura, em combate, de livros, o VIII e o IX, indica bem o grau de relacionamento
Nicômaco. que ele tinha com Platão. Porém, “talvez pareça melhor, e
de fato seria até uma obrigação, especialmente para um
Aristóteles inicia suas aulas sobre ética, conforme as
filósofo, sacrificar até suas relações pessoais mais
anotações de seu filho, discutindo as idéias de seu mestre
estreitas em defesa da verdade”. E a defesa da verdade o
Platão. E, embora vá diferir deste em muitos pontos –
leva a concluir que “O bem, portanto, não é uma
passando de um idealismo para um realismo, se assim se
generalidade correspondente a uma forma única”. Isto
pode falar, - a idéia fundamental de Aristóteles é, tanto
porque o bem deve ser algo atingível pelo homem, através
quanto para Platão, o Bem Supremo. E esse bem supremo
de sua atividade, e não um “bem em si”, ideal e inatingível.
é ainda e sempre a felicidade.
Aristóteles, fiel ao método científico, estabelece uma
No Livro II da Ética a Nicômacos, há um trecho que
espécie de classificação de bens, e uma hierarquia na sua
expressa, de maneira exímia, o intuito, o propósito, o
realização, tomando como critério o fim visado. Já que há
objeto e o sujeito do estudo da ética: Estou falando da
mais de uma finalidade: o fim da medicina é a saúde, da
excelência moral, pois é esta que se relaciona com as
estratégia, a vitória, e assim por diante, devemos
emoções e ações, e nestas há excesso, falta e meio
prosseguir do bem que é desejável por causa de outra
termo. Por exemplo, pode-se sentir medo, confiança,
coisa ao bem que sempre é desejável em si:
desejos, cólera, piedade, e, de um modo geral, prazer e
sofrimento, demais ou muito pouco, e, em ambos os Parece que a felicidade, mais que qualquer outro bem, é
casos, isto não é bom: mas experimentar estes tida como este bem supremo, pois a escolhemos sempre
sentimentos no momento certo, em relação aos objetos por si mesma, e nunca por causa de algo mais; mas as
certos e às pessoas certas, e de maneira certa, é o meio honrarias, o prazer, a inteligência e todas as outras formas
termo e o melhor, e isto é característico da excelência. Há de excelência, embora as escolhamos por si mesmas
também, da mesma forma, excesso, falta e meio termo em (escolhê-lasiamos ainda que nada resultasse delas),
relação às ações. Ora, a excelência moral se relaciona escolhemo-las por causa da felicidade, pensando que
com as emoções e as ações, nas quais o excesso é uma através delas seremos felizes. Ao contrário, ninguém
forma de erro, tanto quanto a falta, enquanto o meio termo escolhe a felicidade por causa das várias formas de
é louvado como um acerto; ser louvado e estar certo são excelência, nem, de um modo geral, por qualquer coisa
características da excelência moral. A excelência moral, além dela mesma.
portanto, é algo como eqüidistância, pois, como já vimos,
seu alvo é o meio termo. Ademais é possível errar de E a felicidade não como uma forma abstrata, ideal, mas “a
várias maneiras, ao passo que só é possível acertar de felicidade como uma forma de viver bem e conduzir-se
uma maneira (também por esta razão é fácil errar e difícil bem”.
acertar – fácil errar o alvo, e difícil acertar nele); também é Porém, ainda que assim o seja, parece que a forma de
por isto que o excesso e a falta são características da vida tem profundas implicações na compreensão e
deficiência moral, e o meio termo é uma característica da realização do que seja “viver bem” e “conduzir-se bem”,
excelência moral, pois a bondade é uma só, mas a em relação ao bem supremo. Por isso Aristóteles, ao
maldade é múltipla. mesmo tempo em que discute as características da
felicidade, como algo que deve ser escolhida por si
Aristóteles aprofunda os ensinamentos que retirou de
mesma, questiona a vida prática dos homens,
Platão (República), e elabora sua teoria ética a partir das
especialmente dos mais vulgares, que parecem “identificar
estruturas morais vigentes na comunidade grega do século
o bem, ou a felicidade, com o prazer". E, então, identifica
V a.C. De um modo geral, pode-se dizer que a sua teoria
três tipos principais de vida:
apresenta o procedimento do homem prudente como um
valor, cuja opinião dos homens mais velhos, a experiência - A vida agradável, cujos representantes visam sobretudo
da vida e os costumes da cidade são condições objetivas “aproveitar a vida”, assemelhando-se “totalmente aos
para se filosofar politicamente. Diferentemente de Platão, escravos, preferindo uma vida comparável à dos animais”;
Aristóteles humanizou o fim último, ou seja, o fim último foi
- A vida política, cujo exame dos tipos principais
afirmado no plano terreno. Por isso, o ético em Aristóteles
“demonstra que as pessoas mais qualificadas e atuantes
é entendido a partir do ethos (do costume), da maneira
identificam a felicidade com as honrarias”, “com vistas ao
concreta de viver vigente na sociedade. É exatamente o
reconhecimento de seus méritos”;
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2. Ética a Nicômaco, de Aristóteles
- A vida contemplativa, que visa unicamente a verdade e a intrinsecamente ligados, formando uma ética imanente da
perfeição, ou o Bem Supremo por si mesmo, conforme felicidade terrena, portanto política.
Aristóteles desenvolve ao longo de toda obra.
O conceito de eudemonia vincula-se ao conceito de justiça
Desta realidade advém a necessidade de investigação apresentado por Platão na República, que também
ética e da elaboração de normas morais. Além do que compreende a noção de justiça como uma virtude que
antecipa três modos de consciência, que por si só precisa ser praticada constantemente e não pode ser
demandaria um estudo aprofundado e riquíssimo. De tomada como aquisição contínua, mas como um exercício
qualquer forma, a partir destas constatações, Aristóteles político, assim expresso no livro II, capítulo 6, da Ética a
começa a refletir sobre as questões éticas. É útil adiantar Nicômaco. Aristóteles apresenta o sentido do conceito de
que Aristóteles começa com exemplo práticos da vida virtude como hábito, ou seja, algo que existe em potência
cotidiana, sobre eles reflete e a eles retorna. Tal mas que precisa ser desenvolvido. A natureza oferece as
procedimento identifica o trabalho ético bem como o objeto condições de possibilidades para que o homem possa
de seu estudo. Logo, o objeto da ética é o “comportamento desenvolver suas aptidões conforme sua essência
prático-moral”. Assim, o que faz Aristóteles ao referir-se racional, nesse caso a justiça como um valor ético se
continuamente a exemplos da vida prática, é ética, ou dito desvela em nossos atos, logo “toda virtude e toda técnica
de outro modo, ciência da moral, visto que reflete sobre o nascem e se desenvolvem pelo exercício.
comportamento moral visando, não estabelecer normas,
Observa-se que a prática da virtude não se confunde com
mas indicar o caminho da “escolha correta”, em relação ao
um mero saber técnico, não basta a conformidade, exige-
bem supremo.
se a consciência do ato virtuoso. O homem considerado
Por este motivo, logo em seguida inicia a reflexão sobre a justo deve agir por força de sua vontade racional. Na Ética
areté, termo grego traduzido por "virtude" ou 'excelência a Nicômaco, Aristóteles enumera três condições para que
moral", e que, segundo ele, se diferencia em duas um ato seja virtuoso, a saber: primeiro, o homem deve ter
espécies: a excelência intelectual (sophia), das quais são consciência da justiça de seu ato; segundo, a vontade
exemplos a sabedoria, a inteligência, o discernimento; e a deve agir motivada pela própria ação; terceiro, deve-se
excelência moral (phrônesis), das quais são exemplos a agir com inabalável certeza da justeza do ato. As virtudes
liberdade e a moderação. Na Ética a Nicômaco Aristóteles são disposições ou hábitos adquiridos ao longo da vida e
se ocupa primordialmente, como é óbvio, da excelência se fundamentam na idéia de que o homem deve sempre
moral, acentuando cada vez mais o papel central da realizar o melhor de si. A virtude será uma espécie de meio
phrônesis, traduzido como "discernimento" (e em algumas termo, termo médio entre os extremos, evitando, assim por
outras traduções como "prudência"). dizer, o excesso e a deficiência, uma vez que a justiça é
uma virtude que só pode ser praticada em relação ao outro
A reflexão aristotélica quanto à ética compreende duas
e de modo consciente. O objeto da justiça é realizar a
categorias de virtudes: as virtudes morais, fundamentadas
felicidade na pólis, o seu oposto, a injustiça, poderá ocorrer
na vontade, e as virtudes intelectuais, baseadas na razão.
por falta ou por excesso.
Como exemplo de virtudes morais, temos: a coragem, a
generosidade, a magnificência, a doçura, a amizade e a Aristóteles distingue duas classes de justiça: a universal e
justiça. As virtudes intelectuais ou dianoéticas são: a a particular. A justiça universal significa a justiça em
sabedoria, a temperança, a inteligência e a verdade. Uma sentido amplo que pode ser definida como conformidade
ação pode ser considerada como justa quando realiza o ao nomos (norma jurídica, costume, convenção social,
equilíbrio das virtudes morais e quando alcança as virtudes tradição). Esta norma constituinte do nomos é dirigida a
intelectuais. O objetivo da ação moral é a justiça, assim todos. A ação deve corresponder a um tipo de justo que é
como, a verdade é o objetivo da ação intelectual. Em o justo legal. O membro da pólis se relaciona com todos os
sentido lato, a justiça configura o exercício de todas as demais, ainda que virtualmente, e compartilha com todos
virtudes, observando-se a instância da alteridade. Em os efeitos de sua atitude ou omissão. A justiça universal
sentido estrito, encontra-se como uma virtude ética que ressalta a importância da legalidade como um dos
implica o princípio da igualdade. Tendo por base tal aspectos que fundamenta a coesão social. A comunidade
premissa, Aristóteles inicia sua ética a partir da realidade existe virtualmente na pessoa de cada membro. O homem
social de sua época. O ponto central torna-se o conceito virtuoso é aquele em que, segundo seu agir, o elemento
de atividade; atividade no sentido de que o homem deve essencial passa pela observância do princípio neminem
realizar ao máximo suas disposições naturais (aptidões). O laedere (não prejudique a ninguém).
homem deve buscar esse aperfeiçoamento para com isso
A justiça particular significa em sentido estrito o hábito de
alcançar a felicidade. Esse pensador assinala que o cultivo
realizar a igualdade. Este tipo de justiça refere-se ao outro
da inteligência é o bem supremo, o summum bonum, logo
no sentido de uma relação direta entre partes, típica da
sua concepção ética é denominada de ética das virtudes
experiência citadina. Esse tipo de justiça vincula-se com a
ou ética eudemônica, isso porque enfatiza a busca pelo
justiça universal, pois o transgressor da justiça particular
bem viver e pela felicidade, no sentido estrito de pleno
se compromete também diante do nomos. O justo
desenvolvimento das disposições naturais. O homem deve
particular apresenta-se em duas formas distintas: o justo
desenvolver suas aptidões para alcançar o seu fim (télos),
particular distributivo que assinala a justiça distributiva e o
sua perfeição, por isso que eudemonia e télos estão
justo particular corretivo que apresenta a justiça corretiva.
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3. Ética a Nicômaco, de Aristóteles
A idéia de justiça distributiva surge no sentido de igualdade o único e o mesmo em relação a todos os homens”. É a
na devida proporção. Essa modalidade de justiça regula as escolha justa, correta, feita com discernimento e
ações da sociedade política com seus membros e tem por encaminhada pela prudência. Portanto, ela não pode ser
objeto a justa distribuição dos bens públicos: honras, uma emoção, porque a regula; não pode ser uma
riquezas, encargos sociais e obrigações. Essa prática faculdade, porque, ao mesmo tempo que dela se vale para
também se fundamenta na igualdade que não se confunde regular a emoção, no “espaço” que vai do prazer ao
com uma igualdade matemática e rígida, mas geométrica sofrimento1, a atrai para a ação, para orientar a atividade.
ou proporcional que observa o dever de dar a cada um o É por possuir essa disposição que “um mestre em
que lhe é devido; observa os dotes naturais do cidadão, qualquer arte evita o excesso e a falta, buscando e
sua dignidade, o nível de suas funções, sua formação e preferindo o meio termo – o meio termo não em relação ao
posição na hierarquia organizacional da polis. O princípio próprio objeto, mas em relação a nós”. Não é por outro
de igualdade que figura neste tipo de justiça exige uma motivo que “se afirma com freqüência que nada se pode
desigualdade de tratamento, pois sendo diferentes acrescentar ou tirar às boas obras de arte”. O meio termo
segundo o mérito, os benefícios a serem atribuídos (mesotês) é, assim, o caminho ético para a excelência,
também devem ser diferentes. para o “mestre na arte da vida”. Caminhar para ele requer,
de um lado, o reconhecimento de que a felicidade não se
A outra modalidade de justiça particular é a justiça
confunde com o prazer e o sofrimento, visto que “é por
corretiva ou sinalagmática, que se divide em comutativa e
causa do prazer que praticamos más ações, e é por causa
judicial. Trata-se de um tipo de justiça que regula as
do sofrimento que deixamos de praticar ações nobiliantes”;
relações entre cidadãos e utiliza o critério do justo meio
de outro lado, a construção progressiva de uma
aritmético ou igualdade.
consciência moral constituída, por assim dizer, pelos
Para Aristóteles, a excelência moral não é emoção ou “meios termos” ou excelências morais, operada pelo
faculdade, mas disposição da alma - exatamente uma discernimento e regulada pela reta razão.
disposição para escolher o meio termo.
Ao longo da sua obra podem ser “pinçadados” os “meios
Por meio termo Aristóteles quer “significar aquilo que é termos” mais investigados por Aristóteles, e que se situam
eqüidistante em relação a cada um dos extremos, e que é entre os “vícios por deficiência” e os “vícios por excesso”:
Vícios por deficiência Meio Termo Vícios por excesso
Covardia Coragem Temeridade
Insensibilidade Temperança Libertinagem
Avareza Liberalidade Esbanjamento
Vileza Magnificiência Vulgaridade
Modéstia Respeito Próprio Vaidade
Moleza Prudência Ambição
Indiferença Gentileza Irascibilidade
Descrédito Próprio Veracidade Orgulho
Rusticidade Agudeza de Espírito Zombaria
Enfado Amizade Condescendência
Desavergonhado Modéstia Timidez
Malevolência Justa Indignação Inveja
É por incorporar tais conceitos e tais virtudes em sua isto que a escolha não pode existir sem a razão e o
concepção de felicidade que esta só é atingida em pensamento ou sem uma disposição moral, pois as boas e
Aristóteles depois de um logo itinerário, calcado no esforço as más ações não podem existir sem uma combinação de
e na prática constante. Para ser justo, diz-nos ele, o pensamento e caráter. Há, pois, já em Aristóteles íntimo
homem precisa da prática reiterada de atos justos, e assim relacionamento entre escolha-desejo-razão-ação-caráter.
também para ser moderado... visto que “sem os praticar O esforço ético não é no aperfeiçoamento e ampliação do
ninguém teria sequer remotamente a possibilidade de razão, em seu sentido “puro” ou teórico (esta é função da
tornar-se bom”. Logo é na ação que se forja o homem de sophia), mas no “agir bem” para “viver bem”. Para tanto, o
excelência moral. Mas não em uma ação desordenada e aperfeiçoamento e ampliação do caráter é importante.
irrefletida, desvinculada dos procedimentos mais Porque o caráter é, se assim é possível falar, o “sujeito”, o
nobiliantes do ser humano: A origem da ação (sua causa “executivo” do desejo, que em última análise, no campo
eficiente, e não final) é a escolha, e a origem da escolha prático-moral, jaz na base da escolha e da ação.
está no desejo e no raciocínio dirigido a algum fim. É por
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4. Ética a Nicômaco, de Aristóteles
Ora, mas por “melhor que seja o caráter”, este não Ele deixa, porém, a discussão sobre a vida contemplativa
transforma o “desejo de aproveitar a vida” em “desejo de para o livro X.
reconhecimento”, nem este no “desejo de contemplação”. A partir do capítulo 6, com a discussão que começa sobre
Ele “apenas” torna moral tal desejo, dentro de cada âmbito. o bem, Aristóteles diferencia seu conceito de bem do
É o domínio da razão, no seu sentido “máximo”, de vida conceito platônico pois, enquanto Platão trabalha com o
contemplativa, que pode operar tais transformações. bem em si, com a idéia de bem separada de nosso mundo,
Portanto, em Aristóteles é impossível separar, a não ser ele diz que existem tantos bens como ações e artes,
didaticamente, as duas excelências: a intelectual e a trazendo o bem para a imanência, como atividade do
moral. Por isso a acentuada relação entre a Ética e a homem. É nesse momento que vejo Aristóteles novamente
Metafísica. metafísico, pai do conceito de essência, atribuindo todas
Na Ética a Nicômaco outro tópico acentuado, portanto, é o as coisas a uma causa final. Neste sentido a felicidade
da emoção, tão em moda hoje em dia: “Por emoções aparece como o fim visado em cada atividade humana,
quero significar os desejos, a cólera, o medo, a como se a eudaimonia consistisse no cumprimento perfeito
temeridade, a inveja, a alegria, a amizade, o saudade, o de nossa natureza, natureza entendida como essência e,
ciúme, a emulação, a piedade, e de um modo geral os felicidade, como “algo final e auto-suficiente”. A felicidade é
sentimentos acompanhados de prazer ou sofrimento”. um estado do homem em que a sua natureza e aspirações
Logo, Aristóteles associa emoção ao prazer ou sofrimento essenciais se realizam plenamente conforme seus fins.
no sentido salientado atrás em que, ou praticamos más Aristóteles pergunta então se há algum poder ou função
ações ou deixamos de praticar nobres ações. Obviamente restritos apenas aos seres humanos, e que sirva para
que Aristóteles, ao dar tal sentido ao prazer refere-se, por distinguir o gênero humano do reino animal. Ele encontra
assim dizer, à compreensão vulgar do prazer, associada à essa característica distintiva na capacidade de raciocinar
primeira espécie de vida. É principalmente a tal noção de do homem, que aparece tanto em sua resposta à razão
prazer que deve-se usar da “reta razão”, bem como, como no exercício da razão:
certamente, a toda espécie de vício. Isto porque a reta
Resta, então, a atividade vital do elemento racional do
razão opera sobretudo através do discernimento.
homem; uma parte deste é dotada de razão no sentido de
A reta razão é a razão orientada aos aspectos práticos da ser obediente a ela, e a outra no sentido de possuir a
vida, é a razão orientada a algum fim, e não um fim em si razão de pensar.
mesma, como é a vida contemplativa. “...a excelência
Sendo o elemento racional ativo peculiar ao homem, ele
moral não é apenas a disposição consentânea com a reta
serve para definir sua própria função, que é viver
razão; ela é a disposição em que está presente a reta
ativamente conforme a razão. O homem bom, portanto, é
razão, e o discernimento é a reta razão relativa à conduta”.
aquele que exerce com sucesso suas funções se
Logo, é preciso ter uma disposição prática na vida para
realizando, elevando sua vida até a mais alta excelência
que o discernimento se manifeste. Se a vida contemplativa
de que é capaz, vivendo bem e feliz: “o bem para o homem
é a virtude mais elevada ela, por não levar a nenhum fim,
vem a ser o exercício ativo das faculdades da alma de
não produz discernimento.
conformidade com a excelência”. A definição é
Até o capítulo 5 do Livro I, Aristóteles trata então da complementada logo a seguir com a adição da frase “deve
felicidade de maneira subjetiva, terminando o capítulo com estender-se por toda a vida” para reforçar a afirmação de
um aperfeiçoamento, seu método típico, dos pontos de que um momento de felicidade não constitui a bem-
vista do senso comum. Colocando à prova sua definição e aventurança (felicidade), assim como uma andorinha só
comparando-a com as noções aceitas sobre a ventura não faz o verão.
humana ele conclui que prazer e gozo são apenas estados
Tendo realizado, como diz Aristóteles, esse esboço sobre
agradáveis para a alma. São elementos do bem-estar, da
o bem, ele parte em seguida para uma discussão sobre a
felicidade, mas não constituem a sua essência e não
natureza das excelências ou virtudes humanas – de
devem se tornar o objetivo principal da vida. Rejeita
acordo com as quais a atividade humana deve se realizar
também a noção de que uma vida devotada a ganhar
– com o objetivo de fundamentar melhor sua ética. Até
dinheiro produzirá por si mesma a felicidade: “a vida
este ponto podemos dizer que a atividade é a verdadeira
dedicada a ganhar dinheiro é vivida sob compulsão”. A
essência da felicidade. É a felicidade em ato, não em
prosperidade razoável é um pressuposto da ventura, mas
potência. A virtude deve se mostrar nas ações “da mesma
a riqueza não pode ser o bem supremo por ser
forma que nos jogos Olímpicos os coroados não são os
essencialmente um meio de chegar a outros bens.
homens mais fortes e belos, e sim os que competem
Tampouco pode a honra ser o bem supremo por ser um
(alguns destes serão vitoriosos), quem age conquista, e
bem exterior proporcionado pelo reconhecimento de outras
justamente, as coisas boas da vida”.
pessoas, enquanto a felicidade deve vir de dentro da
personalidade de quem o tem, é uma felicidade que se No final do livro I estão definidas as duas espécies de
encontra na alma e não nos bens exteriores ou do corpo. excelência ou virtude que existem para Aristóteles: as
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5. Ética a Nicômaco, de Aristóteles
intelectuais (por exemplo a sabedoria, a inteligência e o amigos bons e virtuosos. E a phrónesis auxilia na escolha
discernimento) e as morais (por exemplo a liberalidade e a de amigos recíprocos.
moderação). Ele considerava as virtudes morais como Para Aristóteles o amigo é um outro eu, possibilidade de
disposições ou atitudes para a ação, adquiridas mediante o autoconhecimento. Conhecemo-nos olhando para o outro.
exercício e aperfeiçoadas pela prática. Daí a importância Devido a nossa finitude, procuramos atingir à perfeição
do hábito no desenvolvimento desta excelência: as moral no espelhamento do outro. É um momento essencial
pessoas não nascem boas, mas nascem com a da vida feliz e implica reconhecimento, bondade e
capacidade de tornarem-se boas se desenvolverem as reciprocidade, atingindo a expansão social do eu. Assim, a
disposições apropriadas mediante a prática reiterada de amizade também é um bem supremo, um valor que nos
boas ações. Já a excelência intelectual é um componente conduz à eudaimonia - vivência da plenitude humana,
ainda mais importante do bem viver do que a excelência mediada com amigos bons e vida contemplativa.
moral. Para Aristóteles é necessário ter prudência, ou
No livro X da Ética a Nicômacos vemos o conceito de
sabedoria prática, para apreciar corretamente os fatores
prazer e sua relação com as excelências do homem.
em qualquer situação em que é necessária a ação moral.
Ela que nos capacita a selecionar os meios certos para
O cerne da teoria aristotélica é o de que o prazer não é
atingir nossos objetivos desejados pois trata de situações e
algo a que possamos aspirar por ele mesmo, que são,
problemas concretos que requerem deliberação. À
muito mais, as respectivas atividades, aquilo a que
semelhança das virtudes morais, é uma disposição para
aspiramos, e que o gozo é algo que então se acrescenta,
fazer boas escolhas podendo ser melhorada e fortalecida
mostrando que o que fazemos de bom grado decorre sem
pela prática, estando completamente na parte racional da
impedimento, não havendo oposição alguma entre virtude
alma.
e felicidade. Para aquele que a pratica por ela mesma,
Ainda na Ética a Nicômaco, livro III, Capítulo 02, também, e precisamente, a atividade virtuosa é uma
Aristóteles apresenta uma reflexão sobre a escolha. atividade realizada com gozo. É dessa maneira que uma
Segundo o filosófo, ela parece ser algo voluntário, porém pessoa pode saber se esteve presente a disposição
não é pela involuntariedade que o estagirita a define. A virtuosa em uma ação, pela quantidade de prazer ou
escolha não é comum à irracionalidade; segundo o autor desgosto que acompanha a ação. Se a pessoa não gosta
ela se faz contrária ao apetite e não se relacionando com o de ser generosa, ou acha difícil ser comedida, não adquiriu
agradável e o doloroso. Ela não visa as coisas a virtude, embora possa ter praticado uma ação virtuosa.
impossíveis, relaciona-se com os meios e não com os fins Se, ao contrário, a pessoa se alegra com a prática da
e não se identifica com a opinião. Para Aristóteles, a virtude em questão, então adquiriu aquela excelência
escolha somente pode ser caracterizada a partir do especial. O prazer, nesse sentido, é a prova de um hábito
binômio bondade-maldade. formado.
Como já citado, Aristóteles dedica dois livros à amizade Nos capítulos 3 e 4 do livro X, Aristóteles desenvolve
algumas indicações interessantes sobre o caráter do
(VIII e IX). Três seriam as razões: a philia é
prazer em relação ao equilíbrio e ao abandonar-se aos
estruturalmente intrínseca à virtude e à felicidade; Sócrates
afetos daquele que não vive equilibradamente. Não
e Platão já haviam analisado filosoficamente tal tema; e o
apenas com referência aos prazeres corporais, mas
fato da sociedade grega dava à amizade uma importância
também quanto aos sentimentos em todos os domínios da
capital, diferente das sociedades modernas.
vida. Para ele o ser humano tem uma certa consciência do
Três são as coisas que o homem ama, segundo tempo:
Aristóteles, logo, três são as formas de amizade: pelo útil,
Mas a forma do prazer é perfeita a cada momento. É claro,
prazer e bem. Os homens que amam em busca do útil,
então que o prazer e o movimento diferem entre si, e que
buscam um bem imediato, riquezas ou honras. Ama-se,
o prazer deve ser uma das coisas que são um todo e
não em vista do fim em si mesmo, mas como meio de
perfeitas. Esta conclusão também pode ser corroborada
adquirir vantagens. A forma em função do prazer é
pelo fato de o movimento ocupar necessariamente um
semelhante à forma de se amar pelo útil. Busca-se o
lapso de tempo, enquanto um sentimento de prazer não
prazer recíproco. A amizade é estável enquanto persistir
ocupa, pois cada momento de prazer é um todo perfeito.
este elo prazeroso. Estas duas espécies de amizade são
acidentais. Quando uma das partes cessa de ser O prazer nessa parte da ética lembra o conceito de tempo
agradável ou útil, a outra deixa de amá-la. Na terceira como duração que Bergson irá desenvolver muitos séculos
forma, pelo bem, ama-se o outro por aquilo que ele é. depois. Esse prazer faz parte de um tempo “psicológico”
Ama-se pela bondade. É a verdadeira forma de amizade e que só pode ser satisfeito por uma felicidade que tenha
só é possível entre os amigos bom,s com senso de justiça uma certa constância e que não seja experimentado, como
e equidade. Esta forma de amizade não é muito freqüente. o prazer corporal, no instante e pelo contraste com a dor
Ela exige tempo, familiaridade, um habitus, digna entre os ou com a ausência de prazer.
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6. Ética a Nicômaco, de Aristóteles
Fonte: Texto parcial - Revista Diálogo Educacional -
PUCPR
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