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Ética a Nicômaco, de Aristóteles



Ética a Nicômaco é a principal obra de ética de Aristóteles.       ethos que funciona como elo entre as esferas jurídica e
Nela se expõe sua concepção teleológica e eudaimonista             política. As ordens jurídica e política pressupõem o ethos.
de racionalidade prática, sua concepção da virtude como
                                                                   A obra de Aristóteles é sistemática. E orientada ao fim
mediania e suas considerações acerca do papel do hábito
                                                                   último, o Bem Supremo, identificada com a felicidade, ou
e da prudência na Ética. É considerada a mais
                                                                   eudemonia, em grego. É por isso que inicia a sua
amadurecida e representativa do pensamento aristotélico.
                                                                   argumentação negando o postulado platônico, muito
O título da obra advém do nome de seu filho, e também              embora tal investigação se torne penosa pelo fato de as
discípulo, Nicômaco. Supõe-se que a obra resulte das               Formas terem sido introduzidas na filosofia por um amigo.
“anotações de aula” deste e publicadas pelos discípulos de         Mas, o fato de Aristóteles ter dedicado à amizade dois
Aristóteles depois da morte prematura, em combate, de              livros, o VIII e o IX, indica bem o grau de relacionamento
Nicômaco.                                                          que ele tinha com Platão. Porém, “talvez pareça melhor, e
                                                                   de fato seria até uma obrigação, especialmente para um
Aristóteles inicia suas aulas sobre ética, conforme as
                                                                   filósofo, sacrificar até suas relações pessoais mais
anotações de seu filho, discutindo as idéias de seu mestre
                                                                   estreitas em defesa da verdade”. E a defesa da verdade o
Platão. E, embora vá diferir deste em muitos pontos –
                                                                   leva a concluir que “O bem, portanto, não é uma
passando de um idealismo para um realismo, se assim se
                                                                   generalidade correspondente a uma forma única”. Isto
pode falar, - a idéia fundamental de Aristóteles é, tanto
                                                                   porque o bem deve ser algo atingível pelo homem, através
quanto para Platão, o Bem Supremo. E esse bem supremo
                                                                   de sua atividade, e não um “bem em si”, ideal e inatingível.
é ainda e sempre a felicidade.
                                                                   Aristóteles, fiel ao método científico, estabelece uma
No Livro II da Ética a Nicômacos, há um trecho que
                                                                   espécie de classificação de bens, e uma hierarquia na sua
expressa, de maneira exímia, o intuito, o propósito, o
                                                                   realização, tomando como critério o fim visado. Já que há
objeto e o sujeito do estudo da ética: Estou falando da
                                                                   mais de uma finalidade: o fim da medicina é a saúde, da
excelência moral, pois é esta que se relaciona com as
                                                                   estratégia, a vitória, e assim por diante, devemos
emoções e ações, e nestas há excesso, falta e meio
                                                                   prosseguir do bem que é desejável por causa de outra
termo. Por exemplo, pode-se sentir medo, confiança,
                                                                   coisa ao bem que sempre é desejável em si:
desejos, cólera, piedade, e, de um modo geral, prazer e
sofrimento, demais ou muito pouco, e, em ambos os                  Parece que a felicidade, mais que qualquer outro bem, é
casos, isto não é bom: mas experimentar estes                      tida como este bem supremo, pois a escolhemos sempre
sentimentos no momento certo, em relação aos objetos               por si mesma, e nunca por causa de algo mais; mas as
certos e às pessoas certas, e de maneira certa, é o meio           honrarias, o prazer, a inteligência e todas as outras formas
termo e o melhor, e isto é característico da excelência. Há        de excelência, embora as escolhamos por si mesmas
também, da mesma forma, excesso, falta e meio termo em             (escolhê-lasiamos ainda que nada resultasse delas),
relação às ações. Ora, a excelência moral se relaciona             escolhemo-las por causa da felicidade, pensando que
com as emoções e as ações, nas quais o excesso é uma               através delas seremos felizes. Ao contrário, ninguém
forma de erro, tanto quanto a falta, enquanto o meio termo         escolhe a felicidade por causa das várias formas de
é louvado como um acerto; ser louvado e estar certo são            excelência, nem, de um modo geral, por qualquer coisa
características da excelência moral. A excelência moral,           além                       dela                      mesma.
portanto, é algo como eqüidistância, pois, como já vimos,
seu alvo é o meio termo. Ademais é possível errar de               E a felicidade não como uma forma abstrata, ideal, mas “a
várias maneiras, ao passo que só é possível acertar de             felicidade como uma forma de viver bem e conduzir-se
uma maneira (também por esta razão é fácil errar e difícil         bem”.
acertar – fácil errar o alvo, e difícil acertar nele); também é    Porém, ainda que assim o seja, parece que a forma de
por isto que o excesso e a falta são características da            vida tem profundas implicações na compreensão e
deficiência moral, e o meio termo é uma característica da          realização do que seja “viver bem” e “conduzir-se bem”,
excelência moral, pois a bondade é uma só, mas a                   em relação ao bem supremo. Por isso Aristóteles, ao
maldade é múltipla.                                                mesmo tempo em que discute as características da
                                                                   felicidade, como algo que deve ser escolhida por si
Aristóteles aprofunda os ensinamentos que retirou de
                                                                   mesma, questiona a vida prática dos homens,
Platão (República), e elabora sua teoria ética a partir das
                                                                   especialmente dos mais vulgares, que parecem “identificar
estruturas morais vigentes na comunidade grega do século
                                                                   o bem, ou a felicidade, com o prazer". E, então, identifica
V a.C. De um modo geral, pode-se dizer que a sua teoria
                                                                   três tipos principais de vida:
apresenta o procedimento do homem prudente como um
valor, cuja opinião dos homens mais velhos, a experiência          - A vida agradável, cujos representantes visam sobretudo
da vida e os costumes da cidade são condições objetivas            “aproveitar a vida”, assemelhando-se “totalmente aos
para se filosofar politicamente. Diferentemente de Platão,         escravos, preferindo uma vida comparável à dos animais”;
Aristóteles humanizou o fim último, ou seja, o fim último foi
                                                                   - A vida política, cujo exame dos tipos principais
afirmado no plano terreno. Por isso, o ético em Aristóteles
                                                                   “demonstra que as pessoas mais qualificadas e atuantes
é entendido a partir do ethos (do costume), da maneira
                                                                   identificam a felicidade com as honrarias”, “com vistas ao
concreta de viver vigente na sociedade. É exatamente o
                                                                   reconhecimento de seus méritos”;

                                                                                                                              1
Ética a Nicômaco, de Aristóteles


- A vida contemplativa, que visa unicamente a verdade e a        intrinsecamente ligados, formando uma ética imanente da
perfeição, ou o Bem Supremo por si mesmo, conforme               felicidade terrena, portanto política.
Aristóteles desenvolve ao longo de toda obra.
                                                                 O conceito de eudemonia vincula-se ao conceito de justiça
Desta realidade advém a necessidade de investigação              apresentado por Platão na República, que também
ética e da elaboração de normas morais. Além do que              compreende a noção de justiça como uma virtude que
antecipa três modos de consciência, que por si só                precisa ser praticada constantemente e não pode ser
demandaria um estudo aprofundado e riquíssimo. De                tomada como aquisição contínua, mas como um exercício
qualquer forma, a partir destas constatações, Aristóteles        político, assim expresso no livro II, capítulo 6, da Ética a
começa a refletir sobre as questões éticas. É útil adiantar      Nicômaco. Aristóteles apresenta o sentido do conceito de
que Aristóteles começa com exemplo práticos da vida              virtude como hábito, ou seja, algo que existe em potência
cotidiana, sobre eles reflete e a eles retorna. Tal              mas que precisa ser desenvolvido. A natureza oferece as
procedimento identifica o trabalho ético bem como o objeto       condições de possibilidades para que o homem possa
de seu estudo. Logo, o objeto da ética é o “comportamento        desenvolver suas aptidões conforme sua essência
prático-moral”. Assim, o que faz Aristóteles ao referir-se       racional, nesse caso a justiça como um valor ético se
continuamente a exemplos da vida prática, é ética, ou dito       desvela em nossos atos, logo “toda virtude e toda técnica
de outro modo, ciência da moral, visto que reflete sobre o       nascem e se desenvolvem pelo exercício.
comportamento moral visando, não estabelecer normas,
                                                                 Observa-se que a prática da virtude não se confunde com
mas indicar o caminho da “escolha correta”, em relação ao
                                                                 um mero saber técnico, não basta a conformidade, exige-
bem supremo.
                                                                 se a consciência do ato virtuoso. O homem considerado
Por este motivo, logo em seguida inicia a reflexão sobre a       justo deve agir por força de sua vontade racional. Na Ética
areté, termo grego traduzido por "virtude" ou 'excelência        a Nicômaco, Aristóteles enumera três condições para que
moral", e que, segundo ele, se diferencia em duas                um ato seja virtuoso, a saber: primeiro, o homem deve ter
espécies: a excelência intelectual (sophia), das quais são       consciência da justiça de seu ato; segundo, a vontade
exemplos a sabedoria, a inteligência, o discernimento; e a       deve agir motivada pela própria ação; terceiro, deve-se
excelência moral (phrônesis), das quais são exemplos a           agir com inabalável certeza da justeza do ato. As virtudes
liberdade e a moderação. Na Ética a Nicômaco Aristóteles         são disposições ou hábitos adquiridos ao longo da vida e
se ocupa primordialmente, como é óbvio, da excelência            se fundamentam na idéia de que o homem deve sempre
moral, acentuando cada vez mais o papel central da               realizar o melhor de si. A virtude será uma espécie de meio
phrônesis, traduzido como "discernimento" (e em algumas          termo, termo médio entre os extremos, evitando, assim por
outras traduções como "prudência").                              dizer, o excesso e a deficiência, uma vez que a justiça é
                                                                 uma virtude que só pode ser praticada em relação ao outro
A reflexão aristotélica quanto à ética compreende duas
                                                                 e de modo consciente. O objeto da justiça é realizar a
categorias de virtudes: as virtudes morais, fundamentadas
                                                                 felicidade na pólis, o seu oposto, a injustiça, poderá ocorrer
na vontade, e as virtudes intelectuais, baseadas na razão.
                                                                 por falta ou por excesso.
Como exemplo de virtudes morais, temos: a coragem, a
generosidade, a magnificência, a doçura, a amizade e a           Aristóteles distingue duas classes de justiça: a universal e
justiça. As virtudes intelectuais ou dianoéticas são: a          a particular. A justiça universal significa a justiça em
sabedoria, a temperança, a inteligência e a verdade. Uma         sentido amplo que pode ser definida como conformidade
ação pode ser considerada como justa quando realiza o            ao nomos (norma jurídica, costume, convenção social,
equilíbrio das virtudes morais e quando alcança as virtudes      tradição). Esta norma constituinte do nomos é dirigida a
intelectuais. O objetivo da ação moral é a justiça, assim        todos. A ação deve corresponder a um tipo de justo que é
como, a verdade é o objetivo da ação intelectual. Em             o justo legal. O membro da pólis se relaciona com todos os
sentido lato, a justiça configura o exercício de todas as        demais, ainda que virtualmente, e compartilha com todos
virtudes, observando-se a instância da alteridade. Em            os efeitos de sua atitude ou omissão. A justiça universal
sentido estrito, encontra-se como uma virtude ética que          ressalta a importância da legalidade como um dos
implica o princípio da igualdade. Tendo por base tal             aspectos que fundamenta a coesão social. A comunidade
premissa, Aristóteles inicia sua ética a partir da realidade     existe virtualmente na pessoa de cada membro. O homem
social de sua época. O ponto central torna-se o conceito         virtuoso é aquele em que, segundo seu agir, o elemento
de atividade; atividade no sentido de que o homem deve           essencial passa pela observância do princípio neminem
realizar ao máximo suas disposições naturais (aptidões). O       laedere (não prejudique a ninguém).
homem deve buscar esse aperfeiçoamento para com isso
                                                                 A justiça particular significa em sentido estrito o hábito de
alcançar a felicidade. Esse pensador assinala que o cultivo
                                                                 realizar a igualdade. Este tipo de justiça refere-se ao outro
da inteligência é o bem supremo, o summum bonum, logo
                                                                 no sentido de uma relação direta entre partes, típica da
sua concepção ética é denominada de ética das virtudes
                                                                 experiência citadina. Esse tipo de justiça vincula-se com a
ou ética eudemônica, isso porque enfatiza a busca pelo
                                                                 justiça universal, pois o transgressor da justiça particular
bem viver e pela felicidade, no sentido estrito de pleno
                                                                 se compromete também diante do nomos. O justo
desenvolvimento das disposições naturais. O homem deve
                                                                 particular apresenta-se em duas formas distintas: o justo
desenvolver suas aptidões para alcançar o seu fim (télos),
                                                                 particular distributivo que assinala a justiça distributiva e o
sua perfeição, por isso que eudemonia e télos estão
                                                                 justo particular corretivo que apresenta a justiça corretiva.

                                                                                                                              2
Ética a Nicômaco, de Aristóteles


A idéia de justiça distributiva surge no sentido de igualdade        o único e o mesmo em relação a todos os homens”. É a
na devida proporção. Essa modalidade de justiça regula as            escolha justa, correta, feita com discernimento e
ações da sociedade política com seus membros e tem por               encaminhada pela prudência. Portanto, ela não pode ser
objeto a justa distribuição dos bens públicos: honras,               uma emoção, porque a regula; não pode ser uma
riquezas, encargos sociais e obrigações. Essa prática                faculdade, porque, ao mesmo tempo que dela se vale para
também se fundamenta na igualdade que não se confunde                regular a emoção, no “espaço” que vai do prazer ao
com uma igualdade matemática e rígida, mas geométrica                sofrimento1, a atrai para a ação, para orientar a atividade.
ou proporcional que observa o dever de dar a cada um o               É por possuir essa disposição que “um mestre em
que lhe é devido; observa os dotes naturais do cidadão,              qualquer arte evita o excesso e a falta, buscando e
sua dignidade, o nível de suas funções, sua formação e               preferindo o meio termo – o meio termo não em relação ao
posição na hierarquia organizacional da polis. O princípio           próprio objeto, mas em relação a nós”. Não é por outro
de igualdade que figura neste tipo de justiça exige uma              motivo que “se afirma com freqüência que nada se pode
desigualdade de tratamento, pois sendo diferentes                    acrescentar ou tirar às boas obras de arte”. O meio termo
segundo o mérito, os benefícios a serem atribuídos                   (mesotês) é, assim, o caminho ético para a excelência,
também devem ser diferentes.                                         para o “mestre na arte da vida”. Caminhar para ele requer,
                                                                     de um lado, o reconhecimento de que a felicidade não se
A outra modalidade de justiça particular é a justiça
                                                                     confunde com o prazer e o sofrimento, visto que “é por
corretiva ou sinalagmática, que se divide em comutativa e
                                                                     causa do prazer que praticamos más ações, e é por causa
judicial. Trata-se de um tipo de justiça que regula as
                                                                     do sofrimento que deixamos de praticar ações nobiliantes”;
relações entre cidadãos e utiliza o critério do justo meio
                                                                     de outro lado, a construção progressiva de uma
aritmético ou igualdade.
                                                                     consciência moral constituída, por assim dizer, pelos
Para Aristóteles, a excelência moral não é emoção ou                 “meios termos” ou excelências morais, operada pelo
faculdade, mas disposição da alma - exatamente uma                   discernimento e regulada pela reta razão.
disposição para escolher o meio termo.
                                                                     Ao longo da sua obra podem ser “pinçadados” os “meios
Por meio termo Aristóteles quer “significar aquilo que é             termos” mais investigados por Aristóteles, e que se situam
eqüidistante em relação a cada um dos extremos, e que é              entre os “vícios por deficiência” e os “vícios por excesso”:


                     Vícios por deficiência           Meio Termo                  Vícios por excesso

                     Covardia                         Coragem                     Temeridade
                     Insensibilidade                  Temperança                  Libertinagem
                     Avareza                          Liberalidade                Esbanjamento
                     Vileza                           Magnificiência              Vulgaridade
                     Modéstia                         Respeito Próprio            Vaidade
                     Moleza                           Prudência                   Ambição
                     Indiferença                      Gentileza                   Irascibilidade
                     Descrédito Próprio               Veracidade                  Orgulho
                     Rusticidade                      Agudeza de Espírito         Zombaria
                     Enfado                           Amizade                     Condescendência
                     Desavergonhado                   Modéstia                    Timidez
                     Malevolência                     Justa Indignação            Inveja




É por incorporar tais conceitos e tais virtudes em sua               isto que a escolha não pode existir sem a razão e o
concepção de felicidade que esta só é atingida em                    pensamento ou sem uma disposição moral, pois as boas e
Aristóteles depois de um logo itinerário, calcado no esforço         as más ações não podem existir sem uma combinação de
e na prática constante. Para ser justo, diz-nos ele, o               pensamento e caráter. Há, pois, já em Aristóteles íntimo
homem precisa da prática reiterada de atos justos, e assim           relacionamento entre escolha-desejo-razão-ação-caráter.
também para ser moderado... visto que “sem os praticar               O esforço ético não é no aperfeiçoamento e ampliação do
ninguém teria sequer remotamente a possibilidade de                  razão, em seu sentido “puro” ou teórico (esta é função da
tornar-se bom”. Logo é na ação que se forja o homem de               sophia), mas no “agir bem” para “viver bem”. Para tanto, o
excelência moral. Mas não em uma ação desordenada e                  aperfeiçoamento e ampliação do caráter é importante.
irrefletida, desvinculada dos procedimentos mais                     Porque o caráter é, se assim é possível falar, o “sujeito”, o
nobiliantes do ser humano: A origem da ação (sua causa               “executivo” do desejo, que em última análise, no campo
eficiente, e não final) é a escolha, e a origem da escolha           prático-moral, jaz na base da escolha e da ação.
está no desejo e no raciocínio dirigido a algum fim. É por

                                                                                                                                3
Ética a Nicômaco, de Aristóteles


Ora, mas por “melhor que seja o caráter”, este não               Ele deixa, porém, a discussão sobre a vida contemplativa
transforma o “desejo de aproveitar a vida” em “desejo de         para o livro X.
reconhecimento”, nem este no “desejo de contemplação”.           A partir do capítulo 6, com a discussão que começa sobre
Ele “apenas” torna moral tal desejo, dentro de cada âmbito.      o bem, Aristóteles diferencia seu conceito de bem do
É o domínio da razão, no seu sentido “máximo”, de vida           conceito platônico pois, enquanto Platão trabalha com o
contemplativa, que pode operar tais transformações.              bem em si, com a idéia de bem separada de nosso mundo,
Portanto, em Aristóteles é impossível separar, a não ser         ele diz que existem tantos bens como ações e artes,
didaticamente, as duas excelências: a intelectual e a            trazendo o bem para a imanência, como atividade do
moral. Por isso a acentuada relação entre a Ética e a            homem. É nesse momento que vejo Aristóteles novamente
Metafísica.                                                      metafísico, pai do conceito de essência, atribuindo todas
Na Ética a Nicômaco outro tópico acentuado, portanto, é o        as coisas a uma causa final. Neste sentido a felicidade
da emoção, tão em moda hoje em dia: “Por emoções                 aparece como o fim visado em cada atividade humana,
quero significar os desejos, a cólera, o medo, a                 como se a eudaimonia consistisse no cumprimento perfeito
temeridade, a inveja, a alegria, a amizade, o saudade, o         de nossa natureza, natureza entendida como essência e,
ciúme, a emulação, a piedade, e de um modo geral os              felicidade, como “algo final e auto-suficiente”. A felicidade é
sentimentos acompanhados de prazer ou sofrimento”.               um estado do homem em que a sua natureza e aspirações
Logo, Aristóteles associa emoção ao prazer ou sofrimento         essenciais se realizam plenamente conforme seus fins.
no sentido salientado atrás em que, ou praticamos más            Aristóteles pergunta então se há algum poder ou função
ações ou deixamos de praticar nobres ações. Obviamente           restritos apenas aos seres humanos, e que sirva para
que Aristóteles, ao dar tal sentido ao prazer refere-se, por     distinguir o gênero humano do reino animal. Ele encontra
assim dizer, à compreensão vulgar do prazer, associada à         essa característica distintiva na capacidade de raciocinar
primeira espécie de vida. É principalmente a tal noção de        do homem, que aparece tanto em sua resposta à razão
prazer que deve-se usar da “reta razão”, bem como,               como no exercício da razão:
certamente, a toda espécie de vício. Isto porque a reta
                                                                 Resta, então, a atividade vital do elemento racional do
razão opera sobretudo através do discernimento.
                                                                 homem; uma parte deste é dotada de razão no sentido de
A reta razão é a razão orientada aos aspectos práticos da        ser obediente a ela, e a outra no sentido de possuir a
vida, é a razão orientada a algum fim, e não um fim em si        razão de pensar.
mesma, como é a vida contemplativa. “...a excelência
                                                                 Sendo o elemento racional ativo peculiar ao homem, ele
moral não é apenas a disposição consentânea com a reta
                                                                 serve para definir sua própria função, que é viver
razão; ela é a disposição em que está presente a reta
                                                                 ativamente conforme a razão. O homem bom, portanto, é
razão, e o discernimento é a reta razão relativa à conduta”.
                                                                 aquele que exerce com sucesso suas funções se
Logo, é preciso ter uma disposição prática na vida para
                                                                 realizando, elevando sua vida até a mais alta excelência
que o discernimento se manifeste. Se a vida contemplativa
                                                                 de que é capaz, vivendo bem e feliz: “o bem para o homem
é a virtude mais elevada ela, por não levar a nenhum fim,
                                                                 vem a ser o exercício ativo das faculdades da alma de
não produz discernimento.
                                                                 conformidade com a excelência”. A definição é
Até o capítulo 5 do Livro I, Aristóteles trata então da          complementada logo a seguir com a adição da frase “deve
felicidade de maneira subjetiva, terminando o capítulo com       estender-se por toda a vida” para reforçar a afirmação de
um aperfeiçoamento, seu método típico, dos pontos de             que um momento de felicidade não constitui a bem-
vista do senso comum. Colocando à prova sua definição e          aventurança (felicidade), assim como uma andorinha só
comparando-a com as noções aceitas sobre a ventura               não faz o verão.
humana ele conclui que prazer e gozo são apenas estados
                                                                 Tendo realizado, como diz Aristóteles, esse esboço sobre
agradáveis para a alma. São elementos do bem-estar, da
                                                                 o bem, ele parte em seguida para uma discussão sobre a
felicidade, mas não constituem a sua essência e não
                                                                 natureza das excelências ou virtudes humanas – de
devem se tornar o objetivo principal da vida. Rejeita
                                                                 acordo com as quais a atividade humana deve se realizar
também a noção de que uma vida devotada a ganhar
                                                                 – com o objetivo de fundamentar melhor sua ética. Até
dinheiro produzirá por si mesma a felicidade: “a vida
                                                                 este ponto podemos dizer que a atividade é a verdadeira
dedicada a ganhar dinheiro é vivida sob compulsão”. A
                                                                 essência da felicidade. É a felicidade em ato, não em
prosperidade razoável é um pressuposto da ventura, mas
                                                                 potência. A virtude deve se mostrar nas ações “da mesma
a riqueza não pode ser o bem supremo por ser
                                                                 forma que nos jogos Olímpicos os coroados não são os
essencialmente um meio de chegar a outros bens.
                                                                 homens mais fortes e belos, e sim os que competem
Tampouco pode a honra ser o bem supremo por ser um
                                                                 (alguns destes serão vitoriosos), quem age conquista, e
bem exterior proporcionado pelo reconhecimento de outras
                                                                 justamente, as coisas boas da vida”.
pessoas, enquanto a felicidade deve vir de dentro da
personalidade de quem o tem, é uma felicidade que se             No final do livro I estão definidas as duas espécies de
encontra na alma e não nos bens exteriores ou do corpo.          excelência ou virtude que existem para Aristóteles: as
                                                                                                                              4
Ética a Nicômaco, de Aristóteles


intelectuais (por exemplo a sabedoria, a inteligência e o         amigos bons e virtuosos. E a phrónesis auxilia na escolha
discernimento) e as morais (por exemplo a liberalidade e a        de amigos recíprocos.
moderação). Ele considerava as virtudes morais como               Para Aristóteles o amigo é um outro eu, possibilidade de
disposições ou atitudes para a ação, adquiridas mediante o        autoconhecimento. Conhecemo-nos olhando para o outro.
exercício e aperfeiçoadas pela prática. Daí a importância         Devido a nossa finitude, procuramos atingir à perfeição
do hábito no desenvolvimento desta excelência: as                 moral no espelhamento do outro. É um momento essencial
pessoas não nascem boas, mas nascem com a                         da vida feliz e implica reconhecimento, bondade e
capacidade de tornarem-se boas se desenvolverem as                reciprocidade, atingindo a expansão social do eu. Assim, a
disposições apropriadas mediante a prática reiterada de           amizade também é um bem supremo, um valor que nos
boas ações. Já a excelência intelectual é um componente           conduz à eudaimonia - vivência da plenitude humana,
ainda mais importante do bem viver do que a excelência            mediada com amigos bons e vida contemplativa.
moral. Para Aristóteles é necessário ter prudência, ou
                                                                  No livro X da Ética a Nicômacos vemos o conceito de
sabedoria prática, para apreciar corretamente os fatores
                                                                  prazer e sua relação com as excelências do homem.
em qualquer situação em que é necessária a ação moral.
Ela que nos capacita a selecionar os meios certos para
                                                                  O cerne da teoria aristotélica é o de que o prazer não é
atingir nossos objetivos desejados pois trata de situações e
                                                                  algo a que possamos aspirar por ele mesmo, que são,
problemas concretos que requerem deliberação. À
                                                                  muito mais, as respectivas atividades, aquilo a que
semelhança das virtudes morais, é uma disposição para
                                                                  aspiramos, e que o gozo é algo que então se acrescenta,
fazer boas escolhas podendo ser melhorada e fortalecida
                                                                  mostrando que o que fazemos de bom grado decorre sem
pela prática, estando completamente na parte racional da
                                                                  impedimento, não havendo oposição alguma entre virtude
alma.
                                                                  e felicidade. Para aquele que a pratica por ela mesma,
Ainda na Ética a Nicômaco, livro III, Capítulo 02,                também, e precisamente, a atividade virtuosa é uma
Aristóteles apresenta uma reflexão sobre a escolha.               atividade realizada com gozo. É dessa maneira que uma
Segundo o filosófo, ela parece ser algo voluntário, porém         pessoa pode saber se esteve presente a disposição
não é pela involuntariedade que o estagirita a define. A          virtuosa em uma ação, pela quantidade de prazer ou
escolha não é comum à irracionalidade; segundo o autor            desgosto que acompanha a ação. Se a pessoa não gosta
ela se faz contrária ao apetite e não se relacionando com o       de ser generosa, ou acha difícil ser comedida, não adquiriu
agradável e o doloroso. Ela não visa as coisas                    a virtude, embora possa ter praticado uma ação virtuosa.
impossíveis, relaciona-se com os meios e não com os fins          Se, ao contrário, a pessoa se alegra com a prática da
e não se identifica com a opinião. Para Aristóteles, a            virtude em questão, então adquiriu aquela excelência
escolha somente pode ser caracterizada a partir do                especial. O prazer, nesse sentido, é a prova de um hábito
binômio                                   bondade-maldade.        formado.

Como já citado, Aristóteles dedica dois livros à amizade          Nos capítulos 3 e 4 do livro X, Aristóteles desenvolve
                                                                  algumas indicações interessantes sobre o caráter do
(VIII e IX). Três seriam as razões: a philia é
                                                                  prazer em relação ao equilíbrio e ao abandonar-se aos
estruturalmente intrínseca à virtude e à felicidade; Sócrates
                                                                  afetos daquele que não vive equilibradamente. Não
e Platão já haviam analisado filosoficamente tal tema; e o
                                                                  apenas com referência aos prazeres corporais, mas
fato da sociedade grega dava à amizade uma importância
                                                                  também quanto aos sentimentos em todos os domínios da
capital, diferente das sociedades modernas.
                                                                  vida. Para ele o ser humano tem uma certa consciência do
Três são as coisas que o homem ama, segundo                       tempo:
Aristóteles, logo, três são as formas de amizade: pelo útil,
                                                                  Mas a forma do prazer é perfeita a cada momento. É claro,
prazer e bem. Os homens que amam em busca do útil,
                                                                  então que o prazer e o movimento diferem entre si, e que
buscam um bem imediato, riquezas ou honras. Ama-se,
                                                                  o prazer deve ser uma das coisas que são um todo e
não em vista do fim em si mesmo, mas como meio de
                                                                  perfeitas. Esta conclusão também pode ser corroborada
adquirir vantagens. A forma em função do prazer é
                                                                  pelo fato de o movimento ocupar necessariamente um
semelhante à forma de se amar pelo útil. Busca-se o
                                                                  lapso de tempo, enquanto um sentimento de prazer não
prazer recíproco. A amizade é estável enquanto persistir
                                                                  ocupa, pois cada momento de prazer é um todo perfeito.
este elo prazeroso. Estas duas espécies de amizade são
acidentais. Quando uma das partes cessa de ser                    O prazer nessa parte da ética lembra o conceito de tempo
agradável ou útil, a outra deixa de amá-la. Na terceira           como duração que Bergson irá desenvolver muitos séculos
forma, pelo bem, ama-se o outro por aquilo que ele é.             depois. Esse prazer faz parte de um tempo “psicológico”
Ama-se pela bondade. É a verdadeira forma de amizade e            que só pode ser satisfeito por uma felicidade que tenha
só é possível entre os amigos bom,s com senso de justiça          uma certa constância e que não seja experimentado, como
e equidade. Esta forma de amizade não é muito freqüente.          o prazer corporal, no instante e pelo contraste com a dor
Ela exige tempo, familiaridade, um habitus, digna entre os        ou com a ausência de prazer.

                                                                                                                           5
Ética a Nicômaco, de Aristóteles


Fonte: Texto parcial - Revista Diálogo Educacional -
PUCPR




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A felicidade na Ética a Nicômaco de Aristóteles

  • 1. Ética a Nicômaco, de Aristóteles Ética a Nicômaco é a principal obra de ética de Aristóteles. ethos que funciona como elo entre as esferas jurídica e Nela se expõe sua concepção teleológica e eudaimonista política. As ordens jurídica e política pressupõem o ethos. de racionalidade prática, sua concepção da virtude como A obra de Aristóteles é sistemática. E orientada ao fim mediania e suas considerações acerca do papel do hábito último, o Bem Supremo, identificada com a felicidade, ou e da prudência na Ética. É considerada a mais eudemonia, em grego. É por isso que inicia a sua amadurecida e representativa do pensamento aristotélico. argumentação negando o postulado platônico, muito O título da obra advém do nome de seu filho, e também embora tal investigação se torne penosa pelo fato de as discípulo, Nicômaco. Supõe-se que a obra resulte das Formas terem sido introduzidas na filosofia por um amigo. “anotações de aula” deste e publicadas pelos discípulos de Mas, o fato de Aristóteles ter dedicado à amizade dois Aristóteles depois da morte prematura, em combate, de livros, o VIII e o IX, indica bem o grau de relacionamento Nicômaco. que ele tinha com Platão. Porém, “talvez pareça melhor, e de fato seria até uma obrigação, especialmente para um Aristóteles inicia suas aulas sobre ética, conforme as filósofo, sacrificar até suas relações pessoais mais anotações de seu filho, discutindo as idéias de seu mestre estreitas em defesa da verdade”. E a defesa da verdade o Platão. E, embora vá diferir deste em muitos pontos – leva a concluir que “O bem, portanto, não é uma passando de um idealismo para um realismo, se assim se generalidade correspondente a uma forma única”. Isto pode falar, - a idéia fundamental de Aristóteles é, tanto porque o bem deve ser algo atingível pelo homem, através quanto para Platão, o Bem Supremo. E esse bem supremo de sua atividade, e não um “bem em si”, ideal e inatingível. é ainda e sempre a felicidade. Aristóteles, fiel ao método científico, estabelece uma No Livro II da Ética a Nicômacos, há um trecho que espécie de classificação de bens, e uma hierarquia na sua expressa, de maneira exímia, o intuito, o propósito, o realização, tomando como critério o fim visado. Já que há objeto e o sujeito do estudo da ética: Estou falando da mais de uma finalidade: o fim da medicina é a saúde, da excelência moral, pois é esta que se relaciona com as estratégia, a vitória, e assim por diante, devemos emoções e ações, e nestas há excesso, falta e meio prosseguir do bem que é desejável por causa de outra termo. Por exemplo, pode-se sentir medo, confiança, coisa ao bem que sempre é desejável em si: desejos, cólera, piedade, e, de um modo geral, prazer e sofrimento, demais ou muito pouco, e, em ambos os Parece que a felicidade, mais que qualquer outro bem, é casos, isto não é bom: mas experimentar estes tida como este bem supremo, pois a escolhemos sempre sentimentos no momento certo, em relação aos objetos por si mesma, e nunca por causa de algo mais; mas as certos e às pessoas certas, e de maneira certa, é o meio honrarias, o prazer, a inteligência e todas as outras formas termo e o melhor, e isto é característico da excelência. Há de excelência, embora as escolhamos por si mesmas também, da mesma forma, excesso, falta e meio termo em (escolhê-lasiamos ainda que nada resultasse delas), relação às ações. Ora, a excelência moral se relaciona escolhemo-las por causa da felicidade, pensando que com as emoções e as ações, nas quais o excesso é uma através delas seremos felizes. Ao contrário, ninguém forma de erro, tanto quanto a falta, enquanto o meio termo escolhe a felicidade por causa das várias formas de é louvado como um acerto; ser louvado e estar certo são excelência, nem, de um modo geral, por qualquer coisa características da excelência moral. A excelência moral, além dela mesma. portanto, é algo como eqüidistância, pois, como já vimos, seu alvo é o meio termo. Ademais é possível errar de E a felicidade não como uma forma abstrata, ideal, mas “a várias maneiras, ao passo que só é possível acertar de felicidade como uma forma de viver bem e conduzir-se uma maneira (também por esta razão é fácil errar e difícil bem”. acertar – fácil errar o alvo, e difícil acertar nele); também é Porém, ainda que assim o seja, parece que a forma de por isto que o excesso e a falta são características da vida tem profundas implicações na compreensão e deficiência moral, e o meio termo é uma característica da realização do que seja “viver bem” e “conduzir-se bem”, excelência moral, pois a bondade é uma só, mas a em relação ao bem supremo. Por isso Aristóteles, ao maldade é múltipla. mesmo tempo em que discute as características da felicidade, como algo que deve ser escolhida por si Aristóteles aprofunda os ensinamentos que retirou de mesma, questiona a vida prática dos homens, Platão (República), e elabora sua teoria ética a partir das especialmente dos mais vulgares, que parecem “identificar estruturas morais vigentes na comunidade grega do século o bem, ou a felicidade, com o prazer". E, então, identifica V a.C. De um modo geral, pode-se dizer que a sua teoria três tipos principais de vida: apresenta o procedimento do homem prudente como um valor, cuja opinião dos homens mais velhos, a experiência - A vida agradável, cujos representantes visam sobretudo da vida e os costumes da cidade são condições objetivas “aproveitar a vida”, assemelhando-se “totalmente aos para se filosofar politicamente. Diferentemente de Platão, escravos, preferindo uma vida comparável à dos animais”; Aristóteles humanizou o fim último, ou seja, o fim último foi - A vida política, cujo exame dos tipos principais afirmado no plano terreno. Por isso, o ético em Aristóteles “demonstra que as pessoas mais qualificadas e atuantes é entendido a partir do ethos (do costume), da maneira identificam a felicidade com as honrarias”, “com vistas ao concreta de viver vigente na sociedade. É exatamente o reconhecimento de seus méritos”; 1
  • 2. Ética a Nicômaco, de Aristóteles - A vida contemplativa, que visa unicamente a verdade e a intrinsecamente ligados, formando uma ética imanente da perfeição, ou o Bem Supremo por si mesmo, conforme felicidade terrena, portanto política. Aristóteles desenvolve ao longo de toda obra. O conceito de eudemonia vincula-se ao conceito de justiça Desta realidade advém a necessidade de investigação apresentado por Platão na República, que também ética e da elaboração de normas morais. Além do que compreende a noção de justiça como uma virtude que antecipa três modos de consciência, que por si só precisa ser praticada constantemente e não pode ser demandaria um estudo aprofundado e riquíssimo. De tomada como aquisição contínua, mas como um exercício qualquer forma, a partir destas constatações, Aristóteles político, assim expresso no livro II, capítulo 6, da Ética a começa a refletir sobre as questões éticas. É útil adiantar Nicômaco. Aristóteles apresenta o sentido do conceito de que Aristóteles começa com exemplo práticos da vida virtude como hábito, ou seja, algo que existe em potência cotidiana, sobre eles reflete e a eles retorna. Tal mas que precisa ser desenvolvido. A natureza oferece as procedimento identifica o trabalho ético bem como o objeto condições de possibilidades para que o homem possa de seu estudo. Logo, o objeto da ética é o “comportamento desenvolver suas aptidões conforme sua essência prático-moral”. Assim, o que faz Aristóteles ao referir-se racional, nesse caso a justiça como um valor ético se continuamente a exemplos da vida prática, é ética, ou dito desvela em nossos atos, logo “toda virtude e toda técnica de outro modo, ciência da moral, visto que reflete sobre o nascem e se desenvolvem pelo exercício. comportamento moral visando, não estabelecer normas, Observa-se que a prática da virtude não se confunde com mas indicar o caminho da “escolha correta”, em relação ao um mero saber técnico, não basta a conformidade, exige- bem supremo. se a consciência do ato virtuoso. O homem considerado Por este motivo, logo em seguida inicia a reflexão sobre a justo deve agir por força de sua vontade racional. Na Ética areté, termo grego traduzido por "virtude" ou 'excelência a Nicômaco, Aristóteles enumera três condições para que moral", e que, segundo ele, se diferencia em duas um ato seja virtuoso, a saber: primeiro, o homem deve ter espécies: a excelência intelectual (sophia), das quais são consciência da justiça de seu ato; segundo, a vontade exemplos a sabedoria, a inteligência, o discernimento; e a deve agir motivada pela própria ação; terceiro, deve-se excelência moral (phrônesis), das quais são exemplos a agir com inabalável certeza da justeza do ato. As virtudes liberdade e a moderação. Na Ética a Nicômaco Aristóteles são disposições ou hábitos adquiridos ao longo da vida e se ocupa primordialmente, como é óbvio, da excelência se fundamentam na idéia de que o homem deve sempre moral, acentuando cada vez mais o papel central da realizar o melhor de si. A virtude será uma espécie de meio phrônesis, traduzido como "discernimento" (e em algumas termo, termo médio entre os extremos, evitando, assim por outras traduções como "prudência"). dizer, o excesso e a deficiência, uma vez que a justiça é uma virtude que só pode ser praticada em relação ao outro A reflexão aristotélica quanto à ética compreende duas e de modo consciente. O objeto da justiça é realizar a categorias de virtudes: as virtudes morais, fundamentadas felicidade na pólis, o seu oposto, a injustiça, poderá ocorrer na vontade, e as virtudes intelectuais, baseadas na razão. por falta ou por excesso. Como exemplo de virtudes morais, temos: a coragem, a generosidade, a magnificência, a doçura, a amizade e a Aristóteles distingue duas classes de justiça: a universal e justiça. As virtudes intelectuais ou dianoéticas são: a a particular. A justiça universal significa a justiça em sabedoria, a temperança, a inteligência e a verdade. Uma sentido amplo que pode ser definida como conformidade ação pode ser considerada como justa quando realiza o ao nomos (norma jurídica, costume, convenção social, equilíbrio das virtudes morais e quando alcança as virtudes tradição). Esta norma constituinte do nomos é dirigida a intelectuais. O objetivo da ação moral é a justiça, assim todos. A ação deve corresponder a um tipo de justo que é como, a verdade é o objetivo da ação intelectual. Em o justo legal. O membro da pólis se relaciona com todos os sentido lato, a justiça configura o exercício de todas as demais, ainda que virtualmente, e compartilha com todos virtudes, observando-se a instância da alteridade. Em os efeitos de sua atitude ou omissão. A justiça universal sentido estrito, encontra-se como uma virtude ética que ressalta a importância da legalidade como um dos implica o princípio da igualdade. Tendo por base tal aspectos que fundamenta a coesão social. A comunidade premissa, Aristóteles inicia sua ética a partir da realidade existe virtualmente na pessoa de cada membro. O homem social de sua época. O ponto central torna-se o conceito virtuoso é aquele em que, segundo seu agir, o elemento de atividade; atividade no sentido de que o homem deve essencial passa pela observância do princípio neminem realizar ao máximo suas disposições naturais (aptidões). O laedere (não prejudique a ninguém). homem deve buscar esse aperfeiçoamento para com isso A justiça particular significa em sentido estrito o hábito de alcançar a felicidade. Esse pensador assinala que o cultivo realizar a igualdade. Este tipo de justiça refere-se ao outro da inteligência é o bem supremo, o summum bonum, logo no sentido de uma relação direta entre partes, típica da sua concepção ética é denominada de ética das virtudes experiência citadina. Esse tipo de justiça vincula-se com a ou ética eudemônica, isso porque enfatiza a busca pelo justiça universal, pois o transgressor da justiça particular bem viver e pela felicidade, no sentido estrito de pleno se compromete também diante do nomos. O justo desenvolvimento das disposições naturais. O homem deve particular apresenta-se em duas formas distintas: o justo desenvolver suas aptidões para alcançar o seu fim (télos), particular distributivo que assinala a justiça distributiva e o sua perfeição, por isso que eudemonia e télos estão justo particular corretivo que apresenta a justiça corretiva. 2
  • 3. Ética a Nicômaco, de Aristóteles A idéia de justiça distributiva surge no sentido de igualdade o único e o mesmo em relação a todos os homens”. É a na devida proporção. Essa modalidade de justiça regula as escolha justa, correta, feita com discernimento e ações da sociedade política com seus membros e tem por encaminhada pela prudência. Portanto, ela não pode ser objeto a justa distribuição dos bens públicos: honras, uma emoção, porque a regula; não pode ser uma riquezas, encargos sociais e obrigações. Essa prática faculdade, porque, ao mesmo tempo que dela se vale para também se fundamenta na igualdade que não se confunde regular a emoção, no “espaço” que vai do prazer ao com uma igualdade matemática e rígida, mas geométrica sofrimento1, a atrai para a ação, para orientar a atividade. ou proporcional que observa o dever de dar a cada um o É por possuir essa disposição que “um mestre em que lhe é devido; observa os dotes naturais do cidadão, qualquer arte evita o excesso e a falta, buscando e sua dignidade, o nível de suas funções, sua formação e preferindo o meio termo – o meio termo não em relação ao posição na hierarquia organizacional da polis. O princípio próprio objeto, mas em relação a nós”. Não é por outro de igualdade que figura neste tipo de justiça exige uma motivo que “se afirma com freqüência que nada se pode desigualdade de tratamento, pois sendo diferentes acrescentar ou tirar às boas obras de arte”. O meio termo segundo o mérito, os benefícios a serem atribuídos (mesotês) é, assim, o caminho ético para a excelência, também devem ser diferentes. para o “mestre na arte da vida”. Caminhar para ele requer, de um lado, o reconhecimento de que a felicidade não se A outra modalidade de justiça particular é a justiça confunde com o prazer e o sofrimento, visto que “é por corretiva ou sinalagmática, que se divide em comutativa e causa do prazer que praticamos más ações, e é por causa judicial. Trata-se de um tipo de justiça que regula as do sofrimento que deixamos de praticar ações nobiliantes”; relações entre cidadãos e utiliza o critério do justo meio de outro lado, a construção progressiva de uma aritmético ou igualdade. consciência moral constituída, por assim dizer, pelos Para Aristóteles, a excelência moral não é emoção ou “meios termos” ou excelências morais, operada pelo faculdade, mas disposição da alma - exatamente uma discernimento e regulada pela reta razão. disposição para escolher o meio termo. Ao longo da sua obra podem ser “pinçadados” os “meios Por meio termo Aristóteles quer “significar aquilo que é termos” mais investigados por Aristóteles, e que se situam eqüidistante em relação a cada um dos extremos, e que é entre os “vícios por deficiência” e os “vícios por excesso”: Vícios por deficiência Meio Termo Vícios por excesso Covardia Coragem Temeridade Insensibilidade Temperança Libertinagem Avareza Liberalidade Esbanjamento Vileza Magnificiência Vulgaridade Modéstia Respeito Próprio Vaidade Moleza Prudência Ambição Indiferença Gentileza Irascibilidade Descrédito Próprio Veracidade Orgulho Rusticidade Agudeza de Espírito Zombaria Enfado Amizade Condescendência Desavergonhado Modéstia Timidez Malevolência Justa Indignação Inveja É por incorporar tais conceitos e tais virtudes em sua isto que a escolha não pode existir sem a razão e o concepção de felicidade que esta só é atingida em pensamento ou sem uma disposição moral, pois as boas e Aristóteles depois de um logo itinerário, calcado no esforço as más ações não podem existir sem uma combinação de e na prática constante. Para ser justo, diz-nos ele, o pensamento e caráter. Há, pois, já em Aristóteles íntimo homem precisa da prática reiterada de atos justos, e assim relacionamento entre escolha-desejo-razão-ação-caráter. também para ser moderado... visto que “sem os praticar O esforço ético não é no aperfeiçoamento e ampliação do ninguém teria sequer remotamente a possibilidade de razão, em seu sentido “puro” ou teórico (esta é função da tornar-se bom”. Logo é na ação que se forja o homem de sophia), mas no “agir bem” para “viver bem”. Para tanto, o excelência moral. Mas não em uma ação desordenada e aperfeiçoamento e ampliação do caráter é importante. irrefletida, desvinculada dos procedimentos mais Porque o caráter é, se assim é possível falar, o “sujeito”, o nobiliantes do ser humano: A origem da ação (sua causa “executivo” do desejo, que em última análise, no campo eficiente, e não final) é a escolha, e a origem da escolha prático-moral, jaz na base da escolha e da ação. está no desejo e no raciocínio dirigido a algum fim. É por 3
  • 4. Ética a Nicômaco, de Aristóteles Ora, mas por “melhor que seja o caráter”, este não Ele deixa, porém, a discussão sobre a vida contemplativa transforma o “desejo de aproveitar a vida” em “desejo de para o livro X. reconhecimento”, nem este no “desejo de contemplação”. A partir do capítulo 6, com a discussão que começa sobre Ele “apenas” torna moral tal desejo, dentro de cada âmbito. o bem, Aristóteles diferencia seu conceito de bem do É o domínio da razão, no seu sentido “máximo”, de vida conceito platônico pois, enquanto Platão trabalha com o contemplativa, que pode operar tais transformações. bem em si, com a idéia de bem separada de nosso mundo, Portanto, em Aristóteles é impossível separar, a não ser ele diz que existem tantos bens como ações e artes, didaticamente, as duas excelências: a intelectual e a trazendo o bem para a imanência, como atividade do moral. Por isso a acentuada relação entre a Ética e a homem. É nesse momento que vejo Aristóteles novamente Metafísica. metafísico, pai do conceito de essência, atribuindo todas Na Ética a Nicômaco outro tópico acentuado, portanto, é o as coisas a uma causa final. Neste sentido a felicidade da emoção, tão em moda hoje em dia: “Por emoções aparece como o fim visado em cada atividade humana, quero significar os desejos, a cólera, o medo, a como se a eudaimonia consistisse no cumprimento perfeito temeridade, a inveja, a alegria, a amizade, o saudade, o de nossa natureza, natureza entendida como essência e, ciúme, a emulação, a piedade, e de um modo geral os felicidade, como “algo final e auto-suficiente”. A felicidade é sentimentos acompanhados de prazer ou sofrimento”. um estado do homem em que a sua natureza e aspirações Logo, Aristóteles associa emoção ao prazer ou sofrimento essenciais se realizam plenamente conforme seus fins. no sentido salientado atrás em que, ou praticamos más Aristóteles pergunta então se há algum poder ou função ações ou deixamos de praticar nobres ações. Obviamente restritos apenas aos seres humanos, e que sirva para que Aristóteles, ao dar tal sentido ao prazer refere-se, por distinguir o gênero humano do reino animal. Ele encontra assim dizer, à compreensão vulgar do prazer, associada à essa característica distintiva na capacidade de raciocinar primeira espécie de vida. É principalmente a tal noção de do homem, que aparece tanto em sua resposta à razão prazer que deve-se usar da “reta razão”, bem como, como no exercício da razão: certamente, a toda espécie de vício. Isto porque a reta Resta, então, a atividade vital do elemento racional do razão opera sobretudo através do discernimento. homem; uma parte deste é dotada de razão no sentido de A reta razão é a razão orientada aos aspectos práticos da ser obediente a ela, e a outra no sentido de possuir a vida, é a razão orientada a algum fim, e não um fim em si razão de pensar. mesma, como é a vida contemplativa. “...a excelência Sendo o elemento racional ativo peculiar ao homem, ele moral não é apenas a disposição consentânea com a reta serve para definir sua própria função, que é viver razão; ela é a disposição em que está presente a reta ativamente conforme a razão. O homem bom, portanto, é razão, e o discernimento é a reta razão relativa à conduta”. aquele que exerce com sucesso suas funções se Logo, é preciso ter uma disposição prática na vida para realizando, elevando sua vida até a mais alta excelência que o discernimento se manifeste. Se a vida contemplativa de que é capaz, vivendo bem e feliz: “o bem para o homem é a virtude mais elevada ela, por não levar a nenhum fim, vem a ser o exercício ativo das faculdades da alma de não produz discernimento. conformidade com a excelência”. A definição é Até o capítulo 5 do Livro I, Aristóteles trata então da complementada logo a seguir com a adição da frase “deve felicidade de maneira subjetiva, terminando o capítulo com estender-se por toda a vida” para reforçar a afirmação de um aperfeiçoamento, seu método típico, dos pontos de que um momento de felicidade não constitui a bem- vista do senso comum. Colocando à prova sua definição e aventurança (felicidade), assim como uma andorinha só comparando-a com as noções aceitas sobre a ventura não faz o verão. humana ele conclui que prazer e gozo são apenas estados Tendo realizado, como diz Aristóteles, esse esboço sobre agradáveis para a alma. São elementos do bem-estar, da o bem, ele parte em seguida para uma discussão sobre a felicidade, mas não constituem a sua essência e não natureza das excelências ou virtudes humanas – de devem se tornar o objetivo principal da vida. Rejeita acordo com as quais a atividade humana deve se realizar também a noção de que uma vida devotada a ganhar – com o objetivo de fundamentar melhor sua ética. Até dinheiro produzirá por si mesma a felicidade: “a vida este ponto podemos dizer que a atividade é a verdadeira dedicada a ganhar dinheiro é vivida sob compulsão”. A essência da felicidade. É a felicidade em ato, não em prosperidade razoável é um pressuposto da ventura, mas potência. A virtude deve se mostrar nas ações “da mesma a riqueza não pode ser o bem supremo por ser forma que nos jogos Olímpicos os coroados não são os essencialmente um meio de chegar a outros bens. homens mais fortes e belos, e sim os que competem Tampouco pode a honra ser o bem supremo por ser um (alguns destes serão vitoriosos), quem age conquista, e bem exterior proporcionado pelo reconhecimento de outras justamente, as coisas boas da vida”. pessoas, enquanto a felicidade deve vir de dentro da personalidade de quem o tem, é uma felicidade que se No final do livro I estão definidas as duas espécies de encontra na alma e não nos bens exteriores ou do corpo. excelência ou virtude que existem para Aristóteles: as 4
  • 5. Ética a Nicômaco, de Aristóteles intelectuais (por exemplo a sabedoria, a inteligência e o amigos bons e virtuosos. E a phrónesis auxilia na escolha discernimento) e as morais (por exemplo a liberalidade e a de amigos recíprocos. moderação). Ele considerava as virtudes morais como Para Aristóteles o amigo é um outro eu, possibilidade de disposições ou atitudes para a ação, adquiridas mediante o autoconhecimento. Conhecemo-nos olhando para o outro. exercício e aperfeiçoadas pela prática. Daí a importância Devido a nossa finitude, procuramos atingir à perfeição do hábito no desenvolvimento desta excelência: as moral no espelhamento do outro. É um momento essencial pessoas não nascem boas, mas nascem com a da vida feliz e implica reconhecimento, bondade e capacidade de tornarem-se boas se desenvolverem as reciprocidade, atingindo a expansão social do eu. Assim, a disposições apropriadas mediante a prática reiterada de amizade também é um bem supremo, um valor que nos boas ações. Já a excelência intelectual é um componente conduz à eudaimonia - vivência da plenitude humana, ainda mais importante do bem viver do que a excelência mediada com amigos bons e vida contemplativa. moral. Para Aristóteles é necessário ter prudência, ou No livro X da Ética a Nicômacos vemos o conceito de sabedoria prática, para apreciar corretamente os fatores prazer e sua relação com as excelências do homem. em qualquer situação em que é necessária a ação moral. Ela que nos capacita a selecionar os meios certos para O cerne da teoria aristotélica é o de que o prazer não é atingir nossos objetivos desejados pois trata de situações e algo a que possamos aspirar por ele mesmo, que são, problemas concretos que requerem deliberação. À muito mais, as respectivas atividades, aquilo a que semelhança das virtudes morais, é uma disposição para aspiramos, e que o gozo é algo que então se acrescenta, fazer boas escolhas podendo ser melhorada e fortalecida mostrando que o que fazemos de bom grado decorre sem pela prática, estando completamente na parte racional da impedimento, não havendo oposição alguma entre virtude alma. e felicidade. Para aquele que a pratica por ela mesma, Ainda na Ética a Nicômaco, livro III, Capítulo 02, também, e precisamente, a atividade virtuosa é uma Aristóteles apresenta uma reflexão sobre a escolha. atividade realizada com gozo. É dessa maneira que uma Segundo o filosófo, ela parece ser algo voluntário, porém pessoa pode saber se esteve presente a disposição não é pela involuntariedade que o estagirita a define. A virtuosa em uma ação, pela quantidade de prazer ou escolha não é comum à irracionalidade; segundo o autor desgosto que acompanha a ação. Se a pessoa não gosta ela se faz contrária ao apetite e não se relacionando com o de ser generosa, ou acha difícil ser comedida, não adquiriu agradável e o doloroso. Ela não visa as coisas a virtude, embora possa ter praticado uma ação virtuosa. impossíveis, relaciona-se com os meios e não com os fins Se, ao contrário, a pessoa se alegra com a prática da e não se identifica com a opinião. Para Aristóteles, a virtude em questão, então adquiriu aquela excelência escolha somente pode ser caracterizada a partir do especial. O prazer, nesse sentido, é a prova de um hábito binômio bondade-maldade. formado. Como já citado, Aristóteles dedica dois livros à amizade Nos capítulos 3 e 4 do livro X, Aristóteles desenvolve algumas indicações interessantes sobre o caráter do (VIII e IX). Três seriam as razões: a philia é prazer em relação ao equilíbrio e ao abandonar-se aos estruturalmente intrínseca à virtude e à felicidade; Sócrates afetos daquele que não vive equilibradamente. Não e Platão já haviam analisado filosoficamente tal tema; e o apenas com referência aos prazeres corporais, mas fato da sociedade grega dava à amizade uma importância também quanto aos sentimentos em todos os domínios da capital, diferente das sociedades modernas. vida. Para ele o ser humano tem uma certa consciência do Três são as coisas que o homem ama, segundo tempo: Aristóteles, logo, três são as formas de amizade: pelo útil, Mas a forma do prazer é perfeita a cada momento. É claro, prazer e bem. Os homens que amam em busca do útil, então que o prazer e o movimento diferem entre si, e que buscam um bem imediato, riquezas ou honras. Ama-se, o prazer deve ser uma das coisas que são um todo e não em vista do fim em si mesmo, mas como meio de perfeitas. Esta conclusão também pode ser corroborada adquirir vantagens. A forma em função do prazer é pelo fato de o movimento ocupar necessariamente um semelhante à forma de se amar pelo útil. Busca-se o lapso de tempo, enquanto um sentimento de prazer não prazer recíproco. A amizade é estável enquanto persistir ocupa, pois cada momento de prazer é um todo perfeito. este elo prazeroso. Estas duas espécies de amizade são acidentais. Quando uma das partes cessa de ser O prazer nessa parte da ética lembra o conceito de tempo agradável ou útil, a outra deixa de amá-la. Na terceira como duração que Bergson irá desenvolver muitos séculos forma, pelo bem, ama-se o outro por aquilo que ele é. depois. Esse prazer faz parte de um tempo “psicológico” Ama-se pela bondade. É a verdadeira forma de amizade e que só pode ser satisfeito por uma felicidade que tenha só é possível entre os amigos bom,s com senso de justiça uma certa constância e que não seja experimentado, como e equidade. Esta forma de amizade não é muito freqüente. o prazer corporal, no instante e pelo contraste com a dor Ela exige tempo, familiaridade, um habitus, digna entre os ou com a ausência de prazer. 5
  • 6. Ética a Nicômaco, de Aristóteles Fonte: Texto parcial - Revista Diálogo Educacional - PUCPR 6