Este documento analisa o conto "Com sua voz de mulher", de Marina Colasanti. O conto apresenta uma narrativa mítica na qual um deus assume a forma de uma mulher para entender porque os habitantes de sua cidade estavam tristes. Ao contar histórias, o deus-mulher transforma a realidade das pessoas. O documento discute como o conto retoma temas e elementos de mitologias como a grega e a judaico-cristã.
Reatualização mitológica em conto de Marina Colasanti
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(RE)ATUALIZAÇÃO MITOLÓGICA EM “COM SUA VOZ DE MULHER”, DE MARINA
COLASANT
Edilson Alves de Souza
Universidade Estadual de Goiás (Câmpus de Campos Belos)
O texto verbal na literatura infantil e juvenil
edilson.paceros@hotmail.com
Resumo
―Com sua voz de mulher‖ é o último conto da obra Longe como o meu querer (1996), um
livro de contos de fada de Marina Colasanti. Trata-se de um conto intrigante, que busca
mostrar como a contação de histórias surgiu e transformou a vida do ser humano. Além
disso, revela a relação intrínseca estabelecida entre duas representações literárias, a
saber, os contos feéricos e as narrativas míticas – permeados de construções de
imagens simbólicas. Segundo Gilbert Durand (1989), em As estruturas antropológicas do
imaginário, as imagens envolvem uma multiplicidade de configurações, alimentando, com
sua diversidade, o sistema simbólico. Assim, temáticas, em uma atmosfera in illo
tempore, são (re)apresentadas e vivenciadas pelo homem em uma variação de
manifestações que dialogam com experiências de outras épocas da civilização humana.
Ao se proceder com uma hermenêutica simbólica, consoante ao que propõe Durand,
percebe-se que o conto de Colasanti, ―Com sua voz de mulher‖, entretece temas que
retomam a relação dialógica não só com a linguagem mítica, mas com certas mitologias.
O conto atualiza mitos da criação, especialmente no que diz respeito à estruturação do
espaço e do tempo mítico. Nesse processo de reatualização mitológica, são retomados
diferentes eventos e elementos concernentes, principalmente, à cultura judaico-cristã, a
partir dos textos bíblicos que narram a Criação. Diante do exposto e da possibilidade de
análise, o presente trabalho tem como objetivo evidenciar, à luz da hermenêutica
simbólica, aspectos mitológicos presentes no conto ―Com sua voz de mulher‖, de Marina
Colasanti, buscando, por meio da identificação dos mitemas presentes na narrativa,
apresentar uma possibilidade de leitura.
Palavras-chave: Marina Colasanti; ―Com sua voz de mulher‖; mitologia.
1. Introdução
Este trabalho busca realizar uma leitura do conto de fadas ―Com sua voz de
mulher‖, de Marina Colasanti, à luz da hermenêutica simbólica, identificando as imagens
e sua relação com a representação do simbolismo mítico. Esse exercício hermenêutico
nos proporciona uma análise mais aprofundada do texto literário, demonstrando a
estrutura compósita das imagens que o tecem.
De início, é importante destacar que são incontestáveis as contribuições de
escritores como Charles Perrault, os Irmãos Grimm e Hans Christian Andersen para a
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constituição e formação de um gênero textual que chamamos hoje de Contos de fada. Na
contemporaneidade, ainda se pode experimentar os sabores das narrativas feéricas. No
Brasil, em especial, a escritora Marina Colasanti, poetisa, contista e cronista, é aquela
que, a partir de 1979, nos serve com muito ―requinte‖ seus contos de fada, com o livro
Uma idéia toda azul (LAJOLO; ZILBERMAN, 2003, p. 128).
Marina Colasanti é natural de Asmara, Etiópia (África), morou na Líbia e na Itália.
Aos 11 anos, em meio a Segunda Guerra Mundial, mudou-se para o Brasil, onde viveu
outra parte de sua infância de leitora de clássicos e fábulas. Formou-se pela Escola
Nacional de Belas-Artes, no Rio de Janeiro e, posteriormente, ingressou no Jornalismo.
Trabalhou como repórter, redatora, editora, apresentadora de TV, realizou traduções. Em
1968, publicou seu primeiro livro, intitulado Eu sozinha (crônicas), que deu início a um
longo percurso de produção, tendo mais de 30 títulos publicados, os quais, a maioria,
possui ilustrações feitas pela própria autora.
Escritora versátil, Marina Colasanti também publicou cinco livros de contos de
fada: Uma idéia toda azul; Doze reis e a moça no labirinto do vento; Entre a espada e a
rosa; 23 histórias de um viajante e Longe como o meu querer. Esse último recebeu o
Prêmio Latino-americano Norma-Fundalectura, em 1996. Ele é composto por 24
narrativas, sendo a última delas o conto ―Com sua voz de mulher‖ – nosso objeto de
análise.
O conto é um texto intrigante que revela a grande indissolubilidade existente entre
as narrativas feéricas e os motivos míticos (COELHO, 2003, p. 85), entre a imagem
literária e as representações míticas. Nessa direção, Mircea Eliade (2007, p. 163) afirma
que ―é possível dissecar a estrutura ‗mítica‘‖ e ―demonstrar a sobrevivência literária dos
grandes temas e dos personagens mitológicos‖. É diante desse fenômeno que o presente
trabalho tem a intenção de evidenciar, à luz da hermenêutica simbólica, aspectos
mitológicos dentro do conto colasantiano, empenhando-se em apresentar uma
possibilidade leitura.
2. Leitura do conto “Com sua voz de mulher”
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Em ―Com sua voz de mulher‖, do livro Longe como o meu querer, Marina
Colasanti nos leva ao mundo mitológico. No referido conto, encontramos a história de um
deus que era dono de uma cidade e responsável pela felicidade de seus habitantes. Para
alcançar esse objetivo, o deus nada deixava faltar aos moradores. Dizia ele: ―Cuido para
que as estações se sigam em boa ordem. Garanto-lhes colheita no campo e comida na
mesa [...] Nenhum ovo gora nos ninhos‖ (COLASANTI, 2006, p. 120). Mesmo com todo o
esforço do deus, as pessoas da cidade eram tristes. Preocupado, ele resolve habitar
entre elas para melhor conhecer e entender aquela situação. Para tanto, o deus
[...] abriu seus imensos guarda-roupas à procura de uma identidade com
a qual apresenta-se no mundo dos mortais. Havia ali peles e couros de
todos os animais, da lisa pele da gazela à áspera couraça do rinoceronte
[...] Mas dessa vez não seria como animal que desceria à Terra.
Remexeu entre as peles dos humanos [...]. Depois escolheu a mais lisa e
macia, fechou-se bem dentro dela, cobriu-se com uma túnica. E desceu
(COLASANTI, 2006, p. 121).
Como vemos, ante a situação de infelicidade das pessoas de sua cidade, o deus
desce e aparece como uma mulher de cabelos longos. Ao se apresentar como tal, o
―deus-mulher‖ é desacreditado pelos moradores, visto que ―[f]osse deus, teria vindo como
guerreiro, herói, ou homem poderoso [...] Mas uma mulher vinda das ruas estreitas nada
mais podia ser que uma mulher‖ (COLASANTI, 2006, p. 121). Assim, o deus consegue
um trabalho de auxiliar em tarefas domésticas na casa de uma família, na qual ―as
mulheres fiavam. Os homens consertavam ferramentas ou faziam cestos‖ (COLASANTI,
2006, p. 122) – observemos, desde já, que o ato de fiar constitui uma das atividades mais
antigas e com raízes mitológicas. Com esse cotidiano, todos se entediavam até mesmo o
deus disfarçado de mulher.
Destarte, o ―deus-mulher‖ em ―[...] uma noite, não suportando a mesmice dos
gestos e do silêncio, abriu a boca e começou a contar‖ (COLASANTI, 2006, p. 122) uma
história e, aos poucos, com o cultivo de histórias, as pessoas modificaram-se e
modificaram a realidade a sua volta. Os moradores, devido à interseção da deidade,
passaram a contar histórias e se tornaram protagonistas do seu próprio cotidiano. ―E, o
tempo passando, ninguém mais podia dizer com certeza de onde tinha vindo aquela
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história, e quem a havia contado primeiro‖ (COLASANTI, 2006, p. 124). Ninguém sabia
também onde estava a mulher de cabelos longos (deus-mulher) ―[...] que um dia havia
aparecido na cidade vinda não se sabe de onde. E que em outro dia havia partido com
seu carregamento de histórias, para o mesmo lugar‖ (COLASANTI, 2006, p. 124).
No conto, percebemos a imagem de um deus que sai do seu ―espaço‖, o qual o
dimensiona como uma deidade, para intervir na realidade daqueles moradores e
experimenta o que é propriamente humano. Essa imagem, segundo Campbell (2004) é
comum no cotidiano de culturas que influenciaram o Ocidente, tais como a grega e a
judaico-cristã. Evidencia-se, no texto, a analogia entre o deus-mulher e os deuses
Olímpicos. Estes são personagens da mitologia que gozavam de prestígios na cultura da
antiguidade clássica. Segundo René Ménard (1991, p. 17, grifos nossos): ―Os deuses
passam a vida nos festins e não estão sujeitos a enfermidades. Do alto do Olimpo
regulam as leis do universo e a sua providência intervém muitas vezes nos atos dos
mortais‖.
O auxílio e/ou intercessão divina ocorre em muitos episódios mitológicos, como
destaca Campbell, em seu livro O herói de mil faces, ressaltando que de variadas formas
há orientação sobrenatural por meio de um objeto, um amuleto, um conselho, uma
proteção especial ou benção (2007, p. 74-82). Ulisses, personagem da Odisséia – poema
épico do poeta grego Homero –, durante o percurso de ida para a guerra de Tróia e,
também, volta, foi protegido e orientado pela deusa Palas Atena: ―Então, Atena, a deusa
dos olhos brilhantes, respondeu-lhe: ‗o meu espírito se alberga sempre em teu peito, por
isso não posso abandonar-te em teu infortúnio‘‖ (HOMERO, 2002, p. 176).
Notamos, igualmente, que a intervenção dos deuses na realidade humana não é
uma exclusividade da mitologia grega. O mesmo acontece na mitologia cristã, quando o
Deus-pai, o Verbo Divino, se manifesta em seu filho, Jesus Cristo, como verificamos no
Evangelho Segundo São João (1, 1-2, 14, grifos nossos): ―No princípio era o Verbo e o
Verbo estava com Deus e o Verbo era Deus. No princípio, ele estava com Deus. E o
Verbo se fez carne, e habitou entre nós; e nós vimos a sua glória, glória que ele tem junto
ao Pai como Filho único, cheio de graça e de verdade‖.
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É importante ressaltar que o Deus do cristianismo já havia se manifestado,
intervindo, em outras ocasiões. Constatamos esse acontecimento no evento bíblico que
mostra Deus na sarça ardente no livro de Êxodo. Neste texto, Deus fala com Moisés e
firma o compromisso de libertar o povo do Egito: ―E Deus o chamou do meio da sarça.
Disse: ‗Moisés, Moisés!‘ Este respondeu: ‗Eis-me aqui‘‖ (Êxodo 3:4, grifos nossos). Em
outros muitos momentos das Sagradas Escrituras, Deus é percebido apenas como uma
voz, como em: ―E Deus disse‖, ―Iahweh disse‖, ―Então assim falou Deus‖ a Noé, a Abraão
e a tantos outros que são exemplos e que se reiteram durante o texto bíblico. Igualmente,
é visto como aquele que usa a voz do homem, como os profetas.
Como vimos, na Grécia antiga, muitos deuses eram responsáveis pela proteção
de cidades e de heróis. A deusa Palas Atena, era protetora de Atenas; a deusa Juno, na
guerra de Tróia, era inimiga dos troianos e protetora dos gregos. No texto colasantiano, o
deus-mulher, como os deuses Olímpicos, interfere na vida dos habitantes da cidade da
qual era dono e sua ação está em acordo com a afirmação de Nadia Julien (2005, p. 68)
de que, a intervenção dos deuses, era ―[...] indispensável às necessidades da vida
cotidiana‖.
Tendo isso em vista, é interessante destacar que, desde o primeiro momento do
conto, o deus se mostrou atento e solícito às necessidades das pessoas daquela cidade:
―Cuido para que as estações se sigam em boa ordem. Garanto-lhes colheita no campo e
comida na mesa. Nenhum grão apodrece nas espigas‖ (COLASANTI, 2006, p. 120). A
partir desse trecho, pode-se estabelecer certa associação dos cuidados dessa deidade,
com os cuidados da deusa Ceres.
Ceres, entre os gregos Demeter, é a Terra personificada, irmã e esposa
de Júpiter, de quem teve uma filha, Prosérpina (Koré) que, por sua vez,
personifica mais especialmente a vegetação. Mas Ceres é a terra
considerada na sua fecundidade; às vezes, assimila-se ao próprio trigo
(MÉNARD, 1997, p. 246).
Ceres, divindade itálica que conserva ―características gregas‖ e que é
―completamente identificada com a Deméter grega‖ (JULIEN, 2005, p. 49), era cultuada,
essencialmente, por motivos agrários, visto ser considerada a ―deusa da maternal terra‖
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(CHEVALIER; GHEERBRANT, 2009, p. 328), da agricultura, da germinação e da colheita
(JULIEN, 2005, p. 49). Conforme a cultura mitológica, ela foi responsável por propagar
aos homens como cultivar a terra e fazer agricultura, o que gerou, graças ao zelo da
deusa, a organização das primeiras comunidades civilizadas (JULIEN, 2005, p. 66).
Dessa maneira, podemos dizer que além da atividade análoga de cuidar para que
houvesse garantia de ―colheita no campo e comida na mesa‖ (COLASANTI, 2006, p.
120), Ceres e o deus do conto de Colasanti se aproximam um do outro, também, pela
característica de criarem a organização civilizada (a cidade) e de cuidarem da sua
permanência, provendo os habitantes com mantimentos. Segundo Junito de Souza
Brandão (2009, p. 362-363, grifos nossos) ―Deméter é indiscutivelmente o arquétipo
materno. Traduz o instinto maternal por inteiro na gravidez ou no esforço total para
alimentar física, psicológica ou espiritualmente os seus semelhantes‖.
É perceptível, na Bíblia, que Deus é tratado como Aquele que provê todas as
necessidades humanas: ―O meu Deus proverá magnificamente todas as vossas
necessidades, segundo a sua riqueza, em Cristo Jesus‖ (Fillipenses 4:19). Mais que isso,
como se vê o deus no conto e na mitologia greco-romana, o Deus do cristianismo
também é visto como Aquele que cuida e controla as estações e determina o período da
colheita: ―Temamos a Iahweh nosso Deus, que nos dá a chuva de outono e a da
primavera a seu tempo e que nos reserva semanas fixas para a colheita‖ (Jeremias 5:24).
Corroborando o exposto, outros livros (Deuteronômio e Levítico), desvelam algumas
maneiras de como a colheita era tratada. Além disso, retratam Deus como o que dá o
fruto; o que faz prosperar quem obedece as suas palavras e quem manda fazer festas
em agradecimento pelo bom resultado na agricultura.
Em se tratando de um Deus que atende as misérias humana, um dos exemplos
mais emblemáticos da Bíblia Sagrada é episódio da libertação do povo de Israel do Egito,
especialmente, o trecho narrado nos capítulos 15 a 18 do livro de Êxodo. Neste, os
israelitas recebem o maná, o pão dos anjos. Deus viu a necessidade daquele povo que
murmurou contra Moisés.
Contudo, ordenou às nuvens do alto e abriu as portas do céu; para os
alimentar fez chover o maná, deu para eles o trigo do céu; cada um
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comeu do pão dos Fortes; mandou-lhes provisões em fartura. Fez soprar
no céu o vento leste, e com seu poder trouxe o vento sul; sobre eles fez
chover carne como pó, aves numerosas como areia do mar, fazendo-as
cair no meio do seu acampamento, ao redor das suas tendas. Eles
comeram e ficaram bem saciados, pois ele os serviu conforme queriam
(SALMO 78, 23-29).
Como se verifica, o Deus da bíblia, Iahweh, não desampara o seu povo. Da
mesma maneira, ante a situação de desventura e a precisão de cuidados das pessoas de
sua cidade, o deus-mulher do conto colasantiano atende a oração do povoado e desce
(COLASANTI, 2006, p. 120-121), a fim de resolver aquela questão.
Além da intervenção das deidades na vida do homem, devemos nos atentar
também para a forma em que se encontravam os deuses ao interferir na realidade dos
mortais. Comumente, durante esses intermédios, eles usavam disfarces, como se
percebe na narrativa de Hebe e Ganimedes, na qual Júpiter se disfarça de águia
(BULFINCH, 2006, p. 201); na tentativa de fugir dos cortejos de Posídon, Deméter toma a
forma de égua, e ele, logo depois, de garanhão (BRANDÃO, 2009, p. 361-362); Zeus se
transforma em Anfitrião e uni-se com Alcmene (descendente de Perseu) – união que
gerou Héracles (JULIEN, 2005, p. 103; BULFINCH, 2006, p. 195); no mito de Aracne, a
deusa Atenas desce à Terra e se disfarça de anciã para aconselhar a jovem tecelã. Em
―Com sua voz de mulher‖, observamos a preparação do deus para aparecer na cidade:
―[...] tendo decidido, abriu seus imensos guarda roupas à procura de uma identidade com
a qual apresentar-se no mundo dos mortais‖ (COLASANTI, 2006, p. 121).
Notamos certo critério na escolha da identidade, visto que o deus do conto tinha a
sua disposição ―peles e couros de todos os animais, da lisa pele da gazela à áspera
couraça do rinoceronte‖ (COLASANTI, 2006, p. 121). No entanto, mesmo com toda essa
diversidade de opções, ―dessa vez não seria como um animal que desceria a terra‖
(COLASANTI, 2006, p. 121). Nessa passagem, é sugerido que esse deus já teria
intervindo outras vezes. Mas essa ocasião precisava de algo diferente e de ser diferente.
Por isso, ―[...] remexeu entre as peles dos humanos, suspendeu um escura, bronzeada
de sol, hesitou por um instante. Depois escolheu a mais lisa e macia, fechou-se bem
dentro dela, cobriu-se com uma túnica. E desceu‖ (COLASANTI, 2006, p. 121).
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Na tradição bíblica do cristianismo, Jesus Cristo, o filho Homem, ―[n]o princípio,
ele estava com Deus. E o Verbo se fez carne, e habitou entre nós‖. Isto é, o Verbo, como
já foi destacado acima, habitou na realidade humana na forma humana. Segundo Eliade
(2007, p. 149), ―Cristo, sem deixar de ser o Pantocrator, desce à Terra e visita os
camponeses, como o fazia, nos mitos das populações arcaicas‖. Ele veio para tirar o
pecado do mundo (1Jo 3:5) por meio da sua morte (1Jo 4:10); e para anunciar a salvação
e a vida eterna (1Jo 4:14; 1Jo 5:11-12). E, como o deus-mulher no conto, para
concretizar os seus objetivos na intervenção, Ele usou da Palavra para, então, mudar a
realidade. Segundo o Evangelho de Mateus capítulo 13, versículos 10-17, ele ensinava
por meio de parábolas.
A palavra trouxe uma nova dimensão de vivência também para aquela sociedade
do conto em análise. A palavra funciona como fonte de renovação. As esperanças foram
renovadas pela ação da palavra (―literária‖). Após o deus, ―com sua voz de mulher‖, ―noite
após noite‖, entregar ―suas histórias‖ (COLASANTI, 2006, p. 123), o povo da cidade, que
antes estava infeliz, reagia de maneira diferente: ―[Os] homens sorriam debruçados sobre
suas tarefas, as mulheres cantavam e tinham gestos amplos no braços, e as crianças se
enrodilhavam estremecidas de medo e prazer. O tédio havia desaparecido‖
(COLASANTI, 2006, p. 124).
Outro intertexto que observamos é o dialogismo entre o deus-mulher e as deusas
das artes, da inspiração poética, pertencentes à cultura clássica, conhecidas como
Musas. Assim são chamadas as nove filhas de Zeus com Mnemósine, a deusa da
memória. Segundo René Ménard (1991, p. 47), as Musas são representadas ―sob a
forma de jovens cobertas de longas túnicas [...]‖. Primeiramente podemos destacar a
semelhança existente entre a vestimenta das Musas e do deus-mulher, a túnica. Ainda no
que diz respeito às musas, René Ménard (1991, p. 47) afirma que: ―As Musas foram
sendo [...] caracterizadas por atributos especiais, e a arte reservou a cada uma delas um
papel particular‖. Constatamos assim que cada uma das nove Musas preside uma arte
específica. Segundo Nadia Julien (2005, p. 151, grifos em negrito do autor, grifo em
itálico nosso):
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As nove musas clássicas são: Calíope, que presidia a poesia épica e a
eloqüência; Clio, musa da história; Érato, musa da poesia erótica;
Euterpe, que reinava sobre a música; Melpômene, musa da tragédia;
Polímnia, que dirigia os cantos e os hinos; Terpsícore, musa da dança
e do canto coral; Tália, musa da comédia e da poesia cômica; e Urânia,
associada à astronomia e à geometria.
Diante do apresentado, averiguamos que a personagem deus-mulher estabelece
um intertexto com Clio, a musa da história. Essa analogia é confirmada ao verificarmos o
artífice usado pela personagem no conto – a história – que serve, por meio da voz de
mulher, de inspiração para que os habitantes da cidade começassem a contar histórias e
mudar seu próprio cotidiano, antes entediante.
Quando o deus-mulher falava, ele transportava a imaginação das pessoas que
ouviam para ―aquele mundo onde tudo era possível e onde viver não obedecia a regras
pequenas como as dos homens‖ (COLASANTI, 2006, p. 122). Por essa razão, podemos
relacionar o deus-mulher ao contador de história, ―[...] cuja procedência – e também a das
histórias por ele contadas – não se conhece ao certo, mas que é escutado com encanto e
prazer pelo povo‖ (SILVA, 2003, p. 44).
Outro aspecto que não podemos deixar de mencionar é a relação entre o deus-
mulher e o fio. Sendo assim, é interessante observar que Quando o deus falava, estava
presente o fuso e, assim, a atividade de fiar: ―Até mesmo o deus, de fuso na mão, se
entediava. E uma noite, não suportando a mesmice dos gestos e do silêncio, abriu a boca
e começou a contar‖ (COLASANTI, 2006, p. 122).
Segundo Pierre Brunel (2009, p. 375), dentro do contexto mitológico o fuso está
relacionado ao destino, ele ―[...] regula o conjunto cósmico, automatiza a balança da vida
e da morte‖. Ainda sobre o fuso, é relevante destacar que até mesmo
ZEUS, senhor dos deuses [...] é obrigado a se curvar à NECESSIDADE
que, do centro do universo, repousa sobre os joelhos o seu temível fuso.
É esse fuso que entrelaça todos os fios da vida. O eixo e o gancho são
feitos de aço, e a roda e composta de círculos, um externo e sete
internos, encaixados uns nos outros. O fuso todo gira em movimento
uniforme, e os círculos interiores giram em sentido contrário ao do
conjunto.
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Em cima de cada círculo, fica uma SEREIA, que também dá voltas. Cada
uma delas entoa uma única nota musical, sempre a mesma, mas
diferente das demais. E da união de vozes forma-se uma harmonia.
Ao redor, sentadas cada uma em seu trono, a distâncias iguais, ficam as
filhas da NECESSIDADE – CLOTO, LÁQUESIS, ÁTROPOS –
acompanhando, com suas vozes, a harmonia das SEREIAS. Uma canta
o passado, outra canta o presente, canta o futuro a terceira. São elas
senhoras do princípio e do fim do destino dos homens.
CLOTO ajuda o círculo exterior a girar, com um toque da mão direita. Ela
é a fiandeira, que vai tecendo o fio da vida e o colocando sob o giro do
fuso.
LÁQUESIS, a medidora, toca tanto o círculo de fora quanto os de dentro,
ora com a mão direita, ora com a esquerda. É ela quem dá aos homens
a oportunidade do acaso a que todos têm direito, o momento da livre
escolha, à qual todos ficarão inexoravelmente unidos.
ÁTROPOS, a cortadeira, ajuda os círculos interiores, com a mão
esquerda. Num dado momento, torce os fios, tornando-os irreversíveis
depois os corta, determinando o momento da morte.
Nenhum deus, nem mesmo ZEUS, pode alterar aquilo que foi decretado
pelo fuso da NECESSIDADE (MIRANDA, 1997, p. 87-88, grifos nossos).
O deus-mulher, através da palavra, fia o destino daquela comunidade da mesma
forma como as Moiras, ―[n]o fuso ou na roca, [...] fiam o destino dos homens‖. No que se
refere a esse assunto, como mencionamos anteriormente, a atividade de fiação possui
raízes mitológicas. De acordo com Brunel (1998, p. 371), as ―[...] fiandeiras são as
primeiras figuras com caráter divino, elas alimentam em nós a inesgotável compreensão
do desenrolar de toda existência, enquadrada pelo nascimento e pela morte‖ (BRUNEL,
1998, p. 371).
No conto colasantiano, a palavra/vida daquelas pessoas da cidade estava por um
fio, já que ―ninguém falava‖ (COLASANTI, 2006, p. 122). Por esse motivo, o deus-mulher
intervém, começa a contar e narrando histórias incita nas pessoas o desejo de viver.
Nesse sentido, podemos dizer que o deus-mulher poderia ter agido como Átropos e
cortado para sempre o fio/palavra daquele povo. No entanto, ele age como Cloto, ao
tramar o fio do destino, dando mais fios/palavras/histórias para a sobrevivência daquela
cidade.
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3. Considerações finais
No presente trabalho tivemos a intenção de evidenciar, à luz da hermenêutica
simbólica, aspectos mitológicos dentro do conto ―Com sua voz de mulher‖, de Marina
Colasanti, empenhando-nos em apresentar uma possibilidade de leitura. Percebemos,
durante nossa pesquisa, que o enredo desse conto influi para a constituição de
constelações simbólicas que (des)velam mitos.
O conto também trata de um assunto que é extremamente importante – a Criação
da tradição oral, o primeiro vestígio de existência da literatura. O conto sugere que as
narrativas caminharam de uma boca à outra, de uma casa à outra e de uma comunidade
à outra. Nesse percurso, vemo-las atravessando fronteiras geográficas e culturais criando
fontes do trabalho artístico com as palavras. ―Enfim, essas diversas fontes, levadas
através dos tempos, para diferentes regiões, por peregrinos, viajantes, invasores, foram-
se misturando uma às outras e criando as diferentes formas narrativas e o folclore de
cada nação‖ (COELHO, 2003, p. 31). O assunto é muito interessante, mas são fios para
outros trabalhos.
Referências
BÍBLIA. Português. A Bíblia de Jerusalém. Nova edição rev. e ampl. São Paulo: Paulus,
1985.
BULFINCH, Thomas. O livro da mitologia: histórias de deuses e heróis. 4. ed. São Paulo:
Martin Claret, 2006.
CAMPBELL, Joseph. As máscaras de Deus: mitologia ocidental. São Paulo: Palas
Athena: 2004.
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COELHO, Nelly Novaes. O conto de fadas: símbolos, mitos, arquétipos. São Paulo: DCL,
2003.
COLASANTI, Marina. Longe como o meu querer. 2. ed. São Paulo: Ática, 2006.
DURAND, Gilbert. As estruturas antropológicas do imaginário. 3. ed. São Paulo: Martins
Fontes, 2002.
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