Almada tem uma longa história como palco para o teatro, desde os primórdios com peças de Gil Vicente até os dias atuais com a Mostra de Teatro de Almada. A cidade desempenhou um papel importante na política e sociedade portuguesas através do teatro amador e grupos de coletividades. A Mostra ajudou a estabelecer Almada como um centro criativo e laboratório para novas formas experimentais de teatro.
3. A CIDADE DO TEATRO
António Vitorino (AV)
Isabel Mões (IM)
Nuno Bernardo
(coord.) Sarah Adamopoulos (SA)
Vítor Cid (fotografia)
Xico Braga (XB)
Ângela Luzia, Luís Miranda, João Lima e Rui Silvares (ilustrações)
[edição comemorativa pelos 20 anos da MOSTRA DE TEATRO DE ALMADA | 1996-2016]
4. 7
A CIDADE DO TEATRO
[edição comemorativa pelos 20 anos da MOSTRA DE TEATRO DE ALMADA | 1996-2016]
AUTORES
António Vitorino, Isabel Mões, Nuno Bernardo, Sarah Adamopoulos, Vítor Cid, Xico Braga
COORDENAÇÃO E DIRECÇÃO EDITORIAL
Sarah Adamopoulos
CONSULTOR
Nuno Bernardo
DESIGN E PAGINAÇÃO
Franziska Zabel
TRATAMENTO DIGITAL DE IMAGENS
Karas
CAPA
Franziska Zabel sobre ilustrações de Rui Silvares
REVISÃO
António Costa Brás
GESTÃO DE PROJECTO
Karas e Sarah Adamopoulos
IMPRESSÃO E ACABAMENTO
Jorge Fernandes, Lda. Artes Gráficas
EDIÇÃO
Câmara Municipal de Almada e Ninho de Víboras – Associação Cultural
DIREITOS RESERVADOS ®
Ângela Luzia, António Vitorino, Isabel Mões, João Lima, Luís Miranda, Nuno Bernardo, Rui
Silvares, Sarah Adamopoulos, Vítor Cid, Xico Braga e autores cujos créditos fotográficos se
inscrevem no final da obra.
ISBN 978-989-8668-12-7
DEPÓSITO LEGAL N.º
1.ª EDIÇÃO, Almada, Novembro de 2016
Mila Xavier, 8 de Fevereiro de 2008.
Praça São João Baptista. Animação
circense de abertura oficial da Mos-
tra de Teatro de Almada
DR
5. 8 9
De 1996 a 2016. As imagens de capa dos programas da Mostra de Teatro de Almada
7. 3. RUPTURAS E EXPERIMENTAÇÃO
Almada – cidade laboratório das artes
Ultrapassar o teatro: o metateatro ou teatro pós-dramático em Almada
Sem Nome na Casa Amarela (John Romão)
Canibalismo Cósmico
O Festival X (Rui Silvares)
Almada como epicentro criativo (João Garcia Miguel)
A movida almadense nos anos de 1990
Objectos «híbridos» na Mostra (Cláudia Dias)
Criadores associados
As «capelinhas» da cultura (Karas)
A Intermédia – ou teatro-vídeo
Ubiquidade do intérprete: entre o palco e a tela (Afonso Guerreiro)
4. A MOSTRA COMO PALCO DA DIVERSIDADE
A Mostra: um caldo de cultura teatral (Joaquim Estêvão Judas)
Um lugar à mesa para todos (Teresa Pereira)
A nossa Mostra (Maria João Garcia)
A palavra «partilha» (António Costa Brás)
Fraternidade teatral
A Mostra como espelho do ideal de fraternidade de todo o teatro (Rui Cerveira)
Os intercâmbios da Mostra (Nuno Nascimento)
Todos
Um teatro vivo (Fernando Jorge Lopes)
Profissionais e amadores
Ser-se o pão que se come (Rodrigo Francisco)
O papel da inscrição mediática
Quando a crítica vinha ver o teatro da Mostra (Sofia Oliveira)
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5. OUTROS CAMINHOS
O palco: a prova de vida do texto teatral (Fernando Rebelo)
O texto novo
Na outra margem do princípio da realidade (António Cabrita)
Rir e chorar como irmandade (Mário Palma Jordão)
Os debates com o público: uma maiêutica amorosa
Construir em conjunto novos territórios de utopia (Alexandre Pieroni Calado)
Incluir pelo teatro
A formação teatral dos excluídos (Sofia Raposo)
Almada como escola de público-actor: a formação teatral da população
A Mostra como palco, plateia e motor criativo (Cláudia Negrão)
Sociografia da Mostra
Um contributo para o estudo do teatro no Concelho (Jefferson Oliveira)
OS GRUPOS
A
A Anestesia
A Lente – Teatro de Aumentar
A Menina dos Meus Olhos
Actos Urbanos
Alpha Teatro
Arena de Feras
Armadilha
Artes e Engenhos
As Raparigas de... Três Pontinhos
B
B.O.T.A. – Brigada Organizada de Teatro Actual
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201
203
207
211
215
8. C
Cena Múltipla
Colectivo SOPA Produções
Companhia das Calendas
Companhia de Teatro de Almada
Cortina de Fogo – Teatro Urbano
Crème de la Crème
G
GITT – Grupo de Iniciação Teatral da Trafaria
Grupo Cénico da Incrível Almadense
Grupo de Teatro Amador do Beira Mar
Grupo de Teatro da Academia Almadense
Grupo de Teatro da Associação Cultural Manuel da Fonseca
Grupo de Teatro do Clube Recreativo e Instrução Sobredense
Grupo de Teatro Musical da Academia Almadense
M
Marina Nabais Dança
Murmuriu
N
Ninho de Víboras
Novo Núcleo Teatro (NNT) da FCT
Núcleo de Marionetas
O
O Grito
O Grupo
OLHO
OTA – Oficina de Teatro de Almada
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225
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295
297
P
Piajio
Produções Acidentais
Produções Priapismo
T
Teatro ABC.PI
Teatro a Todos
Teatro da Costa
Teatro de Areia
Teatro de Papel
Teatro do Sopro
Teatro Extremo
Teatro na Gandaia
Teatro Rabo-de-Palha
Teatro&Teatro
Tinta
U
Útero
OS AUTORES
OS ILUSTRADORES
AGRADECIMENTOS PARTICULARES
BIBLIOGRAFIA DE APOIO
CRÉDITOS FOTOGRÁFICOS
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9. 17
Na matriz espiritual do Ocidente, o Teatro ocupa, junta-
mente com a Filosofia, a posição de um dos pilares centrais
do lado luminoso do repertório cultural europeu. Seja como
tragédia, ou como comédia, o teatro constituiu para o mun-
do helénico uma espécie de experimentação física dos limi-
tes da condição humana. Da sua disputa entre a liberdade e
o destino. Aristóteles mostrou na Poética como a represen-
tação trágica é inseparável da grandeza da linguagem e do
pensamento como interrogação do sentido da vida. O teatro
foi para a democracia antiga um exercício complementar da
crítica filosófica e da participação cívica. No teatro conden-
saram-se os valores que faziam os gregos, muito embora po-
liticamente pulverizados em múltiplas cidades-Estado, senti-
rem-se unidos no mesmo cadinho cultural. No palco teatral
a paideia transformava-se numa realidade viva. Os valores,
os mitos, os heróis, as esperanças e os pesadelos matriciais da
Europa transformavam-se em corpo e gesto visíveis.
Nas suas raízes, o horizonte comunitário do teatro coin-
cidiu com as muralhas da cidade. Esta obra que agora se ofe-
rece ao leitor, desenhada no âmbito da comemoração dos 20
Anos da Mostra de Teatro de Almada (1996-2016), revela
bem como essa marca urbana do teatro se mantém intacta
até hoje. No duplo sentido em que o teatro se faz na cida-
de, mas a alma desta deixa-se afectar profundamente pela
experiência estética e comunitária implicada no fenómeno
teatral.
Há muitos anos que me conto entre aqueles que quando
se trata de procurar uma oferta teatral pensam em Almada.
O magnífico livro que o leitor tem entre mãos transforma
esta impressão subjectiva, certamente partilhada por mui-
tos milhares de amantes das artes dramáticas, numa longa e
profunda viagem às raízes históricas e culturais não apenas
de uma cidade, mas do próprio País. Os autores realizam
com este livro uma proeza em várias dimensões. O texto
Viriato Soromenho-Marques
O MÁGICO ENCONTRO ENTRE
O TEATRO E A CIDADE
13. 24 25
O centro e a periferia
No centro concentram-se os órgãos do poder. Não apenas os do poder político eleito, como também
os que representam o poder económico e financeiro, sendo todos esse poderes também patentes no
domínio das artes, facto que advém da relação que artistas e grupos desenvolvem com os diferentes
poderes, do reconhecimento social que vão tendo ao longo do tempo, das formas mais ou menos
consensuais que granjeiam junto das estruturas do poder que acabam por representar. Esses factores
determinam que um determinado grupo ou que uma certa personalidade artística tenha mais poder
que os outros, consequentemente recebendo maior financiamento e um melhor acolhimento por
parte da crítica tablóide – que é a que importa para a criação e acumulação de poder, com conse-
quências gravosas para os projectos emergentes, que ficam muitas vezes ignorados ou reduzidos a
recursos miseráveis que inibem totalmente a sua afirmação e desenvolvimento.
Esses factores determinam também, por outro lado, que as periferias sejam obnubiladas pela macro-
cefalia de que o País enferma.
Almada é uma periferia muito particular. É uma cidade fronteira a Lisboa, tendo sempre tido uma
relação comunicativa especialmente significativa com a capital. Contudo, essa relação entre Almada
e Lisboa tem, como tudo na vida, dois versos. Ou melhor, um verso e um reverso. Se por um lado a
possibilidade de comunicação e de mobilidade relativamente a Lisboa permite contactar com novi-
dades, com diferenças, com outras ideias, por outro lado o centro e as burocracias que o envolvem
evidenciam uma tendência de natureza habitualmente conservadora, avalizando o que é reconhecido
como algo que resulta: entenda-se, como algo que gera um determinado rendimento, ou mesmo
lucro, reflectindo-se inevitavelmente na distribuição dos recursos e na exclusão de muitos talentos
criativos.
De um modo geral, as coisas no centro tendem a ser mais conservadoras, estando mais sujeitas
aos pesos burocráticos. São também, por definição, mais indolentes. Ou seja, têm menos liberdade,
estando mais condicionadas pela própria burocracia e métodos de segurança (entenda-se de protec-
ção), e confinamento do poder – a que se acrescentam as razões que se prendem com a densidade de-
mográfica e outros factores sociológicos que favorecem esse imobilismo, e de que resulta necessaria-
mente uma certa estagnação. Nas periferias verifica-se um fenómeno diferente, que decorre do facto
de a periferia ser menos vigiada, estar menos sob os holofotes, ser menos burocratizada, ser menos
agressivamente competitiva. Daí poderem por vezes surgir nas periferias grandes focos de inovação.
Enquanto no centro se assiste sobretudo à replicação (salvaguardadas as honrosas excepções), na
periferia a inovação tem melhores condições para se afirmar, apesar de todas as dificuldades – e fá-lo
justamente como reacção à escassez de recursos, contra esse establishment permitido e avalizado
pelos poderes (pelo poder político central, pelo poder da comunicação social, pelo poder económi-
co-financeiro).
Ora, Almada apresenta-se como um caso singular. Para além da já referida proximidade com Lis-
boa, esta terra foi um dos primeiros centros operários do País e é uma cidade que, desde o advento
desse processo de industrialização, passou a ser multicultural, atraindo gente das várias regiões do
País. Gente com ideias diferentes, que foi convergindo para Almada, motivada pelas mesmas necessi-
dades de encontrar trabalho que lhes permitisse sair da miséria extrema em que viviam nos campos.
Nesse contexto, surgiu em Almada um forte movimento associativista. E é a partir desse associativis-
mo que as artes conhecem uma expressão até então inédita – sem esquecer os casos mais ou menos
pontuais de manifestações artísticas anteriores ao século xix. Foi todavia com o movimento operário
que emergiu, em certa medida de raiz, uma cultura específica. Esse movimento conheceu diferentes
fases de desenvolvimento, como mais adiante se verá neste livro.
Um dos momentos referenciais recentes situa-se nos anos de 1990, que trouxeram à luz do dia um
conjunto muito significativo de grupos de teatro – mas também uma escola profissional de música e
uma companhia de dança, num período em que as artes performativas tiveram em Almada um dos
seus mais expressivos momentos. O que foi particularmente visível no teatro e explica a concretiza-
ção, já na segunda metade dos anos 90, da Mostra de Teatro de Almada. Nessa altura, os técnicos da
Câmara Municipal de Almada registaram um forte movimento teatral que se dirigia à autarquia no
sentido de angariar o apoio de parceria da Câmara, e decidiram propor a realização de uma mostra
que juntasse todos esses grupos.
Essa ideia foi acarinhada pelo poder local que, na quase ausência do poder central, foi sempre o
grande impulsionador e apoiante – também no plano financeiro – desse movimento cultural. A ideia
foi também acarinhada pela então Presidente da Câmara Municipal de Almada, Maria Emília Neto
de Sousa, e, 20 anos passados, continua a contar com a afabilidade, o entusiasmo e o bom senso do
actual Presidente da Câmara, Joaquim Estêvão Judas.
14. 26 27
A Mostra
A Mostra de Teatro de Almada começou em 1996 com 10 grupos e tem mantido, ao longo dos anos,
a assiduidade de cerca de uma vintena de estruturas de criação artística, sendo que no conjunto dos
20 anos se registou a participação de cerca de 50 grupos, perfazendo 313 espectáculos. Muito traba-
lho foi portanto desenvolvido, muita gente esteve assim envolvida na Mostra – centenas de criadores,
entre actores, encenadores, dramaturgos, técnicos, etc. A Mostra tem portanto sido um caso exem-
plar de bom trabalho e de organização. Foi, e é, um espaço aberto a todos, com lugar para todos, onde
todos se podem sentar e dizer o que querem, embora sempre na premissa (necessária) de alcançar
um consenso.
A Mostra foge à lógica dos concursos, que na maior parte dos casos serve para ocultar decisões que
têm de ser políticas e que só serão transparentes se forem efectivamente decisões políticas, concorde-
-se ou não com elas. A forma colegial e colectiva de negociação entre os grupos e a Câmara Muni-
cipal parece-me evidentemente enriquecedora, e isso tem-se notado, quer na qualidade de alguns
espectáculos quer na qualidade dos debates que em torno deles se fazem. Nas reuniões da Mostra
discute-se também o modo de estar e de ser, a vivência de cada grupo e de cada pessoa de forma
particular. Ao longo destes 20 anos, tem havido um crescimento muito interessante, uma maturidade
que não tem relação com a idade das pessoas mas com uma maturação colectiva.
A Mostra tem constituído assim uma efectiva mostra, uma montra de uma parte do teatro que se
faz em Almada. Trata-se de uma das quatro pernas da grande plataforma do teatro no Concelho –
sendo as restantes o Festival de Almada (o mais importante festival internacional de teatro do País e
uma substancial riqueza para o território, que tem contribuído para desagravar os desequilíbrios da
relação centro/periferia, levando às grandes salas de Lisboa espectáculos programados em Almada,
e trazendo também a Almada muita gente da outra margem do Tejo), o Sementes – Mostra Inter-
nacional de Artes para o Pequeno Público (o mais importante festival de teatro para a infância e
para a juventude no País, sendo também o mais antigo em actividade, que tem trazido a Almada e a
outros concelhos, de ambas as margens do Tejo, espectáculos a vários títulos notabilíssimos, e pro-
porcionado experiências muito enriquecedoras – ao pequeno público e aos pais, mas também aos
artistas) e o Inter-Escolas de Teatro (que junta todos os anos cerca de 30 grupos de teatro escolar,
dando às crianças e aos jovens em idade escolar a possibilidade de subir a um palco para representar
um papel ou tocar um instrumento musical, experiência que se contrapõe ao que costumeiramente
tem acontecido num país onde a maior parte dos jovens que concluiu o ensino obrigatório jamais
teve uma experiência dessa natureza).
A Mostra de Teatro de Almada, o quarto pé da referida plataforma, caracteriza-se sobretudo pela
diversidade, no que constitui um espelho da própria cidade. Almada caracteriza-se por essa diversi-
dade, sendo um território onde desde sempre se procura que haja um lugar para todos, e que cada
vizinho dialogue com o outro. Se há na Mostra espectáculos que denotam problemas de natureza
vária, há também outros que se elevam ao nível do sublime.
A Mostra é, por outro lado, um espaço onde a procura de novas linguagens tem um lugar, no que
de resto constitui um interessante retrato da intersecção que há muito se realiza em Almada entre
as diversas áreas artísticas que podem integrar a construção de um espectáculo: as artes plásticas, a
exemplo de o OLHO, projecto em que foram centrais; a dança e o movimento, designadamente com a
colaboração de bailarinos e coreógrafos, entre os quais Maria Franco, Cláudia Dias, Maria João Garcia,
Marina Nabais, Romeu Runa ou ainda Cristina Benedita, contabilizando-se mais de uma quinzena
de espectáculos contendo coreografias em nome próprio ou que se integraram nos espectáculos; a
música: mais de 70 espectáculos tiveram música original, composta por 46 autores, entre os quais
se contam António Vitorino d’Almeida, Jorge Palma, João Fernando, João Costa, Tiago Pereira ou
ainda João Miguel Fonseca; e ainda a escrita dramatúrgica, domínio em que a Mostra se tem absolu-
tamente distinguido, sendo que mais de uma terça parte das produções levadas à Mostra tiveram por
base materiais textuais novos e inéditos, entre textos de autor e criações colectivas. Fernando Rebelo,
António Cabrita, Alexandre Castanheira, Sarah Adamopoulos, Mário Palma Jordão e A. Branco são
alguns dos nomes a destacar, sem desprimor para os demais (cerca de uma centena). Um património
que valeria a pena publicar e divulgar.
A Mostra viu surgir em Almada novos espaços infra-estruturais (o Auditório Fernando Lopes-
-Graça, no Fórum Municipal Romeu Correia, e também o Teatro Municipal Joaquim Benite) e assistiu
15. 28 29
à requalificação de outros equipamentos (o Cine-Teatro da Academia Almadense e o recém-reaberto
Teatro-Estúdio António Assunção, antigo Teatro Municipal de Almada). Houve também no contexto
da Mostra a utilização de espaços informais, designadamente de armazéns abandonados (a exemplo
do Espaço Ginjal ou da Lemauto), mas também teatro de rua ou em edifícios em ruína. A utilização do
espaço público pelos artistas – da rua, dos largos, das praças, dos velhos edifícios – é não apenas um
acto artístico e cultural mas também um acto de cidadania.
A Mostra tem tido um papel importante no plano da inclusão social, tornando patente que é pos-
sível juntar jovens – mas também seniores, que tiveram já participação nalgumas edições – em torno
de projectos novos, úteis e belos. As artes que se entrecruzam, intersectam e contaminam podem ter
grande relevância nos processos de inclusão social e a Mostra tem sido também palco de algumas expe-
riências interessantíssimas nessa matéria. É o caso do Alpha Teatro. Por essa razão também, a Mostra
tem um papel fundamental no desenvolvimento da comunidade em termos gerais – das pessoas, das
suas mentalidades e modos de se relacionarem entre si.
Ao longo dos 20 anos, houve alguns acontecimentos que merecem o meu destaque. Houve um es-
pectáculo de abertura muito interessante chamado A Festa. Coordenado pela Piajio, envolveu outros
grupos participantes na Mostra. A Piajio, associada ao grupo musical OqueStrada, liderou a primeira
tentativa de reabilitar o espaço do Cine-Teatro da Incrível Almadense e desenvolveu, enquanto durou,
um trabalho de grande diálogo com a comunidade envolvente – indo desencantar velhos artistas
de Almada, entre músicos, cantores, poetas – e de animação de rua (designadamente organizando
exposições nas montras das lojas) como não tinha jamais havido em Almada.
Uma outra iniciativa merece a minha referência: o convite endereçado a João Brites e a Ruy de Car-
valho para virem conversar connosco sobre as suas experiências teatrais.
Organizaram-se dois debates com os grupos que foram da mais fundamental importância na edi-
ção de 2005, reunindo todos os encenadores das peças apresentadas. Porque são importantes os deba-
tes? Porque a avaliação do que se faz é parte disso que se faz – sendo a avaliação do público manifesta-
mente insuficiente (por decorrer muitas vezes de processos gregários e de natureza paroquial, digamos
assim) e, inversamente, a da crítica e dos pares absolutamente necessária.
Ainda em 2005, publicou-se a Folha, que foi um belo pretexto para entrevistar todos os criadores
que nesse ano participaram, bem como para convidar pessoas de fora para escrever algumas críticas
e para vir até Almada conversar connosco sobre teatro. Essa publicação diária foi feita sem recur-
sos, por uma equipa amadora, mas teve uma importância muito significativa no plano do debate de
ideias. Através dela, reflectiu-se sobre o trabalho que se foi fazendo ao longo dessa edição da Mostra.
Acresce a isso o facto de ser esse um trabalho que fica, fixando a memória, mesmo se esses registos
têm a forma de policópias.
Seriam também necessários estudos, académicos ou outros, de natureza sociológica, antropológica,
historiográfica e também estética sobre estas matérias. Para além do mais, a sistematização de estudos
desse tipo, tendo por objecto de estudo as artes performativas em geral e o teatro em particular – ser-
vindo esses trabalhos, designadamente, como fundamental material de apoio à decisão política –, per-
mitiria atenuar o carácter de efemeridade das artes de que nos ocupamos aqui, constituindo um suporte
de preservação da memória colectiva.
Referir finalmente, ainda relativamente à edição da Mostra de 2005, a programação de um espec-
táculo dito «convidado», que trouxe a Almada uma companhia de Vila Franca de Xira e um espectá-
culo francamente inovador. A oportunidade de poder observar outras maneiras de fazer teatro é, do
meu ponto de vista, um ganho imenso. Talvez valesse a pena reeditar essa iniciativa, eventualmente
alargando-a a criações internacionais de teatro feito por amadores, por forma a dotar a Mostra de
uma componente nova, de acesso a outras linguagens e culturas estéticas, através de um espectáculo
convidado que fosse inserido na programação anual.
Prospectivar
As considerações seguintes resultam não só da reflexão pessoal, mas também de vários debates
colectivos, diálogos e até mesmo confrontos, ocorridos no âmbito dos processos preparatórios da
Mostra, durante a própria Mostra e em eventos específicos relacionados com a actividade dos grupos.
São portanto tão-só sugestões e muito especialmente uma maneira de levar a debate e suscitar um
diálogo que venham a dar-lhes forma, viabilidade e consequente capacidade decisória.
16. 30 31
Um assunto recolhe unanimidade: as condições e os recursos actualmente existentes são franca-
mente parcos. A Mostra tem contado unicamente com a participação financeira da Câmara Municipal
de Almada a qual, embora sendo louvável, precisaria de ser ampliada, por forma a servir o desenvol-
vimento da própria Mostra. Essa verba tem-se mantido mais ou menos inalterada ao longo dos anos,
e tem criado uma certa estagnação. Quer isto dizer que muitos talentos que apareceram na Mostra
desapareceram. Se alguns emigraram e tiveram êxito – indo ao centro em busca de reconhecimento –,
encetando carreiras (por vezes internacionais) que os confirmaram como talentos e permitiram que
crescessem (caso de João Garcia Miguel, Cláudia Dias, Miguel Moreira, John Romão), muitos mais fica-
ram pelo caminho. Nesse sentido, seria muito importante que houvesse um significativo acréscimo
do apoio, que permitisse o desenvolvimento de quem se afirma com talento e com vontade de avançar
para um estádio profissional.
A Mostra, pela metodologia da sua criação e desenvolvimento, como referido anteriormente,
constitui já, virtualmente, uma associação de associações. O seu objectivo é a Mostra. Seria todavia
muito importante que esse modelo pudesse desenvolver-se e autonomizar-se. O que permitiria um
relacionamento mais eficaz com a autarquia, bem como com outros potenciais financiadores e patro-
cinadores, designadamente públicos, mas também privados, nisso envolvendo as grandes empresas
que operam no território de Almada, que têm e deveriam assumir especiais responsabilidades sociais.
Esse desenvolvimento poderia reunir recursos complementares à verba da autarquia almadense e que
fariam toda a diferença.
Por outro lado, a Mostra teria a ganhar com a formalização de uma estrutura emanada dos gru-
pos que permitisse a realização de um trabalho autónomo e com melhor carácter de operatividade.
Essa estrutura poderia ter a forma de um centro de produção, comunicação e agenciamento e que,
mantendo o necessário objectivo de alcançar consensos, teria a função primordial de representar o
conjunto de associações, por forma a poder dialogar com a Câmara de forma mais ágil. Talvez essa
estrutura – que teria necessariamente de ter funções também de produção, postas ao serviço do con-
junto de grupos, e designadamente acabando com o desperdício que constitui a apresentação única
na Mostra de espectáculos que poderiam, e deveriam, conhecer carreiras de digressão local e até
mesmo nacional – pudesse ajudar a pôr um ponto final na representação social que é feita da Câmara
e dos seus técnicos enquanto malvados de serviço. Bem sei que a afirmação de uma personalidade
colectiva é um desiderato sempre complexo, pois já dizia a minha avó que cada um é como cada qual
e que cada cabeça sua sentença.
Apesar da inevitável necessidade dos consensos, seria desejável que também as dissidências pudes-
sem ter o seu lugar na Mostra do futuro, pelo carácter de inovação e de novas perspectivas que nor-
malmente transportam. As dissidências precisariam, assim, de ser cabalmente consideradas e levadas
em conta nos processos de decisão. Faço notar que muitos grupos que participaram e participam
na Mostra surgiram de dissidências, fizeram os seus caminhos, e agora estão em diálogo, por vezes
em confronto, com aqueles de que foram dissidentes. É preciso perceber que os desentendimen-
tos podem ter efeitos positivos muito significativos, designadamente na mudança de mentalidades.
A mentalidade paroquial do cada um por si e que vença o mais forte não é um caminho construtivo.
A Mostra tem também uma palavra a dizer no plano do desenvolvimento material para a região.
Esse fazer local e pensar global – que foi o lema do movimento ecologista e levou a ecologia para a
agenda política – pode ser um programa interessante para o movimento cultural e artístico, levando
a que também ele possa ser inscrito na agenda política e até mesmo na agenda económica. Será ne-
cessário reforçar as relações de comunicação e de diálogo, com criação de alguns consensos (isto é, de
mínimos denominadores comuns que permitam fazer evoluir o diálogo), de modo a que os assuntos
relativos às artes e à cultura tenham no palco político o lugar relevante que efectivamente merecem.
Se o turismo tem sido prioridade nos programas de desenvolvimento económico, será preciso, creio,
cruzá-lo de forma orgânica e saudável com a actividade artística local que lhe é anterior.
Entendo o turismo como a arte de bem receber, porém, só pode receber bem quem está bem. Uma
zona deprimida e com constrangimentos fortes dificilmente poderá ter um desenvolvimento turís-
tico com capacidade de se projectar saudavelmente no futuro económico de uma região. Quando
muito, será constituída por uma ilhas envolvidas em arame farpado. Não creio que seja isso que se
queira para o nosso território. Tão-pouco o que está a acontecer actualmente em Lisboa – com a massi-
ficação brutal (sobretudo para a população local, que está em processo acelerado de depressão social)
da oferta turística, e subalternização quase transversal de todos os sectores económicos – constitui um
objectivo com interesse para as gerações futuras. O que coloca a questão das indústrias culturais e
do lazer.
17. 32 33
Com efeito, quando as artes – mas também a saúde, o ensino, o lazer – se transformam em indús-
trias, que replicam à exaustão um sempiterno, enquanto dura, modelo lucrativo – as coisas tornam-
-se perversas. Trata-se, aliás, de um processo que, comprovadamente, não oferece qualquer acrésci-
mo de qualidade, nem oferece qualquer capital acrescido de bem-estar. A arte não deve participar
do que se pretende fazer dela: uma actividade distractiva. Fernando Lopes-Graça insurgia-se contra
a arte que queria ser «um adorno», algo que se tinha em vez de se ser. Esta é uma questão crucial
quando se pensa nas artes, pois elas têm que ver com o ser e não com o ter.
O sociólogo Jefferson Oliveira fez dois estudos relativos aos públicos da Mostra que constituem
uma significativa forma de avaliação do evento, muito embora esses estudos não tenham tido âmbi-
tos e processos mais aprofundados. Um dos dados que ressalta é a escassez de relevância da divul-
gação da Mostra na comunicação social, o que revela um problema no plano da comunicação do
evento. Para fazer crescer e renovar os públicos da Mostra, seria importante encetar quanto antes um
programa de trabalho em rede que interligasse de forma estreita e continuada os grupos de teatro, as
escolas e todos os agentes culturais do Concelho.
Apesar dos esforços da Câmara Municipal de Almada, no sentido de garantir a preservação dos
materiais de comunicação e divulgação produzidos ao longo das várias edições da Mostra, a prepara-
ção deste livro pôs a claro a necessidade urgentíssima de criação de um centro de documentação e in-
vestigação em artes performativas. Este centro justifica-se uma vez que no nosso concelho seria não
apenas uma forma de salvaguardar a memória, mas também uma forma de divulgá-la e disponibilizá-
-la aos investigadores. O que implica um trabalho necessariamente feito com recurso a plataformas
tecnológicas, assegurando a digitalização e indexação em bases de dados de todos esses materiais.
E já que refiro os recursos tecnológicos, não posso deixar de lembrar a que ponto seria importante
a criação de um centro de recursos, designadamente em luminotecnia, sonoplastia e imagem, que
seguramente daria uma outra dimensão a muitos espectáculos levados à Mostra.
Atendendo à dimensão (também histórica) que as artes (o teatro, a dança, a performance, a música,
mas também as artes plásticas e a dramaturgia) têm no Concelho, penso que seria de toda a utilidade
ponderar seriamente a criação de uma escola de artes, que juntasse num mesmo espaço, ou em vários
espaços próximos entre si, as várias especialidades artísticas, conectando as estruturas existentes, asse-
gurando programas consistentes de formação em cada uma delas e propiciando também as transversa-
lidades e as intersecções que a Mostra revela inevitavéis e crescentemente apetecidas pelos criadores.
Não se trata de todo de criar mais uma escola num concelho onde já existem a Escola de Dança
da Companhia de Dança de Almada, dois Conservatórios Regionais (Sobreda e Trafaria), um Curso
Profissional de Teatro na Escola Secundária Anselmo de Andrade e a Opção de Teatro na Escola Secun-
dária António Gedeão, escolas todas elas de grande qualidade pedagógica e artística.
Trata-se, antes, de procurar criar pontes e comunicações entre as várias formações existentes, tanto
as formais como as informais, as curriculares como as ocasionais, e colmatar lacunas. Criar um tra-
balho de rede e em rede, que reconheça a identidade, a história e os objectivos de cada instituição no
terreno, conte com a sua participação em todo o processo, da concepção à gestão, e lhes acrescente
valor no todo e nas partes intervenientes. Que ajude a construir projectos e estratégias aos vários
níveis e nas diversas áreas da produção artística – dos bebés e crianças aos seniores, da escrita para
teatro, cinema e televisão à performance e ao vídeo, passando pelas artes plásticas e, claro está, pelo
teatro, a dança e a música, que deverão constituir os seus três eixos estruturantes.
Tratar-se-ia de uma escola local mas cosmopolita, com um centro, conceptual e físico, mas em
diálogo com outros centros autónomos e descentralizados, que acolheria as experiências e os saberes
oriundos de outras paragens e difundiria novos conhecimentos, novas capacidades e ideias: uma
escola aberta, caracterizada por um agir comunicacional e dialogante, para uma sociedade aberta,
inclusiva, justa e multicultural, a que aspiramos. Uma escola assim poderia sem dificuldade, creio, afir-
mar-se como uma escola com relevância no plano nacional – e até mesmo internacional.
Para concluir, apenas assinalar que as boas práticas devem ser estimuladas e apoiadas, para que
possam crescer e maturar e vir a constituir exemplos para outros projectos e territórios. O poder local,
em boa medida, tem-no feito, se bem que por vezes lhe falte ousadia e capacidade de risco.
Quanto ao poder central era de todo desejável que procedesse de igual modo. A excepcionalidade
do que acontece em Almada e as potencialidades que apresenta deveriam ter um tratamento em con-
formidade.
21. 40 41
dias, coisas «muito cá de casa» que Vicente se atreveu, não
sem desassombro, a expor à claridade do teatro – conferin-
do-lhes um lugar inédito no espelho do mundo português
de então que eram as suas sátiras teatrais.
Com a vivaz modernidade do seu texto (muito embora
aindacheiodeformasepalavrasarcaicas)remeteu-seoteatro
medievo para a sombra de uma pré-história. Começava ali
uma coisa nova, arriscadamente profana e de propósitos
politicamente incisivos – cujas personagens podiam falar
não apenas em português (o que começou com o Auto da
Índia, primeira peça de Vicente escrita em português, em-
bora mantendo-se o castelhano, por forma a servir uma das
personagens, numa interessante aproximação a um realis-
mo teatral, que ademais agradava ao bilinguismo da cor-
te), como fazê-lo com os modos e trejeitos de cada grupo
humano que representavam.
Engenhosa criação, o dramaturgo oficial da corte pôs o ver-
so, as suas métrica e rima, não já ao serviço da narração das
então mais comuns pregações do teatro evangelizador – com
que o fundamentalismo cristão da época procurava com-
bater o paganismo do teatro herdado da Antiguidade –, tão
pouco da imitação jocosa de actos religiosos, mas em pro-
veito do riso (que também é salvação) crítico e transverso
que vai beber aos arquétipos sociais. Isso fazendo Vicente
com tal arte versejadora e mestria dramatúrgica, que era a
própria rainha a pedir-lhe que por favor escrevesse e delei-
tasse os entediados cortesãos com os seus tesouros poéticos
de graças – não apenas formalmente tão graciosos, como
superiormente espirituosos, e além disso sendo-o sem gros-
seria.
Pequeno mas afiado espelho de personagens típicas, re-
tratadas sem estados de alma em flagrante comicidade, a
farsa vicentina estreada em Almada evidenciou desde logo
uma trama superlativamente bem entretecida, pondo em
cena a história de uma mulher trocada por uma viagem
na expedição portuguesa à Índia na qual participara o seu
marido – soldado da armada de Tristão da Cunha, regres-
sada a casa no mês de Julho desse ano de 1509. Teatro de
sátira, descomplexadamente estrangeiro aos conflitos inte-
riores mais passíveis de compaixão que pudessem ator-
mentar tão velhaca mulher (não por ser adúltera, mas por
ser mesmo manhosa), Gil Vicente fixou no Auto da Índia
um pequeno conjunto de retratos da sociedade portuguesa
no dealbar de Quinhentos – e entre os quais se destaca, bri-
lhando na sua ausência omnipresente, o guerreiro moral-
mente corrompido (e cheio de culpa enfiada dentro dele),
para quem as conquistas da primeira globalização não pas-
savam de pilhagens em proveito de legitimidades discutíveis.
O teatro abriu-se com Vicente à sociedade em geral, pôde
doravante contar histórias em que o público se revia e ao
seu mundo, e até mesmo comentar os grandes planos para
a Nação. Pôde ser político, e ter a actualidade por pano de
fundo. Pôde, finalmente, representar-se independentemente
da agenda de pompas e circunstâncias da corte. A aparição
teatral emancipou-se nesse momento das ocasiões, festivas
ou outras, que até à data determinavam a circunstância da
representação cénica. O teatro bastava-se a si próprio. Foi
assim com o Auto da Índia, estreado em 1509 em Almada
por direito próprio, e de que se regista uma única segunda
representação em Almada (muito embora repetida daí a dias
noutra sala do Concelho), no âmbito da 4.ª edição da Mostra
de Teatro de Almada, em 2000, pelo Teatro do Sopro.
Iluminura atribuída a D. Carolina Santos, publicada originalmente em 1834 nas Obras de Gil Vicente – nova edição correcta e
emendada, representando a primeira vez que o Auto da Índia subiu às tábuas de uma cena de teatro – em Almada, em 1509.
Edição patrocinada por dois estudantes portugueses então exilados (um deles amigo de Garrett), com actualização ortográfi-
ca, emendas tipográficas e contendo também a edição um ensaio biográfico sobre Gil Vicente. Foram seus autores J. V. Barre-
to Feio e J. G. Monteiro (três volumes pela Officina Typographica de Langhoff, Hamburgo, Alemanha), a partir de um exemplar
da Compilação de 1562 (cuja reedição, em 1586, oficializara incontáveis rasuras censórias realizadas pela Inquisição), encon-
tradonabibliotecadaUniversidadedeGoettingen.AiluminuraserianovamentepublicadanaHistóriadaLiteraturaPortuguesa
Ilustrada, vol. 2.º, pág. 49 (Albino Forjaz de Sampaio e Afonso Lopes Vieira, editado pela Aillaud e Bertrand, 1930)
DR
22. 42 43
(A Farsa seguinte chamam Auto da Índia. Foi fundado sobre que ua mulher
estando já embarcado pera a Índia seu marido lhe vieram dizer que estava
desaviado,equejánãoia,eeladepesarestáchorando,efala-lheuasuacriada.
Foi feita em Almada, representada à muito Católica Rainha dona Lianor. Era
de MDIX anos.
Entram nela estas figuras:
Ama, Moça, Castelhano, Lemos, Marido.)
A primeira página do Auto da Índia, tal como constante no livro quarto
da 1.ª edição da obra compilada de Gil Vicente (Copilaçam de todalas
obras de Gil Vicente), datando de 1562 e que conheceria nova versão em
1586 (censurada pela Inquisição), na qual o Auto da Índia deixa de ser
apresentado como a primeira farsa vicentina (supostamente sucedendo
a Quem Tem Farelos?)
Brilhante carácter de farsa
Quis fazer o Auto da Índia por causa da modernidade intemporal de Gil Vicente.
Não é por acaso que se trata de um dos textos mais vezes levado à cena por peque-
nas companhias: o modo como a peça está construída, o ritmo alucinante, o seu
brilhante carácter de farsa. Pareceu-me interessante que Gil Vicente tenha tido a
coragem de abordar o tema do reverso da medalha do expansionismo português e
as suas consequências, por vezes anedóticas, na sociedade, como é o caso daquele
marido rumado à Índia a negócios e daquela mulher que não perde tempo a traí-lo.
Jean-Pierre Fouque, Teatro do Sopro
DR
Do Caos se gerou a Noite e desta o Destino – divindade
cega e implacável, a que todos os demais mistérios divinos
estavam submetidos, e cujas leis provinham da Eternidade.
A essas terríveis determinações supratemporais se deverá
a culpa que enche de remorso os mortais obstinados na vir-
tude e nas suas santidades. Nem mesmo Zeus, o mais pode-
roso do panteão mitológico grego, tinha poderes para fazer
inflectir o destino, o seu e o dos demais – o que de resto o
Poderoso bem sabia, não lhe passando sequer pela cabeça
procurar furtar-se-lhe, considerando que assim agindo po-
deria perturbar irremediavelmente a ordem e provocar um
regresso ao Caos. Embora senhor supremo dos mortais, a
quem entregava os destinos diferenciados a que aludimos
já, não era Zeus que regia esses fados de possibilidades tra-
çadas à partida – sendo essa uma incumbência das divin-
dades secundárias filhas da Natureza que presidiam aos
nascimentos, à saúde e à sorte, fazendo respeitar a ordem
natural do Universo.
Deus polígamo e aventureiro, de incontáveis uniões amo-
rosas – umas com deusas e ninfas e outras com mulheres
mortais –, Zeus foi olímpico não apenas no panteão grego
dos divinos, como também nas suas infinitas capacidades
para seduzir as beldades que a Providência lhe punha no
caminho, desse modo gerando descendências várias que foi
espalhando pelos primeiros lugares do Mundo Antigo. Um
mundo de que faziam também parte os Infernos, lugares
simbólicos subterrâneos e tenebrosos, cujas almas penadas
por lá instaladas os tragediógrafos da Antiguidade clássica
(e os seus sucessores renascentistas, bem entendido) tantas
vezes inscreveram no destino dos vivos, numa tensão entre
a morte e a vida, o passado e o futuro, o pecado e a virtude,
mas também, e talvez sobretudo, entre o destino (uma pa-
lavra que não tem um antónimo claro) e os anseios. Uma
tensão humanamente observável desde sempre, geradora de
grandes sacas de culpas, fantasmas e outros espectros e pres-
ságios imaginados.
O Grupo Amador Os Desprote-
gidos da Sorte, da Cova da Pie-
dade, em meados da década de
1930 (talvez 1934), aquando da
apresentação de Frei Luís de Sousa
DR
23. 44 45
Frei Luís de Sousa: Almada como cenário da tragédia
Em Frei Luís de Sousa (1843), Almeida Garrett (1799-
-1854), um outro fundamental renovador das coisas teatrais
em Portugal, mostra-nos uma família a viver num palácio
sobrecarregado de passado nos comecinhos do século xvii
– um lugar cujo reflexo baço da felicidade espelha o que ha-
bitualmente fica ocultado por baixo da camada superficial
do que nos é dado a ver. Se nada é o que parece, a aparente fe-
licidade da família retratada em Frei Luís de Sousa transporta
a fatalidade dos lugares assombrados pelo passado e pela
melancolia, caminhando os seres inexoravelmente para o
destino mais comum dos náufragos submersos em pecado e
culpa – desfecho trágico (a morte, por vergonha) para o qual
toda a peça caminha desde o começo, e que Garrett situou
na Igreja do Convento de São Paulo de Almada, no ambien-
te sebastianista dos primeiros anos da dominação filipina –
muito embora se apresente não como teatro histórico mas
como uma tragédia doméstica, cuja trama cénica atravessa
uma semana de tempo e decorre em lugares de Almada.
Lugar talhado para a «aquietação do espírito ou o estudo
das letras», o Convento de São Paulo de Almada, situado
«no mais alto do monte e pendurado sobre o mar, fica como
grimpa sujeito a todos os ventos que grandemente o comba-
tem». Inaugurado em 1569, o Convento dominicano seria
morada de vários «homens santos e sábios que viveram no
silêncio da oração e dos livros» (Frei Luís de Sousa), entre
os quais o próprio e insigne Frei Luís de Sousa, aliás Manuel
de Sousa Coutinho (1555-1632), que antes de vestir o hábito
dominicano e de se transformar num historiador e homem
de letras fora militar (coronel de 700 infantes e de quase 100
cavalos, ao que consta) e marido de D. Madalena de Vi-
lhena, angustiada viúva de D. João de Portugal (o famoso
Romeiro – um fantasma que emerge do sentimento de cul-
pa – que diz ser ninguém) que mais tarde vestirá também ela
o hábito para ser Soror Madalena das Chagas.
Obra-prima do teatro português, Frei Luís de Sousa foi
escrita já depois de Garrett ter sido demitido do cargo de
Inspector-Geral dos Teatros, durante a oposição à ditadura
de Costa Cabral, cujo regime, aliás, proibiria durante al-
guns anos a representação da peça, considerada inimiga de
Espanha e desrespeitosa para com a Igreja. Texto historicista,
na linha da tradição da época, quando o teatro em Portu-
gal tinha ainda por assunto prevalecente a História do País,
que habitualmente celebrava, Frei Luís de Sousa contém no
entanto as singularidades que fazem da peça um objecto
dramatúrgico de superlativa perfeição formal – ou não fosse
a peça uma tragédia, expressão maior, e em certa medida a
única de verdade (tendo muito embora do outro lado a farsa,
naturalmente), tal como preconizava António Pedro, para
quem o drama burguês e a comédia não passavam de for-
mas conjunturais, que não sobreviveriam aos tempos longos
da História da Humanidade.
Inelutavelmente (como será justo dizer-se no caso) her-
deira da tragédia grega clássica, contendo até mesmo uma
recitação litúrgica e uma personagem agourenta que agem
à imagem dos coros premonitórios da Antiguidade do tea-
tro, Frei Luís de Sousa põe em cena a queda de uma família
concreta que viveu em Almada a braços com uma ines-
capável fatalidade.
Sobre Frei Luís de Sousa, Garrett dirá ter querido fazer
um teatro cuja acção dispensasse a aparição de uma per-
sonagem malévola, antes entregando-a a «gente honesta e
temente a Deus, sem um mau para contraste, sem um tirano
que se mate ou mate alguém […], sem uma dança macabra
de assassínios, de adultérios e de incestos, tripudiada ao som
das blasfémias e das maldições […]». Dirá ainda ter sido seu
propósito assumido a possibilidade de «excitar fortemente
o terror e a piedade» enquanto elementos purificadores, e
nem tanto produzir um melodrama – forma trágica pseu-
do-shakespeariana muito popularizada na época, que Gar-
rett desprezava e procurou combater, conseguindo em Frei
Luís de Sousa a profundidade dramática que Alexandre
Herculano, generalizando, acusava os demais dramaturgos
de não ter.
Dando inédito protagonismo conceptual ao papel pode-
roso do passado, do simples passado regurgitante de vida,
que por vezes, e dispensando a intervenção de terceiros,
pode tomar a forma de um inferno, Garrett fez em Frei
Luís de Sousa um teatro de espectros, que deu à memória
do pecado e à expiação da culpa os papéis principais. Au-
toridade natural, tenazmente enraizada na cultura católica
portuguesa, a culpa surge em Frei Luís de Sousa como a
representação da decadência cabralista a que os ideais de
Garrett (João Baptista da Silva Leitão, filho do cruzamento
da burguesia letrada e da burguesia que emergira em Sete-
centos com o império brasileiro, de nome artístico repes-
cado na ascendência aristocrática paterna de origem irlan-
desa) se opunham.
Frei Luís de Sousa, emanação literariamente superior de
um conflito interior insanável que Garrett manteve ao lon-
go de toda a sua obra – uma tensão permanente, muito co-
mum nas gentes expostas a educações repressivas, entre os
ideais iluministas e libertadores e o espectro cristão da cor-
rupção carnal – contém um forte expressionismo e uma
densidade profundamente humana que sugere de forma cla-
ra a vivência de tormentos análogos por parte do seu autor:
debatia-se Garrett por esses dias com problemas pessoais re-
lacionados com a legitimação de uma filha nascida de uma
união extraconjugal e cuja progenitora morrera pouco tem-
po antes com apenas 20 anos, e também decorrentes da sua
ligação com a inspiradora dos ousados poemas sensualistas
de Folhas Caídas, numa época retrógrada e hipócrita (embo-
ra em tanto tempo distando da família de Frei Luís de Sousa)
em que as pessoas não tinham o direito de refazer a sua vida,
tão-pouco de perfilhar filhos do adultério, nem mesmo de-
pois de enviuvarem.
A peça transporta, assim, o cunho autobiográfico que faz
dela um espelho da angústia do seu autor enquanto pai ile-
gítimo de alguém cujo destino, ditado pela sociedade, seria
inexoravelmente o de carregar pela vida a culpa inocente por
actos de outros – constituindo nessa medida um drama cuja
severa solenidade, muito embora atenuada pelo lugar que
confere aos sentimentos (como é próprio do romantismo),
projecta realidades objectivas que retratam o abjecto país
social e político da época. Num sentido mais estritamente
político, Garrett espelhou em Frei Luís de Sousa a consciên-
cia aguda que tinha da tragédia nacional que era a domi-
nação cabralista dos anos em que a peça foi escrita – durante
os quais o autor assistiu a um movimento de regressão na
sociedade portuguesa em direcção ao velho país social e
endemicamente hierarquizado, inflexão que se opunha aos
ideais democratizadores e progressistas que moviam Garrett.
Frei Luís de Sousa não subiu ainda aos palcos da Mostra.
No entanto, Almeida Garrett já foi representado na Mostra,
em 2000, pela mão da Companhia de Teatro de Almada que,
na sequência da sua estreia em 1999, no ano em que se co-
memorou o segundo centenário do nascimento de Almeida
24. 46 47
Tomamos também aqui boa nota de uma anterior repre-
sentação da peça, provavelmente em 1934, pelo Grupo Dra-
mático do Clube Recreativo Piedense cuja designação na
época, Os Desprotegidos da Sorte, evoca com inexcedível cla-
reza a história social que está na origem do movimento asso-
ciativista em que germinou o teatro em Almada. O próximo
capítulo é-lhe dedicado.
Dizer finalmente, ainda a propósito do território de Alma-
dacomocenáriodatragédiaromânticagarrettiana,quehouve
nessa escolha de Garrett (uma família e lugares concretos)
uma interessante aproximação por parte de um habitante
de Lisboa a uma verdade de que, se posto o observador na
margem sul do rio, oferece a sua mais nítida visão: a de uma
angustiante superlativa beleza de um território cujo maior
contraste decorre de uma história e tragédia sociais de que
o rio, muro separador, parece participar. Pelo território se
afirma também a tragédia solar de que os portugueses, à
semelhança dos gregos, têm visões únicas, através do de-
sespero que emerge da beleza opressiva dos lugares marí-
timos (com toda a sua história que levou tantos para tão lon-
ge). «É nessa infelicidade dourada que a tragédia culmina»
(Albert Camus, O Exílio de Helena, 1948).
A maqueta do cenário para o 2.º acto de Frei Luís de Sousa (por José Barbo-
sa) para a encenação pela Companhia Rey Colaço-Robles Monteiro, em
1943 (original no Museu Nacional do Teatro e da Dança), quando Euni-
ce Muñoz fez de Maria, a filha moralmente ilegítima de Manuel de Sousa
Coutinho e da viúva de um guerreiro nobre desaparecido no nevoeiro
com D. Sebastião
Garrett, levou Viagens na Minha Terra, de prosa adaptada
por Carlos Porto, à edição de 2000 da Mostra. No progra-
ma dessa edição, pode ler-se que em Viagens na Minha Terra
«se mostram os choques entre o velho e o novo, que tão
fortemente marcaram o Portugal oitocentista, a luta pelos
ideais de renovação social e depois o conformismo e a aco-
modação que resulta da transformação dos revolucionários
em barões ou em viscondes, como o próprio Garrett».
Num momento – agora sujeito ao violento fenómeno glo-
balizador – cujo verdadeiro impacto das regressões, opera-
das através de equivalente aburguesamento dos mais fracos,
os vindouros poderão melhor que nós aferir, não deixare-
mos todavia de referir, celebrando-a, a circunstância feliz
de Frei Luís de Sousa ter sido levada à cena pela Companhia
de Teatro de Almada em Abril de 2016, numa encenação
assinada pela mão subtil de Rogério de Carvalho – o antigo
professor de Matemática que, nos comecinhos de 1970, foi
responsável pelo primeiro grupo de teatro criado na então
Escola Industrial e Comercial Emídio Navarro, no que cons-
tituiria um dos mais interessantes e florescentes pólos de
iniciação teatral em contexto educativo levado a cabo em
Almada. Sobre isso nos atardaremos mais adiante.
DR
A primeira página de Frei Luís de Sousa, cuja trama trágica decorre em lugares de Almada, na 1.ª edição das obras teatrais de
João Baptista de Almeida Garrett, Theatro de J. B. de Almeida-Garrett (Imprensa Nacional, 1944-1946). A peça foi representa-
da pela primeira vez a 4 de Julho de 1843 (com Garrett a fazer de Telmo Pais) na sala privada do Teatro da Quinta do Pinheiro,
propriedade de um amador (para designar um grande apreciador e praticante) de teatro chamado Duarte de Sá. Foram seus
intérpretes actores amadores. Frei Luís de Sousa subiria à cena do Teatro Nacional D. Maria II em 1850, apresentando inova-
ções de cariz técnico e artístico que pretendiam favorecer a intensidade dramática da peça: foi nesse momento substituída a
iluminação com candeeiros de petróleo por iluminação a gás, e usaram-se uma cenografia e um guarda-roupa que procuraram
servir diacronicamente o tempo em que decorre a trama. Apenas a representação da parte do fogo patriótico ateado por
Manuel de Sousa Coutinho ao seu palácio, para evitar que caísse nas mãos dos espanhóis, levantou dúvidas e preocupações,
mas tudo correria pelo melhor. Cem anos mais tarde, Eunice Muñoz, integrando a Companhia Rey Colaço-Robles Monteiro,
e representando ao lado dos actores mais importantes da época em Portugal, interpretaria o papel de Maria, a rapariga nau-
fragada em culpa e vergonha alheias
DR
30. 58 59
O teatro marcaria também forte e continuada presen-
ça na actividade da Incrível Almadense, estreando-se em
1903 com o Grupo Dramático Almadense, que conhece-
ria incontáveis formações sucessoras, e outras tantas dife-
rentes designações, da Arcádia Incrível Almadense (1906)
ao Teatro Amador da Incrível (o famoso TAI, fundado em
1976 e que mais tarde, no início dos anos de 1980, seria
dirigido por Joaquim Benite, tendo por ensaiadores José
Martins, José Mora Ramos e José Peixoto), passando pelo
grupo Amigos da Incrível (1936), pelo Grupo Cénico «Os
Incríveis» (1940, com posteriores e sucessivas diferentes
composições e ensaiadores), pelo Grupo Cénico Infantil
da Incrível (1944), pelo Grupo de Opereta e Revista «Os
Incríveis» (1946) ou, ainda, pelo Grupo de Variedades da
Incrível (1950).
1944. A luta de classes no teatro da SFIA, pelo
Grupo Dramático «Os Incríveis»
2 de Fevereiro de 1957.
João Villaret visita a In-
crível Almadense, pela es-
treia de Esta Noite Choveu
Prata, de Pedro Bloch
DR
DR
11 de Maio de 1958.
Inauguração do Salão
de Festas da Incrível
Almadense
1959: Acerta o Passo
DR
DR
DR
31. 60 61
Os anos de ouro do teatro na Incrível
O primeiro grupo cénico da Incrível de que há memória foi baptizado como o Grupo Dramático Alma-
dense. Não deixa de ser curioso que o seu nome possuísse uma abrangência que ultrapassava a própria
colectividade e que seja o primeiro que se conhece devidamente organizado da então vila. A sua forma-
ção ficou a dever-se a João Carlos Carvalho Pessoa, encenador da peça Atribulações dum Estudante,
que estreou no palco do Salão da Incrível Almadense.
O período áureo do teatro na Incrível iniciou-se após o final da Segunda Guerra Mundial e prolongou-se
até ao final dos anos de 1960.
De 1945 até ao final dos anos de 1960 foram encenadas em média três peças por ano, o que só por si
ilustra a dinâmica que então existia nesse memorável período de mais de duas décadas – sem contabili-
zar as reposições de vários sucessos, o que acontecia com frequência nas épocas festivas do Carnaval e
Natal.
O primeiro centenário da Incrível, em Outubro de 1948, além de chamar gente nova à Colectividade,
como foi o caso de Rufino dos Santos – um encenador teatral que trouxe para os palcos almadenses a re-
vista e a opereta, que se juntaram com sucesso ao tradicional teatro declamado –, foi um grande incentivo
para se fazerem coisas mais ambiciosas.
Passou a ser comum o público esgotar a sala de espectáculos da «Sociedade Velha» e a mesma peça ser
exibida mais que uma vez. O primeiro grande êxito desta nova era teatral foi a revista Cabaz de Frutas,
que pisou os palcos (da Incrível e de outras colectividades, na Margem Sul e em Lisboa) por 32 vezes nos
anos de 1946 e 1947, algo completamente inédito na época.
Se Rufino dos Santos trouxe para a Incrível a música e a graça, com várias operetas e revistas, Fernan-
do Gil, grande apaixonado do teatro declamado,
não baixou os braços e encenou mais de dezena
e meia de peças até final dos anos de 1960 (com
várias reposições). Em 1967, Celestino da Silva
levou Tchekhov (O Urso) para a Incrível.
Luís Alves Milheiro,
Sociedade Filarmónica Incrível Almadense
Revista Cabaz de Frutas
DR
1966: O Pássaro de Asas Cortadas,
de Luiz Francisco Rebello, pelo
Grupo Cénico «Os Incríveis» es-
treada a 5 de Novembro no Salão
de Festas da Incrível Almadense
1967: O Urso, de Tchekhov, com
encenação de Celestino Silva, su-
biu ao palco do Salão de Festas a
24 de Outubro
DRDR
32. 62 63
Os desprotegidos da sorte
Malgrado as sucessivas conquistas dos operários nos sé-
culos xix e xx, um adágio do século xviii prosseguiu ins-
crevendo de verdade indiscutível uma realidade social que
tem sobrevivido à democracia: «Portilha de Lisboa com Al-
mada:/ Uma leva tudo, outra nada.» Mas a que nada leva
não se fica. Tem sido assim desde o século xix, quando os
migrantes que caminharam em direcção às indústrias lito-
rais pegaram no seu destino para o transformar em coisa
melhor – levando por diante lutas políticas que vieram a dar
origem à criação de sindicatos e associações de operários
cujas dinâmicas reivindicativas, profundamente transforma-
doras da correlação de forças laborais, passaram pelas colec-
tividades e teatros.
Foi também assim quando, em Julho de 1906, uma as-
sembleia geral da classe corticeira do Concelho teve lugar
na Incrível Almadense. Ou quando, em Setembro desse ano,
uma assembleia magna de corticeiros grevistas foi convoca-
da para a Academia Almadense. Ou ainda quando, uns dias
mais tarde, uma reunião operária aconteceu no Teatro Gar-
rett, da SFUAP – o mesmo teatro onde vários anos depois
das greves operárias dos corticeiros e moageiros ocorridas
em 1911 e 1912, seria aprovada, a 25 de Abril de 1919, a mo-
ção de proclamação de uma greve geral corticeira em todo
o País.
É nesse quadro social e político que surgem e se desmul-
tiplicam associações de base solidária com forte cunho pro-
teccionista – cujas valências iam da prestação de primeiros
socorros médicos à venda cooperativa de bens essenciais,
passando pelas actividades de cultura e recreio (antiga palavra
para lazer), em que desde logo protagonizaram os primei-
ros grupos musicais (bandas filarmónicas, tunas e charan-
gas, grandemente integradas por analfabetos, muito embora
pudessem sem dificuldade decifrar a notação das pautas de
música) e os grupos cénicos – em que pontuam, brilhando
entre os primeiros, o Cénico Amador da SFUAP (1891), o
Grupo Amador da União e Capricho do Monte da Caparica
(1892), o Dramático Almadense da Incrível (1903, que em
1906 passará a chamar-se Grupo Arcádia Dramática Incrível
Almadense, em 1910 Nova Arcádia Almadense, e em 1916
Grupo Dramático «Os Incríveis») ou ainda o Grupo Dra-
mático Instrução e Recreio de Almada (1919, integrado por
elementos associados da Academia de Instrução e Recreio
Familiar Almadense).
Se a maior parte das associações de solidariedade e acção
social se fixou nas zonas rurais do Concelho, as associações
de instrução e recreio assentaram praça nos maiores aglo-
merados urbanos.
Uma parte não negligenciável da integração dessas tantas
pessoas fez-se através do teatro – lugar de fraternidade e con-
fluência de gentes, espécie de grande albergue onde cabem
todos e mais alguns, por ser o teatro uma arte do colectivo
e de confluência de vários saberes, ofícios e conhecimentos
humanos. Alguns desses migrantes transformam-se em en-
saiadores, muitos mais em actores. As pessoas cruzam-se no
teatro promovido pelas colectividades que começam a ser
criadas, ali se conhecem, convivem e se casam umas com as
outras. Falamos pois, e antes de mais, de um teatro que de-
corre de uma história social, que prosseguirá determinan-
do muito do que aconteceu ao longo do século xx no que ao
teatro concerne – dos assuntos levados à cena, ao engenho
e à arte, por vezes aguçados pelas dificuldades, que muitas
dessas representações revelavam.
Espelhando o curso e a causa das coisas, os primeiros gru-
pos de teatro de Almada transportam nas suas designações
o abandono, as carências materiais e as grandes lutas ope-
rárias – bem como a consciência de classe que as precedia
e determinava. É o caso do Grupo Dramático Os Desprote-
gidos, da Cova da Piedade (mais tarde, a partir de 1933, re-
nomeados Os Desprotegidos da Sorte, no que constitui uma
curiosa actualização que terá acompanhado o advento do
Estado Novo), integrado por operários carvoeiros, serra-
lheiros, corticeiros, moageiros, e cujo primeiro ensaiador
foi José Joaquim Correia, comerciante de vinhos na Piedade
e mais tarde proprietário de uma fábrica de cortiça.
Para além da integração, do recreio e da instrução dos as-
sociados em sentido estrito, e dos contactos intergeracionais
que proporcionavam, essas actividades de carácter artístico
vieram a ser decisivas para o contacto das gentes de Almada
com outras gentes mais distantes, proporcionado pela deslo-
cação dos artistas almadenses a outros pontos do País, num
intercâmbio que o século xx veria florescer. A actividade ar-
tística propiciava a viagem, a abertura ao Mundo, o contacto
com o Outro. O teatro fazia-se com todos e para todos, in-
cluídos os de outros lugares, por vezes distantes, e de outros
costumes – característica constitutiva do teatro não burguês.
Nos primeiros anos do século xx, será também através do
teatro que anarquistas e socialistas procurarão arrancar os
homens ao adormecimento das tabernas e do jogo, intelec-
tualizando os operários, expondo-os a dramaturgias que en-
cenavam as suas próprias vidas, psicodramatizando reali-
dades sociais que comummente escapavam à consciência de
quem estava imerso nelas. Assim, o teatro toma uma parte
considerável do lugar anteriormente ocupado pela músi-
ca, que já não chegava para sossegar os espíritos de todos.
Em Outubro de 1914, no II Congresso Socialista da Região
Sul, um documento de propaganda anunciava o teatro como
instrumento de inscrição política e divulgação de um reper-
tório dramatúrgico socialista.
Porém, nem só a designação dos primeiros grupos de
teatro transporta a história política e social dos tempos
de transformação em que estiveram em actividade, reve-
lando a emergência de uma cultura operária de que o por
vezes chamado «teatro de combate» fazia parte, enquanto
instrumento de doutrinação que se opunha ao teatro bur-
guês. Os próprios títulos das peças de teatro levadas à cena
são também eles um espelho dessas pelejas e anseios. É nesse
contexto que sobem aos palcos de Almada as peças Gaspar,
o Serralheiro – drama em quatro actos (de António Pedro
Baptista Machado, datada de 1877, tanto quanto se sabe re-
presentada pela primeira vez em 1890 pelo Grupo Os Des-
protegidos, na inauguração do Teatro Garrett, e tendo sido
reposta várias vezes até 1895), Justiça (1902) ou Cenas de Mi-
séria (1919, de Henrique de Macedo Júnior, pelo grupo «Os
Incríveis»), todas levadas à cena no Teatro da SFUAP (criada
em 1889, na sequência evolutiva de uma colectividade ante-
riormente designada por Sociedade Musical Caramujense),
cujo primeiro grupo cénico havia sido constituído em 1891.
Velhos programas e registos de imprensa guardam nota
da representação em Almada de peças de teatro cujas ra-
zões políticas ficam patentes nos seus títulos, sendo comum
a omissão de referência à autoria nos cartazes de publici-
tação das representações: Escravos e Senhores (1906, pelo
Grupo Dramático do Clube Recreativo José Avelino), e, em
1910, pelo Grupo Nova Arcádia Almadense, sucessor do
Grupo Arcádia Dramática Incrível Almadense), O Fidalgo
Operário (1910, pelo Grupo da Incrível Almadense, a 16 de
33. 64 65
Janeiro desse ano), A Greve (drama em três actos de Porfírio
A. Santos, representado em 1922 pelo Grupo Dramático Ins-
trução e Recreio de Almada, no Teatro Garrett, da SFUAP,
num espectáculo dedicado à classe operária promovido pela
Sociedade União Pragalense), ou ainda A Morte de Marat
(1922, no Teatro Garrett).
Nos jornais, os grupos de amadores são por vezes «lin-
chados», por «críticos» que, muito embora não assinando as
suas sentenças, se outorgam direitos discursivos de conside-
rável violência, apesar de aplaudirem os ideais e a natureza
democratizadora das peças de intervenção política que ani-
mavam os populares que faziam esse teatro. Assim sucedeu
com a peça A Voz do Povo, levada à cena em Novembro de
1910 no Teatro da Academia, pelo Grupo José Guedes.
Por vezes, os espectáculos teatrais são promovidos com
fins solidários, visando a angariação de fundos destinados a
apoiar operários despedidos, adoecidos, ou as suas viúvas e
filhos deixados em dificuldades. Fenómeno que emana por-
tanto de outro mais premente – a imperativa necessidade de
sobrevivência das gentes trabalhadoras –, o teatro emerge
como parede mestra da actividade recreativa mas também
solidária das colectividades, criadas não apenas para favore-
cer condições de integração e mobilidade social (proporcio-
nadas também pelas aprendizagens artísticas), como para
defender os interesses dos deserdados da vida esquecidos
pelo Estado. O teatro participa activamente nessas redes de
solidariedade, desempenhando um papel fundamental nas
estratégias de sobrevivência económica das comunidades
operárias de Almada.
1910. Recorte de imprensa sobre a estreia de A Voz
do Povo («peça de intuitos democráticos») no então
chamado «theatrinho» da Academia Almadense
1933. As actrizes da peça Rosa do Adro pelo Grupo Cénico da Academia. Da esquer-
da para a direita: Sílvia de Jesus Soares, Suzete Alaiz (Rosa) e Dália Alaiz. Publicado
em 1870, o romance A Rosa do Adro, de Manuel Maria Rodrigues, teve a sua primeira
adaptaçãoparateatroem1899.Jánoséculoxx,ARosadoAdroconheceuduasversões
para cinema: em 1919 e em 1938 (a última por Chianca de Garcia, com Maria Lalande)
É nesse contexto que vemos surgir alguns novos líderes e
representantes locais, nas pessoas dos fundadores das primei-
rascolectividades.Assim,começamaquelesasersolicitados
parapadrinhosdebaptismodosfilhosdosassociados,criando
laços de afecto e honra entre os compadres – elos humanos
para a vida. Mais tarde, já sob a República, os filhos daqueles
vão ocupar lugares de relevo na vida local, vão ser autarcas,
decisores políticos, representantes eleitos pelo povo.
A República dará um impulso decisivo à expansão da acti-
vidade associativa, pela inscrição do direito de associação na
Constituição de 1911. Compostos por diferentes actuações,
os programas dos espectáculos promovidos pelas colectivi-
dades de cultura e recreio integrarão o teatro, a música e a
poesia, terminando muitas vezes com bailes, cuja música era
executada pelas filarmónicas e outros agrupamentos musi-
cais – distinguindo-se do que sucedia nos palcos burgueses,
onde havendo teatro não havia música, o inverso sendo tam-
bém verdadeiro.
No dealbar do século xx, Almada concentrava já mais de
uma vintena de colectividades, a maioria fundada por comer-
ciantes e operários locais.
Depois do golpe de Estado nacionalista que pôs termo à
Primeira República e instaurou uma ditadura militar, Almada
passava a pertencer, por decreto, ao novo Distrito de Setúbal.
A organização administrativa fascista do território empurra-
va Almada para fora dos âmbitos do centro do poder. Mui-
tos seriam os que contestariam a decisão, por a considera-
rem não apenas injusta como absurda, atendendo à evidente
proximidade entre a capital e Almada, que teria justificado
diferente ordenamento das parcelas territoriais, integrando
Almada no distrito de Lisboa.
A repressão ao teatro
Criadaem1929,aInspecção-GeraldosEspectáculos,orga-
nismo sucessor da Inspecção-Geral dos Teatros Nacionais
(cuja criação Garrett havia proposto e de que havia sido o
primeiro Inspector-Geral, nos já remotos dias de 1836), des-
de 1927 dependente do Ministério do Interior (vinda da tu-
tela do Ministério da Instrução Pública, decisão claramente
política, que favorecia o policiamento pelo Estado emergi-
do da ditadura militar, em cujos diplomas legais se instituiu
com todas as letras uma censura à qual competia «fiscalizar
e reprimir»), seria integrada em 1944 no Secretariado Na-
cional da Informação, Cultura Popular e Turismo – o SNI,
criado nesse mesmo ano.
DR