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A
CIDADE
DO
TEATRO
A CIDADE DO TEATRO
A CIDADE DO TEATRO
António Vitorino (AV)
Isabel Mões (IM)
Nuno Bernardo
(coord.) Sarah Adamopoulos (SA)
Vítor Cid (fotografia)
Xico Braga (XB)
Ângela Luzia, Luís Miranda, João Lima e Rui Silvares (ilustrações)
[edição comemorativa pelos 20 anos da MOSTRA DE TEATRO DE ALMADA | 1996-2016]
7
A CIDADE DO TEATRO
[edição comemorativa pelos 20 anos da MOSTRA DE TEATRO DE ALMADA | 1996-2016]
AUTORES
António Vitorino, Isabel Mões, Nuno Bernardo, Sarah Adamopoulos, Vítor Cid, Xico Braga
COORDENAÇÃO E DIRECÇÃO EDITORIAL
Sarah Adamopoulos
CONSULTOR
Nuno Bernardo
DESIGN E PAGINAÇÃO
Franziska Zabel
TRATAMENTO DIGITAL DE IMAGENS
Karas
CAPA
Franziska Zabel sobre ilustrações de Rui Silvares
REVISÃO
António Costa Brás
GESTÃO DE PROJECTO
Karas e Sarah Adamopoulos
IMPRESSÃO E ACABAMENTO
Jorge Fernandes, Lda. Artes Gráficas
EDIÇÃO
Câmara Municipal de Almada e Ninho de Víboras – Associação Cultural
DIREITOS RESERVADOS ®
Ângela Luzia, António Vitorino, Isabel Mões, João Lima, Luís Miranda, Nuno Bernardo, Rui
Silvares, Sarah Adamopoulos, Vítor Cid, Xico Braga e autores cujos créditos fotográficos se
inscrevem no final da obra.
ISBN 978-989-8668-12-7
DEPÓSITO LEGAL N.º
1.ª EDIÇÃO, Almada, Novembro de 2016
Mila Xavier, 8 de Fevereiro de 2008.
Praça São João Baptista. Animação
circense de abertura oficial da Mos-
tra de Teatro de Almada
DR
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De 1996 a 2016. As imagens de capa dos programas da Mostra de Teatro de Almada
© Luís Miranda
Índice
o mágico encontro entre o teatro e a cidade
Viriato Soromenho-Marques
ELogio do actor
Sarah Adamopoulos
UMA MARGEM SINGULAR
Nuno Bernardo
	
ALMADA – A CIDADE DO TEATRO
Sarah Adamopoulos
	
1. PRIMÓRDIOS							
A estreia em Almada do Auto da Índia					
Brilhante carácter de farsa (Jean-Pierre Fouque)		
Frei Luís de Sousa: Almada como cenário da tragédia 			
2. ALMADA: PALCO DE UMA HISTÓRIA POLÍTICA E SOCIAL		
A Incrível e a Academia						
Os anos de ouro do teatro na Incrível (Luís Alves Milheiro) 		
Os desprotegidos da sorte						
A repressão ao teatro							
A oposição ao regime nas colectividades					
As colectividades como palcos do povo (Domingos Torgal)	
O teatro na escola							
Crescer integralmente com o teatro (António Matos)		
A linguagem teatral (Helena Peixinho)					
Pedagogia pelo teatro (Ângela Mota)					
O GITT								
O espírito da Mostra (Vítor Azevedo)				
Os novos combates do teatro						
Joaquim Benite							
Os «soldados da cultura» (António Olaio)				
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3. RUPTURAS E EXPERIMENTAÇÃO					
Almada – cidade laboratório das artes					
Ultrapassar o teatro: o metateatro ou teatro pós-dramático em Almada
Sem Nome na Casa Amarela (John Romão)	
Canibalismo Cósmico							
O Festival X (Rui Silvares)
Almada como epicentro criativo (João Garcia Miguel)
A movida almadense nos anos de 1990					
Objectos «híbridos» na Mostra (Cláudia Dias)				
Criadores associados							
As «capelinhas» da cultura (Karas)					
A Intermédia – ou teatro-vídeo						
Ubiquidade do intérprete: entre o palco e a tela (Afonso Guerreiro)		
	
4. A MOSTRA COMO PALCO DA DIVERSIDADE					
A Mostra: um caldo de cultura teatral (Joaquim Estêvão Judas)		
Um lugar à mesa para todos (Teresa Pereira)
A nossa Mostra (Maria João Garcia)
A palavra «partilha» (António Costa Brás)				
Fraternidade teatral							
A Mostra como espelho do ideal de fraternidade de todo o teatro (Rui Cerveira)
Os intercâmbios da Mostra (Nuno Nascimento)				
Todos
Um teatro vivo (Fernando Jorge Lopes)				
Profissionais e amadores						
Ser-se o pão que se come (Rodrigo Francisco)				
O papel da inscrição mediática						
Quando a crítica vinha ver o teatro da Mostra (Sofia Oliveira)		
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5. OUTROS CAMINHOS							
O palco: a prova de vida do texto teatral (Fernando Rebelo)			
O texto novo								
Na outra margem do princípio da realidade (António Cabrita)		
Rir e chorar como irmandade (Mário Palma Jordão)			
Os debates com o público: uma maiêutica amorosa			
Construir em conjunto novos territórios de utopia (Alexandre Pieroni Calado)
Incluir pelo teatro							
A formação teatral dos excluídos (Sofia Raposo)				
Almada como escola de público-actor: a formação teatral da população 	
A Mostra como palco, plateia e motor criativo (Cláudia Negrão)		
Sociografia da Mostra							
Um contributo para o estudo do teatro no Concelho (Jefferson Oliveira)	
OS GRUPOS
A								
A Anestesia
A Lente – Teatro de Aumentar
A Menina dos Meus Olhos
Actos Urbanos
Alpha Teatro
Arena de Feras
Armadilha
Artes e Engenhos
As Raparigas de... Três Pontinhos
B
B.O.T.A. – Brigada Organizada de Teatro Actual
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C
Cena Múltipla
Colectivo SOPA Produções
Companhia das Calendas
Companhia de Teatro de Almada
Cortina de Fogo – Teatro Urbano
Crème de la Crème
G
GITT – Grupo de Iniciação Teatral da Trafaria
Grupo Cénico da Incrível Almadense
Grupo de Teatro Amador do Beira Mar
Grupo de Teatro da Academia Almadense
Grupo de Teatro da Associação Cultural Manuel da Fonseca
Grupo de Teatro do Clube Recreativo e Instrução Sobredense
Grupo de Teatro Musical da Academia Almadense
M
Marina Nabais Dança
Murmuriu
N
Ninho de Víboras
Novo Núcleo Teatro (NNT) da FCT
Núcleo de Marionetas
O
O Grito
O Grupo
OLHO
OTA – Oficina de Teatro de Almada
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P
Piajio
Produções Acidentais
Produções Priapismo
T
Teatro ABC.PI
Teatro a Todos
Teatro da Costa
Teatro de Areia
Teatro de Papel
Teatro do Sopro
Teatro Extremo
Teatro na Gandaia
Teatro Rabo-de-Palha
Teatro&Teatro
Tinta
U
Útero
OS AUTORES	
OS ILUSTRADORES							
AGRADECIMENTOS PARTICULARES					
BIBLIOGRAFIA DE APOIO
CRÉDITOS FOTOGRÁFICOS						
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Na matriz espiritual do Ocidente, o Teatro ocupa, junta-
mente com a Filosofia, a posição de um dos pilares centrais
do lado luminoso do repertório cultural europeu. Seja como
tragédia, ou como comédia, o teatro constituiu para o mun-
do helénico uma espécie de experimentação física dos limi-
tes da condição humana. Da sua disputa entre a liberdade e
o destino. Aristóteles mostrou na Poética como a represen-
tação trágica é inseparável da grandeza da linguagem e do
pensamento como interrogação do sentido da vida. O teatro
foi para a democracia antiga um exercício complementar da
crítica filosófica e da participação cívica. No teatro conden-
saram-se os valores que faziam os gregos, muito embora po-
liticamente pulverizados em múltiplas cidades-Estado, senti-
rem-se unidos no mesmo cadinho cultural. No palco teatral
a paideia transformava-se numa realidade viva. Os valores,
os mitos, os heróis, as esperanças e os pesadelos matriciais da
Europa transformavam-se em corpo e gesto visíveis.
Nas suas raízes, o horizonte comunitário do teatro coin-
cidiu com as muralhas da cidade. Esta obra que agora se ofe-
rece ao leitor, desenhada no âmbito da comemoração dos 20
Anos da Mostra de Teatro de Almada (1996-2016), revela
bem como essa marca urbana do teatro se mantém intacta
até hoje. No duplo sentido em que o teatro se faz na cida-
de, mas a alma desta deixa-se afectar profundamente pela
experiência estética e comunitária implicada no fenómeno
teatral.
Há muitos anos que me conto entre aqueles que quando
se trata de procurar uma oferta teatral pensam em Almada.
O magnífico livro que o leitor tem entre mãos transforma
esta impressão subjectiva, certamente partilhada por mui-
tos milhares de amantes das artes dramáticas, numa longa e
profunda viagem às raízes históricas e culturais não apenas
de uma cidade, mas do próprio País. Os autores realizam
com este livro uma proeza em várias dimensões. O texto
Viriato Soromenho-Marques
O MÁGICO ENCONTRO ENTRE
O TEATRO E A CIDADE
18
reflecte a diversidade dos pontos de vista dos seus autores,
mas também a unidade de propósito deste projecto. De Gil
Vicente a Joaquim Benite, passando por Almeida Garrett, e
muitas outras dezenas de criadores individuais, e associações
culturais, o teatro penetrou no espírito profundo da socieda-
de almadense, não apenas no plano artístico e literário, mas
também no perfil da cultura cívica e democrática da sua ci-
dadania.
Esta obra, profusamente ilustrada e documentada, com-
bina pelo menos três exercícios complementares: um enor-
me e conseguido esforço heurístico, de resgate material de
uma memória que, de outra forma, poderia perder-se; uma
compreensão crítica e abrangente dos conceitos, instituições,
autores, actores, numa palavra, de todos aqueles que inte-
gram a constelação do universo teatral, no tempo e no espa-
* Professor Catedrático de Filosofia na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Membro da Academia das Ciências de Lisboa
©LuísMiranda
ço de Almada; um convite educativo e formativo para que
a memória e a sua leitura possam inspirar novos criadores
na invenção de outros projectos futuros, enriquecedores
e inclusivos, para serem ensaiados nos diferentes palcos da
vida.
Os autores desta obra merecem a gratidão e o aplauso dos
leitores. Com trabalho árduo e enorme seriedade, honram a
verdade mais profunda do teatro, que é a sua revelação do
segredo da condição humana, onde força e fragilidades se
combinam misteriosamente. No mesmo gesto, este livro re-
vela-nos que os valores universais não pairam nas nuvens.
Eles habitam no coração das mulheres e dos homens con-
cretos, respirando a cor e os perfumes dos lugares concretos.
O mágico encontro entre a arte dramática e a cidade de Al-
mada é a maravilha que este livro exalta e dignifica.
21
© João Lima
Um dia – contaram-me durante uma edição do Festival de Almada – numa
plateia de teatro improvisada num hospital psiquiátrico, no final de uma repre-
sentação teatral, alguém do público levantou-se para tomar a palavra e disse que
no final de contas um actor é como um fósforo: uma extremidade vermelha que
se incendeia e se transforma numa pequena chama, que se consome no tempo
que dura o espectáculo (ou seja, no pedaço de vida que vai do começo ao fim da
representação teatral).
Esse actor, esse fósforo que se acende e arde diante de nós, representa o cora-
ção do teatro – nesse momento confundido com o coração do actor. Um incên-
dio que logo o fio cortante da quotidianidade apaga, e depois vamos para casa.
Sucede, por vezes, que esse incêndio prossegue dentro de nós, e fica ali a arder
para sempre.
Este livro é dedicado a todos os artistas, amadores uns e profissionais outros,
que sobem ao palco para fazer de nós ali sentados a vermo-nos no espelho do
teatro: o espaço vazio (como a vida quando nascemos) que eles (com palavras ou
sem palavras), depois de terem repetido (ensaiado, portanto) o que têm para nos
dizer, enchem de significado – representando por nós papéis de que nem sempre
temos consciência e fazendo do teatro um incêndio para onde convergem todas
as belas e feias artes: uma arte total.
Sarah Adamopoulos
Elogio do actor
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© Ângela Luzia
UMA MARGEM SINGULAR
As artes e nomeadamente as artes performativas, sendo a expressão e a gramática das emoções,
ocuparam um papel relevante no processo civilizatório e de formação da personalidade e dos grupos
humanos, sendo parte integrante da condição humana. No desenvolvimento do bebé e da criança,
as emoções são fundamentais para o seu crescimento saudável e equilibrado, tornando-as capazes
de afirmar a sua personalidade em interacção com os outros. Forma de conhecimento específica
do Mundo e da Vida, as artes constituem um elemento estruturante do viver individual e colectivo,
indispensável ao equilíbrio emocional, ao conhecimento e assumpção do seu próprio corpo – corpo
esse que inclui a mente –, bem como ao relacionamento criativo e dialogante com a comunidade e
com os outros. Tendo em consideração esta perspectiva, não é compreensível a maneira como os po-
deres, e particularmente o poder central, se têm relacionado com as artes e com a cultura entendida
em sentido estrito.
Com efeito, a participação da cultura nos orçamentos de Estado tem sido insignificante, tendo ade-
mais decrescido ao longo dos tempos. Particularmente gravosa foi a situação vivida nos quatro anos
decorridos entre 2011 e 2015, em que a parcela do Orçamento de Estado para a cultura chegou a estar
abaixo dos 0,2%. Esta desorçamentação implicou uma destruição do tecido cultural existente, com
a destruição dos próprios serviços, numa altura em que não apenas o Ministério da Cultura deixou
de existir, reduzindo-se a uma Secretaria de Estado, como também os serviços sofreram alterações
profundas nas que anteriormente eram as suas funções. Foi o caso também da Direcção-Geral das
Artes, que passou a ser uma entidade gestora de pseudoconcursos, revelando por intermédio destes
a criação de uma cortina pretensamente transparente, mascarando a decisão política e procurando
ilibar os governantes das responsabilidades que só a eles cabem.
Esse modo de fazer reflectiu-se em todo o panorama das artes e da cultura no País. Só os mais
resilientes persistiram e sobreviveram ao governo da troika. Actualmente, alguma esperança renasce
mas o Orçamento de Estado continua, no que respeita às artes e à cultura, francamente abaixo das
necessidades objectivas e da importância que aquelas têm no desenvolvimento pessoal e colectivo
das pessoas e da sociedade. Uma comunidade, um país, que não tenha acesso à cultura e à arte é uma
personalidade amputada, diminuída.
Nuno Bernardo
24 25
O centro e a periferia
No centro concentram-se os órgãos do poder. Não apenas os do poder político eleito, como também
os que representam o poder económico e financeiro, sendo todos esse poderes também patentes no
domínio das artes, facto que advém da relação que artistas e grupos desenvolvem com os diferentes
poderes, do reconhecimento social que vão tendo ao longo do tempo, das formas mais ou menos
consensuais que granjeiam junto das estruturas do poder que acabam por representar. Esses factores
determinam que um determinado grupo ou que uma certa personalidade artística tenha mais poder
que os outros, consequentemente recebendo maior financiamento e um melhor acolhimento por
parte da crítica tablóide – que é a que importa para a criação e acumulação de poder, com conse-
quências gravosas para os projectos emergentes, que ficam muitas vezes ignorados ou reduzidos a
recursos miseráveis que inibem totalmente a sua afirmação e desenvolvimento.
Esses factores determinam também, por outro lado, que as periferias sejam obnubiladas pela macro-
cefalia de que o País enferma.
Almada é uma periferia muito particular. É uma cidade fronteira a Lisboa, tendo sempre tido uma
relação comunicativa especialmente significativa com a capital. Contudo, essa relação entre Almada
e Lisboa tem, como tudo na vida, dois versos. Ou melhor, um verso e um reverso. Se por um lado a
possibilidade de comunicação e de mobilidade relativamente a Lisboa permite contactar com novi-
dades, com diferenças, com outras ideias, por outro lado o centro e as burocracias que o envolvem
evidenciam uma tendência de natureza habitualmente conservadora, avalizando o que é reconhecido
como algo que resulta: entenda-se, como algo que gera um determinado rendimento, ou mesmo
lucro, reflectindo-se inevitavelmente na distribuição dos recursos e na exclusão de muitos talentos
criativos.
De um modo geral, as coisas no centro tendem a ser mais conservadoras, estando mais sujeitas
aos pesos burocráticos. São também, por definição, mais indolentes. Ou seja, têm menos liberdade,
estando mais condicionadas pela própria burocracia e métodos de segurança (entenda-se de protec-
ção), e confinamento do poder – a que se acrescentam as razões que se prendem com a densidade de-
mográfica e outros factores sociológicos que favorecem esse imobilismo, e de que resulta necessaria-
mente uma certa estagnação. Nas periferias verifica-se um fenómeno diferente, que decorre do facto
de a periferia ser menos vigiada, estar menos sob os holofotes, ser menos burocratizada, ser menos
agressivamente competitiva. Daí poderem por vezes surgir nas periferias grandes focos de inovação.
Enquanto no centro se assiste sobretudo à replicação (salvaguardadas as honrosas excepções), na
periferia a inovação tem melhores condições para se afirmar, apesar de todas as dificuldades – e fá-lo
justamente como reacção à escassez de recursos, contra esse establishment permitido e avalizado
pelos poderes (pelo poder político central, pelo poder da comunicação social, pelo poder económi-
co-financeiro).
Ora, Almada apresenta-se como um caso singular. Para além da já referida proximidade com Lis-
boa, esta terra foi um dos primeiros centros operários do País e é uma cidade que, desde o advento
desse processo de industrialização, passou a ser multicultural, atraindo gente das várias regiões do
País. Gente com ideias diferentes, que foi convergindo para Almada, motivada pelas mesmas necessi-
dades de encontrar trabalho que lhes permitisse sair da miséria extrema em que viviam nos campos.
Nesse contexto, surgiu em Almada um forte movimento associativista. E é a partir desse associativis-
mo que as artes conhecem uma expressão até então inédita – sem esquecer os casos mais ou menos
pontuais de manifestações artísticas anteriores ao século xix. Foi todavia com o movimento operário
que emergiu, em certa medida de raiz, uma cultura específica. Esse movimento conheceu diferentes
fases de desenvolvimento, como mais adiante se verá neste livro.
Um dos momentos referenciais recentes situa-se nos anos de 1990, que trouxeram à luz do dia um
conjunto muito significativo de grupos de teatro – mas também uma escola profissional de música e
uma companhia de dança, num período em que as artes performativas tiveram em Almada um dos
seus mais expressivos momentos. O que foi particularmente visível no teatro e explica a concretiza-
ção, já na segunda metade dos anos 90, da Mostra de Teatro de Almada. Nessa altura, os técnicos da
Câmara Municipal de Almada registaram um forte movimento teatral que se dirigia à autarquia no
sentido de angariar o apoio de parceria da Câmara, e decidiram propor a realização de uma mostra
que juntasse todos esses grupos.
Essa ideia foi acarinhada pelo poder local que, na quase ausência do poder central, foi sempre o
grande impulsionador e apoiante – também no plano financeiro – desse movimento cultural. A ideia
foi também acarinhada pela então Presidente da Câmara Municipal de Almada, Maria Emília Neto
de Sousa, e, 20 anos passados, continua a contar com a afabilidade, o entusiasmo e o bom senso do
actual Presidente da Câmara, Joaquim Estêvão Judas.
26 27
A Mostra
A Mostra de Teatro de Almada começou em 1996 com 10 grupos e tem mantido, ao longo dos anos,
a assiduidade de cerca de uma vintena de estruturas de criação artística, sendo que no conjunto dos
20 anos se registou a participação de cerca de 50 grupos, perfazendo 313 espectáculos. Muito traba-
lho foi portanto desenvolvido, muita gente esteve assim envolvida na Mostra – centenas de criadores,
entre actores, encenadores, dramaturgos, técnicos, etc. A Mostra tem portanto sido um caso exem-
plar de bom trabalho e de organização. Foi, e é, um espaço aberto a todos, com lugar para todos, onde
todos se podem sentar e dizer o que querem, embora sempre na premissa (necessária) de alcançar
um consenso.
A Mostra foge à lógica dos concursos, que na maior parte dos casos serve para ocultar decisões que
têm de ser políticas e que só serão transparentes se forem efectivamente decisões políticas, concorde-
-se ou não com elas. A forma colegial e colectiva de negociação entre os grupos e a Câmara Muni-
cipal parece-me evidentemente enriquecedora, e isso tem-se notado, quer na qualidade de alguns
espectáculos quer na qualidade dos debates que em torno deles se fazem. Nas reuniões da Mostra
discute-se também o modo de estar e de ser, a vivência de cada grupo e de cada pessoa de forma
particular. Ao longo destes 20 anos, tem havido um crescimento muito interessante, uma maturidade
que não tem relação com a idade das pessoas mas com uma maturação colectiva.
A Mostra tem constituído assim uma efectiva mostra, uma montra de uma parte do teatro que se
faz em Almada. Trata-se de uma das quatro pernas da grande plataforma do teatro no Concelho –
sendo as restantes o Festival de Almada (o mais importante festival internacional de teatro do País e
uma substancial riqueza para o território, que tem contribuído para desagravar os desequilíbrios da
relação centro/periferia, levando às grandes salas de Lisboa espectáculos programados em Almada,
e trazendo também a Almada muita gente da outra margem do Tejo), o Sementes – Mostra Inter-
nacional de Artes para o Pequeno Público (o mais importante festival de teatro para a infância e
para a juventude no País, sendo também o mais antigo em actividade, que tem trazido a Almada e a
outros concelhos, de ambas as margens do Tejo, espectáculos a vários títulos notabilíssimos, e pro-
porcionado experiências muito enriquecedoras – ao pequeno público e aos pais, mas também aos
artistas) e o Inter-Escolas de Teatro (que junta todos os anos cerca de 30 grupos de teatro escolar,
dando às crianças e aos jovens em idade escolar a possibilidade de subir a um palco para representar
um papel ou tocar um instrumento musical, experiência que se contrapõe ao que costumeiramente
tem acontecido num país onde a maior parte dos jovens que concluiu o ensino obrigatório jamais
teve uma experiência dessa natureza).
A Mostra de Teatro de Almada, o quarto pé da referida plataforma, caracteriza-se sobretudo pela
diversidade, no que constitui um espelho da própria cidade. Almada caracteriza-se por essa diversi-
dade, sendo um território onde desde sempre se procura que haja um lugar para todos, e que cada
vizinho dialogue com o outro. Se há na Mostra espectáculos que denotam problemas de natureza
vária, há também outros que se elevam ao nível do sublime.
A Mostra é, por outro lado, um espaço onde a procura de novas linguagens tem um lugar, no que
de resto constitui um interessante retrato da intersecção que há muito se realiza em Almada entre
as diversas áreas artísticas que podem integrar a construção de um espectáculo: as artes plásticas, a
exemplo de o OLHO, projecto em que foram centrais; a dança e o movimento, designadamente com a
colaboração de bailarinos e coreógrafos, entre os quais Maria Franco, Cláudia Dias, Maria João Garcia,
Marina Nabais, Romeu Runa ou ainda Cristina Benedita, contabilizando-se mais de uma quinzena
de espectáculos contendo coreografias em nome próprio ou que se integraram nos espectáculos; a
música: mais de 70 espectáculos tiveram música original, composta por 46 autores, entre os quais
se contam António Vitorino d’Almeida, Jorge Palma, João Fernando, João Costa, Tiago Pereira ou
ainda João Miguel Fonseca; e ainda a escrita dramatúrgica, domínio em que a Mostra se tem absolu-
tamente distinguido, sendo que mais de uma terça parte das produções levadas à Mostra tiveram por
base materiais textuais novos e inéditos, entre textos de autor e criações colectivas. Fernando Rebelo,
António Cabrita, Alexandre Castanheira, Sarah Adamopoulos, Mário Palma Jordão e A. Branco são
alguns dos nomes a destacar, sem desprimor para os demais (cerca de uma centena). Um património
que valeria a pena publicar e divulgar.
A Mostra viu surgir em Almada novos espaços infra-estruturais (o Auditório Fernando Lopes-
-Graça, no Fórum Municipal Romeu Correia, e também o Teatro Municipal Joaquim Benite) e assistiu
28 29
à requalificação de outros equipamentos (o Cine-Teatro da Academia Almadense e o recém-reaberto
Teatro-Estúdio António Assunção, antigo Teatro Municipal de Almada). Houve também no contexto
da Mostra a utilização de espaços informais, designadamente de armazéns abandonados (a exemplo
do Espaço Ginjal ou da Lemauto), mas também teatro de rua ou em edifícios em ruína. A utilização do
espaço público pelos artistas – da rua, dos largos, das praças, dos velhos edifícios – é não apenas um
acto artístico e cultural mas também um acto de cidadania.
A Mostra tem tido um papel importante no plano da inclusão social, tornando patente que é pos-
sível juntar jovens – mas também seniores, que tiveram já participação nalgumas edições – em torno
de projectos novos, úteis e belos. As artes que se entrecruzam, intersectam e contaminam podem ter
grande relevância nos processos de inclusão social e a Mostra tem sido também palco de algumas expe-
riências interessantíssimas nessa matéria. É o caso do Alpha Teatro. Por essa razão também, a Mostra
tem um papel fundamental no desenvolvimento da comunidade em termos gerais – das pessoas, das
suas mentalidades e modos de se relacionarem entre si.
Ao longo dos 20 anos, houve alguns acontecimentos que merecem o meu destaque. Houve um es-
pectáculo de abertura muito interessante chamado A Festa. Coordenado pela Piajio, envolveu outros
grupos participantes na Mostra. A Piajio, associada ao grupo musical OqueStrada, liderou a primeira
tentativa de reabilitar o espaço do Cine-Teatro da Incrível Almadense e desenvolveu, enquanto durou,
um trabalho de grande diálogo com a comunidade envolvente – indo desencantar velhos artistas
de Almada, entre músicos, cantores, poetas – e de animação de rua (designadamente organizando
exposições nas montras das lojas) como não tinha jamais havido em Almada.
Uma outra iniciativa merece a minha referência: o convite endereçado a João Brites e a Ruy de Car-
valho para virem conversar connosco sobre as suas experiências teatrais.
Organizaram-se dois debates com os grupos que foram da mais fundamental importância na edi-
ção de 2005, reunindo todos os encenadores das peças apresentadas. Porque são importantes os deba-
tes? Porque a avaliação do que se faz é parte disso que se faz – sendo a avaliação do público manifesta-
mente insuficiente (por decorrer muitas vezes de processos gregários e de natureza paroquial, digamos
assim) e, inversamente, a da crítica e dos pares absolutamente necessária.
Ainda em 2005, publicou-se a Folha, que foi um belo pretexto para entrevistar todos os criadores
que nesse ano participaram, bem como para convidar pessoas de fora para escrever algumas críticas
e para vir até Almada conversar connosco sobre teatro. Essa publicação diária foi feita sem recur-
sos, por uma equipa amadora, mas teve uma importância muito significativa no plano do debate de
ideias. Através dela, reflectiu-se sobre o trabalho que se foi fazendo ao longo dessa edição da Mostra.
Acresce a isso o facto de ser esse um trabalho que fica, fixando a memória, mesmo se esses registos
têm a forma de policópias.
Seriam também necessários estudos, académicos ou outros, de natureza sociológica, antropológica,
historiográfica e também estética sobre estas matérias. Para além do mais, a sistematização de estudos
desse tipo, tendo por objecto de estudo as artes performativas em geral e o teatro em particular – ser-
vindo esses trabalhos, designadamente, como fundamental material de apoio à decisão política –, per-
mitiria atenuar o carácter de efemeridade das artes de que nos ocupamos aqui, constituindo um suporte
de preservação da memória colectiva.
Referir finalmente, ainda relativamente à edição da Mostra de 2005, a programação de um espec-
táculo dito «convidado», que trouxe a Almada uma companhia de Vila Franca de Xira e um espectá-
culo francamente inovador. A oportunidade de poder observar outras maneiras de fazer teatro é, do
meu ponto de vista, um ganho imenso. Talvez valesse a pena reeditar essa iniciativa, eventualmente
alargando-a a criações internacionais de teatro feito por amadores, por forma a dotar a Mostra de
uma componente nova, de acesso a outras linguagens e culturas estéticas, através de um espectáculo
convidado que fosse inserido na programação anual.
Prospectivar
As considerações seguintes resultam não só da reflexão pessoal, mas também de vários debates
colectivos, diálogos e até mesmo confrontos, ocorridos no âmbito dos processos preparatórios da
Mostra, durante a própria Mostra e em eventos específicos relacionados com a actividade dos grupos.
São portanto tão-só sugestões e muito especialmente uma maneira de levar a debate e suscitar um
diálogo que venham a dar-lhes forma, viabilidade e consequente capacidade decisória.
30 31
Um assunto recolhe unanimidade: as condições e os recursos actualmente existentes são franca-
mente parcos. A Mostra tem contado unicamente com a participação financeira da Câmara Municipal
de Almada a qual, embora sendo louvável, precisaria de ser ampliada, por forma a servir o desenvol-
vimento da própria Mostra. Essa verba tem-se mantido mais ou menos inalterada ao longo dos anos,
e tem criado uma certa estagnação. Quer isto dizer que muitos talentos que apareceram na Mostra
desapareceram. Se alguns emigraram e tiveram êxito – indo ao centro em busca de reconhecimento –,
encetando carreiras (por vezes internacionais) que os confirmaram como talentos e permitiram que
crescessem (caso de João Garcia Miguel, Cláudia Dias, Miguel Moreira, John Romão), muitos mais fica-
ram pelo caminho. Nesse sentido, seria muito importante que houvesse um significativo acréscimo
do apoio, que permitisse o desenvolvimento de quem se afirma com talento e com vontade de avançar
para um estádio profissional.
A Mostra, pela metodologia da sua criação e desenvolvimento, como referido anteriormente,
constitui já, virtualmente, uma associação de associações. O seu objectivo é a Mostra. Seria todavia
muito importante que esse modelo pudesse desenvolver-se e autonomizar-se. O que permitiria um
relacionamento mais eficaz com a autarquia, bem como com outros potenciais financiadores e patro-
cinadores, designadamente públicos, mas também privados, nisso envolvendo as grandes empresas
que operam no território de Almada, que têm e deveriam assumir especiais responsabilidades sociais.
Esse desenvolvimento poderia reunir recursos complementares à verba da autarquia almadense e que
fariam toda a diferença.
Por outro lado, a Mostra teria a ganhar com a formalização de uma estrutura emanada dos gru-
pos que permitisse a realização de um trabalho autónomo e com melhor carácter de operatividade.
Essa estrutura poderia ter a forma de um centro de produção, comunicação e agenciamento e que,
mantendo o necessário objectivo de alcançar consensos, teria a função primordial de representar o
conjunto de associações, por forma a poder dialogar com a Câmara de forma mais ágil. Talvez essa
estrutura – que teria necessariamente de ter funções também de produção, postas ao serviço do con-
junto de grupos, e designadamente acabando com o desperdício que constitui a apresentação única
na Mostra de espectáculos que poderiam, e deveriam, conhecer carreiras de digressão local e até
mesmo nacional – pudesse ajudar a pôr um ponto final na representação social que é feita da Câmara
e dos seus técnicos enquanto malvados de serviço. Bem sei que a afirmação de uma personalidade
colectiva é um desiderato sempre complexo, pois já dizia a minha avó que cada um é como cada qual
e que cada cabeça sua sentença.
Apesar da inevitável necessidade dos consensos, seria desejável que também as dissidências pudes-
sem ter o seu lugar na Mostra do futuro, pelo carácter de inovação e de novas perspectivas que nor-
malmente transportam. As dissidências precisariam, assim, de ser cabalmente consideradas e levadas
em conta nos processos de decisão. Faço notar que muitos grupos que participaram e participam
na Mostra surgiram de dissidências, fizeram os seus caminhos, e agora estão em diálogo, por vezes
em confronto, com aqueles de que foram dissidentes. É preciso perceber que os desentendimen-
tos podem ter efeitos positivos muito significativos, designadamente na mudança de mentalidades.
A mentalidade paroquial do cada um por si e que vença o mais forte não é um caminho construtivo.
A Mostra tem também uma palavra a dizer no plano do desenvolvimento material para a região.
Esse fazer local e pensar global – que foi o lema do movimento ecologista e levou a ecologia para a
agenda política – pode ser um programa interessante para o movimento cultural e artístico, levando
a que também ele possa ser inscrito na agenda política e até mesmo na agenda económica. Será ne-
cessário reforçar as relações de comunicação e de diálogo, com criação de alguns consensos (isto é, de
mínimos denominadores comuns que permitam fazer evoluir o diálogo), de modo a que os assuntos
relativos às artes e à cultura tenham no palco político o lugar relevante que efectivamente merecem.
Se o turismo tem sido prioridade nos programas de desenvolvimento económico, será preciso, creio,
cruzá-lo de forma orgânica e saudável com a actividade artística local que lhe é anterior.
Entendo o turismo como a arte de bem receber, porém, só pode receber bem quem está bem. Uma
zona deprimida e com constrangimentos fortes dificilmente poderá ter um desenvolvimento turís-
tico com capacidade de se projectar saudavelmente no futuro económico de uma região. Quando
muito, será constituída por uma ilhas envolvidas em arame farpado. Não creio que seja isso que se
queira para o nosso território. Tão-pouco o que está a acontecer actualmente em Lisboa – com a massi-
ficação brutal (sobretudo para a população local, que está em processo acelerado de depressão social)
da oferta turística, e subalternização quase transversal de todos os sectores económicos – constitui um
objectivo com interesse para as gerações futuras. O que coloca a questão das indústrias culturais e
do lazer.
32 33
Com efeito, quando as artes – mas também a saúde, o ensino, o lazer – se transformam em indús-
trias, que replicam à exaustão um sempiterno, enquanto dura, modelo lucrativo – as coisas tornam-
-se perversas. Trata-se, aliás, de um processo que, comprovadamente, não oferece qualquer acrésci-
mo de qualidade, nem oferece qualquer capital acrescido de bem-estar. A arte não deve participar
do que se pretende fazer dela: uma actividade distractiva. Fernando Lopes-Graça insurgia-se contra
a arte que queria ser «um adorno», algo que se tinha em vez de se ser. Esta é uma questão crucial
quando se pensa nas artes, pois elas têm que ver com o ser e não com o ter.
O sociólogo Jefferson Oliveira fez dois estudos relativos aos públicos da Mostra que constituem
uma significativa forma de avaliação do evento, muito embora esses estudos não tenham tido âmbi-
tos e processos mais aprofundados. Um dos dados que ressalta é a escassez de relevância da divul-
gação da Mostra na comunicação social, o que revela um problema no plano da comunicação do
evento. Para fazer crescer e renovar os públicos da Mostra, seria importante encetar quanto antes um
programa de trabalho em rede que interligasse de forma estreita e continuada os grupos de teatro, as
escolas e todos os agentes culturais do Concelho.
Apesar dos esforços da Câmara Municipal de Almada, no sentido de garantir a preservação dos
materiais de comunicação e divulgação produzidos ao longo das várias edições da Mostra, a prepara-
ção deste livro pôs a claro a necessidade urgentíssima de criação de um centro de documentação e in-
vestigação em artes performativas. Este centro justifica-se uma vez que no nosso concelho seria não
apenas uma forma de salvaguardar a memória, mas também uma forma de divulgá-la e disponibilizá-
-la aos investigadores. O que implica um trabalho necessariamente feito com recurso a plataformas
tecnológicas, assegurando a digitalização e indexação em bases de dados de todos esses materiais.
E já que refiro os recursos tecnológicos, não posso deixar de lembrar a que ponto seria importante
a criação de um centro de recursos, designadamente em luminotecnia, sonoplastia e imagem, que
seguramente daria uma outra dimensão a muitos espectáculos levados à Mostra.
Atendendo à dimensão (também histórica) que as artes (o teatro, a dança, a performance, a música,
mas também as artes plásticas e a dramaturgia) têm no Concelho, penso que seria de toda a utilidade
ponderar seriamente a criação de uma escola de artes, que juntasse num mesmo espaço, ou em vários
espaços próximos entre si, as várias especialidades artísticas, conectando as estruturas existentes, asse-
gurando programas consistentes de formação em cada uma delas e propiciando também as transversa-
lidades e as intersecções que a Mostra revela inevitavéis e crescentemente apetecidas pelos criadores.
Não se trata de todo de criar mais uma escola num concelho onde já existem a Escola de Dança
da Companhia de Dança de Almada, dois Conservatórios Regionais (Sobreda e Trafaria), um Curso
Profissional de Teatro na Escola Secundária Anselmo de Andrade e a Opção de Teatro na Escola Secun-
dária António Gedeão, escolas todas elas de grande qualidade pedagógica e artística.
Trata-se, antes, de procurar criar pontes e comunicações entre as várias formações existentes, tanto
as formais como as informais, as curriculares como as ocasionais, e colmatar lacunas. Criar um tra-
balho de rede e em rede, que reconheça a identidade, a história e os objectivos de cada instituição no
terreno, conte com a sua participação em todo o processo, da concepção à gestão, e lhes acrescente
valor no todo e nas partes intervenientes. Que ajude a construir projectos e estratégias aos vários
níveis e nas diversas áreas da produção artística – dos bebés e crianças aos seniores, da escrita para
teatro, cinema e televisão à performance e ao vídeo, passando pelas artes plásticas e, claro está, pelo
teatro, a dança e a música, que deverão constituir os seus três eixos estruturantes.
Tratar-se-ia de uma escola local mas cosmopolita, com um centro, conceptual e físico, mas em
diálogo com outros centros autónomos e descentralizados, que acolheria as experiências e os saberes
oriundos de outras paragens e difundiria novos conhecimentos, novas capacidades e ideias: uma
escola aberta, caracterizada por um agir comunicacional e dialogante, para uma sociedade aberta,
inclusiva, justa e multicultural, a que aspiramos. Uma escola assim poderia sem dificuldade, creio, afir-
mar-se como uma escola com relevância no plano nacional – e até mesmo internacional.
Para concluir, apenas assinalar que as boas práticas devem ser estimuladas e apoiadas, para que
possam crescer e maturar e vir a constituir exemplos para outros projectos e territórios. O poder local,
em boa medida, tem-no feito, se bem que por vezes lhe falte ousadia e capacidade de risco.
Quanto ao poder central era de todo desejável que procedesse de igual modo. A excepcionalidade
do que acontece em Almada e as potencialidades que apresenta deveriam ter um tratamento em con-
formidade.
35
ALMADA
– A CIDADE DO TEATRO
Sarah Adamopoulos
36 37
© Vítor Cid
Nas páginas anteriores, a plateia do Auditório Fernando Lopes-Graça (constituída por 232 cadeiras vermelhas), no Fórum Municipal Romeu
Correia – um projecto do arquitecto João Lucas, oficialmente inaugurado em Novembro de 1997.
Composto por três pisos e integrando também a Biblioteca Municipal Central de Almada, o Fórum Municipal Romeu Correia tem no exterior um
painel de azulejo (Mestre Andarilho, executado na Fábrica de Cerâmica Viúva Lamego) concebido por Rogério Ribeiro em homenagem à Peregrinação
de Fernão Mendes Pinto, e no interior uma tapeçaria também de Mestre Ribeiro (Amanhecer, executada na Manufactura de Tapeçarias de Portalegre),
criada expressamente para o lugar. O Fórum Municipal Romeu Correia tem linhas de luz e uma geometria contemporâneas que transformaram o rosto
da Praça da Liberdade. Aquando da inauguração da nova sala de espectáculos (que ocorreu aos 14 dias contados de Janeiro de 1998, dois dias antes
da abertura da 2.ª edição da Mostra de Teatro de Almada, realizando-se a totalidade dos espectáculos no Auditório Fernando Lopes-Graça), Jorge Lis-
topad consideraria numa sua crónica de imprensa que se estava perante «um momento de bom gosto, civilização e cultura», sugerindo algo sucedido
não em Portugal, mas num país onde «se sab[ia] medir a luz do dia, cuidar das visões arquitectónicas, gostar do bom material e do acabamento, instalar
uma biblioteca sem precisar do Ministério da Cultura que quisesse ensinar o cidadão a ler» e onde «espontaneamente não se fala[va] alto». Listopad,
um homem do teatro e de todas as artes, reparou ainda que «das janelas se enxerga[va] o espaço verde, a escultura moderna» e mais longe «as águas
do Tejo», regozijando-se o cronista (edição de 28 de Janeiro de 1998 do Jornal de Letras, Artes e Ideias) com «a bela sala de concerto ou de teatro» que
nesse momento se abriu à cidade. Pelo Auditório Fernando Lopes-Graça passariam muitos espectáculos da Mostra de Teatro de Almada ao longo dos
20 anos que este livro celebra
1. PRIMÓRDIOS
No começo de tudo quem mandava era Zeus. O mais
sortudo e valente dos filhos do Tempo (Cronos), que ten-
do conseguido escapar ao grande apetite do pai (famoso
comedor da própria descendência) tomou o seu destino em
mãos, Zeus veio a unir-se a Europa, uma ninfa que conhe-
ceu ali para os lados da Turquia certo dia em que ela estava
com umas amigas a apanhar florinhas junto à beira-mar.
Habituado a tomar a forma de quem ou do que fosse pre-
ciso (águia, cisne, fogo, para referir apenas três famosas in-
carnações a que esse primeiro grande actor de todos os
tempos se abalançou com inexcedível verosimilhança – pe-
lo menos assim consta, e não é de ontem), Zeus transfor-
mou-se num magnífico touro a cuja beleza pujante Europa
não resistiu, subindo para o dorso daquele para lhe pôr
à volta do pescoço umas grinaldas de flores acabadas de
colher, e tendo Zeus aproveitado para a raptar e levar para
outras paragens.
Zeus e Europa tiveram três filhos, entre os quais Minos,
que viria a tornar-se muito poderoso, reinando em Cnos-
sos – palácio-labiríntico onde jazem ainda hoje (na maior de
todas as ilhas da Grécia) remanescências de uma evoluída
civilização a que a voragem de bárbaros e outros cataclismos
puseram um fim. Entre esses vestígios, redescobertos em
Creta nos comecinhos do século xx, conta-se o trono do rei e
primeiro capitão de uma armada organizada, um primeiro e
sofisticado sistema de canalização de águas, e, tanto ou mais
importante, um primeiro teatro do Ocidente – anfiteatro
onde a representação de cosmogonias nubladas pela incer-
teza catapultou grande quantidade de entidades mitológicas
para a História, misturando-as com os primeiros heróis de
carne e osso. Sabemo-lo graças aos registos pictóricos, fixa-
dos em frescos, de muito do que por lá aconteceu, e entre
os quais protagonizam pequenos grupos de forcados-baila-
rinos (ancestrais dos actuais recortadores, muito populares
em Espanha, no Sul de França, e também no Ribatejo) que
faziam uma espécie de ginástica acrobática por cima dos
touros, talvez assegurando intróitos de chamamento para
as representações teatrais.
Por ali perto (do teatro), aprisionado no labirinto como
num inferno do destino, se assevera ter existido um ser de
fusão com cabeça de touro e corpo de homem – fruto da
paixão da mulher de Minos por um touro muito belo de pe-
lagem branca. As mesmas fontes nebulosas garantem tam-
bém que terá vivido por esses dias um rapaz imprudente
que tentou voar alto de mais com umas asas feitas de pe-
nas de gaivota e cera de mel de abelhas que o sol derreteu.
Nem tudo será nevoeiro, nesta viagem, mas sempre diremos
que Rogério Ribeiro, mestre-pintor habitado por um rapaz
voador que tinha um desejo imenso de mundo inteiro, para
quem arriscar voar era não apenas necessário como inadiá-
vel, pintou esse outro rapaz tão antigo e tão incerto chamado
Ícaro durante anos – por vezes penetrando com desespero a
tela, um pincel numa mão e na outra uma paleta, o pintor
quase voando tentando um salto no tempo, atravessando a
matéria como quem se preparava para ir ao encontro – talvez
para consolá-lo – de Dédalo, o arquitecto a quem se atribui
o labirinto e as asas de fazer voar o seu filho perdido para a
morte no imenso mar azul naufragado em penas.
Talvez os destinos de Dédalo e Ícaro tenham sido fruto
de uma só apanha de Zeus numa das vasilhas que o filho do
Tempo e chefe dos deuses tinha à porta de casa. Pois tanto
quanto se sabe, e à falta de melhor critério, Zeus determi-
nava o destino de todos recorrendo a dois receptáculos de
possibilidades – contendo um apenas coisas boas e o outro
somente coisas más. Assim, Zeus dava a uns (muito pou-
cos, crê-se) uma vida muito boa, a outros (acredita-se que a
maioria) uma vida muito má, e aos restantes uma vida mais
38 39
ou menos, que era quando ele retirava coisas das duas vasi-
lhas. O princípio e o padrão mantiveram-se até aos dias de
hoje, perpetuando composições sociais profundamente dife-
renciadas e injustas.
Disso sabia perfeitamente Gil Vicente, que cedo se viu
compelido a incluir no seu teatro os deserdados da vida e
demais miseráveis do destino, enriquecendo-o com a diver-
sidade dos tantos autênticos a que pela primeira vez deu voz.
Atribuindo-se-lhe a paternidade do teatro português, que os
mais pessimistas (e porventura realistas) consideram não ter
gerado descendências, e nem sequer quaisquer tipos de ou-
tras sucessões dignas de nota, obrigando Garrett, tanto tem-
po depois, a procurar voltar a fundar o teatro em Portugal
(novamente sem resultados, asseveram os mais exigentes),
Gil Vicente foi tão raro que foi também irrepetível. De obra
anterior a Shakespeare e a Lope de Vega, e ainda mais dis-
tante de Molière, cujas qualidades – literárias, dramatúrgi-
cas e populares, para dizer democráticas – não conheceriam
replicação desde então em Língua portuguesa, Gil Vicente
remeteu tudo o que havia até esse momento para a sombra
de uma realidade primeva.
Vicente emergiu genial, com a cabeça cheia de planos ale-
góricos e profanos, que expunham as injustiças e a desigual-
dade da hierarquia social da sociedade feudal – entregando
ao teatro assuntos terrenos do quotidiano de todos, e abalan-
çando-semesmoàsátiraanticlerical,insurgindo-seodrama-
turgo contra tão profusa e nefasta quantidade de frades que
existia no Mundo de então. Se o cristianismo levara ao quase
total desaparecimento do teatro no início da Idade Média,
reduzindo-o à pequena encenação de poemas e canções pela
mão de trovadores e jograis, e tendo-se a Igreja reapropria-
do dos processos do teatro (manifestação originalmente re-
ligiosa, é bem certo) para, através deles, cumprir ritos de
mobilização de grande número de almas (bastará dizer que
a teatralização de cenas da vida de Cristo a que se chamou
mistérios reunia, por vezes durante vários dias, centenas
de figurantes em torno de narrativas compostas por dezenas
de episódios), Gil Vicente baralhou e voltou a dar.
A estreia em Almada do Auto da Índia
Em 1509, Gil Vicente escreve em Almada e leva à cena
(talvez no Pátio Prior do Crato, mas sem certeza, apesar do
tanto desejo de que assim tenha sido, gerado decerto pela
existência de um desenho que, embora somente imaginan-
do-o, coloca o estrado de tábuas dessa representação em
lugar indefinido situado entre o Pátio e o miradouro da Boca
do Vento), para entretenimento da corte de D. Leonor (me-
cenas e protectora do Mestre de Retórica das Representações
de D. Manuel), aqui abrigada nesse momento em razão do
agravamento de um surto de peste, uma das suas primeiras
mas logo genial farsa chamada Auto da Índia – cuja acção
decorre em Lisboa, numa irónica evocação do muito que
continua a suceder com populações separadas por um rio de
margens afinal tão próximas.
Golpe de mestre, no Auto da Índia o compositor teatral
faz protagonizar a sociedade portuguesa da época, as suas
contradições e ocultações – espelhadas na oposição de gran-
de contraste entre o episódio particular que põe em cena a
devassa libidinosa de uma mulher (propiciada pela ausência
do marido), e ao mesmo tempo o acontecimento (venturoso,
como se dizia também de D. Manuel I) dos Descobrimentos
portugueses que por ali espreita. Foi assim que se tornaram
espectáculo de teatro os assuntos da vida portuguesa desses
O Auto da Índia pelo Teatro do Sopro, estreada a 25 de Janeiro de 2000
no Auditório Fernando Lopes-Graça (Fórum Municipal Romeu Correia),
pela 4.ª edição da Mostra de Teatro de Almada. Repetiu a 30 de Janeiro
de 2000 no Clube Recreativo do Feijó (em cima)
© Vítor Cid
DR
40 41
dias, coisas «muito cá de casa» que Vicente se atreveu, não
sem desassombro, a expor à claridade do teatro – conferin-
do-lhes um lugar inédito no espelho do mundo português
de então que eram as suas sátiras teatrais.
Com a vivaz modernidade do seu texto (muito embora
aindacheiodeformasepalavrasarcaicas)remeteu-seoteatro
medievo para a sombra de uma pré-história. Começava ali
uma coisa nova, arriscadamente profana e de propósitos
politicamente incisivos – cujas personagens podiam falar
não apenas em português (o que começou com o Auto da
Índia, primeira peça de Vicente escrita em português, em-
bora mantendo-se o castelhano, por forma a servir uma das
personagens, numa interessante aproximação a um realis-
mo teatral, que ademais agradava ao bilinguismo da cor-
te), como fazê-lo com os modos e trejeitos de cada grupo
humano que representavam.
Engenhosa criação, o dramaturgo oficial da corte pôs o ver-
so, as suas métrica e rima, não já ao serviço da narração das
então mais comuns pregações do teatro evangelizador – com
que o fundamentalismo cristão da época procurava com-
bater o paganismo do teatro herdado da Antiguidade –, tão
pouco da imitação jocosa de actos religiosos, mas em pro-
veito do riso (que também é salvação) crítico e transverso
que vai beber aos arquétipos sociais. Isso fazendo Vicente
com tal arte versejadora e mestria dramatúrgica, que era a
própria rainha a pedir-lhe que por favor escrevesse e delei-
tasse os entediados cortesãos com os seus tesouros poéticos
de graças – não apenas formalmente tão graciosos, como
superiormente espirituosos, e além disso sendo-o sem gros-
seria.
Pequeno mas afiado espelho de personagens típicas, re-
tratadas sem estados de alma em flagrante comicidade, a
farsa vicentina estreada em Almada evidenciou desde logo
uma trama superlativamente bem entretecida, pondo em
cena a história de uma mulher trocada por uma viagem
na expedição portuguesa à Índia na qual participara o seu
marido – soldado da armada de Tristão da Cunha, regres-
sada a casa no mês de Julho desse ano de 1509. Teatro de
sátira, descomplexadamente estrangeiro aos conflitos inte-
riores mais passíveis de compaixão que pudessem ator-
mentar tão velhaca mulher (não por ser adúltera, mas por
ser mesmo manhosa), Gil Vicente fixou no Auto da Índia
um pequeno conjunto de retratos da sociedade portuguesa
no dealbar de Quinhentos – e entre os quais se destaca, bri-
lhando na sua ausência omnipresente, o guerreiro moral-
mente corrompido (e cheio de culpa enfiada dentro dele),
para quem as conquistas da primeira globalização não pas-
savam de pilhagens em proveito de legitimidades discutíveis.
O teatro abriu-se com Vicente à sociedade em geral, pôde
doravante contar histórias em que o público se revia e ao
seu mundo, e até mesmo comentar os grandes planos para
a Nação. Pôde ser político, e ter a actualidade por pano de
fundo. Pôde, finalmente, representar-se independentemente
da agenda de pompas e circunstâncias da corte. A aparição
teatral emancipou-se nesse momento das ocasiões, festivas
ou outras, que até à data determinavam a circunstância da
representação cénica. O teatro bastava-se a si próprio. Foi
assim com o Auto da Índia, estreado em 1509 em Almada
por direito próprio, e de que se regista uma única segunda
representação em Almada (muito embora repetida daí a dias
noutra sala do Concelho), no âmbito da 4.ª edição da Mostra
de Teatro de Almada, em 2000, pelo Teatro do Sopro.
Iluminura atribuída a D. Carolina Santos, publicada originalmente em 1834 nas Obras de Gil Vicente – nova edição correcta e
emendada, representando a primeira vez que o Auto da Índia subiu às tábuas de uma cena de teatro – em Almada, em 1509.
Edição patrocinada por dois estudantes portugueses então exilados (um deles amigo de Garrett), com actualização ortográfi-
ca, emendas tipográficas e contendo também a edição um ensaio biográfico sobre Gil Vicente. Foram seus autores J. V. Barre-
to Feio e J. G. Monteiro (três volumes pela Officina Typographica de Langhoff, Hamburgo, Alemanha), a partir de um exemplar
da Compilação de 1562 (cuja reedição, em 1586, oficializara incontáveis rasuras censórias realizadas pela Inquisição), encon-
tradonabibliotecadaUniversidadedeGoettingen.AiluminuraserianovamentepublicadanaHistóriadaLiteraturaPortuguesa
Ilustrada, vol. 2.º, pág. 49 (Albino Forjaz de Sampaio e Afonso Lopes Vieira, editado pela Aillaud e Bertrand, 1930)
DR
42 43
(A Farsa seguinte chamam Auto da Índia. Foi fundado sobre que ua mulher
estando já embarcado pera a Índia seu marido lhe vieram dizer que estava
desaviado,equejánãoia,eeladepesarestáchorando,efala-lheuasuacriada.
Foi feita em Almada, representada à muito Católica Rainha dona Lianor. Era
de MDIX anos.
Entram nela estas figuras:
Ama, Moça, Castelhano, Lemos, Marido.)
	
A primeira página do Auto da Índia, tal como constante no livro quarto
da 1.ª edição da obra compilada de Gil Vicente (Copilaçam de todalas
obras de Gil Vicente), datando de 1562 e que conheceria nova versão em
1586 (censurada pela Inquisição), na qual o Auto da Índia deixa de ser
apresentado como a primeira farsa vicentina (supostamente sucedendo
a Quem Tem Farelos?)
Brilhante carácter de farsa
Quis fazer o Auto da Índia por causa da modernidade intemporal de Gil Vicente.
Não é por acaso que se trata de um dos textos mais vezes levado à cena por peque-
nas companhias: o modo como a peça está construída, o ritmo alucinante, o seu
brilhante carácter de farsa. Pareceu-me interessante que Gil Vicente tenha tido a
coragem de abordar o tema do reverso da medalha do expansionismo português e
as suas consequências, por vezes anedóticas, na sociedade, como é o caso daquele
marido rumado à Índia a negócios e daquela mulher que não perde tempo a traí-lo.
Jean-Pierre Fouque, Teatro do Sopro
DR
Do Caos se gerou a Noite e desta o Destino – divindade
cega e implacável, a que todos os demais mistérios divinos
estavam submetidos, e cujas leis provinham da Eternidade.
A essas terríveis determinações supratemporais se deverá
a culpa que enche de remorso os mortais obstinados na vir-
tude e nas suas santidades. Nem mesmo Zeus, o mais pode-
roso do panteão mitológico grego, tinha poderes para fazer
inflectir o destino, o seu e o dos demais – o que de resto o
Poderoso bem sabia, não lhe passando sequer pela cabeça
procurar furtar-se-lhe, considerando que assim agindo po-
deria perturbar irremediavelmente a ordem e provocar um
regresso ao Caos. Embora senhor supremo dos mortais, a
quem entregava os destinos diferenciados a que aludimos
já, não era Zeus que regia esses fados de possibilidades tra-
çadas à partida – sendo essa uma incumbência das divin-
dades secundárias filhas da Natureza que presidiam aos
nascimentos, à saúde e à sorte, fazendo respeitar a ordem
natural do Universo.
Deus polígamo e aventureiro, de incontáveis uniões amo-
rosas – umas com deusas e ninfas e outras com mulheres
mortais –, Zeus foi olímpico não apenas no panteão grego
dos divinos, como também nas suas infinitas capacidades
para seduzir as beldades que a Providência lhe punha no
caminho, desse modo gerando descendências várias que foi
espalhando pelos primeiros lugares do Mundo Antigo. Um
mundo de que faziam também parte os Infernos, lugares
simbólicos subterrâneos e tenebrosos, cujas almas penadas
por lá instaladas os tragediógrafos da Antiguidade clássica
(e os seus sucessores renascentistas, bem entendido) tantas
vezes inscreveram no destino dos vivos, numa tensão entre
a morte e a vida, o passado e o futuro, o pecado e a virtude,
mas também, e talvez sobretudo, entre o destino (uma pa-
lavra que não tem um antónimo claro) e os anseios. Uma
tensão humanamente observável desde sempre, geradora de
grandes sacas de culpas, fantasmas e outros espectros e pres-
ságios imaginados.
O Grupo Amador Os Desprote-
gidos da Sorte, da Cova da Pie-
dade, em meados da década de
1930 (talvez 1934), aquando da
apresentação de Frei Luís de Sousa
DR
44 45
Frei Luís de Sousa: Almada como cenário da tragédia
Em Frei Luís de Sousa (1843), Almeida Garrett (1799-
-1854), um outro fundamental renovador das coisas teatrais
em Portugal, mostra-nos uma família a viver num palácio
sobrecarregado de passado nos comecinhos do século xvii
– um lugar cujo reflexo baço da felicidade espelha o que ha-
bitualmente fica ocultado por baixo da camada superficial
do que nos é dado a ver. Se nada é o que parece, a aparente fe-
licidade da família retratada em Frei Luís de Sousa transporta
a fatalidade dos lugares assombrados pelo passado e pela
melancolia, caminhando os seres inexoravelmente para o
destino mais comum dos náufragos submersos em pecado e
culpa – desfecho trágico (a morte, por vergonha) para o qual
toda a peça caminha desde o começo, e que Garrett situou
na Igreja do Convento de São Paulo de Almada, no ambien-
te sebastianista dos primeiros anos da dominação filipina –
muito embora se apresente não como teatro histórico mas
como uma tragédia doméstica, cuja trama cénica atravessa
uma semana de tempo e decorre em lugares de Almada.
Lugar talhado para a «aquietação do espírito ou o estudo
das letras», o Convento de São Paulo de Almada, situado
«no mais alto do monte e pendurado sobre o mar, fica como
grimpa sujeito a todos os ventos que grandemente o comba-
tem». Inaugurado em 1569, o Convento dominicano seria
morada de vários «homens santos e sábios que viveram no
silêncio da oração e dos livros» (Frei Luís de Sousa), entre
os quais o próprio e insigne Frei Luís de Sousa, aliás Manuel
de Sousa Coutinho (1555-1632), que antes de vestir o hábito
dominicano e de se transformar num historiador e homem
de letras fora militar (coronel de 700 infantes e de quase 100
cavalos, ao que consta) e marido de D. Madalena de Vi-
lhena, angustiada viúva de D. João de Portugal (o famoso
Romeiro – um fantasma que emerge do sentimento de cul-
pa – que diz ser ninguém) que mais tarde vestirá também ela
o hábito para ser Soror Madalena das Chagas.
Obra-prima do teatro português, Frei Luís de Sousa foi
escrita já depois de Garrett ter sido demitido do cargo de
Inspector-Geral dos Teatros, durante a oposição à ditadura
de Costa Cabral, cujo regime, aliás, proibiria durante al-
guns anos a representação da peça, considerada inimiga de
Espanha e desrespeitosa para com a Igreja. Texto historicista,
na linha da tradição da época, quando o teatro em Portu-
gal tinha ainda por assunto prevalecente a História do País,
que habitualmente celebrava, Frei Luís de Sousa contém no
entanto as singularidades que fazem da peça um objecto
dramatúrgico de superlativa perfeição formal – ou não fosse
a peça uma tragédia, expressão maior, e em certa medida a
única de verdade (tendo muito embora do outro lado a farsa,
naturalmente), tal como preconizava António Pedro, para
quem o drama burguês e a comédia não passavam de for-
mas conjunturais, que não sobreviveriam aos tempos longos
da História da Humanidade.
Inelutavelmente (como será justo dizer-se no caso) her-
deira da tragédia grega clássica, contendo até mesmo uma
recitação litúrgica e uma personagem agourenta que agem
à imagem dos coros premonitórios da Antiguidade do tea-
tro, Frei Luís de Sousa põe em cena a queda de uma família
concreta que viveu em Almada a braços com uma ines-
capável fatalidade.
Sobre Frei Luís de Sousa, Garrett dirá ter querido fazer
um teatro cuja acção dispensasse a aparição de uma per-
sonagem malévola, antes entregando-a a «gente honesta e
temente a Deus, sem um mau para contraste, sem um tirano
que se mate ou mate alguém […], sem uma dança macabra
de assassínios, de adultérios e de incestos, tripudiada ao som
das blasfémias e das maldições […]». Dirá ainda ter sido seu
propósito assumido a possibilidade de «excitar fortemente
o terror e a piedade» enquanto elementos purificadores, e
nem tanto produzir um melodrama – forma trágica pseu-
do-shakespeariana muito popularizada na época, que Gar-
rett desprezava e procurou combater, conseguindo em Frei
Luís de Sousa a profundidade dramática que Alexandre
Herculano, generalizando, acusava os demais dramaturgos
de não ter.
Dando inédito protagonismo conceptual ao papel pode-
roso do passado, do simples passado regurgitante de vida,
que por vezes, e dispensando a intervenção de terceiros,
pode tomar a forma de um inferno, Garrett fez em Frei
Luís de Sousa um teatro de espectros, que deu à memória
do pecado e à expiação da culpa os papéis principais. Au-
toridade natural, tenazmente enraizada na cultura católica
portuguesa, a culpa surge em Frei Luís de Sousa como a
representação da decadência cabralista a que os ideais de
Garrett (João Baptista da Silva Leitão, filho do cruzamento
da burguesia letrada e da burguesia que emergira em Sete-
centos com o império brasileiro, de nome artístico repes-
cado na ascendência aristocrática paterna de origem irlan-
desa) se opunham.
Frei Luís de Sousa, emanação literariamente superior de
um conflito interior insanável que Garrett manteve ao lon-
go de toda a sua obra – uma tensão permanente, muito co-
mum nas gentes expostas a educações repressivas, entre os
ideais iluministas e libertadores e o espectro cristão da cor-
rupção carnal – contém um forte expressionismo e uma
densidade profundamente humana que sugere de forma cla-
ra a vivência de tormentos análogos por parte do seu autor:
debatia-se Garrett por esses dias com problemas pessoais re-
lacionados com a legitimação de uma filha nascida de uma
união extraconjugal e cuja progenitora morrera pouco tem-
po antes com apenas 20 anos, e também decorrentes da sua
ligação com a inspiradora dos ousados poemas sensualistas
de Folhas Caídas, numa época retrógrada e hipócrita (embo-
ra em tanto tempo distando da família de Frei Luís de Sousa)
em que as pessoas não tinham o direito de refazer a sua vida,
tão-pouco de perfilhar filhos do adultério, nem mesmo de-
pois de enviuvarem.
A peça transporta, assim, o cunho autobiográfico que faz
dela um espelho da angústia do seu autor enquanto pai ile-
gítimo de alguém cujo destino, ditado pela sociedade, seria
inexoravelmente o de carregar pela vida a culpa inocente por
actos de outros – constituindo nessa medida um drama cuja
severa solenidade, muito embora atenuada pelo lugar que
confere aos sentimentos (como é próprio do romantismo),
projecta realidades objectivas que retratam o abjecto país
social e político da época. Num sentido mais estritamente
político, Garrett espelhou em Frei Luís de Sousa a consciên-
cia aguda que tinha da tragédia nacional que era a domi-
nação cabralista dos anos em que a peça foi escrita – durante
os quais o autor assistiu a um movimento de regressão na
sociedade portuguesa em direcção ao velho país social e
endemicamente hierarquizado, inflexão que se opunha aos
ideais democratizadores e progressistas que moviam Garrett.
Frei Luís de Sousa não subiu ainda aos palcos da Mostra.
No entanto, Almeida Garrett já foi representado na Mostra,
em 2000, pela mão da Companhia de Teatro de Almada que,
na sequência da sua estreia em 1999, no ano em que se co-
memorou o segundo centenário do nascimento de Almeida
46 47
Tomamos também aqui boa nota de uma anterior repre-
sentação da peça, provavelmente em 1934, pelo Grupo Dra-
mático do Clube Recreativo Piedense cuja designação na
época, Os Desprotegidos da Sorte, evoca com inexcedível cla-
reza a história social que está na origem do movimento asso-
ciativista em que germinou o teatro em Almada. O próximo
capítulo é-lhe dedicado.
Dizer finalmente, ainda a propósito do território de Alma-
dacomocenáriodatragédiaromânticagarrettiana,quehouve
nessa escolha de Garrett (uma família e lugares concretos)
uma interessante aproximação por parte de um habitante
de Lisboa a uma verdade de que, se posto o observador na
margem sul do rio, oferece a sua mais nítida visão: a de uma
angustiante superlativa beleza de um território cujo maior
contraste decorre de uma história e tragédia sociais de que
o rio, muro separador, parece participar. Pelo território se
afirma também a tragédia solar de que os portugueses, à
semelhança dos gregos, têm visões únicas, através do de-
sespero que emerge da beleza opressiva dos lugares marí-
timos (com toda a sua história que levou tantos para tão lon-
ge). «É nessa infelicidade dourada que a tragédia culmina»
(Albert Camus, O Exílio de Helena, 1948).
A maqueta do cenário para o 2.º acto de Frei Luís de Sousa (por José Barbo-
sa) para a encenação pela Companhia Rey Colaço-Robles Monteiro, em
1943 (original no Museu Nacional do Teatro e da Dança), quando Euni-
ce Muñoz fez de Maria, a filha moralmente ilegítima de Manuel de Sousa
Coutinho e da viúva de um guerreiro nobre desaparecido no nevoeiro
com D. Sebastião
Garrett, levou Viagens na Minha Terra, de prosa adaptada
por Carlos Porto, à edição de 2000 da Mostra. No progra-
ma dessa edição, pode ler-se que em Viagens na Minha Terra
«se mostram os choques entre o velho e o novo, que tão
fortemente marcaram o Portugal oitocentista, a luta pelos
ideais de renovação social e depois o conformismo e a aco-
modação que resulta da transformação dos revolucionários
em barões ou em viscondes, como o próprio Garrett».
Num momento – agora sujeito ao violento fenómeno glo-
balizador – cujo verdadeiro impacto das regressões, opera-
das através de equivalente aburguesamento dos mais fracos,
os vindouros poderão melhor que nós aferir, não deixare-
mos todavia de referir, celebrando-a, a circunstância feliz
de Frei Luís de Sousa ter sido levada à cena pela Companhia
de Teatro de Almada em Abril de 2016, numa encenação
assinada pela mão subtil de Rogério de Carvalho – o antigo
professor de Matemática que, nos comecinhos de 1970, foi
responsável pelo primeiro grupo de teatro criado na então
Escola Industrial e Comercial Emídio Navarro, no que cons-
tituiria um dos mais interessantes e florescentes pólos de
iniciação teatral em contexto educativo levado a cabo em
Almada. Sobre isso nos atardaremos mais adiante.
DR
A primeira página de Frei Luís de Sousa, cuja trama trágica decorre em lugares de Almada, na 1.ª edição das obras teatrais de
João Baptista de Almeida Garrett, Theatro de J. B. de Almeida-Garrett (Imprensa Nacional, 1944-1946). A peça foi representa-
da pela primeira vez a 4 de Julho de 1843 (com Garrett a fazer de Telmo Pais) na sala privada do Teatro da Quinta do Pinheiro,
propriedade de um amador (para designar um grande apreciador e praticante) de teatro chamado Duarte de Sá. Foram seus
intérpretes actores amadores. Frei Luís de Sousa subiria à cena do Teatro Nacional D. Maria II em 1850, apresentando inova-
ções de cariz técnico e artístico que pretendiam favorecer a intensidade dramática da peça: foi nesse momento substituída a
iluminação com candeeiros de petróleo por iluminação a gás, e usaram-se uma cenografia e um guarda-roupa que procuraram
servir diacronicamente o tempo em que decorre a trama. Apenas a representação da parte do fogo patriótico ateado por
Manuel de Sousa Coutinho ao seu palácio, para evitar que caísse nas mãos dos espanhóis, levantou dúvidas e preocupações,
mas tudo correria pelo melhor. Cem anos mais tarde, Eunice Muñoz, integrando a Companhia Rey Colaço-Robles Monteiro,
e representando ao lado dos actores mais importantes da época em Portugal, interpretaria o papel de Maria, a rapariga nau-
fragada em culpa e vergonha alheias
DR
50 51
© Vítor Cid
Salão de Festas da Sociedade Filarmónica Incrível Alma-
dense (SFIA), a mais antiga colectividade de cultura e re-
creio de Almada. Inaugurado a 11 de Maio de 1958, seria
palco de estreia de muito e variado teatro ao longo do sé-
culo xx, do espectáculo em dois actos Acerta o Passo (1959),
pelo Grupo de Opereta e Revista «Os Incríveis», com autoria
de Baptista Lourenço e encenação de Rufino dos Santos, à
peça Chico do Norte (1980), de Alexandre Castanheira, com
música de Fernando Lopes-Graça, pelo Grupo de Teatro
Amador Incrível Almadense (na época dirigido por Joaquim
Benite), com encenação de José Martins e José Mora Ra-
mos, passando pela criação colectiva (a partir de textos de
vários autores revolucionários, numa evocação de revisita-
ção à Ode ao Pão, de Pablo Neruda) O Pão (1976), pelo Teatro
Amador da Incrível (TAI), com encenação de Luís Marques.
O Salão de Festas da SFIA acolheu a 1.ª edição da Mos-
tra de Teatro de Almada, em 1996, organizada pela Câmara
Municipal de Almada e pelos grupos de teatro da Associa-
ção Cultural Manuel da Fonseca, Brigada Organizada de
Teatro Actual (B.O.T.A.), Centro Cultural de Almada, Com-
panhia das Calendas, Clube Recreativo e Instrução Sobre-
dense (CRIS), Grupo de Iniciação Teatral da Trafaria (GITT),
Oficina de Teatro de Almada (OTA), Produções Priapismo,
Ninho de Víboras, Teatro Extremo e Teatro de Papel.
Nas páginas anteriores, pormenor do sistema mecânico
da teia do Salão de Festas da SFIA
2. ALMADA: PALCO DE UMA HISTÓRIA POLÍTICA E SOCIAL
Esta história – de apenas 20 anos, porém a saber o que
sabe hoje – não poderia ser revisitada sem inscrição preco-
ce do fenómeno associativista que faz de Almada um caso
singular no panorama da sociedade portuguesa, e deu ao
Concelho um associativismo cultural, de raiz social, que veio
a chamar a si as então denominadas instrução, recreio e cul-
tura das gentes, substituindo-se ao papel de um Estado en-
demicamente ausente nessa matéria. É assim que Almada
assiste à institucionalização de uma forma de associativis-
mo decorrente da instalação de unidades industriais no seu
território, que por sua vez determinou a fixação no Conce-
lho de crescentes contingentes de população trabalhadora,
atraída para a proximidade desses pólos das indústrias. Ori-
ginários de outros lugares, esses operários desaguaram em
Almada como ribeiros confluentes, chegados ao Concelho
poracçãodeummovimentodeafluênciaprovocadoporum
desnivelamento que evoca o que outrora fazia mover os moi-
nhos de maré. Levadas por esse movimento, integrando po-
pulações (provindas sobretudo do Algarve, das Beiras e do
Alentejo) deslocalizadas pelas indústrias que começaram
a florescer na margem sul do Tejo nos anos 20 do século xix
(fornos de cal, tanoarias, fiações, tinturarias, indústria quí-
mica, indústria moageira, construção naval – em madeira,
depois em ferro – e indústria corticeira), famílias inteiras
deixaram o seu chão natal para povoar o território de fron-
teira que é Almada. Fronteira antes de mais com Lisboa, cir-
cunstância propiciada pela geografia que determinará não
apenas uma história social específica (marcada pela desigual-
dade relativamente às populações mais próximas do centro
do poder), como também curiosidades históricas, de anteci-
pação relativamente ao que a capital inscreverá nas páginas
da história política do País, e cujo forte valor simbólico trans-
porta uma ideia de vanguarda que também o teatro espelha-
rá ao longo dos tempos.
52 53
Assim, lembrar aqui a talhe de foice que o que veio a ser
celebrado a 24 de Julho de 1833 em Lisboa decorreu do que
sucedeu no dia anterior, 23 de Julho de 1833, na Cova da
Piedade, quando os 1500 soldados comandados pelo Du-
que da Terceira enfrentaram a tropa de Teles Jordão, com a
colaboração da população de Cacilhas, que terá assistido e
ajudado à derrota dos espavoridos miguelistas. E lembrar
também, noutra apanha em passada larga, que o que veio a
ser proclamado em Lisboa a 5 de Outubro de 1910 conheceu
em Almada novamente antecipação para a véspera, quando
uma multidão de vários milhares de pessoas marchou da
Mutela, Caramujo e Cova da Piedade até ao centro de Alma-
da Velha para ouvir tocar as bandas da Incrível Almadense
e da Academia Almadense.
A Incrível e a Academia
A história da criação da Sociedade Filarmónica Incrível
Almadense (SFIA), fundada em 1848, marca não apenas
o percurso do forte movimento associativista que emer-
giu em Almada na sequência da fixação no território das
indústrias, como também a linha divisória que separa os
tempos de Costa Cabral (e tudo o que representaram) dos
que, não tardando, lhe sucederiam. Isso mesmo ficou con-
tado por Francisco José da Silva, um dos homens fortes do
movimento associativista local, e também dirigente, já no
século xx, entre 1908 e 1940, da Incrível Almadense – a co-
lectividade que, ainda no século xix, aquando da dissenção
entre associados que veio a dar origem à Academia Alma-
dense, passaria a ser designada por «Sociedade Velha», por
oposição à então novíssima Academia –, tal como Romeu
Correia assegura ter ficado impresso num artigo de jornal
publicado num diário da capital em 1925.
Nesse relato de imprensa se dá conta do dia de 1846 quan-
do, ainda sob o reinado de D. Maria II, uma sociedade mu-
sical chamada A Cabralista, instalada num pátio na Boca do
Vento, recebeu a visita de Saldanha – rumado a Almada a fim
de preparar uma manifestação popular contra Costa Cabral.
Foi então que alguém se lembrou de ir pedir os serviços
musicais d’A Cabralista, para acompanhar a manifestação
dos opositores a Cabral. Sendo cabralistas, o natural teria
sido negarem-se, em conformidade com a política interna
dos seus influentes dirigentes associativos. Sucedeu porém
que, coagida por outros influentes associados, A Cabralista
apareceu a tocar na manifestação, atiçando a fúria popular
e o apedrejamento dos músicos, e dessa forma provocando
a imediata dissolução da colectividade cabralista, por receio
de novos e tão violentos ataques da turba.
Finais da década de 1930. Operárias corticeiras da Fábrica
Ranking&Sons (Romeira, Cova da Piedade)
© Leslie Howard
Volvido um par de anos sobre o curioso sucedido, um gru-
pode rapazes começou a falar na ideia de fundar uma socie-
dade musical, o que não era possível de imediato por não
teremmaneiradefinanciarasuacriaçãoeiníciodaactivida-
de. Decorridos mais dois anos, durante os quais os rapazes
se cotizaram semanalmente e encheram de dinheiro um pé-
-de-meia, fundou-se a 1 de Outubro de 1848 a colectividade
mais antiga de Almada, cuja designação foi encontrada por
acaso, emergindo a palavra que viria a nomeá-la durante
um diálogo entre os primeiros associados. Um deles, mais
pessimista, terá dito que uma sociedade daquele tipo em
Almada não teria grandes hipóteses de sobreviver durante
muito tempo – e que acaso a realidade o contradissesse, seria
realmente incrível. «Pois há-de ser esse o título», disse o ou-
tro fundador. «Fica sendo a Incrível Almadense!»
1908. Teatro e música na Academia Almadense
24 de Março de 1939. A primeira pedra da nova sede da Academia de Instrução e
Recreio Familiar Almadense, inaugurada a 20 de Setembro de 1942
Situou-se a sua primeira sede no número 13 do Pátio do
Prior do Crato, onde hoje uma placa assinala a homenagem
que os incríveis (assim mesmo se autodenominam) corpos
gerentes da colectividade dedicariam em 1998 aos fundado-
res da SFIA. Em Março de 1895, uma cisão entre os associa-
dos da Incrível daria origem à então chamada «Sociedade
Nova». Baptizada Academia de Instrução e Recreio Familiar
Almadense (AIRFA), seria criada por um grupo de dissi-
dentes da doravante designada por «Sociedade Velha».
Na Sociedade Nova, o teatro é desde logo uma das artes
em que a Academia (cuja principal razão de ser – a instru-
ção – se inscreve na sua designação e identidade, mantidas
inalteradas) se notabiliza, organizando espectáculos com
programas ambiciosos, compostos por várias peças de tea-
DR
DR
54 55
1952. Espectáculo pelos 10 anos
decorridos desde a inauguração
da sede da Academia, em Setem-
bro de 1942
tro, e cujas receitas de bilheteira revertiam por vezes para
melhoramentos das próprias infra-estruturas necessárias ao
teatro: palco e cenários, por exemplo. Foi o caso da noite
teatral de 11 de Outubro de 1908 quando, no Teatro da Aca-
demia Almadense, teve lugar uma Récita Extraordinária
integrada por um Debute de Amadores (i.e., a estreia de no-
vos valores) com «reaparição» de laureados amadores ante-
riormente premiados, pela primeira representação de uma
comédia em três actos, por um acto de Folies Bergères, e
ainda pela primeira representação de uma comédia num só
acto – o todo sendo abrilhantado por um sexteto musical e
pela Banda da Academia.
Outras vezes, como aliás ainda hoje sucede, grupos e ele-
mentos profissionais ou semiprofissionais eram contrata-
dos para assegurar valências artísticas que os associados e
formadores da Academia não tinham.
© Vítor Cid
Edifício e sala do Cine-Teatro da Academia Almadense,
inaugurado em 1942 e requalificado em 2014, no âmbito
do programa municipal de requalificação de edifícios em-
blemáticos da cidade de Almada. Reaberta a 13 de Setem-
bro de 2014, a sala dispõe de 164 lugares de plateia e 33 de
balcão. Em 2014, foi o palco principal da Mostra de Teatro
de Almada
DR
56 57
Nos jornais da época imediatamente após a implantação
da República, artigos críticos das representações teatrais
ocorridas nas colectividades almadenses registam a clara se-
paração entre os conceitos de amador e de artista – remeten-
do para o amadorismo as falhas, exageros, embriaguezes e
demais fragilidades observadas no desempenho dos amado-
res (actores e ensaiadores). Apesar da dureza de alguns des-
ses propósitos críticos, vários seriam os que singrariam na
constelação teatral do Concelho, começando de pequeninos
nos grupos dramáticos infantis e por vezes tornando-se mais
tarde ensaiadores de renome local. Por vezes, as peças versa-
vam sobre as gentes de Almada, cujos costumes criticavam,
as mais das vezes parodiando-os.
A Academia Almadense daria largo espaço ao teatro du-
rante o século xx, não apenas através da sua própria activi-
dade, no âmbito da formação teatral que ao longo dos anos
proporcionou aos seus associados, como também mediante
a concessão da sua sala de teatro a terceiros.
Já depois do 25 de Abril, seriam vários os nomes do tea-
tro profissional que habitariam o espaço cénico da Acade-
mia: Rogério Paulo, José Viana (fundador, juntamente com
Rogério Paulo, da Cooperativa Teatro Popular de Almada);
Pós-25 de Abril. A Academia Almadense acolhe
a Cooperativa de Teatro Popular de Almada, de
José Viana
Joaquim Benite (que em 1978 deslocaria para a Academia,
ali permanecendo até 1987, o projecto teatral que dirigia
em Lisboa, no que viria a constituir o mais bem-sucedido
exemplo de uma iniciativa levada a cabo no contexto do pro-
grama político de descentralização cultural, dando origem,
em 1978, à Companhia de Teatro de Almada – embora a
formação mantivesse até meados dos anos de 1980 a ante-
rior denominação: Grupo de Campolide –, já então integra-
da por actores que brilham no firmamento teatral do País,
como Henrique Canto e Castro, 1.º actor da Companhia,
Ema Paul, Henriqueta Maia, António Assunção ou ainda
Alberto Quaresma); e, finalmente, Fernando Jorge Lopes e
o seu Teatro Extremo, que habitaria o Teatro da Academia
entre 1996 e 1998.
Apesar dos sucessivos e diferentes confinamentos impos-
tos pelo Estado Novo, várias associações crescerão graças
à acção benemérita e filantrópica dos seus associados, que
contribuirão para a construção de novas sedes – assim su-
cedeu, designadamente, com o Cine-Teatro da Academia
Almadense, cuja construção foi iniciada em 1939 e concluí-
da em 1942, e também com o Salão de Festas da Incrível
Almadense, inaugurado em 1958.
DR
© Vítor Cid
O teatro teve na Incrível Almaden-
se um lugar central ao longo de todo o
século xx – permanecendo nesta data
(2016) uma das «modalidades» (assim
mesmo se referem à prática do teatro
na SFIA os autores dos livros que ins-
crevem a sua história) mais acarinha-
das, talvez por ser tão comprovadamen-
te propiciadora da fraternidade entre as
pessoas. «Baluarte artístico e cultural à
disposição dos associados, em parti-
cular, e dos almadenses, em geral» (A
Incrível no Limiar dos 150 Anos, vol. VII),
pelo teatro da SFIA passaram dezenas
de grupos de amadores, do Dramático
Almadense, em 1903, ao actual Cénico
da Incrível – formação cuja participação
na Mostra de Teatro de Almada se ini-
ciou em 1999. Dois nomes brilham no
firmamento dramático contemporâneo
da Incrível: Malaquias Lemos e a sua su-
cessora, Eugénia da Conceição.
O edifício do Cine-Incrível foi inau-
gurado a 2 de Novembro de 1925 e co-
nheceu várias intervenções de requali-
ficação, umas de menor monta (1931,
1983) e outras de remodelação para
servir novas valências da colectividade,
caso de 1944, quando se inaugurou o
Cine-Incrível, cuja fachada se mantém
inalterada em 2016
58 59
O teatro marcaria também forte e continuada presen-
ça na actividade da Incrível Almadense, estreando-se em
1903 com o Grupo Dramático Almadense, que conhece-
ria incontáveis formações sucessoras, e outras tantas dife-
rentes designações, da Arcádia Incrível Almadense (1906)
ao Teatro Amador da Incrível (o famoso TAI, fundado em
1976 e que mais tarde, no início dos anos de 1980, seria
dirigido por Joaquim Benite, tendo por ensaiadores José
Martins, José Mora Ramos e José Peixoto), passando pelo
grupo Amigos da Incrível (1936), pelo Grupo Cénico «Os
Incríveis» (1940, com posteriores e sucessivas diferentes
composições e ensaiadores), pelo Grupo Cénico Infantil
da Incrível (1944), pelo Grupo de Opereta e Revista «Os
Incríveis» (1946) ou, ainda, pelo Grupo de Variedades da
Incrível (1950).
1944. A luta de classes no teatro da SFIA, pelo
Grupo Dramático «Os Incríveis»
2 de Fevereiro de 1957.
João Villaret visita a In-
crível Almadense, pela es-
treia de Esta Noite Choveu
Prata, de Pedro Bloch
DR
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11 de Maio de 1958.
Inauguração do Salão
de Festas da Incrível
Almadense
1959: Acerta o Passo
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Os anos de ouro do teatro na Incrível
O primeiro grupo cénico da Incrível de que há memória foi baptizado como o Grupo Dramático Alma-
dense. Não deixa de ser curioso que o seu nome possuísse uma abrangência que ultrapassava a própria
colectividade e que seja o primeiro que se conhece devidamente organizado da então vila. A sua forma-
ção ficou a dever-se a João Carlos Carvalho Pessoa, encenador da peça Atribulações dum Estudante,
que estreou no palco do Salão da Incrível Almadense.
O período áureo do teatro na Incrível iniciou-se após o final da Segunda Guerra Mundial e prolongou-se
até ao final dos anos de 1960.
De 1945 até ao final dos anos de 1960 foram encenadas em média três peças por ano, o que só por si
ilustra a dinâmica que então existia nesse memorável período de mais de duas décadas – sem contabili-
zar as reposições de vários sucessos, o que acontecia com frequência nas épocas festivas do Carnaval e
Natal.
O primeiro centenário da Incrível, em Outubro de 1948, além de chamar gente nova à Colectividade,
como foi o caso de Rufino dos Santos – um encenador teatral que trouxe para os palcos almadenses a re-
vista e a opereta, que se juntaram com sucesso ao tradicional teatro declamado –, foi um grande incentivo
para se fazerem coisas mais ambiciosas.
Passou a ser comum o público esgotar a sala de espectáculos da «Sociedade Velha» e a mesma peça ser
exibida mais que uma vez. O primeiro grande êxito desta nova era teatral foi a revista Cabaz de Frutas,
que pisou os palcos (da Incrível e de outras colectividades, na Margem Sul e em Lisboa) por 32 vezes nos
anos de 1946 e 1947, algo completamente inédito na época.
Se Rufino dos Santos trouxe para a Incrível a música e a graça, com várias operetas e revistas, Fernan-
do Gil, grande apaixonado do teatro declamado,
não baixou os braços e encenou mais de dezena
e meia de peças até final dos anos de 1960 (com
várias reposições). Em 1967, Celestino da Silva
levou Tchekhov (O Urso) para a Incrível.
Luís Alves Milheiro,
Sociedade Filarmónica Incrível Almadense
Revista Cabaz de Frutas
DR
1966: O Pássaro de Asas Cortadas,
de Luiz Francisco Rebello, pelo
Grupo Cénico «Os Incríveis» es-
treada a 5 de Novembro no Salão
de Festas da Incrível Almadense
1967: O Urso, de Tchekhov, com
encenação de Celestino Silva, su-
biu ao palco do Salão de Festas a
24 de Outubro
DRDR
62 63
Os desprotegidos da sorte
Malgrado as sucessivas conquistas dos operários nos sé-
culos xix e xx, um adágio do século xviii prosseguiu ins-
crevendo de verdade indiscutível uma realidade social que
tem sobrevivido à democracia: «Portilha de Lisboa com Al-
mada:/ Uma leva tudo, outra nada.» Mas a que nada leva
não se fica. Tem sido assim desde o século xix, quando os
migrantes que caminharam em direcção às indústrias lito-
rais pegaram no seu destino para o transformar em coisa
melhor – levando por diante lutas políticas que vieram a dar
origem à criação de sindicatos e associações de operários
cujas dinâmicas reivindicativas, profundamente transforma-
doras da correlação de forças laborais, passaram pelas colec-
tividades e teatros.
Foi também assim quando, em Julho de 1906, uma as-
sembleia geral da classe corticeira do Concelho teve lugar
na Incrível Almadense. Ou quando, em Setembro desse ano,
uma assembleia magna de corticeiros grevistas foi convoca-
da para a Academia Almadense. Ou ainda quando, uns dias
mais tarde, uma reunião operária aconteceu no Teatro Gar-
rett, da SFUAP – o mesmo teatro onde vários anos depois
das greves operárias dos corticeiros e moageiros ocorridas
em 1911 e 1912, seria aprovada, a 25 de Abril de 1919, a mo-
ção de proclamação de uma greve geral corticeira em todo
o País.
É nesse quadro social e político que surgem e se desmul-
tiplicam associações de base solidária com forte cunho pro-
teccionista – cujas valências iam da prestação de primeiros
socorros médicos à venda cooperativa de bens essenciais,
passando pelas actividades de cultura e recreio (antiga palavra
para lazer), em que desde logo protagonizaram os primei-
ros grupos musicais (bandas filarmónicas, tunas e charan-
gas, grandemente integradas por analfabetos, muito embora
pudessem sem dificuldade decifrar a notação das pautas de
música) e os grupos cénicos – em que pontuam, brilhando
entre os primeiros, o Cénico Amador da SFUAP (1891), o
Grupo Amador da União e Capricho do Monte da Caparica
(1892), o Dramático Almadense da Incrível (1903, que em
1906 passará a chamar-se Grupo Arcádia Dramática Incrível
Almadense, em 1910 Nova Arcádia Almadense, e em 1916
Grupo Dramático «Os Incríveis») ou ainda o Grupo Dra-
mático Instrução e Recreio de Almada (1919, integrado por
elementos associados da Academia de Instrução e Recreio
Familiar Almadense).
Se a maior parte das associações de solidariedade e acção
social se fixou nas zonas rurais do Concelho, as associações
de instrução e recreio assentaram praça nos maiores aglo-
merados urbanos.
Uma parte não negligenciável da integração dessas tantas
pessoas fez-se através do teatro – lugar de fraternidade e con-
fluência de gentes, espécie de grande albergue onde cabem
todos e mais alguns, por ser o teatro uma arte do colectivo
e de confluência de vários saberes, ofícios e conhecimentos
humanos. Alguns desses migrantes transformam-se em en-
saiadores, muitos mais em actores. As pessoas cruzam-se no
teatro promovido pelas colectividades que começam a ser
criadas, ali se conhecem, convivem e se casam umas com as
outras. Falamos pois, e antes de mais, de um teatro que de-
corre de uma história social, que prosseguirá determinan-
do muito do que aconteceu ao longo do século xx no que ao
teatro concerne – dos assuntos levados à cena, ao engenho
e à arte, por vezes aguçados pelas dificuldades, que muitas
dessas representações revelavam.
Espelhando o curso e a causa das coisas, os primeiros gru-
pos de teatro de Almada transportam nas suas designações
o abandono, as carências materiais e as grandes lutas ope-
rárias – bem como a consciência de classe que as precedia
e determinava. É o caso do Grupo Dramático Os Desprote-
gidos, da Cova da Piedade (mais tarde, a partir de 1933, re-
nomeados Os Desprotegidos da Sorte, no que constitui uma
curiosa actualização que terá acompanhado o advento do
Estado Novo), integrado por operários carvoeiros, serra-
lheiros, corticeiros, moageiros, e cujo primeiro ensaiador
foi José Joaquim Correia, comerciante de vinhos na Piedade
e mais tarde proprietário de uma fábrica de cortiça.
Para além da integração, do recreio e da instrução dos as-
sociados em sentido estrito, e dos contactos intergeracionais
que proporcionavam, essas actividades de carácter artístico
vieram a ser decisivas para o contacto das gentes de Almada
com outras gentes mais distantes, proporcionado pela deslo-
cação dos artistas almadenses a outros pontos do País, num
intercâmbio que o século xx veria florescer. A actividade ar-
tística propiciava a viagem, a abertura ao Mundo, o contacto
com o Outro. O teatro fazia-se com todos e para todos, in-
cluídos os de outros lugares, por vezes distantes, e de outros
costumes – característica constitutiva do teatro não burguês.
Nos primeiros anos do século xx, será também através do
teatro que anarquistas e socialistas procurarão arrancar os
homens ao adormecimento das tabernas e do jogo, intelec-
tualizando os operários, expondo-os a dramaturgias que en-
cenavam as suas próprias vidas, psicodramatizando reali-
dades sociais que comummente escapavam à consciência de
quem estava imerso nelas. Assim, o teatro toma uma parte
considerável do lugar anteriormente ocupado pela músi-
ca, que já não chegava para sossegar os espíritos de todos.
Em Outubro de 1914, no II Congresso Socialista da Região
Sul, um documento de propaganda anunciava o teatro como
instrumento de inscrição política e divulgação de um reper-
tório dramatúrgico socialista.
Porém, nem só a designação dos primeiros grupos de
teatro transporta a história política e social dos tempos
de transformação em que estiveram em actividade, reve-
lando a emergência de uma cultura operária de que o por
vezes chamado «teatro de combate» fazia parte, enquanto
instrumento de doutrinação que se opunha ao teatro bur-
guês. Os próprios títulos das peças de teatro levadas à cena
são também eles um espelho dessas pelejas e anseios. É nesse
contexto que sobem aos palcos de Almada as peças Gaspar,
o Serralheiro – drama em quatro actos (de António Pedro
Baptista Machado, datada de 1877, tanto quanto se sabe re-
presentada pela primeira vez em 1890 pelo Grupo Os Des-
protegidos, na inauguração do Teatro Garrett, e tendo sido
reposta várias vezes até 1895), Justiça (1902) ou Cenas de Mi-
séria (1919, de Henrique de Macedo Júnior, pelo grupo «Os
Incríveis»), todas levadas à cena no Teatro da SFUAP (criada
em 1889, na sequência evolutiva de uma colectividade ante-
riormente designada por Sociedade Musical Caramujense),
cujo primeiro grupo cénico havia sido constituído em 1891.
Velhos programas e registos de imprensa guardam nota
da representação em Almada de peças de teatro cujas ra-
zões políticas ficam patentes nos seus títulos, sendo comum
a omissão de referência à autoria nos cartazes de publici-
tação das representações: Escravos e Senhores (1906, pelo
Grupo Dramático do Clube Recreativo José Avelino), e, em
1910, pelo Grupo Nova Arcádia Almadense, sucessor do
Grupo Arcádia Dramática Incrível Almadense), O Fidalgo
Operário (1910, pelo Grupo da Incrível Almadense, a 16 de
64 65
Janeiro desse ano), A Greve (drama em três actos de Porfírio
A. Santos, representado em 1922 pelo Grupo Dramático Ins-
trução e Recreio de Almada, no Teatro Garrett, da SFUAP,
num espectáculo dedicado à classe operária promovido pela
Sociedade União Pragalense), ou ainda A Morte de Marat
(1922, no Teatro Garrett).
Nos jornais, os grupos de amadores são por vezes «lin-
chados», por «críticos» que, muito embora não assinando as
suas sentenças, se outorgam direitos discursivos de conside-
rável violência, apesar de aplaudirem os ideais e a natureza
democratizadora das peças de intervenção política que ani-
mavam os populares que faziam esse teatro. Assim sucedeu
com a peça A Voz do Povo, levada à cena em Novembro de
1910 no Teatro da Academia, pelo Grupo José Guedes.
Por vezes, os espectáculos teatrais são promovidos com
fins solidários, visando a angariação de fundos destinados a
apoiar operários despedidos, adoecidos, ou as suas viúvas e
filhos deixados em dificuldades. Fenómeno que emana por-
tanto de outro mais premente – a imperativa necessidade de
sobrevivência das gentes trabalhadoras –, o teatro emerge
como parede mestra da actividade recreativa mas também
solidária das colectividades, criadas não apenas para favore-
cer condições de integração e mobilidade social (proporcio-
nadas também pelas aprendizagens artísticas), como para
defender os interesses dos deserdados da vida esquecidos
pelo Estado. O teatro participa activamente nessas redes de
solidariedade, desempenhando um papel fundamental nas
estratégias de sobrevivência económica das comunidades
operárias de Almada.
1910. Recorte de imprensa sobre a estreia de A Voz
do Povo («peça de intuitos democráticos») no então
chamado «theatrinho» da Academia Almadense
1933. As actrizes da peça Rosa do Adro pelo Grupo Cénico da Academia. Da esquer-
da para a direita: Sílvia de Jesus Soares, Suzete Alaiz (Rosa) e Dália Alaiz. Publicado
em 1870, o romance A Rosa do Adro, de Manuel Maria Rodrigues, teve a sua primeira
adaptaçãoparateatroem1899.Jánoséculoxx,ARosadoAdroconheceuduasversões
para cinema: em 1919 e em 1938 (a última por Chianca de Garcia, com Maria Lalande)
É nesse contexto que vemos surgir alguns novos líderes e
representantes locais, nas pessoas dos fundadores das primei-
rascolectividades.Assim,começamaquelesasersolicitados
parapadrinhosdebaptismodosfilhosdosassociados,criando
laços de afecto e honra entre os compadres – elos humanos
para a vida. Mais tarde, já sob a República, os filhos daqueles
vão ocupar lugares de relevo na vida local, vão ser autarcas,
decisores políticos, representantes eleitos pelo povo.
A República dará um impulso decisivo à expansão da acti-
vidade associativa, pela inscrição do direito de associação na
Constituição de 1911. Compostos por diferentes actuações,
os programas dos espectáculos promovidos pelas colectivi-
dades de cultura e recreio integrarão o teatro, a música e a
poesia, terminando muitas vezes com bailes, cuja música era
executada pelas filarmónicas e outros agrupamentos musi-
cais – distinguindo-se do que sucedia nos palcos burgueses,
onde havendo teatro não havia música, o inverso sendo tam-
bém verdadeiro.
No dealbar do século xx, Almada concentrava já mais de
uma vintena de colectividades, a maioria fundada por comer-
ciantes e operários locais.
Depois do golpe de Estado nacionalista que pôs termo à
Primeira República e instaurou uma ditadura militar, Almada
passava a pertencer, por decreto, ao novo Distrito de Setúbal.
A organização administrativa fascista do território empurra-
va Almada para fora dos âmbitos do centro do poder. Mui-
tos seriam os que contestariam a decisão, por a considera-
rem não apenas injusta como absurda, atendendo à evidente
proximidade entre a capital e Almada, que teria justificado
diferente ordenamento das parcelas territoriais, integrando
Almada no distrito de Lisboa.
A repressão ao teatro
	
Criadaem1929,aInspecção-GeraldosEspectáculos,orga-
nismo sucessor da Inspecção-Geral dos Teatros Nacionais
(cuja criação Garrett havia proposto e de que havia sido o
primeiro Inspector-Geral, nos já remotos dias de 1836), des-
de 1927 dependente do Ministério do Interior (vinda da tu-
tela do Ministério da Instrução Pública, decisão claramente
política, que favorecia o policiamento pelo Estado emergi-
do da ditadura militar, em cujos diplomas legais se instituiu
com todas as letras uma censura à qual competia «fiscalizar
e reprimir»), seria integrada em 1944 no Secretariado Na-
cional da Informação, Cultura Popular e Turismo – o SNI,
criado nesse mesmo ano.
DR
Teatro de Almada
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Teatro de Almada

  • 2. A CIDADE DO TEATRO
  • 3. A CIDADE DO TEATRO António Vitorino (AV) Isabel Mões (IM) Nuno Bernardo (coord.) Sarah Adamopoulos (SA) Vítor Cid (fotografia) Xico Braga (XB) Ângela Luzia, Luís Miranda, João Lima e Rui Silvares (ilustrações) [edição comemorativa pelos 20 anos da MOSTRA DE TEATRO DE ALMADA | 1996-2016]
  • 4. 7 A CIDADE DO TEATRO [edição comemorativa pelos 20 anos da MOSTRA DE TEATRO DE ALMADA | 1996-2016] AUTORES António Vitorino, Isabel Mões, Nuno Bernardo, Sarah Adamopoulos, Vítor Cid, Xico Braga COORDENAÇÃO E DIRECÇÃO EDITORIAL Sarah Adamopoulos CONSULTOR Nuno Bernardo DESIGN E PAGINAÇÃO Franziska Zabel TRATAMENTO DIGITAL DE IMAGENS Karas CAPA Franziska Zabel sobre ilustrações de Rui Silvares REVISÃO António Costa Brás GESTÃO DE PROJECTO Karas e Sarah Adamopoulos IMPRESSÃO E ACABAMENTO Jorge Fernandes, Lda. Artes Gráficas EDIÇÃO Câmara Municipal de Almada e Ninho de Víboras – Associação Cultural DIREITOS RESERVADOS ® Ângela Luzia, António Vitorino, Isabel Mões, João Lima, Luís Miranda, Nuno Bernardo, Rui Silvares, Sarah Adamopoulos, Vítor Cid, Xico Braga e autores cujos créditos fotográficos se inscrevem no final da obra. ISBN 978-989-8668-12-7 DEPÓSITO LEGAL N.º 1.ª EDIÇÃO, Almada, Novembro de 2016 Mila Xavier, 8 de Fevereiro de 2008. Praça São João Baptista. Animação circense de abertura oficial da Mos- tra de Teatro de Almada DR
  • 5. 8 9 De 1996 a 2016. As imagens de capa dos programas da Mostra de Teatro de Almada
  • 6. © Luís Miranda Índice o mágico encontro entre o teatro e a cidade Viriato Soromenho-Marques ELogio do actor Sarah Adamopoulos UMA MARGEM SINGULAR Nuno Bernardo ALMADA – A CIDADE DO TEATRO Sarah Adamopoulos 1. PRIMÓRDIOS A estreia em Almada do Auto da Índia Brilhante carácter de farsa (Jean-Pierre Fouque) Frei Luís de Sousa: Almada como cenário da tragédia 2. ALMADA: PALCO DE UMA HISTÓRIA POLÍTICA E SOCIAL A Incrível e a Academia Os anos de ouro do teatro na Incrível (Luís Alves Milheiro) Os desprotegidos da sorte A repressão ao teatro A oposição ao regime nas colectividades As colectividades como palcos do povo (Domingos Torgal) O teatro na escola Crescer integralmente com o teatro (António Matos) A linguagem teatral (Helena Peixinho) Pedagogia pelo teatro (Ângela Mota) O GITT O espírito da Mostra (Vítor Azevedo) Os novos combates do teatro Joaquim Benite Os «soldados da cultura» (António Olaio) 17 21 23 35 37 38 42 44 51 52 60 62 65 69 72 73 74 77 79 81 83 86 91 94
  • 7. 3. RUPTURAS E EXPERIMENTAÇÃO Almada – cidade laboratório das artes Ultrapassar o teatro: o metateatro ou teatro pós-dramático em Almada Sem Nome na Casa Amarela (John Romão) Canibalismo Cósmico O Festival X (Rui Silvares) Almada como epicentro criativo (João Garcia Miguel) A movida almadense nos anos de 1990 Objectos «híbridos» na Mostra (Cláudia Dias) Criadores associados As «capelinhas» da cultura (Karas) A Intermédia – ou teatro-vídeo Ubiquidade do intérprete: entre o palco e a tela (Afonso Guerreiro) 4. A MOSTRA COMO PALCO DA DIVERSIDADE A Mostra: um caldo de cultura teatral (Joaquim Estêvão Judas) Um lugar à mesa para todos (Teresa Pereira) A nossa Mostra (Maria João Garcia) A palavra «partilha» (António Costa Brás) Fraternidade teatral A Mostra como espelho do ideal de fraternidade de todo o teatro (Rui Cerveira) Os intercâmbios da Mostra (Nuno Nascimento) Todos Um teatro vivo (Fernando Jorge Lopes) Profissionais e amadores Ser-se o pão que se come (Rodrigo Francisco) O papel da inscrição mediática Quando a crítica vinha ver o teatro da Mostra (Sofia Oliveira) 101 103 107 109 111 115 118 119 122 122 126 128 129 133 133 136 138 143 144 147 148 148 151 152 154 155 159 5. OUTROS CAMINHOS O palco: a prova de vida do texto teatral (Fernando Rebelo) O texto novo Na outra margem do princípio da realidade (António Cabrita) Rir e chorar como irmandade (Mário Palma Jordão) Os debates com o público: uma maiêutica amorosa Construir em conjunto novos territórios de utopia (Alexandre Pieroni Calado) Incluir pelo teatro A formação teatral dos excluídos (Sofia Raposo) Almada como escola de público-actor: a formação teatral da população A Mostra como palco, plateia e motor criativo (Cláudia Negrão) Sociografia da Mostra Um contributo para o estudo do teatro no Concelho (Jefferson Oliveira) OS GRUPOS A A Anestesia A Lente – Teatro de Aumentar A Menina dos Meus Olhos Actos Urbanos Alpha Teatro Arena de Feras Armadilha Artes e Engenhos As Raparigas de... Três Pontinhos B B.O.T.A. – Brigada Organizada de Teatro Actual 163 164 164 167 168 169 170 170 171 173 175 178 181 187 189 193 197 199 201 203 207 211 215
  • 8. C Cena Múltipla Colectivo SOPA Produções Companhia das Calendas Companhia de Teatro de Almada Cortina de Fogo – Teatro Urbano Crème de la Crème G GITT – Grupo de Iniciação Teatral da Trafaria Grupo Cénico da Incrível Almadense Grupo de Teatro Amador do Beira Mar Grupo de Teatro da Academia Almadense Grupo de Teatro da Associação Cultural Manuel da Fonseca Grupo de Teatro do Clube Recreativo e Instrução Sobredense Grupo de Teatro Musical da Academia Almadense M Marina Nabais Dança Murmuriu N Ninho de Víboras Novo Núcleo Teatro (NNT) da FCT Núcleo de Marionetas O O Grito O Grupo OLHO OTA – Oficina de Teatro de Almada 223 225 227 229 233 235 241 247 251 253 255 259 261 265 267 273 277 281 287 291 295 297 P Piajio Produções Acidentais Produções Priapismo T Teatro ABC.PI Teatro a Todos Teatro da Costa Teatro de Areia Teatro de Papel Teatro do Sopro Teatro Extremo Teatro na Gandaia Teatro Rabo-de-Palha Teatro&Teatro Tinta U Útero OS AUTORES OS ILUSTRADORES AGRADECIMENTOS PARTICULARES BIBLIOGRAFIA DE APOIO CRÉDITOS FOTOGRÁFICOS 305 309 313 319 323 327 329 333 337 339 345 347 351 355 361 368 372 375 377 381
  • 9. 17 Na matriz espiritual do Ocidente, o Teatro ocupa, junta- mente com a Filosofia, a posição de um dos pilares centrais do lado luminoso do repertório cultural europeu. Seja como tragédia, ou como comédia, o teatro constituiu para o mun- do helénico uma espécie de experimentação física dos limi- tes da condição humana. Da sua disputa entre a liberdade e o destino. Aristóteles mostrou na Poética como a represen- tação trágica é inseparável da grandeza da linguagem e do pensamento como interrogação do sentido da vida. O teatro foi para a democracia antiga um exercício complementar da crítica filosófica e da participação cívica. No teatro conden- saram-se os valores que faziam os gregos, muito embora po- liticamente pulverizados em múltiplas cidades-Estado, senti- rem-se unidos no mesmo cadinho cultural. No palco teatral a paideia transformava-se numa realidade viva. Os valores, os mitos, os heróis, as esperanças e os pesadelos matriciais da Europa transformavam-se em corpo e gesto visíveis. Nas suas raízes, o horizonte comunitário do teatro coin- cidiu com as muralhas da cidade. Esta obra que agora se ofe- rece ao leitor, desenhada no âmbito da comemoração dos 20 Anos da Mostra de Teatro de Almada (1996-2016), revela bem como essa marca urbana do teatro se mantém intacta até hoje. No duplo sentido em que o teatro se faz na cida- de, mas a alma desta deixa-se afectar profundamente pela experiência estética e comunitária implicada no fenómeno teatral. Há muitos anos que me conto entre aqueles que quando se trata de procurar uma oferta teatral pensam em Almada. O magnífico livro que o leitor tem entre mãos transforma esta impressão subjectiva, certamente partilhada por mui- tos milhares de amantes das artes dramáticas, numa longa e profunda viagem às raízes históricas e culturais não apenas de uma cidade, mas do próprio País. Os autores realizam com este livro uma proeza em várias dimensões. O texto Viriato Soromenho-Marques O MÁGICO ENCONTRO ENTRE O TEATRO E A CIDADE
  • 10. 18 reflecte a diversidade dos pontos de vista dos seus autores, mas também a unidade de propósito deste projecto. De Gil Vicente a Joaquim Benite, passando por Almeida Garrett, e muitas outras dezenas de criadores individuais, e associações culturais, o teatro penetrou no espírito profundo da socieda- de almadense, não apenas no plano artístico e literário, mas também no perfil da cultura cívica e democrática da sua ci- dadania. Esta obra, profusamente ilustrada e documentada, com- bina pelo menos três exercícios complementares: um enor- me e conseguido esforço heurístico, de resgate material de uma memória que, de outra forma, poderia perder-se; uma compreensão crítica e abrangente dos conceitos, instituições, autores, actores, numa palavra, de todos aqueles que inte- gram a constelação do universo teatral, no tempo e no espa- * Professor Catedrático de Filosofia na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Membro da Academia das Ciências de Lisboa ©LuísMiranda ço de Almada; um convite educativo e formativo para que a memória e a sua leitura possam inspirar novos criadores na invenção de outros projectos futuros, enriquecedores e inclusivos, para serem ensaiados nos diferentes palcos da vida. Os autores desta obra merecem a gratidão e o aplauso dos leitores. Com trabalho árduo e enorme seriedade, honram a verdade mais profunda do teatro, que é a sua revelação do segredo da condição humana, onde força e fragilidades se combinam misteriosamente. No mesmo gesto, este livro re- vela-nos que os valores universais não pairam nas nuvens. Eles habitam no coração das mulheres e dos homens con- cretos, respirando a cor e os perfumes dos lugares concretos. O mágico encontro entre a arte dramática e a cidade de Al- mada é a maravilha que este livro exalta e dignifica.
  • 11. 21 © João Lima Um dia – contaram-me durante uma edição do Festival de Almada – numa plateia de teatro improvisada num hospital psiquiátrico, no final de uma repre- sentação teatral, alguém do público levantou-se para tomar a palavra e disse que no final de contas um actor é como um fósforo: uma extremidade vermelha que se incendeia e se transforma numa pequena chama, que se consome no tempo que dura o espectáculo (ou seja, no pedaço de vida que vai do começo ao fim da representação teatral). Esse actor, esse fósforo que se acende e arde diante de nós, representa o cora- ção do teatro – nesse momento confundido com o coração do actor. Um incên- dio que logo o fio cortante da quotidianidade apaga, e depois vamos para casa. Sucede, por vezes, que esse incêndio prossegue dentro de nós, e fica ali a arder para sempre. Este livro é dedicado a todos os artistas, amadores uns e profissionais outros, que sobem ao palco para fazer de nós ali sentados a vermo-nos no espelho do teatro: o espaço vazio (como a vida quando nascemos) que eles (com palavras ou sem palavras), depois de terem repetido (ensaiado, portanto) o que têm para nos dizer, enchem de significado – representando por nós papéis de que nem sempre temos consciência e fazendo do teatro um incêndio para onde convergem todas as belas e feias artes: uma arte total. Sarah Adamopoulos Elogio do actor
  • 12. 23 © Ângela Luzia UMA MARGEM SINGULAR As artes e nomeadamente as artes performativas, sendo a expressão e a gramática das emoções, ocuparam um papel relevante no processo civilizatório e de formação da personalidade e dos grupos humanos, sendo parte integrante da condição humana. No desenvolvimento do bebé e da criança, as emoções são fundamentais para o seu crescimento saudável e equilibrado, tornando-as capazes de afirmar a sua personalidade em interacção com os outros. Forma de conhecimento específica do Mundo e da Vida, as artes constituem um elemento estruturante do viver individual e colectivo, indispensável ao equilíbrio emocional, ao conhecimento e assumpção do seu próprio corpo – corpo esse que inclui a mente –, bem como ao relacionamento criativo e dialogante com a comunidade e com os outros. Tendo em consideração esta perspectiva, não é compreensível a maneira como os po- deres, e particularmente o poder central, se têm relacionado com as artes e com a cultura entendida em sentido estrito. Com efeito, a participação da cultura nos orçamentos de Estado tem sido insignificante, tendo ade- mais decrescido ao longo dos tempos. Particularmente gravosa foi a situação vivida nos quatro anos decorridos entre 2011 e 2015, em que a parcela do Orçamento de Estado para a cultura chegou a estar abaixo dos 0,2%. Esta desorçamentação implicou uma destruição do tecido cultural existente, com a destruição dos próprios serviços, numa altura em que não apenas o Ministério da Cultura deixou de existir, reduzindo-se a uma Secretaria de Estado, como também os serviços sofreram alterações profundas nas que anteriormente eram as suas funções. Foi o caso também da Direcção-Geral das Artes, que passou a ser uma entidade gestora de pseudoconcursos, revelando por intermédio destes a criação de uma cortina pretensamente transparente, mascarando a decisão política e procurando ilibar os governantes das responsabilidades que só a eles cabem. Esse modo de fazer reflectiu-se em todo o panorama das artes e da cultura no País. Só os mais resilientes persistiram e sobreviveram ao governo da troika. Actualmente, alguma esperança renasce mas o Orçamento de Estado continua, no que respeita às artes e à cultura, francamente abaixo das necessidades objectivas e da importância que aquelas têm no desenvolvimento pessoal e colectivo das pessoas e da sociedade. Uma comunidade, um país, que não tenha acesso à cultura e à arte é uma personalidade amputada, diminuída. Nuno Bernardo
  • 13. 24 25 O centro e a periferia No centro concentram-se os órgãos do poder. Não apenas os do poder político eleito, como também os que representam o poder económico e financeiro, sendo todos esse poderes também patentes no domínio das artes, facto que advém da relação que artistas e grupos desenvolvem com os diferentes poderes, do reconhecimento social que vão tendo ao longo do tempo, das formas mais ou menos consensuais que granjeiam junto das estruturas do poder que acabam por representar. Esses factores determinam que um determinado grupo ou que uma certa personalidade artística tenha mais poder que os outros, consequentemente recebendo maior financiamento e um melhor acolhimento por parte da crítica tablóide – que é a que importa para a criação e acumulação de poder, com conse- quências gravosas para os projectos emergentes, que ficam muitas vezes ignorados ou reduzidos a recursos miseráveis que inibem totalmente a sua afirmação e desenvolvimento. Esses factores determinam também, por outro lado, que as periferias sejam obnubiladas pela macro- cefalia de que o País enferma. Almada é uma periferia muito particular. É uma cidade fronteira a Lisboa, tendo sempre tido uma relação comunicativa especialmente significativa com a capital. Contudo, essa relação entre Almada e Lisboa tem, como tudo na vida, dois versos. Ou melhor, um verso e um reverso. Se por um lado a possibilidade de comunicação e de mobilidade relativamente a Lisboa permite contactar com novi- dades, com diferenças, com outras ideias, por outro lado o centro e as burocracias que o envolvem evidenciam uma tendência de natureza habitualmente conservadora, avalizando o que é reconhecido como algo que resulta: entenda-se, como algo que gera um determinado rendimento, ou mesmo lucro, reflectindo-se inevitavelmente na distribuição dos recursos e na exclusão de muitos talentos criativos. De um modo geral, as coisas no centro tendem a ser mais conservadoras, estando mais sujeitas aos pesos burocráticos. São também, por definição, mais indolentes. Ou seja, têm menos liberdade, estando mais condicionadas pela própria burocracia e métodos de segurança (entenda-se de protec- ção), e confinamento do poder – a que se acrescentam as razões que se prendem com a densidade de- mográfica e outros factores sociológicos que favorecem esse imobilismo, e de que resulta necessaria- mente uma certa estagnação. Nas periferias verifica-se um fenómeno diferente, que decorre do facto de a periferia ser menos vigiada, estar menos sob os holofotes, ser menos burocratizada, ser menos agressivamente competitiva. Daí poderem por vezes surgir nas periferias grandes focos de inovação. Enquanto no centro se assiste sobretudo à replicação (salvaguardadas as honrosas excepções), na periferia a inovação tem melhores condições para se afirmar, apesar de todas as dificuldades – e fá-lo justamente como reacção à escassez de recursos, contra esse establishment permitido e avalizado pelos poderes (pelo poder político central, pelo poder da comunicação social, pelo poder económi- co-financeiro). Ora, Almada apresenta-se como um caso singular. Para além da já referida proximidade com Lis- boa, esta terra foi um dos primeiros centros operários do País e é uma cidade que, desde o advento desse processo de industrialização, passou a ser multicultural, atraindo gente das várias regiões do País. Gente com ideias diferentes, que foi convergindo para Almada, motivada pelas mesmas necessi- dades de encontrar trabalho que lhes permitisse sair da miséria extrema em que viviam nos campos. Nesse contexto, surgiu em Almada um forte movimento associativista. E é a partir desse associativis- mo que as artes conhecem uma expressão até então inédita – sem esquecer os casos mais ou menos pontuais de manifestações artísticas anteriores ao século xix. Foi todavia com o movimento operário que emergiu, em certa medida de raiz, uma cultura específica. Esse movimento conheceu diferentes fases de desenvolvimento, como mais adiante se verá neste livro. Um dos momentos referenciais recentes situa-se nos anos de 1990, que trouxeram à luz do dia um conjunto muito significativo de grupos de teatro – mas também uma escola profissional de música e uma companhia de dança, num período em que as artes performativas tiveram em Almada um dos seus mais expressivos momentos. O que foi particularmente visível no teatro e explica a concretiza- ção, já na segunda metade dos anos 90, da Mostra de Teatro de Almada. Nessa altura, os técnicos da Câmara Municipal de Almada registaram um forte movimento teatral que se dirigia à autarquia no sentido de angariar o apoio de parceria da Câmara, e decidiram propor a realização de uma mostra que juntasse todos esses grupos. Essa ideia foi acarinhada pelo poder local que, na quase ausência do poder central, foi sempre o grande impulsionador e apoiante – também no plano financeiro – desse movimento cultural. A ideia foi também acarinhada pela então Presidente da Câmara Municipal de Almada, Maria Emília Neto de Sousa, e, 20 anos passados, continua a contar com a afabilidade, o entusiasmo e o bom senso do actual Presidente da Câmara, Joaquim Estêvão Judas.
  • 14. 26 27 A Mostra A Mostra de Teatro de Almada começou em 1996 com 10 grupos e tem mantido, ao longo dos anos, a assiduidade de cerca de uma vintena de estruturas de criação artística, sendo que no conjunto dos 20 anos se registou a participação de cerca de 50 grupos, perfazendo 313 espectáculos. Muito traba- lho foi portanto desenvolvido, muita gente esteve assim envolvida na Mostra – centenas de criadores, entre actores, encenadores, dramaturgos, técnicos, etc. A Mostra tem portanto sido um caso exem- plar de bom trabalho e de organização. Foi, e é, um espaço aberto a todos, com lugar para todos, onde todos se podem sentar e dizer o que querem, embora sempre na premissa (necessária) de alcançar um consenso. A Mostra foge à lógica dos concursos, que na maior parte dos casos serve para ocultar decisões que têm de ser políticas e que só serão transparentes se forem efectivamente decisões políticas, concorde- -se ou não com elas. A forma colegial e colectiva de negociação entre os grupos e a Câmara Muni- cipal parece-me evidentemente enriquecedora, e isso tem-se notado, quer na qualidade de alguns espectáculos quer na qualidade dos debates que em torno deles se fazem. Nas reuniões da Mostra discute-se também o modo de estar e de ser, a vivência de cada grupo e de cada pessoa de forma particular. Ao longo destes 20 anos, tem havido um crescimento muito interessante, uma maturidade que não tem relação com a idade das pessoas mas com uma maturação colectiva. A Mostra tem constituído assim uma efectiva mostra, uma montra de uma parte do teatro que se faz em Almada. Trata-se de uma das quatro pernas da grande plataforma do teatro no Concelho – sendo as restantes o Festival de Almada (o mais importante festival internacional de teatro do País e uma substancial riqueza para o território, que tem contribuído para desagravar os desequilíbrios da relação centro/periferia, levando às grandes salas de Lisboa espectáculos programados em Almada, e trazendo também a Almada muita gente da outra margem do Tejo), o Sementes – Mostra Inter- nacional de Artes para o Pequeno Público (o mais importante festival de teatro para a infância e para a juventude no País, sendo também o mais antigo em actividade, que tem trazido a Almada e a outros concelhos, de ambas as margens do Tejo, espectáculos a vários títulos notabilíssimos, e pro- porcionado experiências muito enriquecedoras – ao pequeno público e aos pais, mas também aos artistas) e o Inter-Escolas de Teatro (que junta todos os anos cerca de 30 grupos de teatro escolar, dando às crianças e aos jovens em idade escolar a possibilidade de subir a um palco para representar um papel ou tocar um instrumento musical, experiência que se contrapõe ao que costumeiramente tem acontecido num país onde a maior parte dos jovens que concluiu o ensino obrigatório jamais teve uma experiência dessa natureza). A Mostra de Teatro de Almada, o quarto pé da referida plataforma, caracteriza-se sobretudo pela diversidade, no que constitui um espelho da própria cidade. Almada caracteriza-se por essa diversi- dade, sendo um território onde desde sempre se procura que haja um lugar para todos, e que cada vizinho dialogue com o outro. Se há na Mostra espectáculos que denotam problemas de natureza vária, há também outros que se elevam ao nível do sublime. A Mostra é, por outro lado, um espaço onde a procura de novas linguagens tem um lugar, no que de resto constitui um interessante retrato da intersecção que há muito se realiza em Almada entre as diversas áreas artísticas que podem integrar a construção de um espectáculo: as artes plásticas, a exemplo de o OLHO, projecto em que foram centrais; a dança e o movimento, designadamente com a colaboração de bailarinos e coreógrafos, entre os quais Maria Franco, Cláudia Dias, Maria João Garcia, Marina Nabais, Romeu Runa ou ainda Cristina Benedita, contabilizando-se mais de uma quinzena de espectáculos contendo coreografias em nome próprio ou que se integraram nos espectáculos; a música: mais de 70 espectáculos tiveram música original, composta por 46 autores, entre os quais se contam António Vitorino d’Almeida, Jorge Palma, João Fernando, João Costa, Tiago Pereira ou ainda João Miguel Fonseca; e ainda a escrita dramatúrgica, domínio em que a Mostra se tem absolu- tamente distinguido, sendo que mais de uma terça parte das produções levadas à Mostra tiveram por base materiais textuais novos e inéditos, entre textos de autor e criações colectivas. Fernando Rebelo, António Cabrita, Alexandre Castanheira, Sarah Adamopoulos, Mário Palma Jordão e A. Branco são alguns dos nomes a destacar, sem desprimor para os demais (cerca de uma centena). Um património que valeria a pena publicar e divulgar. A Mostra viu surgir em Almada novos espaços infra-estruturais (o Auditório Fernando Lopes- -Graça, no Fórum Municipal Romeu Correia, e também o Teatro Municipal Joaquim Benite) e assistiu
  • 15. 28 29 à requalificação de outros equipamentos (o Cine-Teatro da Academia Almadense e o recém-reaberto Teatro-Estúdio António Assunção, antigo Teatro Municipal de Almada). Houve também no contexto da Mostra a utilização de espaços informais, designadamente de armazéns abandonados (a exemplo do Espaço Ginjal ou da Lemauto), mas também teatro de rua ou em edifícios em ruína. A utilização do espaço público pelos artistas – da rua, dos largos, das praças, dos velhos edifícios – é não apenas um acto artístico e cultural mas também um acto de cidadania. A Mostra tem tido um papel importante no plano da inclusão social, tornando patente que é pos- sível juntar jovens – mas também seniores, que tiveram já participação nalgumas edições – em torno de projectos novos, úteis e belos. As artes que se entrecruzam, intersectam e contaminam podem ter grande relevância nos processos de inclusão social e a Mostra tem sido também palco de algumas expe- riências interessantíssimas nessa matéria. É o caso do Alpha Teatro. Por essa razão também, a Mostra tem um papel fundamental no desenvolvimento da comunidade em termos gerais – das pessoas, das suas mentalidades e modos de se relacionarem entre si. Ao longo dos 20 anos, houve alguns acontecimentos que merecem o meu destaque. Houve um es- pectáculo de abertura muito interessante chamado A Festa. Coordenado pela Piajio, envolveu outros grupos participantes na Mostra. A Piajio, associada ao grupo musical OqueStrada, liderou a primeira tentativa de reabilitar o espaço do Cine-Teatro da Incrível Almadense e desenvolveu, enquanto durou, um trabalho de grande diálogo com a comunidade envolvente – indo desencantar velhos artistas de Almada, entre músicos, cantores, poetas – e de animação de rua (designadamente organizando exposições nas montras das lojas) como não tinha jamais havido em Almada. Uma outra iniciativa merece a minha referência: o convite endereçado a João Brites e a Ruy de Car- valho para virem conversar connosco sobre as suas experiências teatrais. Organizaram-se dois debates com os grupos que foram da mais fundamental importância na edi- ção de 2005, reunindo todos os encenadores das peças apresentadas. Porque são importantes os deba- tes? Porque a avaliação do que se faz é parte disso que se faz – sendo a avaliação do público manifesta- mente insuficiente (por decorrer muitas vezes de processos gregários e de natureza paroquial, digamos assim) e, inversamente, a da crítica e dos pares absolutamente necessária. Ainda em 2005, publicou-se a Folha, que foi um belo pretexto para entrevistar todos os criadores que nesse ano participaram, bem como para convidar pessoas de fora para escrever algumas críticas e para vir até Almada conversar connosco sobre teatro. Essa publicação diária foi feita sem recur- sos, por uma equipa amadora, mas teve uma importância muito significativa no plano do debate de ideias. Através dela, reflectiu-se sobre o trabalho que se foi fazendo ao longo dessa edição da Mostra. Acresce a isso o facto de ser esse um trabalho que fica, fixando a memória, mesmo se esses registos têm a forma de policópias. Seriam também necessários estudos, académicos ou outros, de natureza sociológica, antropológica, historiográfica e também estética sobre estas matérias. Para além do mais, a sistematização de estudos desse tipo, tendo por objecto de estudo as artes performativas em geral e o teatro em particular – ser- vindo esses trabalhos, designadamente, como fundamental material de apoio à decisão política –, per- mitiria atenuar o carácter de efemeridade das artes de que nos ocupamos aqui, constituindo um suporte de preservação da memória colectiva. Referir finalmente, ainda relativamente à edição da Mostra de 2005, a programação de um espec- táculo dito «convidado», que trouxe a Almada uma companhia de Vila Franca de Xira e um espectá- culo francamente inovador. A oportunidade de poder observar outras maneiras de fazer teatro é, do meu ponto de vista, um ganho imenso. Talvez valesse a pena reeditar essa iniciativa, eventualmente alargando-a a criações internacionais de teatro feito por amadores, por forma a dotar a Mostra de uma componente nova, de acesso a outras linguagens e culturas estéticas, através de um espectáculo convidado que fosse inserido na programação anual. Prospectivar As considerações seguintes resultam não só da reflexão pessoal, mas também de vários debates colectivos, diálogos e até mesmo confrontos, ocorridos no âmbito dos processos preparatórios da Mostra, durante a própria Mostra e em eventos específicos relacionados com a actividade dos grupos. São portanto tão-só sugestões e muito especialmente uma maneira de levar a debate e suscitar um diálogo que venham a dar-lhes forma, viabilidade e consequente capacidade decisória.
  • 16. 30 31 Um assunto recolhe unanimidade: as condições e os recursos actualmente existentes são franca- mente parcos. A Mostra tem contado unicamente com a participação financeira da Câmara Municipal de Almada a qual, embora sendo louvável, precisaria de ser ampliada, por forma a servir o desenvol- vimento da própria Mostra. Essa verba tem-se mantido mais ou menos inalterada ao longo dos anos, e tem criado uma certa estagnação. Quer isto dizer que muitos talentos que apareceram na Mostra desapareceram. Se alguns emigraram e tiveram êxito – indo ao centro em busca de reconhecimento –, encetando carreiras (por vezes internacionais) que os confirmaram como talentos e permitiram que crescessem (caso de João Garcia Miguel, Cláudia Dias, Miguel Moreira, John Romão), muitos mais fica- ram pelo caminho. Nesse sentido, seria muito importante que houvesse um significativo acréscimo do apoio, que permitisse o desenvolvimento de quem se afirma com talento e com vontade de avançar para um estádio profissional. A Mostra, pela metodologia da sua criação e desenvolvimento, como referido anteriormente, constitui já, virtualmente, uma associação de associações. O seu objectivo é a Mostra. Seria todavia muito importante que esse modelo pudesse desenvolver-se e autonomizar-se. O que permitiria um relacionamento mais eficaz com a autarquia, bem como com outros potenciais financiadores e patro- cinadores, designadamente públicos, mas também privados, nisso envolvendo as grandes empresas que operam no território de Almada, que têm e deveriam assumir especiais responsabilidades sociais. Esse desenvolvimento poderia reunir recursos complementares à verba da autarquia almadense e que fariam toda a diferença. Por outro lado, a Mostra teria a ganhar com a formalização de uma estrutura emanada dos gru- pos que permitisse a realização de um trabalho autónomo e com melhor carácter de operatividade. Essa estrutura poderia ter a forma de um centro de produção, comunicação e agenciamento e que, mantendo o necessário objectivo de alcançar consensos, teria a função primordial de representar o conjunto de associações, por forma a poder dialogar com a Câmara de forma mais ágil. Talvez essa estrutura – que teria necessariamente de ter funções também de produção, postas ao serviço do con- junto de grupos, e designadamente acabando com o desperdício que constitui a apresentação única na Mostra de espectáculos que poderiam, e deveriam, conhecer carreiras de digressão local e até mesmo nacional – pudesse ajudar a pôr um ponto final na representação social que é feita da Câmara e dos seus técnicos enquanto malvados de serviço. Bem sei que a afirmação de uma personalidade colectiva é um desiderato sempre complexo, pois já dizia a minha avó que cada um é como cada qual e que cada cabeça sua sentença. Apesar da inevitável necessidade dos consensos, seria desejável que também as dissidências pudes- sem ter o seu lugar na Mostra do futuro, pelo carácter de inovação e de novas perspectivas que nor- malmente transportam. As dissidências precisariam, assim, de ser cabalmente consideradas e levadas em conta nos processos de decisão. Faço notar que muitos grupos que participaram e participam na Mostra surgiram de dissidências, fizeram os seus caminhos, e agora estão em diálogo, por vezes em confronto, com aqueles de que foram dissidentes. É preciso perceber que os desentendimen- tos podem ter efeitos positivos muito significativos, designadamente na mudança de mentalidades. A mentalidade paroquial do cada um por si e que vença o mais forte não é um caminho construtivo. A Mostra tem também uma palavra a dizer no plano do desenvolvimento material para a região. Esse fazer local e pensar global – que foi o lema do movimento ecologista e levou a ecologia para a agenda política – pode ser um programa interessante para o movimento cultural e artístico, levando a que também ele possa ser inscrito na agenda política e até mesmo na agenda económica. Será ne- cessário reforçar as relações de comunicação e de diálogo, com criação de alguns consensos (isto é, de mínimos denominadores comuns que permitam fazer evoluir o diálogo), de modo a que os assuntos relativos às artes e à cultura tenham no palco político o lugar relevante que efectivamente merecem. Se o turismo tem sido prioridade nos programas de desenvolvimento económico, será preciso, creio, cruzá-lo de forma orgânica e saudável com a actividade artística local que lhe é anterior. Entendo o turismo como a arte de bem receber, porém, só pode receber bem quem está bem. Uma zona deprimida e com constrangimentos fortes dificilmente poderá ter um desenvolvimento turís- tico com capacidade de se projectar saudavelmente no futuro económico de uma região. Quando muito, será constituída por uma ilhas envolvidas em arame farpado. Não creio que seja isso que se queira para o nosso território. Tão-pouco o que está a acontecer actualmente em Lisboa – com a massi- ficação brutal (sobretudo para a população local, que está em processo acelerado de depressão social) da oferta turística, e subalternização quase transversal de todos os sectores económicos – constitui um objectivo com interesse para as gerações futuras. O que coloca a questão das indústrias culturais e do lazer.
  • 17. 32 33 Com efeito, quando as artes – mas também a saúde, o ensino, o lazer – se transformam em indús- trias, que replicam à exaustão um sempiterno, enquanto dura, modelo lucrativo – as coisas tornam- -se perversas. Trata-se, aliás, de um processo que, comprovadamente, não oferece qualquer acrésci- mo de qualidade, nem oferece qualquer capital acrescido de bem-estar. A arte não deve participar do que se pretende fazer dela: uma actividade distractiva. Fernando Lopes-Graça insurgia-se contra a arte que queria ser «um adorno», algo que se tinha em vez de se ser. Esta é uma questão crucial quando se pensa nas artes, pois elas têm que ver com o ser e não com o ter. O sociólogo Jefferson Oliveira fez dois estudos relativos aos públicos da Mostra que constituem uma significativa forma de avaliação do evento, muito embora esses estudos não tenham tido âmbi- tos e processos mais aprofundados. Um dos dados que ressalta é a escassez de relevância da divul- gação da Mostra na comunicação social, o que revela um problema no plano da comunicação do evento. Para fazer crescer e renovar os públicos da Mostra, seria importante encetar quanto antes um programa de trabalho em rede que interligasse de forma estreita e continuada os grupos de teatro, as escolas e todos os agentes culturais do Concelho. Apesar dos esforços da Câmara Municipal de Almada, no sentido de garantir a preservação dos materiais de comunicação e divulgação produzidos ao longo das várias edições da Mostra, a prepara- ção deste livro pôs a claro a necessidade urgentíssima de criação de um centro de documentação e in- vestigação em artes performativas. Este centro justifica-se uma vez que no nosso concelho seria não apenas uma forma de salvaguardar a memória, mas também uma forma de divulgá-la e disponibilizá- -la aos investigadores. O que implica um trabalho necessariamente feito com recurso a plataformas tecnológicas, assegurando a digitalização e indexação em bases de dados de todos esses materiais. E já que refiro os recursos tecnológicos, não posso deixar de lembrar a que ponto seria importante a criação de um centro de recursos, designadamente em luminotecnia, sonoplastia e imagem, que seguramente daria uma outra dimensão a muitos espectáculos levados à Mostra. Atendendo à dimensão (também histórica) que as artes (o teatro, a dança, a performance, a música, mas também as artes plásticas e a dramaturgia) têm no Concelho, penso que seria de toda a utilidade ponderar seriamente a criação de uma escola de artes, que juntasse num mesmo espaço, ou em vários espaços próximos entre si, as várias especialidades artísticas, conectando as estruturas existentes, asse- gurando programas consistentes de formação em cada uma delas e propiciando também as transversa- lidades e as intersecções que a Mostra revela inevitavéis e crescentemente apetecidas pelos criadores. Não se trata de todo de criar mais uma escola num concelho onde já existem a Escola de Dança da Companhia de Dança de Almada, dois Conservatórios Regionais (Sobreda e Trafaria), um Curso Profissional de Teatro na Escola Secundária Anselmo de Andrade e a Opção de Teatro na Escola Secun- dária António Gedeão, escolas todas elas de grande qualidade pedagógica e artística. Trata-se, antes, de procurar criar pontes e comunicações entre as várias formações existentes, tanto as formais como as informais, as curriculares como as ocasionais, e colmatar lacunas. Criar um tra- balho de rede e em rede, que reconheça a identidade, a história e os objectivos de cada instituição no terreno, conte com a sua participação em todo o processo, da concepção à gestão, e lhes acrescente valor no todo e nas partes intervenientes. Que ajude a construir projectos e estratégias aos vários níveis e nas diversas áreas da produção artística – dos bebés e crianças aos seniores, da escrita para teatro, cinema e televisão à performance e ao vídeo, passando pelas artes plásticas e, claro está, pelo teatro, a dança e a música, que deverão constituir os seus três eixos estruturantes. Tratar-se-ia de uma escola local mas cosmopolita, com um centro, conceptual e físico, mas em diálogo com outros centros autónomos e descentralizados, que acolheria as experiências e os saberes oriundos de outras paragens e difundiria novos conhecimentos, novas capacidades e ideias: uma escola aberta, caracterizada por um agir comunicacional e dialogante, para uma sociedade aberta, inclusiva, justa e multicultural, a que aspiramos. Uma escola assim poderia sem dificuldade, creio, afir- mar-se como uma escola com relevância no plano nacional – e até mesmo internacional. Para concluir, apenas assinalar que as boas práticas devem ser estimuladas e apoiadas, para que possam crescer e maturar e vir a constituir exemplos para outros projectos e territórios. O poder local, em boa medida, tem-no feito, se bem que por vezes lhe falte ousadia e capacidade de risco. Quanto ao poder central era de todo desejável que procedesse de igual modo. A excepcionalidade do que acontece em Almada e as potencialidades que apresenta deveriam ter um tratamento em con- formidade.
  • 18. 35 ALMADA – A CIDADE DO TEATRO Sarah Adamopoulos
  • 19. 36 37 © Vítor Cid Nas páginas anteriores, a plateia do Auditório Fernando Lopes-Graça (constituída por 232 cadeiras vermelhas), no Fórum Municipal Romeu Correia – um projecto do arquitecto João Lucas, oficialmente inaugurado em Novembro de 1997. Composto por três pisos e integrando também a Biblioteca Municipal Central de Almada, o Fórum Municipal Romeu Correia tem no exterior um painel de azulejo (Mestre Andarilho, executado na Fábrica de Cerâmica Viúva Lamego) concebido por Rogério Ribeiro em homenagem à Peregrinação de Fernão Mendes Pinto, e no interior uma tapeçaria também de Mestre Ribeiro (Amanhecer, executada na Manufactura de Tapeçarias de Portalegre), criada expressamente para o lugar. O Fórum Municipal Romeu Correia tem linhas de luz e uma geometria contemporâneas que transformaram o rosto da Praça da Liberdade. Aquando da inauguração da nova sala de espectáculos (que ocorreu aos 14 dias contados de Janeiro de 1998, dois dias antes da abertura da 2.ª edição da Mostra de Teatro de Almada, realizando-se a totalidade dos espectáculos no Auditório Fernando Lopes-Graça), Jorge Lis- topad consideraria numa sua crónica de imprensa que se estava perante «um momento de bom gosto, civilização e cultura», sugerindo algo sucedido não em Portugal, mas num país onde «se sab[ia] medir a luz do dia, cuidar das visões arquitectónicas, gostar do bom material e do acabamento, instalar uma biblioteca sem precisar do Ministério da Cultura que quisesse ensinar o cidadão a ler» e onde «espontaneamente não se fala[va] alto». Listopad, um homem do teatro e de todas as artes, reparou ainda que «das janelas se enxerga[va] o espaço verde, a escultura moderna» e mais longe «as águas do Tejo», regozijando-se o cronista (edição de 28 de Janeiro de 1998 do Jornal de Letras, Artes e Ideias) com «a bela sala de concerto ou de teatro» que nesse momento se abriu à cidade. Pelo Auditório Fernando Lopes-Graça passariam muitos espectáculos da Mostra de Teatro de Almada ao longo dos 20 anos que este livro celebra 1. PRIMÓRDIOS No começo de tudo quem mandava era Zeus. O mais sortudo e valente dos filhos do Tempo (Cronos), que ten- do conseguido escapar ao grande apetite do pai (famoso comedor da própria descendência) tomou o seu destino em mãos, Zeus veio a unir-se a Europa, uma ninfa que conhe- ceu ali para os lados da Turquia certo dia em que ela estava com umas amigas a apanhar florinhas junto à beira-mar. Habituado a tomar a forma de quem ou do que fosse pre- ciso (águia, cisne, fogo, para referir apenas três famosas in- carnações a que esse primeiro grande actor de todos os tempos se abalançou com inexcedível verosimilhança – pe- lo menos assim consta, e não é de ontem), Zeus transfor- mou-se num magnífico touro a cuja beleza pujante Europa não resistiu, subindo para o dorso daquele para lhe pôr à volta do pescoço umas grinaldas de flores acabadas de colher, e tendo Zeus aproveitado para a raptar e levar para outras paragens. Zeus e Europa tiveram três filhos, entre os quais Minos, que viria a tornar-se muito poderoso, reinando em Cnos- sos – palácio-labiríntico onde jazem ainda hoje (na maior de todas as ilhas da Grécia) remanescências de uma evoluída civilização a que a voragem de bárbaros e outros cataclismos puseram um fim. Entre esses vestígios, redescobertos em Creta nos comecinhos do século xx, conta-se o trono do rei e primeiro capitão de uma armada organizada, um primeiro e sofisticado sistema de canalização de águas, e, tanto ou mais importante, um primeiro teatro do Ocidente – anfiteatro onde a representação de cosmogonias nubladas pela incer- teza catapultou grande quantidade de entidades mitológicas para a História, misturando-as com os primeiros heróis de carne e osso. Sabemo-lo graças aos registos pictóricos, fixa- dos em frescos, de muito do que por lá aconteceu, e entre os quais protagonizam pequenos grupos de forcados-baila- rinos (ancestrais dos actuais recortadores, muito populares em Espanha, no Sul de França, e também no Ribatejo) que faziam uma espécie de ginástica acrobática por cima dos touros, talvez assegurando intróitos de chamamento para as representações teatrais. Por ali perto (do teatro), aprisionado no labirinto como num inferno do destino, se assevera ter existido um ser de fusão com cabeça de touro e corpo de homem – fruto da paixão da mulher de Minos por um touro muito belo de pe- lagem branca. As mesmas fontes nebulosas garantem tam- bém que terá vivido por esses dias um rapaz imprudente que tentou voar alto de mais com umas asas feitas de pe- nas de gaivota e cera de mel de abelhas que o sol derreteu. Nem tudo será nevoeiro, nesta viagem, mas sempre diremos que Rogério Ribeiro, mestre-pintor habitado por um rapaz voador que tinha um desejo imenso de mundo inteiro, para quem arriscar voar era não apenas necessário como inadiá- vel, pintou esse outro rapaz tão antigo e tão incerto chamado Ícaro durante anos – por vezes penetrando com desespero a tela, um pincel numa mão e na outra uma paleta, o pintor quase voando tentando um salto no tempo, atravessando a matéria como quem se preparava para ir ao encontro – talvez para consolá-lo – de Dédalo, o arquitecto a quem se atribui o labirinto e as asas de fazer voar o seu filho perdido para a morte no imenso mar azul naufragado em penas. Talvez os destinos de Dédalo e Ícaro tenham sido fruto de uma só apanha de Zeus numa das vasilhas que o filho do Tempo e chefe dos deuses tinha à porta de casa. Pois tanto quanto se sabe, e à falta de melhor critério, Zeus determi- nava o destino de todos recorrendo a dois receptáculos de possibilidades – contendo um apenas coisas boas e o outro somente coisas más. Assim, Zeus dava a uns (muito pou- cos, crê-se) uma vida muito boa, a outros (acredita-se que a maioria) uma vida muito má, e aos restantes uma vida mais
  • 20. 38 39 ou menos, que era quando ele retirava coisas das duas vasi- lhas. O princípio e o padrão mantiveram-se até aos dias de hoje, perpetuando composições sociais profundamente dife- renciadas e injustas. Disso sabia perfeitamente Gil Vicente, que cedo se viu compelido a incluir no seu teatro os deserdados da vida e demais miseráveis do destino, enriquecendo-o com a diver- sidade dos tantos autênticos a que pela primeira vez deu voz. Atribuindo-se-lhe a paternidade do teatro português, que os mais pessimistas (e porventura realistas) consideram não ter gerado descendências, e nem sequer quaisquer tipos de ou- tras sucessões dignas de nota, obrigando Garrett, tanto tem- po depois, a procurar voltar a fundar o teatro em Portugal (novamente sem resultados, asseveram os mais exigentes), Gil Vicente foi tão raro que foi também irrepetível. De obra anterior a Shakespeare e a Lope de Vega, e ainda mais dis- tante de Molière, cujas qualidades – literárias, dramatúrgi- cas e populares, para dizer democráticas – não conheceriam replicação desde então em Língua portuguesa, Gil Vicente remeteu tudo o que havia até esse momento para a sombra de uma realidade primeva. Vicente emergiu genial, com a cabeça cheia de planos ale- góricos e profanos, que expunham as injustiças e a desigual- dade da hierarquia social da sociedade feudal – entregando ao teatro assuntos terrenos do quotidiano de todos, e abalan- çando-semesmoàsátiraanticlerical,insurgindo-seodrama- turgo contra tão profusa e nefasta quantidade de frades que existia no Mundo de então. Se o cristianismo levara ao quase total desaparecimento do teatro no início da Idade Média, reduzindo-o à pequena encenação de poemas e canções pela mão de trovadores e jograis, e tendo-se a Igreja reapropria- do dos processos do teatro (manifestação originalmente re- ligiosa, é bem certo) para, através deles, cumprir ritos de mobilização de grande número de almas (bastará dizer que a teatralização de cenas da vida de Cristo a que se chamou mistérios reunia, por vezes durante vários dias, centenas de figurantes em torno de narrativas compostas por dezenas de episódios), Gil Vicente baralhou e voltou a dar. A estreia em Almada do Auto da Índia Em 1509, Gil Vicente escreve em Almada e leva à cena (talvez no Pátio Prior do Crato, mas sem certeza, apesar do tanto desejo de que assim tenha sido, gerado decerto pela existência de um desenho que, embora somente imaginan- do-o, coloca o estrado de tábuas dessa representação em lugar indefinido situado entre o Pátio e o miradouro da Boca do Vento), para entretenimento da corte de D. Leonor (me- cenas e protectora do Mestre de Retórica das Representações de D. Manuel), aqui abrigada nesse momento em razão do agravamento de um surto de peste, uma das suas primeiras mas logo genial farsa chamada Auto da Índia – cuja acção decorre em Lisboa, numa irónica evocação do muito que continua a suceder com populações separadas por um rio de margens afinal tão próximas. Golpe de mestre, no Auto da Índia o compositor teatral faz protagonizar a sociedade portuguesa da época, as suas contradições e ocultações – espelhadas na oposição de gran- de contraste entre o episódio particular que põe em cena a devassa libidinosa de uma mulher (propiciada pela ausência do marido), e ao mesmo tempo o acontecimento (venturoso, como se dizia também de D. Manuel I) dos Descobrimentos portugueses que por ali espreita. Foi assim que se tornaram espectáculo de teatro os assuntos da vida portuguesa desses O Auto da Índia pelo Teatro do Sopro, estreada a 25 de Janeiro de 2000 no Auditório Fernando Lopes-Graça (Fórum Municipal Romeu Correia), pela 4.ª edição da Mostra de Teatro de Almada. Repetiu a 30 de Janeiro de 2000 no Clube Recreativo do Feijó (em cima) © Vítor Cid DR
  • 21. 40 41 dias, coisas «muito cá de casa» que Vicente se atreveu, não sem desassombro, a expor à claridade do teatro – conferin- do-lhes um lugar inédito no espelho do mundo português de então que eram as suas sátiras teatrais. Com a vivaz modernidade do seu texto (muito embora aindacheiodeformasepalavrasarcaicas)remeteu-seoteatro medievo para a sombra de uma pré-história. Começava ali uma coisa nova, arriscadamente profana e de propósitos politicamente incisivos – cujas personagens podiam falar não apenas em português (o que começou com o Auto da Índia, primeira peça de Vicente escrita em português, em- bora mantendo-se o castelhano, por forma a servir uma das personagens, numa interessante aproximação a um realis- mo teatral, que ademais agradava ao bilinguismo da cor- te), como fazê-lo com os modos e trejeitos de cada grupo humano que representavam. Engenhosa criação, o dramaturgo oficial da corte pôs o ver- so, as suas métrica e rima, não já ao serviço da narração das então mais comuns pregações do teatro evangelizador – com que o fundamentalismo cristão da época procurava com- bater o paganismo do teatro herdado da Antiguidade –, tão pouco da imitação jocosa de actos religiosos, mas em pro- veito do riso (que também é salvação) crítico e transverso que vai beber aos arquétipos sociais. Isso fazendo Vicente com tal arte versejadora e mestria dramatúrgica, que era a própria rainha a pedir-lhe que por favor escrevesse e delei- tasse os entediados cortesãos com os seus tesouros poéticos de graças – não apenas formalmente tão graciosos, como superiormente espirituosos, e além disso sendo-o sem gros- seria. Pequeno mas afiado espelho de personagens típicas, re- tratadas sem estados de alma em flagrante comicidade, a farsa vicentina estreada em Almada evidenciou desde logo uma trama superlativamente bem entretecida, pondo em cena a história de uma mulher trocada por uma viagem na expedição portuguesa à Índia na qual participara o seu marido – soldado da armada de Tristão da Cunha, regres- sada a casa no mês de Julho desse ano de 1509. Teatro de sátira, descomplexadamente estrangeiro aos conflitos inte- riores mais passíveis de compaixão que pudessem ator- mentar tão velhaca mulher (não por ser adúltera, mas por ser mesmo manhosa), Gil Vicente fixou no Auto da Índia um pequeno conjunto de retratos da sociedade portuguesa no dealbar de Quinhentos – e entre os quais se destaca, bri- lhando na sua ausência omnipresente, o guerreiro moral- mente corrompido (e cheio de culpa enfiada dentro dele), para quem as conquistas da primeira globalização não pas- savam de pilhagens em proveito de legitimidades discutíveis. O teatro abriu-se com Vicente à sociedade em geral, pôde doravante contar histórias em que o público se revia e ao seu mundo, e até mesmo comentar os grandes planos para a Nação. Pôde ser político, e ter a actualidade por pano de fundo. Pôde, finalmente, representar-se independentemente da agenda de pompas e circunstâncias da corte. A aparição teatral emancipou-se nesse momento das ocasiões, festivas ou outras, que até à data determinavam a circunstância da representação cénica. O teatro bastava-se a si próprio. Foi assim com o Auto da Índia, estreado em 1509 em Almada por direito próprio, e de que se regista uma única segunda representação em Almada (muito embora repetida daí a dias noutra sala do Concelho), no âmbito da 4.ª edição da Mostra de Teatro de Almada, em 2000, pelo Teatro do Sopro. Iluminura atribuída a D. Carolina Santos, publicada originalmente em 1834 nas Obras de Gil Vicente – nova edição correcta e emendada, representando a primeira vez que o Auto da Índia subiu às tábuas de uma cena de teatro – em Almada, em 1509. Edição patrocinada por dois estudantes portugueses então exilados (um deles amigo de Garrett), com actualização ortográfi- ca, emendas tipográficas e contendo também a edição um ensaio biográfico sobre Gil Vicente. Foram seus autores J. V. Barre- to Feio e J. G. Monteiro (três volumes pela Officina Typographica de Langhoff, Hamburgo, Alemanha), a partir de um exemplar da Compilação de 1562 (cuja reedição, em 1586, oficializara incontáveis rasuras censórias realizadas pela Inquisição), encon- tradonabibliotecadaUniversidadedeGoettingen.AiluminuraserianovamentepublicadanaHistóriadaLiteraturaPortuguesa Ilustrada, vol. 2.º, pág. 49 (Albino Forjaz de Sampaio e Afonso Lopes Vieira, editado pela Aillaud e Bertrand, 1930) DR
  • 22. 42 43 (A Farsa seguinte chamam Auto da Índia. Foi fundado sobre que ua mulher estando já embarcado pera a Índia seu marido lhe vieram dizer que estava desaviado,equejánãoia,eeladepesarestáchorando,efala-lheuasuacriada. Foi feita em Almada, representada à muito Católica Rainha dona Lianor. Era de MDIX anos. Entram nela estas figuras: Ama, Moça, Castelhano, Lemos, Marido.) A primeira página do Auto da Índia, tal como constante no livro quarto da 1.ª edição da obra compilada de Gil Vicente (Copilaçam de todalas obras de Gil Vicente), datando de 1562 e que conheceria nova versão em 1586 (censurada pela Inquisição), na qual o Auto da Índia deixa de ser apresentado como a primeira farsa vicentina (supostamente sucedendo a Quem Tem Farelos?) Brilhante carácter de farsa Quis fazer o Auto da Índia por causa da modernidade intemporal de Gil Vicente. Não é por acaso que se trata de um dos textos mais vezes levado à cena por peque- nas companhias: o modo como a peça está construída, o ritmo alucinante, o seu brilhante carácter de farsa. Pareceu-me interessante que Gil Vicente tenha tido a coragem de abordar o tema do reverso da medalha do expansionismo português e as suas consequências, por vezes anedóticas, na sociedade, como é o caso daquele marido rumado à Índia a negócios e daquela mulher que não perde tempo a traí-lo. Jean-Pierre Fouque, Teatro do Sopro DR Do Caos se gerou a Noite e desta o Destino – divindade cega e implacável, a que todos os demais mistérios divinos estavam submetidos, e cujas leis provinham da Eternidade. A essas terríveis determinações supratemporais se deverá a culpa que enche de remorso os mortais obstinados na vir- tude e nas suas santidades. Nem mesmo Zeus, o mais pode- roso do panteão mitológico grego, tinha poderes para fazer inflectir o destino, o seu e o dos demais – o que de resto o Poderoso bem sabia, não lhe passando sequer pela cabeça procurar furtar-se-lhe, considerando que assim agindo po- deria perturbar irremediavelmente a ordem e provocar um regresso ao Caos. Embora senhor supremo dos mortais, a quem entregava os destinos diferenciados a que aludimos já, não era Zeus que regia esses fados de possibilidades tra- çadas à partida – sendo essa uma incumbência das divin- dades secundárias filhas da Natureza que presidiam aos nascimentos, à saúde e à sorte, fazendo respeitar a ordem natural do Universo. Deus polígamo e aventureiro, de incontáveis uniões amo- rosas – umas com deusas e ninfas e outras com mulheres mortais –, Zeus foi olímpico não apenas no panteão grego dos divinos, como também nas suas infinitas capacidades para seduzir as beldades que a Providência lhe punha no caminho, desse modo gerando descendências várias que foi espalhando pelos primeiros lugares do Mundo Antigo. Um mundo de que faziam também parte os Infernos, lugares simbólicos subterrâneos e tenebrosos, cujas almas penadas por lá instaladas os tragediógrafos da Antiguidade clássica (e os seus sucessores renascentistas, bem entendido) tantas vezes inscreveram no destino dos vivos, numa tensão entre a morte e a vida, o passado e o futuro, o pecado e a virtude, mas também, e talvez sobretudo, entre o destino (uma pa- lavra que não tem um antónimo claro) e os anseios. Uma tensão humanamente observável desde sempre, geradora de grandes sacas de culpas, fantasmas e outros espectros e pres- ságios imaginados. O Grupo Amador Os Desprote- gidos da Sorte, da Cova da Pie- dade, em meados da década de 1930 (talvez 1934), aquando da apresentação de Frei Luís de Sousa DR
  • 23. 44 45 Frei Luís de Sousa: Almada como cenário da tragédia Em Frei Luís de Sousa (1843), Almeida Garrett (1799- -1854), um outro fundamental renovador das coisas teatrais em Portugal, mostra-nos uma família a viver num palácio sobrecarregado de passado nos comecinhos do século xvii – um lugar cujo reflexo baço da felicidade espelha o que ha- bitualmente fica ocultado por baixo da camada superficial do que nos é dado a ver. Se nada é o que parece, a aparente fe- licidade da família retratada em Frei Luís de Sousa transporta a fatalidade dos lugares assombrados pelo passado e pela melancolia, caminhando os seres inexoravelmente para o destino mais comum dos náufragos submersos em pecado e culpa – desfecho trágico (a morte, por vergonha) para o qual toda a peça caminha desde o começo, e que Garrett situou na Igreja do Convento de São Paulo de Almada, no ambien- te sebastianista dos primeiros anos da dominação filipina – muito embora se apresente não como teatro histórico mas como uma tragédia doméstica, cuja trama cénica atravessa uma semana de tempo e decorre em lugares de Almada. Lugar talhado para a «aquietação do espírito ou o estudo das letras», o Convento de São Paulo de Almada, situado «no mais alto do monte e pendurado sobre o mar, fica como grimpa sujeito a todos os ventos que grandemente o comba- tem». Inaugurado em 1569, o Convento dominicano seria morada de vários «homens santos e sábios que viveram no silêncio da oração e dos livros» (Frei Luís de Sousa), entre os quais o próprio e insigne Frei Luís de Sousa, aliás Manuel de Sousa Coutinho (1555-1632), que antes de vestir o hábito dominicano e de se transformar num historiador e homem de letras fora militar (coronel de 700 infantes e de quase 100 cavalos, ao que consta) e marido de D. Madalena de Vi- lhena, angustiada viúva de D. João de Portugal (o famoso Romeiro – um fantasma que emerge do sentimento de cul- pa – que diz ser ninguém) que mais tarde vestirá também ela o hábito para ser Soror Madalena das Chagas. Obra-prima do teatro português, Frei Luís de Sousa foi escrita já depois de Garrett ter sido demitido do cargo de Inspector-Geral dos Teatros, durante a oposição à ditadura de Costa Cabral, cujo regime, aliás, proibiria durante al- guns anos a representação da peça, considerada inimiga de Espanha e desrespeitosa para com a Igreja. Texto historicista, na linha da tradição da época, quando o teatro em Portu- gal tinha ainda por assunto prevalecente a História do País, que habitualmente celebrava, Frei Luís de Sousa contém no entanto as singularidades que fazem da peça um objecto dramatúrgico de superlativa perfeição formal – ou não fosse a peça uma tragédia, expressão maior, e em certa medida a única de verdade (tendo muito embora do outro lado a farsa, naturalmente), tal como preconizava António Pedro, para quem o drama burguês e a comédia não passavam de for- mas conjunturais, que não sobreviveriam aos tempos longos da História da Humanidade. Inelutavelmente (como será justo dizer-se no caso) her- deira da tragédia grega clássica, contendo até mesmo uma recitação litúrgica e uma personagem agourenta que agem à imagem dos coros premonitórios da Antiguidade do tea- tro, Frei Luís de Sousa põe em cena a queda de uma família concreta que viveu em Almada a braços com uma ines- capável fatalidade. Sobre Frei Luís de Sousa, Garrett dirá ter querido fazer um teatro cuja acção dispensasse a aparição de uma per- sonagem malévola, antes entregando-a a «gente honesta e temente a Deus, sem um mau para contraste, sem um tirano que se mate ou mate alguém […], sem uma dança macabra de assassínios, de adultérios e de incestos, tripudiada ao som das blasfémias e das maldições […]». Dirá ainda ter sido seu propósito assumido a possibilidade de «excitar fortemente o terror e a piedade» enquanto elementos purificadores, e nem tanto produzir um melodrama – forma trágica pseu- do-shakespeariana muito popularizada na época, que Gar- rett desprezava e procurou combater, conseguindo em Frei Luís de Sousa a profundidade dramática que Alexandre Herculano, generalizando, acusava os demais dramaturgos de não ter. Dando inédito protagonismo conceptual ao papel pode- roso do passado, do simples passado regurgitante de vida, que por vezes, e dispensando a intervenção de terceiros, pode tomar a forma de um inferno, Garrett fez em Frei Luís de Sousa um teatro de espectros, que deu à memória do pecado e à expiação da culpa os papéis principais. Au- toridade natural, tenazmente enraizada na cultura católica portuguesa, a culpa surge em Frei Luís de Sousa como a representação da decadência cabralista a que os ideais de Garrett (João Baptista da Silva Leitão, filho do cruzamento da burguesia letrada e da burguesia que emergira em Sete- centos com o império brasileiro, de nome artístico repes- cado na ascendência aristocrática paterna de origem irlan- desa) se opunham. Frei Luís de Sousa, emanação literariamente superior de um conflito interior insanável que Garrett manteve ao lon- go de toda a sua obra – uma tensão permanente, muito co- mum nas gentes expostas a educações repressivas, entre os ideais iluministas e libertadores e o espectro cristão da cor- rupção carnal – contém um forte expressionismo e uma densidade profundamente humana que sugere de forma cla- ra a vivência de tormentos análogos por parte do seu autor: debatia-se Garrett por esses dias com problemas pessoais re- lacionados com a legitimação de uma filha nascida de uma união extraconjugal e cuja progenitora morrera pouco tem- po antes com apenas 20 anos, e também decorrentes da sua ligação com a inspiradora dos ousados poemas sensualistas de Folhas Caídas, numa época retrógrada e hipócrita (embo- ra em tanto tempo distando da família de Frei Luís de Sousa) em que as pessoas não tinham o direito de refazer a sua vida, tão-pouco de perfilhar filhos do adultério, nem mesmo de- pois de enviuvarem. A peça transporta, assim, o cunho autobiográfico que faz dela um espelho da angústia do seu autor enquanto pai ile- gítimo de alguém cujo destino, ditado pela sociedade, seria inexoravelmente o de carregar pela vida a culpa inocente por actos de outros – constituindo nessa medida um drama cuja severa solenidade, muito embora atenuada pelo lugar que confere aos sentimentos (como é próprio do romantismo), projecta realidades objectivas que retratam o abjecto país social e político da época. Num sentido mais estritamente político, Garrett espelhou em Frei Luís de Sousa a consciên- cia aguda que tinha da tragédia nacional que era a domi- nação cabralista dos anos em que a peça foi escrita – durante os quais o autor assistiu a um movimento de regressão na sociedade portuguesa em direcção ao velho país social e endemicamente hierarquizado, inflexão que se opunha aos ideais democratizadores e progressistas que moviam Garrett. Frei Luís de Sousa não subiu ainda aos palcos da Mostra. No entanto, Almeida Garrett já foi representado na Mostra, em 2000, pela mão da Companhia de Teatro de Almada que, na sequência da sua estreia em 1999, no ano em que se co- memorou o segundo centenário do nascimento de Almeida
  • 24. 46 47 Tomamos também aqui boa nota de uma anterior repre- sentação da peça, provavelmente em 1934, pelo Grupo Dra- mático do Clube Recreativo Piedense cuja designação na época, Os Desprotegidos da Sorte, evoca com inexcedível cla- reza a história social que está na origem do movimento asso- ciativista em que germinou o teatro em Almada. O próximo capítulo é-lhe dedicado. Dizer finalmente, ainda a propósito do território de Alma- dacomocenáriodatragédiaromânticagarrettiana,quehouve nessa escolha de Garrett (uma família e lugares concretos) uma interessante aproximação por parte de um habitante de Lisboa a uma verdade de que, se posto o observador na margem sul do rio, oferece a sua mais nítida visão: a de uma angustiante superlativa beleza de um território cujo maior contraste decorre de uma história e tragédia sociais de que o rio, muro separador, parece participar. Pelo território se afirma também a tragédia solar de que os portugueses, à semelhança dos gregos, têm visões únicas, através do de- sespero que emerge da beleza opressiva dos lugares marí- timos (com toda a sua história que levou tantos para tão lon- ge). «É nessa infelicidade dourada que a tragédia culmina» (Albert Camus, O Exílio de Helena, 1948). A maqueta do cenário para o 2.º acto de Frei Luís de Sousa (por José Barbo- sa) para a encenação pela Companhia Rey Colaço-Robles Monteiro, em 1943 (original no Museu Nacional do Teatro e da Dança), quando Euni- ce Muñoz fez de Maria, a filha moralmente ilegítima de Manuel de Sousa Coutinho e da viúva de um guerreiro nobre desaparecido no nevoeiro com D. Sebastião Garrett, levou Viagens na Minha Terra, de prosa adaptada por Carlos Porto, à edição de 2000 da Mostra. No progra- ma dessa edição, pode ler-se que em Viagens na Minha Terra «se mostram os choques entre o velho e o novo, que tão fortemente marcaram o Portugal oitocentista, a luta pelos ideais de renovação social e depois o conformismo e a aco- modação que resulta da transformação dos revolucionários em barões ou em viscondes, como o próprio Garrett». Num momento – agora sujeito ao violento fenómeno glo- balizador – cujo verdadeiro impacto das regressões, opera- das através de equivalente aburguesamento dos mais fracos, os vindouros poderão melhor que nós aferir, não deixare- mos todavia de referir, celebrando-a, a circunstância feliz de Frei Luís de Sousa ter sido levada à cena pela Companhia de Teatro de Almada em Abril de 2016, numa encenação assinada pela mão subtil de Rogério de Carvalho – o antigo professor de Matemática que, nos comecinhos de 1970, foi responsável pelo primeiro grupo de teatro criado na então Escola Industrial e Comercial Emídio Navarro, no que cons- tituiria um dos mais interessantes e florescentes pólos de iniciação teatral em contexto educativo levado a cabo em Almada. Sobre isso nos atardaremos mais adiante. DR A primeira página de Frei Luís de Sousa, cuja trama trágica decorre em lugares de Almada, na 1.ª edição das obras teatrais de João Baptista de Almeida Garrett, Theatro de J. B. de Almeida-Garrett (Imprensa Nacional, 1944-1946). A peça foi representa- da pela primeira vez a 4 de Julho de 1843 (com Garrett a fazer de Telmo Pais) na sala privada do Teatro da Quinta do Pinheiro, propriedade de um amador (para designar um grande apreciador e praticante) de teatro chamado Duarte de Sá. Foram seus intérpretes actores amadores. Frei Luís de Sousa subiria à cena do Teatro Nacional D. Maria II em 1850, apresentando inova- ções de cariz técnico e artístico que pretendiam favorecer a intensidade dramática da peça: foi nesse momento substituída a iluminação com candeeiros de petróleo por iluminação a gás, e usaram-se uma cenografia e um guarda-roupa que procuraram servir diacronicamente o tempo em que decorre a trama. Apenas a representação da parte do fogo patriótico ateado por Manuel de Sousa Coutinho ao seu palácio, para evitar que caísse nas mãos dos espanhóis, levantou dúvidas e preocupações, mas tudo correria pelo melhor. Cem anos mais tarde, Eunice Muñoz, integrando a Companhia Rey Colaço-Robles Monteiro, e representando ao lado dos actores mais importantes da época em Portugal, interpretaria o papel de Maria, a rapariga nau- fragada em culpa e vergonha alheias DR
  • 25.
  • 26. 50 51 © Vítor Cid Salão de Festas da Sociedade Filarmónica Incrível Alma- dense (SFIA), a mais antiga colectividade de cultura e re- creio de Almada. Inaugurado a 11 de Maio de 1958, seria palco de estreia de muito e variado teatro ao longo do sé- culo xx, do espectáculo em dois actos Acerta o Passo (1959), pelo Grupo de Opereta e Revista «Os Incríveis», com autoria de Baptista Lourenço e encenação de Rufino dos Santos, à peça Chico do Norte (1980), de Alexandre Castanheira, com música de Fernando Lopes-Graça, pelo Grupo de Teatro Amador Incrível Almadense (na época dirigido por Joaquim Benite), com encenação de José Martins e José Mora Ra- mos, passando pela criação colectiva (a partir de textos de vários autores revolucionários, numa evocação de revisita- ção à Ode ao Pão, de Pablo Neruda) O Pão (1976), pelo Teatro Amador da Incrível (TAI), com encenação de Luís Marques. O Salão de Festas da SFIA acolheu a 1.ª edição da Mos- tra de Teatro de Almada, em 1996, organizada pela Câmara Municipal de Almada e pelos grupos de teatro da Associa- ção Cultural Manuel da Fonseca, Brigada Organizada de Teatro Actual (B.O.T.A.), Centro Cultural de Almada, Com- panhia das Calendas, Clube Recreativo e Instrução Sobre- dense (CRIS), Grupo de Iniciação Teatral da Trafaria (GITT), Oficina de Teatro de Almada (OTA), Produções Priapismo, Ninho de Víboras, Teatro Extremo e Teatro de Papel. Nas páginas anteriores, pormenor do sistema mecânico da teia do Salão de Festas da SFIA 2. ALMADA: PALCO DE UMA HISTÓRIA POLÍTICA E SOCIAL Esta história – de apenas 20 anos, porém a saber o que sabe hoje – não poderia ser revisitada sem inscrição preco- ce do fenómeno associativista que faz de Almada um caso singular no panorama da sociedade portuguesa, e deu ao Concelho um associativismo cultural, de raiz social, que veio a chamar a si as então denominadas instrução, recreio e cul- tura das gentes, substituindo-se ao papel de um Estado en- demicamente ausente nessa matéria. É assim que Almada assiste à institucionalização de uma forma de associativis- mo decorrente da instalação de unidades industriais no seu território, que por sua vez determinou a fixação no Conce- lho de crescentes contingentes de população trabalhadora, atraída para a proximidade desses pólos das indústrias. Ori- ginários de outros lugares, esses operários desaguaram em Almada como ribeiros confluentes, chegados ao Concelho poracçãodeummovimentodeafluênciaprovocadoporum desnivelamento que evoca o que outrora fazia mover os moi- nhos de maré. Levadas por esse movimento, integrando po- pulações (provindas sobretudo do Algarve, das Beiras e do Alentejo) deslocalizadas pelas indústrias que começaram a florescer na margem sul do Tejo nos anos 20 do século xix (fornos de cal, tanoarias, fiações, tinturarias, indústria quí- mica, indústria moageira, construção naval – em madeira, depois em ferro – e indústria corticeira), famílias inteiras deixaram o seu chão natal para povoar o território de fron- teira que é Almada. Fronteira antes de mais com Lisboa, cir- cunstância propiciada pela geografia que determinará não apenas uma história social específica (marcada pela desigual- dade relativamente às populações mais próximas do centro do poder), como também curiosidades históricas, de anteci- pação relativamente ao que a capital inscreverá nas páginas da história política do País, e cujo forte valor simbólico trans- porta uma ideia de vanguarda que também o teatro espelha- rá ao longo dos tempos.
  • 27. 52 53 Assim, lembrar aqui a talhe de foice que o que veio a ser celebrado a 24 de Julho de 1833 em Lisboa decorreu do que sucedeu no dia anterior, 23 de Julho de 1833, na Cova da Piedade, quando os 1500 soldados comandados pelo Du- que da Terceira enfrentaram a tropa de Teles Jordão, com a colaboração da população de Cacilhas, que terá assistido e ajudado à derrota dos espavoridos miguelistas. E lembrar também, noutra apanha em passada larga, que o que veio a ser proclamado em Lisboa a 5 de Outubro de 1910 conheceu em Almada novamente antecipação para a véspera, quando uma multidão de vários milhares de pessoas marchou da Mutela, Caramujo e Cova da Piedade até ao centro de Alma- da Velha para ouvir tocar as bandas da Incrível Almadense e da Academia Almadense. A Incrível e a Academia A história da criação da Sociedade Filarmónica Incrível Almadense (SFIA), fundada em 1848, marca não apenas o percurso do forte movimento associativista que emer- giu em Almada na sequência da fixação no território das indústrias, como também a linha divisória que separa os tempos de Costa Cabral (e tudo o que representaram) dos que, não tardando, lhe sucederiam. Isso mesmo ficou con- tado por Francisco José da Silva, um dos homens fortes do movimento associativista local, e também dirigente, já no século xx, entre 1908 e 1940, da Incrível Almadense – a co- lectividade que, ainda no século xix, aquando da dissenção entre associados que veio a dar origem à Academia Alma- dense, passaria a ser designada por «Sociedade Velha», por oposição à então novíssima Academia –, tal como Romeu Correia assegura ter ficado impresso num artigo de jornal publicado num diário da capital em 1925. Nesse relato de imprensa se dá conta do dia de 1846 quan- do, ainda sob o reinado de D. Maria II, uma sociedade mu- sical chamada A Cabralista, instalada num pátio na Boca do Vento, recebeu a visita de Saldanha – rumado a Almada a fim de preparar uma manifestação popular contra Costa Cabral. Foi então que alguém se lembrou de ir pedir os serviços musicais d’A Cabralista, para acompanhar a manifestação dos opositores a Cabral. Sendo cabralistas, o natural teria sido negarem-se, em conformidade com a política interna dos seus influentes dirigentes associativos. Sucedeu porém que, coagida por outros influentes associados, A Cabralista apareceu a tocar na manifestação, atiçando a fúria popular e o apedrejamento dos músicos, e dessa forma provocando a imediata dissolução da colectividade cabralista, por receio de novos e tão violentos ataques da turba. Finais da década de 1930. Operárias corticeiras da Fábrica Ranking&Sons (Romeira, Cova da Piedade) © Leslie Howard Volvido um par de anos sobre o curioso sucedido, um gru- pode rapazes começou a falar na ideia de fundar uma socie- dade musical, o que não era possível de imediato por não teremmaneiradefinanciarasuacriaçãoeiníciodaactivida- de. Decorridos mais dois anos, durante os quais os rapazes se cotizaram semanalmente e encheram de dinheiro um pé- -de-meia, fundou-se a 1 de Outubro de 1848 a colectividade mais antiga de Almada, cuja designação foi encontrada por acaso, emergindo a palavra que viria a nomeá-la durante um diálogo entre os primeiros associados. Um deles, mais pessimista, terá dito que uma sociedade daquele tipo em Almada não teria grandes hipóteses de sobreviver durante muito tempo – e que acaso a realidade o contradissesse, seria realmente incrível. «Pois há-de ser esse o título», disse o ou- tro fundador. «Fica sendo a Incrível Almadense!» 1908. Teatro e música na Academia Almadense 24 de Março de 1939. A primeira pedra da nova sede da Academia de Instrução e Recreio Familiar Almadense, inaugurada a 20 de Setembro de 1942 Situou-se a sua primeira sede no número 13 do Pátio do Prior do Crato, onde hoje uma placa assinala a homenagem que os incríveis (assim mesmo se autodenominam) corpos gerentes da colectividade dedicariam em 1998 aos fundado- res da SFIA. Em Março de 1895, uma cisão entre os associa- dos da Incrível daria origem à então chamada «Sociedade Nova». Baptizada Academia de Instrução e Recreio Familiar Almadense (AIRFA), seria criada por um grupo de dissi- dentes da doravante designada por «Sociedade Velha». Na Sociedade Nova, o teatro é desde logo uma das artes em que a Academia (cuja principal razão de ser – a instru- ção – se inscreve na sua designação e identidade, mantidas inalteradas) se notabiliza, organizando espectáculos com programas ambiciosos, compostos por várias peças de tea- DR DR
  • 28. 54 55 1952. Espectáculo pelos 10 anos decorridos desde a inauguração da sede da Academia, em Setem- bro de 1942 tro, e cujas receitas de bilheteira revertiam por vezes para melhoramentos das próprias infra-estruturas necessárias ao teatro: palco e cenários, por exemplo. Foi o caso da noite teatral de 11 de Outubro de 1908 quando, no Teatro da Aca- demia Almadense, teve lugar uma Récita Extraordinária integrada por um Debute de Amadores (i.e., a estreia de no- vos valores) com «reaparição» de laureados amadores ante- riormente premiados, pela primeira representação de uma comédia em três actos, por um acto de Folies Bergères, e ainda pela primeira representação de uma comédia num só acto – o todo sendo abrilhantado por um sexteto musical e pela Banda da Academia. Outras vezes, como aliás ainda hoje sucede, grupos e ele- mentos profissionais ou semiprofissionais eram contrata- dos para assegurar valências artísticas que os associados e formadores da Academia não tinham. © Vítor Cid Edifício e sala do Cine-Teatro da Academia Almadense, inaugurado em 1942 e requalificado em 2014, no âmbito do programa municipal de requalificação de edifícios em- blemáticos da cidade de Almada. Reaberta a 13 de Setem- bro de 2014, a sala dispõe de 164 lugares de plateia e 33 de balcão. Em 2014, foi o palco principal da Mostra de Teatro de Almada DR
  • 29. 56 57 Nos jornais da época imediatamente após a implantação da República, artigos críticos das representações teatrais ocorridas nas colectividades almadenses registam a clara se- paração entre os conceitos de amador e de artista – remeten- do para o amadorismo as falhas, exageros, embriaguezes e demais fragilidades observadas no desempenho dos amado- res (actores e ensaiadores). Apesar da dureza de alguns des- ses propósitos críticos, vários seriam os que singrariam na constelação teatral do Concelho, começando de pequeninos nos grupos dramáticos infantis e por vezes tornando-se mais tarde ensaiadores de renome local. Por vezes, as peças versa- vam sobre as gentes de Almada, cujos costumes criticavam, as mais das vezes parodiando-os. A Academia Almadense daria largo espaço ao teatro du- rante o século xx, não apenas através da sua própria activi- dade, no âmbito da formação teatral que ao longo dos anos proporcionou aos seus associados, como também mediante a concessão da sua sala de teatro a terceiros. Já depois do 25 de Abril, seriam vários os nomes do tea- tro profissional que habitariam o espaço cénico da Acade- mia: Rogério Paulo, José Viana (fundador, juntamente com Rogério Paulo, da Cooperativa Teatro Popular de Almada); Pós-25 de Abril. A Academia Almadense acolhe a Cooperativa de Teatro Popular de Almada, de José Viana Joaquim Benite (que em 1978 deslocaria para a Academia, ali permanecendo até 1987, o projecto teatral que dirigia em Lisboa, no que viria a constituir o mais bem-sucedido exemplo de uma iniciativa levada a cabo no contexto do pro- grama político de descentralização cultural, dando origem, em 1978, à Companhia de Teatro de Almada – embora a formação mantivesse até meados dos anos de 1980 a ante- rior denominação: Grupo de Campolide –, já então integra- da por actores que brilham no firmamento teatral do País, como Henrique Canto e Castro, 1.º actor da Companhia, Ema Paul, Henriqueta Maia, António Assunção ou ainda Alberto Quaresma); e, finalmente, Fernando Jorge Lopes e o seu Teatro Extremo, que habitaria o Teatro da Academia entre 1996 e 1998. Apesar dos sucessivos e diferentes confinamentos impos- tos pelo Estado Novo, várias associações crescerão graças à acção benemérita e filantrópica dos seus associados, que contribuirão para a construção de novas sedes – assim su- cedeu, designadamente, com o Cine-Teatro da Academia Almadense, cuja construção foi iniciada em 1939 e concluí- da em 1942, e também com o Salão de Festas da Incrível Almadense, inaugurado em 1958. DR © Vítor Cid O teatro teve na Incrível Almaden- se um lugar central ao longo de todo o século xx – permanecendo nesta data (2016) uma das «modalidades» (assim mesmo se referem à prática do teatro na SFIA os autores dos livros que ins- crevem a sua história) mais acarinha- das, talvez por ser tão comprovadamen- te propiciadora da fraternidade entre as pessoas. «Baluarte artístico e cultural à disposição dos associados, em parti- cular, e dos almadenses, em geral» (A Incrível no Limiar dos 150 Anos, vol. VII), pelo teatro da SFIA passaram dezenas de grupos de amadores, do Dramático Almadense, em 1903, ao actual Cénico da Incrível – formação cuja participação na Mostra de Teatro de Almada se ini- ciou em 1999. Dois nomes brilham no firmamento dramático contemporâneo da Incrível: Malaquias Lemos e a sua su- cessora, Eugénia da Conceição. O edifício do Cine-Incrível foi inau- gurado a 2 de Novembro de 1925 e co- nheceu várias intervenções de requali- ficação, umas de menor monta (1931, 1983) e outras de remodelação para servir novas valências da colectividade, caso de 1944, quando se inaugurou o Cine-Incrível, cuja fachada se mantém inalterada em 2016
  • 30. 58 59 O teatro marcaria também forte e continuada presen- ça na actividade da Incrível Almadense, estreando-se em 1903 com o Grupo Dramático Almadense, que conhece- ria incontáveis formações sucessoras, e outras tantas dife- rentes designações, da Arcádia Incrível Almadense (1906) ao Teatro Amador da Incrível (o famoso TAI, fundado em 1976 e que mais tarde, no início dos anos de 1980, seria dirigido por Joaquim Benite, tendo por ensaiadores José Martins, José Mora Ramos e José Peixoto), passando pelo grupo Amigos da Incrível (1936), pelo Grupo Cénico «Os Incríveis» (1940, com posteriores e sucessivas diferentes composições e ensaiadores), pelo Grupo Cénico Infantil da Incrível (1944), pelo Grupo de Opereta e Revista «Os Incríveis» (1946) ou, ainda, pelo Grupo de Variedades da Incrível (1950). 1944. A luta de classes no teatro da SFIA, pelo Grupo Dramático «Os Incríveis» 2 de Fevereiro de 1957. João Villaret visita a In- crível Almadense, pela es- treia de Esta Noite Choveu Prata, de Pedro Bloch DR DR 11 de Maio de 1958. Inauguração do Salão de Festas da Incrível Almadense 1959: Acerta o Passo DR DR DR
  • 31. 60 61 Os anos de ouro do teatro na Incrível O primeiro grupo cénico da Incrível de que há memória foi baptizado como o Grupo Dramático Alma- dense. Não deixa de ser curioso que o seu nome possuísse uma abrangência que ultrapassava a própria colectividade e que seja o primeiro que se conhece devidamente organizado da então vila. A sua forma- ção ficou a dever-se a João Carlos Carvalho Pessoa, encenador da peça Atribulações dum Estudante, que estreou no palco do Salão da Incrível Almadense. O período áureo do teatro na Incrível iniciou-se após o final da Segunda Guerra Mundial e prolongou-se até ao final dos anos de 1960. De 1945 até ao final dos anos de 1960 foram encenadas em média três peças por ano, o que só por si ilustra a dinâmica que então existia nesse memorável período de mais de duas décadas – sem contabili- zar as reposições de vários sucessos, o que acontecia com frequência nas épocas festivas do Carnaval e Natal. O primeiro centenário da Incrível, em Outubro de 1948, além de chamar gente nova à Colectividade, como foi o caso de Rufino dos Santos – um encenador teatral que trouxe para os palcos almadenses a re- vista e a opereta, que se juntaram com sucesso ao tradicional teatro declamado –, foi um grande incentivo para se fazerem coisas mais ambiciosas. Passou a ser comum o público esgotar a sala de espectáculos da «Sociedade Velha» e a mesma peça ser exibida mais que uma vez. O primeiro grande êxito desta nova era teatral foi a revista Cabaz de Frutas, que pisou os palcos (da Incrível e de outras colectividades, na Margem Sul e em Lisboa) por 32 vezes nos anos de 1946 e 1947, algo completamente inédito na época. Se Rufino dos Santos trouxe para a Incrível a música e a graça, com várias operetas e revistas, Fernan- do Gil, grande apaixonado do teatro declamado, não baixou os braços e encenou mais de dezena e meia de peças até final dos anos de 1960 (com várias reposições). Em 1967, Celestino da Silva levou Tchekhov (O Urso) para a Incrível. Luís Alves Milheiro, Sociedade Filarmónica Incrível Almadense Revista Cabaz de Frutas DR 1966: O Pássaro de Asas Cortadas, de Luiz Francisco Rebello, pelo Grupo Cénico «Os Incríveis» es- treada a 5 de Novembro no Salão de Festas da Incrível Almadense 1967: O Urso, de Tchekhov, com encenação de Celestino Silva, su- biu ao palco do Salão de Festas a 24 de Outubro DRDR
  • 32. 62 63 Os desprotegidos da sorte Malgrado as sucessivas conquistas dos operários nos sé- culos xix e xx, um adágio do século xviii prosseguiu ins- crevendo de verdade indiscutível uma realidade social que tem sobrevivido à democracia: «Portilha de Lisboa com Al- mada:/ Uma leva tudo, outra nada.» Mas a que nada leva não se fica. Tem sido assim desde o século xix, quando os migrantes que caminharam em direcção às indústrias lito- rais pegaram no seu destino para o transformar em coisa melhor – levando por diante lutas políticas que vieram a dar origem à criação de sindicatos e associações de operários cujas dinâmicas reivindicativas, profundamente transforma- doras da correlação de forças laborais, passaram pelas colec- tividades e teatros. Foi também assim quando, em Julho de 1906, uma as- sembleia geral da classe corticeira do Concelho teve lugar na Incrível Almadense. Ou quando, em Setembro desse ano, uma assembleia magna de corticeiros grevistas foi convoca- da para a Academia Almadense. Ou ainda quando, uns dias mais tarde, uma reunião operária aconteceu no Teatro Gar- rett, da SFUAP – o mesmo teatro onde vários anos depois das greves operárias dos corticeiros e moageiros ocorridas em 1911 e 1912, seria aprovada, a 25 de Abril de 1919, a mo- ção de proclamação de uma greve geral corticeira em todo o País. É nesse quadro social e político que surgem e se desmul- tiplicam associações de base solidária com forte cunho pro- teccionista – cujas valências iam da prestação de primeiros socorros médicos à venda cooperativa de bens essenciais, passando pelas actividades de cultura e recreio (antiga palavra para lazer), em que desde logo protagonizaram os primei- ros grupos musicais (bandas filarmónicas, tunas e charan- gas, grandemente integradas por analfabetos, muito embora pudessem sem dificuldade decifrar a notação das pautas de música) e os grupos cénicos – em que pontuam, brilhando entre os primeiros, o Cénico Amador da SFUAP (1891), o Grupo Amador da União e Capricho do Monte da Caparica (1892), o Dramático Almadense da Incrível (1903, que em 1906 passará a chamar-se Grupo Arcádia Dramática Incrível Almadense, em 1910 Nova Arcádia Almadense, e em 1916 Grupo Dramático «Os Incríveis») ou ainda o Grupo Dra- mático Instrução e Recreio de Almada (1919, integrado por elementos associados da Academia de Instrução e Recreio Familiar Almadense). Se a maior parte das associações de solidariedade e acção social se fixou nas zonas rurais do Concelho, as associações de instrução e recreio assentaram praça nos maiores aglo- merados urbanos. Uma parte não negligenciável da integração dessas tantas pessoas fez-se através do teatro – lugar de fraternidade e con- fluência de gentes, espécie de grande albergue onde cabem todos e mais alguns, por ser o teatro uma arte do colectivo e de confluência de vários saberes, ofícios e conhecimentos humanos. Alguns desses migrantes transformam-se em en- saiadores, muitos mais em actores. As pessoas cruzam-se no teatro promovido pelas colectividades que começam a ser criadas, ali se conhecem, convivem e se casam umas com as outras. Falamos pois, e antes de mais, de um teatro que de- corre de uma história social, que prosseguirá determinan- do muito do que aconteceu ao longo do século xx no que ao teatro concerne – dos assuntos levados à cena, ao engenho e à arte, por vezes aguçados pelas dificuldades, que muitas dessas representações revelavam. Espelhando o curso e a causa das coisas, os primeiros gru- pos de teatro de Almada transportam nas suas designações o abandono, as carências materiais e as grandes lutas ope- rárias – bem como a consciência de classe que as precedia e determinava. É o caso do Grupo Dramático Os Desprote- gidos, da Cova da Piedade (mais tarde, a partir de 1933, re- nomeados Os Desprotegidos da Sorte, no que constitui uma curiosa actualização que terá acompanhado o advento do Estado Novo), integrado por operários carvoeiros, serra- lheiros, corticeiros, moageiros, e cujo primeiro ensaiador foi José Joaquim Correia, comerciante de vinhos na Piedade e mais tarde proprietário de uma fábrica de cortiça. Para além da integração, do recreio e da instrução dos as- sociados em sentido estrito, e dos contactos intergeracionais que proporcionavam, essas actividades de carácter artístico vieram a ser decisivas para o contacto das gentes de Almada com outras gentes mais distantes, proporcionado pela deslo- cação dos artistas almadenses a outros pontos do País, num intercâmbio que o século xx veria florescer. A actividade ar- tística propiciava a viagem, a abertura ao Mundo, o contacto com o Outro. O teatro fazia-se com todos e para todos, in- cluídos os de outros lugares, por vezes distantes, e de outros costumes – característica constitutiva do teatro não burguês. Nos primeiros anos do século xx, será também através do teatro que anarquistas e socialistas procurarão arrancar os homens ao adormecimento das tabernas e do jogo, intelec- tualizando os operários, expondo-os a dramaturgias que en- cenavam as suas próprias vidas, psicodramatizando reali- dades sociais que comummente escapavam à consciência de quem estava imerso nelas. Assim, o teatro toma uma parte considerável do lugar anteriormente ocupado pela músi- ca, que já não chegava para sossegar os espíritos de todos. Em Outubro de 1914, no II Congresso Socialista da Região Sul, um documento de propaganda anunciava o teatro como instrumento de inscrição política e divulgação de um reper- tório dramatúrgico socialista. Porém, nem só a designação dos primeiros grupos de teatro transporta a história política e social dos tempos de transformação em que estiveram em actividade, reve- lando a emergência de uma cultura operária de que o por vezes chamado «teatro de combate» fazia parte, enquanto instrumento de doutrinação que se opunha ao teatro bur- guês. Os próprios títulos das peças de teatro levadas à cena são também eles um espelho dessas pelejas e anseios. É nesse contexto que sobem aos palcos de Almada as peças Gaspar, o Serralheiro – drama em quatro actos (de António Pedro Baptista Machado, datada de 1877, tanto quanto se sabe re- presentada pela primeira vez em 1890 pelo Grupo Os Des- protegidos, na inauguração do Teatro Garrett, e tendo sido reposta várias vezes até 1895), Justiça (1902) ou Cenas de Mi- séria (1919, de Henrique de Macedo Júnior, pelo grupo «Os Incríveis»), todas levadas à cena no Teatro da SFUAP (criada em 1889, na sequência evolutiva de uma colectividade ante- riormente designada por Sociedade Musical Caramujense), cujo primeiro grupo cénico havia sido constituído em 1891. Velhos programas e registos de imprensa guardam nota da representação em Almada de peças de teatro cujas ra- zões políticas ficam patentes nos seus títulos, sendo comum a omissão de referência à autoria nos cartazes de publici- tação das representações: Escravos e Senhores (1906, pelo Grupo Dramático do Clube Recreativo José Avelino), e, em 1910, pelo Grupo Nova Arcádia Almadense, sucessor do Grupo Arcádia Dramática Incrível Almadense), O Fidalgo Operário (1910, pelo Grupo da Incrível Almadense, a 16 de
  • 33. 64 65 Janeiro desse ano), A Greve (drama em três actos de Porfírio A. Santos, representado em 1922 pelo Grupo Dramático Ins- trução e Recreio de Almada, no Teatro Garrett, da SFUAP, num espectáculo dedicado à classe operária promovido pela Sociedade União Pragalense), ou ainda A Morte de Marat (1922, no Teatro Garrett). Nos jornais, os grupos de amadores são por vezes «lin- chados», por «críticos» que, muito embora não assinando as suas sentenças, se outorgam direitos discursivos de conside- rável violência, apesar de aplaudirem os ideais e a natureza democratizadora das peças de intervenção política que ani- mavam os populares que faziam esse teatro. Assim sucedeu com a peça A Voz do Povo, levada à cena em Novembro de 1910 no Teatro da Academia, pelo Grupo José Guedes. Por vezes, os espectáculos teatrais são promovidos com fins solidários, visando a angariação de fundos destinados a apoiar operários despedidos, adoecidos, ou as suas viúvas e filhos deixados em dificuldades. Fenómeno que emana por- tanto de outro mais premente – a imperativa necessidade de sobrevivência das gentes trabalhadoras –, o teatro emerge como parede mestra da actividade recreativa mas também solidária das colectividades, criadas não apenas para favore- cer condições de integração e mobilidade social (proporcio- nadas também pelas aprendizagens artísticas), como para defender os interesses dos deserdados da vida esquecidos pelo Estado. O teatro participa activamente nessas redes de solidariedade, desempenhando um papel fundamental nas estratégias de sobrevivência económica das comunidades operárias de Almada. 1910. Recorte de imprensa sobre a estreia de A Voz do Povo («peça de intuitos democráticos») no então chamado «theatrinho» da Academia Almadense 1933. As actrizes da peça Rosa do Adro pelo Grupo Cénico da Academia. Da esquer- da para a direita: Sílvia de Jesus Soares, Suzete Alaiz (Rosa) e Dália Alaiz. Publicado em 1870, o romance A Rosa do Adro, de Manuel Maria Rodrigues, teve a sua primeira adaptaçãoparateatroem1899.Jánoséculoxx,ARosadoAdroconheceuduasversões para cinema: em 1919 e em 1938 (a última por Chianca de Garcia, com Maria Lalande) É nesse contexto que vemos surgir alguns novos líderes e representantes locais, nas pessoas dos fundadores das primei- rascolectividades.Assim,começamaquelesasersolicitados parapadrinhosdebaptismodosfilhosdosassociados,criando laços de afecto e honra entre os compadres – elos humanos para a vida. Mais tarde, já sob a República, os filhos daqueles vão ocupar lugares de relevo na vida local, vão ser autarcas, decisores políticos, representantes eleitos pelo povo. A República dará um impulso decisivo à expansão da acti- vidade associativa, pela inscrição do direito de associação na Constituição de 1911. Compostos por diferentes actuações, os programas dos espectáculos promovidos pelas colectivi- dades de cultura e recreio integrarão o teatro, a música e a poesia, terminando muitas vezes com bailes, cuja música era executada pelas filarmónicas e outros agrupamentos musi- cais – distinguindo-se do que sucedia nos palcos burgueses, onde havendo teatro não havia música, o inverso sendo tam- bém verdadeiro. No dealbar do século xx, Almada concentrava já mais de uma vintena de colectividades, a maioria fundada por comer- ciantes e operários locais. Depois do golpe de Estado nacionalista que pôs termo à Primeira República e instaurou uma ditadura militar, Almada passava a pertencer, por decreto, ao novo Distrito de Setúbal. A organização administrativa fascista do território empurra- va Almada para fora dos âmbitos do centro do poder. Mui- tos seriam os que contestariam a decisão, por a considera- rem não apenas injusta como absurda, atendendo à evidente proximidade entre a capital e Almada, que teria justificado diferente ordenamento das parcelas territoriais, integrando Almada no distrito de Lisboa. A repressão ao teatro Criadaem1929,aInspecção-GeraldosEspectáculos,orga- nismo sucessor da Inspecção-Geral dos Teatros Nacionais (cuja criação Garrett havia proposto e de que havia sido o primeiro Inspector-Geral, nos já remotos dias de 1836), des- de 1927 dependente do Ministério do Interior (vinda da tu- tela do Ministério da Instrução Pública, decisão claramente política, que favorecia o policiamento pelo Estado emergi- do da ditadura militar, em cujos diplomas legais se instituiu com todas as letras uma censura à qual competia «fiscalizar e reprimir»), seria integrada em 1944 no Secretariado Na- cional da Informação, Cultura Popular e Turismo – o SNI, criado nesse mesmo ano. DR