2. Quando Anoitece...
Eu já fui como você, eu já fui como eles e agora... Nem sei como me
classificar... Entendo os vilões, entendo as vitimas, já fui como eles. A
cidade apagou, as luzes de esperança se foram e uma imensa escuridão
caiu sobre nós e nunca vai embora, seja dia, ou seja, noite. Durante o dia,
as ruas são cenários para drogados, prostitutas, ladrões medíocres e
policiais corruptos, como figurantes cidadãos trabalhadores e mendigos.
À noite, as cortinas caem, agora é a vez dos chefes do crime organizado e
seus capangas, novamente a policia está envolvida. Cidadãos aderiram ao
toque de recolher. Meus pais vieram a essa cidade, perdi meus pais pra
essa cidade, eles vieram lutar contra essa escuridão e nunca mais
voltaram pra me ver.
Essa noite, 12 homens foram mortos e o décimo terceiro sobreviveu,
pedindo pra morrer, jogaram-lhe em seu corpo algo que parecia chá
quente, chá quente e inflamável, ele quase queimou ate a morte, mas o
corpo de bombeiros apagou seu fogo, os outros doze... Alguns foram
estripados, outros dilacerados, uma pilha de membros embaralhados
numa poça de sangue, a pergunta é... Qual dos calhordas dessa cidade fez
mais essa chacina? A policia os enxerga claro e perfeitamente e até pode
encontrar evidencias, mas o medo ou o dinheiro... Silencia a justiça, os
bandidos estão almoçam com promotores e jantam com juízes, tratam a
maioria dos policiais como capangas. Mas está noite estou de luto! Um
cachorro foi atropelado!
A campainha ecoou pela grande sala de jantar, na ponta da mesa Vivian
Matarazzo, a maior socialite da cidade, uma mulher empreendedora que
dirigia seus negócios. Seus olhos castanhos percorreram o salão, num
movimento leve seu cabelo loiro cortado num chanel balançou por
inteiro quando se levantou, sua roupa de cetim, chique e social já
indicava ser uma mulher negócios.
- Isabel? - Gritou irritada pelo corredor. - Porque será que a segurança
não avisou que tínhamos visitas?
Isabel estava parada ouvindo atentamente na porta.
- Ai está você! - Vivian falou encarando as costas da empregada. - Posso
3. saber quem está nessa porta?
- Ele diz que é seu filho... - A empregada se virou sem graça, dando
espaço para que ela pudesse ver o jovem rapaz de 17 anos na porta.
Sua arrogância passou para uma expressão perplexa e de surpresa, mas
relutantemente algumas palavras saíram da sua boca.
- Deixe-o entrar!
Mais um rebelde! Pensou ao olhar para o jovem sentado no sofá, as
calças dele estavam rasgadas no joelho e usava uma jaqueta de couro
mesmo com o sol forte e o calor daquela manhã, seus olhos estavam
escondidos por trás dos óculos escuros. Isabel estava perplexa, ao lado da
patroa, não conseguia entender porque a senhora Matarazzo tinha o
deixado entrar. Olhou para os cabelos loiros e pele clara de Vivian e
depois para os cabelos castanhos escuros e a pele negra do rapaz. Filho?
Depois um tempo em silencio, a respiração de Vivian foi o ultimo fôlego
antes das palavras surgirem.
- Deixe-nos a sós! - Falou imponente sem olhar para Isabel que saiu
apressada.
O rapaz sorriu pelo canto da boca sem jeito, um sorriso branco, suas
mãos grandes e pesadas indicavam o desconforto.
- Você se parece demais com seu pai! - Perdendo um pouco a pose de
autoritária ao admitir.
-... Já me disseram isso... - Ele falou desconcertado.
- Você se lembra dele? - Ela perguntou sem jeito.
- Pouco... - A voz falhou.
- Amor! - A voz atravessou o corredor pra dentro da sala. - Nossos filhos
estão querendo saber se vai demorar mais e se devemos esperar? - O
dono da voz entrou na sala, alto, forte, careca e barbudo, sorriu pra ela e
depois, observou o rapaz, sua expressão ficou seria.
- Estou com visitas. - Ela ficou mais desconcertada, não conseguia nem
olhar pra o homem que entrou na sala.
- Estamos te aguardando... - E começou a caminhar para o corredor.
- Já vou! Ele estar de partida... - Ela falou se colocando de pé.
- Você se casou, teve filhos e ficou rica! - Ele falou se colocando de pé. Isso explica muito o porque você nunca voltou nem pra...
- Olha! Aqui não é a hora e nem o momento pra conversarmos sobre...
- Mim? Tem razão, se em todos esses anos você nunca teve tempo pra
mim... Por que agora teria?
4. Ela o encarou, desconcertada.
- Você deve voltar, seu lugar não é aqui...
- Já percebi, a cota familiar já ta cheia ne?
- Olha, posso imaginar o que te falaram de mim, mas... Estou diferente,
tenho uma vida diferente agora e...
- É nem tão, continua não tendo espaço pra mim. - Ele falou caminhando
pelo corredor.
- Ramon!
- Posso encontrar a porta, sozinho. - Ele falou sem olhar pra trás.
- O que? - Perguntou Beto sem acreditar. - Sua mãe é a Vivian
Matarazzo? Você não disse que o nome dela era Vivian Fernandes? - Ela
encarou as costas de Ramon.
- Ela se casou de novo. - Ramon falou jogando a mochila em cima da
cama de solteiro no pequeno quarto em cima do Clube do Livro, onde
estava morando, Beto lhe deu emprego e alugou aquele pequeno cômodo
para que se estabelecesse na cidade.
- Não consigo acreditar que a mulher mais rica dessa cidade é uma de
nós... E nunca fez nada pela gente! Pelo seu povo e pior, ela tem um filho
totalmente undergrand! - Beto falou pensativo.
Ramon o olhou confuso.
- Beto! - Ramon chamou a atenção dele. - Sei o que estar pensando e
não!
- Escuta, com tudo que tem acontecido nessa cidade, os políticos querem
que vejamos que ainda existem pessoas com valores morais e por isso
escolheram a sua mãe pra receber uma homenagem, sendo considerada
uma pessoa integra que a nossa sociedade deveria seguir como modelo.
- Quando isso vai acontecer?
- Essa noite! Seria um bom momento pra mostrar pra todo mundo que os
valores morais que essa mulher tem ta depositado em suas contas com
muitos zeros no final! - Beto falou se sentando.
- Chega Beto! Esqueça disso!
- Isso foi uma espécie de piada? Você sabe que eu nunca esqueço de
nada, ne? Principalmente sobre você, tipo, todo mundo que vem aqui
sabe quem é você e sobre sua vida.
Ramon pegou a chave da moto e seguiu pra porta.
- Mesmo que você não fale muito! Estou orgulhoso da evolução da
5. nossa amizade, você me contou sobre sua mãe! - Ele o seguiu.
- Não, não contei, você deduziu quando me viu tirando do bolso o nome
e endereço dela... O que me lembra, estou pagando pelo quarto, isso me
dar o direito de privacidade? - Ele falou passando pelo corredor sem
olhar pra trás.
- Tudo bem, vou te entregar todas as chaves reservas que tenho! - Gritou
pelo corredor. - Um dia. - Sussurrou.
- Eu ouvi isso. - Ramon gritou da ponta da escada.
Quando anoitecer, a escuridão caíra principalmente sobre aqueles que
querem aparentar que a cidade tem salvação, seus heróis não andam por
ai de terno e nem os elegemos, eles surgem da vontade de fazer o mundo
diferente, da dor que alguém lhes causou, mas todos se foram... Perdi
meus pais pra essa cidade. Raul Henrique Fernandes, o Pássaro
Trovejante desapareceu, dado como morto; Rogério Campos Reis, o
Anjo da Guerra, desaparecido, dado como morto, Joel Soares, o Lobo,
morto em combate, Mario Emilio Duarte, o Falcão Negro, sofreu um
acidente de combate, ficou paraplégico, Alex Tomas Leal, o Sina, se
aposentou, vive como um monge, Victor Pena dos Santos, Doutor Luz,
perdeu a esposa, se aposentou, Prometeu vive distante de todos nós. A
Pecado se tornou uma governante mole e o Pantera? Desse ninguém
sabe, dizem que ficou louco... Vivian Fernandes, a Sereia Negra, a bela e
doce que se preocupava com os outros a sua volta... Morreu, hoje, vi em
seu lugar Vivian Matarazzo, uma mulher amargurada e egocêntrica,
fazendo parte da elite dessa cidade que finge que não acontece nada, o
irônico é que hoje, sendo considerada um exemplo moral para à nossa
cidade, se torna alvo de quase todos os chefões do crime que querem
dominar essa cidade podre. Será que devo salvar a mulher que me
abandonou? Mesmo sabendo da morte do meu pai, ela nunca voltou, nem
ao menos para me visitar, para saber como eu estava, não mandou uma
carta ou telefonou, me deixou sozinho, me deixou nas mãos de
desconhecidos, será que devo salvá-la? Salvar a mulher que me
abandonou? Será que devo salvar a minha mãe?
A cidade é uma masmorra, escura, úmida e suja. A noite chegou e as
mesmas pilhas de lixo pelos becos e calçadas... Tornam-se um outro
cenário, silencioso, o que indica que algo estar pra acontecer... Corpos
6. apareceram mutilados pelas ruas e sangue pelas calçadas, serão mortos
por diversão, hoje chega um novo carregamento de armas. À parte
engraçada, vista apenas por que tem um bom humor negro é que... 12
pessoas foram chacinadas, a décima terceira está morrendo no hospital e
um cachorro foi atropelado, será que ninguém mais se importa com isso
além de mim?
O caminhão tinha acabado de estacionar, essa cena acontecia duas, três
vezes ao mês, a policia não fingia que não via, a policia estava lá,
garantindo que o trafico acontecesse, Evaristo apressava os capangas
que descarregava o caminhão, ele era um típico homem medíocre,
frustrado, que estava chegando aos 40 anos de idade, estava muito acima
do peso, mas suas características era sempre estar sujo, mal vestido, mal
humorado, com a barba e o cabelo enorme. Ele entrou no carro do outro
lado da rua, onde estava o Miranda.
- Ontem teve uma chacina, homens estripados e mutilados! - Evaristo se
sentou ao lado chefe.
- Isso não é coisa minha, a única coisa que quero é dinheiro, poder, sexo,
quando matamos, é com uma bala na cabeça e o corpo vai parar no
fundo do mar. - Ele acendeu um cigarro - Isso me parece coisa do
novato, ele quer poder, impor medo, tem feito seu império em cima de
uma pilha de corpos, seus capangas são infectados e degenerados... Ele
tem me deixado sem espaço para agir, tem roubado meus fornecedores e
clientes, tem me deixado em maus lençóis, estar começando a me tirar do
serio. - Miranda era ainda mais gordo que Evaristo, mas diferente dele, se
vestia muito bem, usava roupas caras, de marca e muito elegante, tinha
os cabelos bem aparados e no lugar.
- Essa cidade estar podre e difícil para viver... Não vai sobreviver se
começar uma guerra de mafiosos! - Evaristo falou pensativo.
- Você se importa? - Ele abriu um sorriso desdenhoso. - Essa cidade não
vai sobreviver de jeito algum, o novato planeja algo grande, então se não
lutarmos... A cidade cai do mesmo jeito.
- A coisa não ta boa pra ninguém.
- Podemos culpar tantos fatores...
Evaristo suspirou condescendente, atravessou a rua pra onde estava o
caminhão, o carro partiu logo em seguida.
- Vocês conferiram a mercadoria? - Perguntou para os capangas que
7. tiravam as caixas do caminhão e colocavam dentro de uma casa
abandonada.
- Sim! - Um deles respondeu num suspiro de cansaço.
- Cadê o Flavio? Aquele preguiçoso! - Evaristo resmungou.
- Dentro da casa, foi ao banheiro!
Ecoou um disparo dentro da casa e depois um grito.
- Alguma coisa aconteceu!
- Isso é obvio seu babaca. - Gritou Evaristo. - Vamos! Você e você
vejam o que aconteceu com aquele incompetente.
Dois rapazes entraram dentro da casa e após alguns minutos... Novos
tiros, mas ninguém saiu da casa.
Evaristo ficou desesperado.
- Que diabos! - Ele resmungou. - Vamos todos entrar nessa casa e
descobrir o que estar acontecendo.
Evaristo entrou na frente, mexeu no interruptor da luz, mas nada, a casa
permanecia na escuridão. Ele tirou do bolso uma lanterna muito pequena
e resmungou sobre a casa ser um lixo. Seguindo-o, cinco rapazes, dentre
eles, dois policiais. Acenou com a cabeça para que se divisem, os dois
capangas seguiam pela direita e um pela esquerda, enquanto Eva seguia
em frente com o outro rapaz.
Passaram pela sala e chegaram na cozinha, ouviram mais disparos
seguidos por gritos, Eva ficou imóvel enquanto o rapaz que o
acompanhava seguia correndo na direção dos disparos, ele ficou imóvel
ouvindo gritos de medo e desespero e mais disparos, um rugido em
pedido de ajuda e por fim... O silencio.
O suor frio desceu de sua testa, ele pegou o lencinho que tinha no bolso,
seguiu devagar pela casa, passo por passo, tentando não fazer nenhum
ruído. Parou na sala, onde parte do telhado tinha caído e por cima dos
destroços, seus capangas, cinco deles... Algo o puxo pra trás e ele
começou a disparar as cegas.
- Temos que sair daqui! - O rapaz que o puxou sussurrou.
- O que aconteceu? - Eva perguntou sem jeito olhando os homens caídos
nos destroços. - Quem fez isso?
- Não! Não! Não foi alguém, foi algo... - A luz da lua que invadia a casa
deu forma a algo que voou na direção dos dois homens.
De fora da casa dava para ouvir os disparos, gritos e por fim... Silencio.
8. Vivian estava muito elegante e linda num vestido prateado com brilho, o
enorme salão estava cheio. A multidão era composta de políticos,
advogados, juízes, promotores, pessoas da alta sociedade e impressa, que
inclusive a cercava.
- Vamos! Juntem-se mais um pouco. - Pediu Anna, a jornalista teen da
cidade, uma garota encrenqueira que achava que podia revolucionar com
seu jornal escolar, que obviamente foi censurado, ela não se deu por
vencida e fez seus impressos independentes, distribuiu pelas ruas, mas
não surtiram efeito algum, ela não queria ser silenciada, mas a cidade já
estava acostumada com o silencio.
Vivian colocou o braço esquerdo em volta do ombro de Cândido, que
usava óculos escuro e terno, sorriu para as câmeras fotográficas, ela se
sentia incomodada, mas não sabia com o que, seu sorriso perfeito se
desfez, ela percebeu que Anna tinha a mesma idade que Ramon.
- A Srta. Matarazzo poderia sorrir também! - Sugeriu Anna sem graça.
A filha de Cândido estava em volta de seus braços, sem interesse algum,
parecia de luto, vestida de preto e com seus cabelos grandes, longos e
ondulados tampando parte do seu rosto.
- Filha, o que conversamos? Essa noite é especial para minha mulher! Cândido falou por entre os dentes, ainda sorrindo para as fotos.
- Já estou aqui! É o suficiente, queriam a família reunida, estamos
reunidos! Agora quer que eu sorria e aparente ser feliz ao lado da sua
esposa e do seu filho perfeito...? É demais ne?
David lançou um breve olhar de fúria para Olga.
O sorriso de Vivian se desfez, sem delicadeza, leveza ou elegância, suas
características. Virou-se e saiu da mira dos fotógrafos, deixando sua
família um tanto sem graça na frente das lentes.
Agora o pensamento que estava em sua cabeça era que ela tinha aceitado
a filha de Cândido e não apenas isso, cuidou dela como se fosse sua por
todos esses anos e nunca excedeu os limites, mesmo a menina sendo uma
megera e fazer de tudo para ser a ovelha negra da família, ele não poderia
falar nada sobre Ramon, afinal, diferente de Olga, ele já tem uma idade
avançada e sabe se cuidar... Mas e David? Seu filho com Cândido?
David é perfeito, 15 anos de idade, estudioso, responsável, atencioso,
carinhoso, esperto, educado, se portava muito bem, era o orgulho da
família, estuda num colégio militar, e vai ser medico, tinha todos os
traços da mãe, cabelos loiros, olhos castanhos claro, a pele clara e o
9. sorriso diplomático, ela sabia que David procurava uma figura masculina
em quem se basear, estava numa idade... E Ramon era justamente o
contrario dele, como os dois iriam se relacionar e pior, Ramon era um... A expressão de choque em seu rosto surgiu, ela pegou uma taça de
champanhe e começou a cumprimentar as pessoas da festa. - Mas David
também poderia ser... Ele tinha tido aquelas dores de cabeça toda a
infância... Não, era cedo demais pra pensar isso, e ela conhecia muito
bem seu filho, ele não tinha segredos! Não tinha o porque pensar nisso.
- Mãe? - David se aproximou. - Não deixe as besteiras de Olga
estragarem sua noite! - Ele pediu de um jeito dócil.
Ela sorriu e o abraçou. Sabia quem era seu filho.
- Vivian! Vamos! - O rapaz acenou para o palco.
Ela estava diante a um enorme salão, todos a olhavam esperando as
palavras certas... Mas quando ela separou os lábios, entrou uma cartola
com laminas na aba voando alto em espiral pelo salão em direção ao
lustre que foi pro chão, desencadeado o desespero e a correria pelo salão,
os disparos de armas de fogo foram seguidos, Vivian ficou imóvel, podia
ver David correr em sua direção, assim como via diversos homens
armados pelo salão, se virou para trás ao sentir a mão de alguém em seu
ombro.
- Você! - Ela falou incrédula para o homem que usava uma cartola e
casaca. Ele estava atrás dela com um sorriso insano no rosto.
- Pronta pra hora do chá? Alice! - Ele perguntou e depois a golpeou na
cabeça com um revolve. Seus olhos buscaram no meio povo desesperado
o filho dela, David e sussurrou. - Siga a lebre branca. - Pegou ela nos
braços e gargalhando, fez alguns disparos, correu, saiu pela saída de
emergência atrás do palco, quando finalmente David saiu do meio do
povo, já era tarde, o Chapeleiro tinha levado sua mãe.