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KRAFT
coleção
6
KRAFT. Sf, Kräfte 1 força, vigor, energia. 2 potência. aus
eigener Kraft pelo próprio esforço. außer Kraft sein estar
revogado, sem efeito. in Kraft sein estar em vigor.
7
Sarah
Valle
8
9
Rio de Janeiro
2014
Sarah
Valle
10
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Apresentação
por Marília Garcia
- 11 -
senhora Uyen Thi Le... - 20
forma - 22
em cada rio mora... - 24
mesquita de neve... - 26
a roda e o menino de Kohl - 29
você se casou com flores artificiais no cabelo... - 38
um velho nome - 40
no retorno - 45
poema da demência - 48
o erro - 51
.^
~
^
~
12
13
Apresentação
por Marília Garcia
em o último leitor	 o escritor argentino
[ricardo piglia
lembra de uma imagem de borges já no fim da
[vida:
borges está quase cego
e tem um livro diante do rosto
ele está muito perto do livro tentando ler
o olho fixo sobre a página	
a página contra o olho
o olho tentando enxergar no fiapo de luz que
[ainda lhe restara
este que é um dos maiores leitores do século	
[diz piglia
e no entanto quase não enxerga
para ler precisa chegar muito perto
14
às vezes a leitura é esse jogo de escala
é preciso se aproximar a ponto de perder o todo
é preciso deformar para ver os detalhes 	
[as entrelinhas
e participar do texto
penso que outras vezes é preciso se afastar
e me lembro de uma imagem
do dramaturgo francês valère novarina lendo um
[texto
novarina segura o livro com as mãos
e o afasta de si
ele segura o livro o mais distante que pode
os braços à frente erguidos
ele coloca o livro na altura dos olhos
e quase perde de vista o texto
resta só um fiapo que o liga ao livro
ele mantém a leitura por meio do braço
assim ele se afasta para ler
ele já não lê com os olhos
talvez leia com o corpo
15
pensei nessa passagem
entre o perto tão perto que deforma
e o longe tão longe que quase perde de vista
quando li o poema “a roda e o menino de kohl”:
ali não era eu que me afastava ou aproximava
mas o poema que produzia os dois movimentos
num momento o texto me levava para o
[subterrâneo da turquia
tocando a argamassa no interior da anatólia
logo em seguida
era como se eu voltasse de um mergulho para
[respirar
então o texto afasta e nos faz ler à distância:
os pés são conduzidos pela roda do poema
e aí 	 istambul é paisagem
é aquarela com desvio para o mar
é mapa que cobre o país
a turquia aliás
entre europa e ásia	 entre oriente e ocidente
também é aqui roda que desloca
16
império acabado e vivo ao mesmo tempo
às vezes estamos no meio de um ritual oriental
atendendo ao chamado do almuadem para a prece
sendo levados pelo cortejo vietnamita que abre
[o livro
vendo os homens que jogam dominó nas casas
[de chá
outras vezes apenas seguimos o fio das lembranças
e histórias	 como um flash de uma chuva
[em ubatuba
	 o passado tentando não sair
do seu congelamento
•	
essas passagens
e descontinuidades
percorrem todo o livro
e parecem produzidas pela montagem dos
[poemas
e pelo jogo entre o discursivo dos textos e
os cortes entre as cenas
17
			 essas passagens
e descontinuidades também podem ser efeito do
[monólogo-diálogo
ali presente	 o diálogo é pressuposto
ora o interlocutor é o menino de kohl
ora é aquela que casou	
		 ora é a senhora uyenthile
ora é um você indefinido
não temos acesso às respostas deles
mas aos poucos somos surpreendidos
por alguns espelhamentos que surgem
e refazem as distâncias e modos de ver
como na cena da fotografia
levada na carteira:
“menino de quem se diz: são parecidos/carrego
na carteira sua foto
/ com minha idade
/ mostro
como se fosse eu”
•	
quando o livro da sarah chegou
fiquei me perguntando qual seria o título
18
quando o livro da sarah chegou
me explicaram que a coleção kraft não tinha título
quando o livro da sarah chegou
fiquei imaginando qual seria o título
então a sarah me contou seu título invisível
e seu título invisível me sugeriu mais uma forma
[de ler
me indicou mais um caminho:	
nem tão de perto como borges
nem tão de longe como novarina
o título invisível era “o império de costas”
e fiquei pensando em como seria ler
algo que está de costas	
mas também fiquei pensando em como seria
ler de costas		
será que saber um título que é invisível
seria um modo de ler o livro de costas?
pensando nisso
deixo aqui o convite ao leitor para entrar assim
[nas fábulas
dessa xerazade:
19
está um vendaval fortíssimo
pode ser numa ilha como lítladímun
ou em algum canto no oriente
os olhos estão fixos para acompanhar o fio das
[histórias
e você é arrastado de costas
20
21
22
senhora Uyen Thi Le
já a conheço atrás das portas
com a família bebendo o chá
ao som bonito de seu velório
sorrio
e penso nos meus vivos
e em Ho Chi Minh embalsamado
e nesta criança vadia
sem chinelos
nada morta
de arma na mão
fazendo cara esquisita
.^
~
^
~
^` ´
23
é meu amor, não diz
uma palavra inteira
carece ser ensinada
da guerrilha
vietnamita
e da união do norte e o sul
senhora, deixo-lhe alguma lágrima, prece
e, em respeito, também a criança me segue
evadindo o cortejo
atrás dos músicos
forma
tem o que seu desejo quis
e se não o tem agora, é porque desejou também o tempo
e se não é idêntico a si, é porque se desejou
e se no tempo move resistências, estas também desejou
24
abandona tempo, corpo, espaço e algo ainda quererá forma
transcende-a, rompe, funde
ainda a possui
25
26
Em cada rio mora
a face de um deus.
E a terra esfarela
o corpo de um deus antigo.
Êxtase trêmulo
da garoa.
Cada pardal
mantém um
de seus pensamentos.
Nublado, o dia guarda
o prazer de um deus
em gema.
•
27
Um politeísta encontra
por vezes um só deus.
E o monoteísta de vez em quando
ama um deus inteiro.
Não se pode amar o Um
se não se tropeça por suas faces.
Gênero
faz adorar
inconciliáveis.
O alienado
se confunde,
o único
se esfacela.
Somos o Amado
de muitos amantes.
Tantos
à face
de quem amamos.
28
Mesquita de Neve
chamando
chamando
•	
vi-te, Istambul,
conheci minhas costas
soube que também vim à vida
com um império acabado
•	
minha alegria em teus bazares
em tudo que vem de ti,
esposa proibida
•
29
(dominó
nada falam
os homens
nas casas de chá)
•	
que mesquitas
guardam
conforme Alá
adornou
o segredo
que volteiam
as gaivotas?
•	
amanhecer goteja desejo calcificado
haréns sublimados na cerração
que é mais encantador
que a sombra de Istambul
30
dançando
entre roseirais?
•	
sobre as cidades
subterrâneas da Anatólia
neva novamente
31
a roda e o menino de Kohl
os olhos
curvados em kohl
tirando para si
meus homens verdes
menino, você não sabe
que é musa
alaúde
sem compartimento
e um motorista
dos tenores
amanhã ou hoje
sentarei
em sua cidade do interior
tentando imitá-lo
acenderei meus pés
32
encarnamos
mais de um deus
pontes
dos que precisavam
se rever na terra
e é para tanto
que nos apertamos
contra o outro
vazando
campos saqueados
é preciso que dancemos todos os dias
amar a roda
ser justo com os pés
ao mover-se pelas pessoas
dá-lhes nos espaços
em que balançam os braços
a capacidade de dizer sim
viaja doze horas
para enjaular sal
33
seus amigos
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caminham pelas praças
e gritam-lhes: bichas
até em Versalhes dançava-se mais
que entre nossos amigos agora
onde está a peneira das suas mãos contra a chuva?
dê-me para ninar suas lamparinas
e seu azeite, mas não todo
menino de quem se diz: são parecidos
carrego na carteira sua foto
com minha idade
mostro como se fosse eu
mas quando você pinta os olhos
está mais belo
do que todas as minhas mulheres
o rosto, as luas
é quando anoitece, sou árabe
34
a argamassa
no interior da Anatólia
a barba do capitão
a desculpa do sol
a Anatólia clássica
escrevo de bruços, enterrando
Istambul
amar atravessando os homens e as mulheres
•	
meu peito de urso
jaquetas de zodíacos tortos
deixe deus entrar
pela cozinha
e a aquarela desviar
para o mar
35
me fará dizer não à fuga instalada
enquanto trunfo nas minhas facas
e cortará os gastos
da bagagem
os setenta que gasto todos os dias em que
[planejo gastar dez
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e saberei
a verdade
vomitada por uma estrela
a respeito da próxima partida
óleos aromáticos em sua pele vegetal
da oceania
menino
usa-me para limpar
um lugar em que possa
dormir
é preciso que dancemos todos os dias
amar a roda
ser justo com os pés
36
mover-se menos
à ausência de palcos
ao fim das colheitas
reconheço-me
as pernas e a fronte encostadas
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enquanto somos lançados em um colchão
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para o interior de águas assombrosas
sujas de homens
amarrados
é preciso manter a calma
subir lentamente os degraus
não atrasar os demais
saltar com algum impulso
um trampolim
vertical
compreender-nos e
dar o quanto antes
37
a ação devida
não há entre nossas pernas possibilidade
de ressecamento
mas eras glaciais, o surgimento da agricultura
revertendo os festivais da primavera
na íris
quando todos os demais
lançam-se ao retiro
à ressaca
em chácaras no verão
em vultos e vultos você
partindo
as rotas das flores
assando as gemas
das cascatas
louca lua pontua Minas Gerais
esta, sim, de queijo
ficou ali pouco tempo
durmo antes de anoitecer
38
seu vulto
estudei
e conhecer-me tornou-se
minha única dívida
estende as mãos contra a noite
estende-as bem
crave as unhas nesta janela
atenha-se a este ponto
ele não resistirá
deus de fato
é que será passado
para o lado de cá
deite-se sabendo
que amanhã não será
interior
talvez não possa controlar
os sonhos dos rebeldes
sua gratidão
menino, você não sabe
que é musa
39
estátua imensa
do que almejo
é um alaúde
sem compartimento
e um motorista
dos tenores
40
Você se casou com flores artificiais no cabelo.
Imagino a textura do pó sobre seu rosto
e o tom de base que escolheu.
Ele lhe dará tempo.
Tempo?
Poderia levar você para dormir na casa da vovó.
Ela não desconfiaria.
Você se lembra de nós brincando no box?
Se lembra de medirmos seus seios na máquina
[de costura?
Você se casou com o tênis colorido
que usa para trabalhar.
Se lembra quando seu pai nos proibiu de irmos
[ao jantar?
Que comia ruffles e fanta uva chorando na beliche?
Que conheci você na piscina, dando caldos nas
[amigas?
E que tinha medo de trampolim?
41
Cortaram a árvore com nossas iniciais.
Você não confiava em músicos
que confiavam em ritmos.
Me disse que todos, menos as crianças,
têm pavor de visitar os velhos.
Mas está bem.
Está ok.
Você casou com flores de plástico no cabelo.
Como as que, um dia, eu desempoeirei.
42
um velho nome
Mas o milharal
escorraça o saibro
mugindo e embebendo
a planta no haxixe
abre seu peito
de ouro ao céu
e os cavalos descem a estiagem
para dentro duma cerca
e as galinhas
todas cegas
fazem o amotinado estressado
Como se você pegasse o vaso
da ama-de-leite
e descesse os arabescos
garatujando toda a extensão do céu
furado e partido
quando ficou este pedaço comigo
até que kairós deu um ciclo
43
nas linhas convulsionadas
por uma temporada sem fiscalizar
o recife e os cascos
a memória dos peixes no parcel
os fios sem cabos
Caminhando eriçado
você ficou com um pouco
de cintilação depois
de ter passado pelo celeiro
sofreu alguma pequena morte
assim que ela não pôde dizer
o que queria e toda uma faringe
não o permitia mais
querer sabê-lo
e para perto do ribeirão foram todos os hirsutas
em suas mãos copos de cones e folhas
Eu já agitada demais
para esperar os cabelos crescerem
44
ou para a caligrafia do hebraico
como se pontilhões
agulhando-me
coçassem de cada palavra
sendo assim impossível
– você me disse –
parar de escrever enquanto os outros falavam
e perseguir o comichão
e debruçado arrancou uma de minhas mãos
com seu punho babado:
idiota escrever sobre o que nem é símbolo
e eu não podia simplesmente dar formas
fiquei para trás
com a rotação da terra
os dedos mindinhos azuis
unhas cheias de minhocas gritando e gritando e
gritando
não me diga mais este nome não me diga mais
45
este nome
não me diga mais que você sabe não menosprezar
[a visão daquele dia e esquecerá que eu sei
para trás bocejando
e lenhando para alguns animais
antiquados racionais
e demoníacos
A caravana foi fazendo ângulos
como a dobra de uma fronteira
na qual eu estendia
minha rede entre a artéria e a veia
Uma rede feita dos pelos do menino que se foi
Uma rede feita de um zodíaco desconhecido
Eu realmente me cansei de suas feiras de pastéis
[e assembleias
E os jipes não se esqueceram de mim
Então eu caluniei tanto
as palavras de que
46
todos se cansaram de me ouvir dizer
o quão eram vazias e
continuei como se os sinos
virassem cítaras
e as cobras subiram por minha coluna
até o céu
e nunca mais lavamos as mãos com
algum risco sobre o algodão
e a montanha
tornou-se plana
e todo caminho era uma montanha
E tudo o que vibrava picou de repente
maliciosamente ou não
e naquele dia tomamos banho em um lago
escuso
tão limpo quanto a areia
e batendo os pés gargarejamos e borbulhamos
entre os dentes
um velho nome
47
no retorno
Trouxe-me um líquido verde para a garganta,
nossa faringe única de cinco milhas.
A insônia a invade duas vezes a cada ano bissexto,
e é com as mesmas mãos que ela faz sexo.
Acontece que o espaço entre a sobrancelha e o
[olho é muito estreito, às vezes,
e, às vezes, o rosto fica roxo no escuro.
Às vezes, sua pele tem o desgosto da minha
[insistência.
É nano o exagero de tudo o que se deseja.
Às vezes, aquelas listras dadas aos vícios abrem
[poros de sua aspereza.
E o rosto de uma impossível estátua,
de uma asa.
48
Batemos os dentes e nunca poderemos ver nosso
[crânio.
Nadamos três nuas na piscina.
Cada uma com seus líquidos.
Copos de uísque abriam-se à chuva.
Uma camisa de meu pai retorna à estante.
Comenta-se que ele dormiu no meu quarto
enquanto estive fora.
No retorno, ele diz: você fica bem de verde.
E sei que limpou secretamente o inverso de
[minha gaveta.
Líquido de sonhos parado nas rebordas dos olhos.
Mastigo escondido seus cílios que caem.
Veio até mim com o cheiro ancestral dos
[mergulhados.
Quando espremo meu nariz contra o espelho
sinto este cheiro que não é meu.
49
E na sua volta choverá tanto quanto em Ubatuba.
E ele dirá: parece Ubatuba.
Pois a chuva cairá muito de repente.
50
poema da demência
cada brasileiro nasce devendo
10.000 reais
cada norte-americano deve, já ao nascer,
47.000 dólares
eu devo dois calhamaços
que boa parte da população não leria
por mais que
você sempre sai magnetizado do cinema
torna-se aparente que adquiriu uma expressão nova
pensa nas pessoas sardentas e torradas
o sol anda sempre cinzelado
ele fica bem sendo menino
todos preferem seu sorriso assim
embora, no reflexo dos transportes públicos,
aqueles dois olhos de gato
51
se fico doente a fim de não viajar e penso a
[doença, estou doente
quando penso em crianças, estou doente
o professor carrega
os inconscientes dos seus alunos
há pequenos psicopatas
em seus sonhos
não sei disso
mas adivinho
pelo peso de suas unhas
ao serem cortadas
carregam
seus pensamentos
seus tablets
e suas palmas
umas contra as outras
e os trinta braços erguidos em êxtase
há giz por toda parte
52
e microfones que zumbem
tirando a lentidão das dívidas
todos bocejam ao fim do dia
o travesseiro faz um ruído ensurdecedor ao
[tentar encaixar-se à minha cabeça
eu vejo todo o seu esforço
e a solitude não permite que eu lhe retire as rodinhas
nem que remova seu cercado
escorregadia e ciumenta, ela fugiria
há nada para se salvar, a não ser Lítla Dímun
53
o erro
não, eles não podem me culpar se meu erro foi,
[apenas,
ter comido meu próprio uniforme
e ter rascunhado 54 vezes as arestas
de uma única saída para a praia
haver crido que éramos presos
tê-lo escrito com meu sangue
em lençóis azuis
e perseguido, em um sonho, uma cadeira sagrada
com etiqueta e um nome
e ter plantado o eterno em jardins suspensos
cujos mecanismos das sementes
eu mesmo parafusei
54
se meu erro foi, percebendo que saía leite de
[meu peito,
bebê-lo e me esquecer
das papoulas
55
56
57
58
59
KRAFT
coleção
Novíssimos poetas em sua primeira
recolha impressa.
1 - Fernanda Morse
2 - João Gabriel Ascenso
3 - Liv Lagerblad
4 - Heyk Pimenta
5 - Sarah Valle
6 - Mariana Campos
60
Cozinha Experimental
editoracozinhaexperimental.blogspot.com.br
editores responsáveis:
Manolo Santacruz e Barateza Duran
conselho editorial:
Marcelo Reis de Mello, Diana Klinger,
Heyk Pimenta e Germano Weiss
padrão das guardas:
Julian Imayuki Duarte
diagramação:
Barateza Duran
revisão:
Heyk Pimenta e Marcelo Reis de Mello
contato
valle.sarah@gmail.com
KRAFT
coleção
	 V181s
Valle, Sarah.
Sarah Valle: poemas / Sarah Valle. — Rio de Janeiro: 	
			 Cozinha Experimental, 2014.
52 p. ; 18 cm. – (Kraft; v.5)
ISBN 978-85-910354-5-8
		 1. Poesia brasileira. 2. Poesia: século 21. I. Título. II. Série
CDD: 869.1
61
/100
Impresso na gráfica Singular Digital,
em papel polén Soft 70 gr. e finalizado
nas oficinas da Editora Cozinha Expe-
rimental em novembro de 2014.
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  • 3. 3
  • 4. 4
  • 6. 6 KRAFT. Sf, Kräfte 1 força, vigor, energia. 2 potência. aus eigener Kraft pelo próprio esforço. außer Kraft sein estar revogado, sem efeito. in Kraft sein estar em vigor.
  • 8. 8
  • 10. 10
  • 11. 11 Apresentação por Marília Garcia - 11 - senhora Uyen Thi Le... - 20 forma - 22 em cada rio mora... - 24 mesquita de neve... - 26 a roda e o menino de Kohl - 29 você se casou com flores artificiais no cabelo... - 38 um velho nome - 40 no retorno - 45 poema da demência - 48 o erro - 51 .^ ~ ^ ~
  • 12. 12
  • 13. 13 Apresentação por Marília Garcia em o último leitor o escritor argentino [ricardo piglia lembra de uma imagem de borges já no fim da [vida: borges está quase cego e tem um livro diante do rosto ele está muito perto do livro tentando ler o olho fixo sobre a página a página contra o olho o olho tentando enxergar no fiapo de luz que [ainda lhe restara este que é um dos maiores leitores do século [diz piglia e no entanto quase não enxerga para ler precisa chegar muito perto
  • 14. 14 às vezes a leitura é esse jogo de escala é preciso se aproximar a ponto de perder o todo é preciso deformar para ver os detalhes [as entrelinhas e participar do texto penso que outras vezes é preciso se afastar e me lembro de uma imagem do dramaturgo francês valère novarina lendo um [texto novarina segura o livro com as mãos e o afasta de si ele segura o livro o mais distante que pode os braços à frente erguidos ele coloca o livro na altura dos olhos e quase perde de vista o texto resta só um fiapo que o liga ao livro ele mantém a leitura por meio do braço assim ele se afasta para ler ele já não lê com os olhos talvez leia com o corpo
  • 15. 15 pensei nessa passagem entre o perto tão perto que deforma e o longe tão longe que quase perde de vista quando li o poema “a roda e o menino de kohl”: ali não era eu que me afastava ou aproximava mas o poema que produzia os dois movimentos num momento o texto me levava para o [subterrâneo da turquia tocando a argamassa no interior da anatólia logo em seguida era como se eu voltasse de um mergulho para [respirar então o texto afasta e nos faz ler à distância: os pés são conduzidos pela roda do poema e aí istambul é paisagem é aquarela com desvio para o mar é mapa que cobre o país a turquia aliás entre europa e ásia entre oriente e ocidente também é aqui roda que desloca
  • 16. 16 império acabado e vivo ao mesmo tempo às vezes estamos no meio de um ritual oriental atendendo ao chamado do almuadem para a prece sendo levados pelo cortejo vietnamita que abre [o livro vendo os homens que jogam dominó nas casas [de chá outras vezes apenas seguimos o fio das lembranças e histórias como um flash de uma chuva [em ubatuba o passado tentando não sair do seu congelamento • essas passagens e descontinuidades percorrem todo o livro e parecem produzidas pela montagem dos [poemas e pelo jogo entre o discursivo dos textos e os cortes entre as cenas
  • 17. 17 essas passagens e descontinuidades também podem ser efeito do [monólogo-diálogo ali presente o diálogo é pressuposto ora o interlocutor é o menino de kohl ora é aquela que casou ora é a senhora uyenthile ora é um você indefinido não temos acesso às respostas deles mas aos poucos somos surpreendidos por alguns espelhamentos que surgem e refazem as distâncias e modos de ver como na cena da fotografia levada na carteira: “menino de quem se diz: são parecidos/carrego na carteira sua foto
/ com minha idade
/ mostro como se fosse eu” • quando o livro da sarah chegou fiquei me perguntando qual seria o título
  • 18. 18 quando o livro da sarah chegou me explicaram que a coleção kraft não tinha título quando o livro da sarah chegou fiquei imaginando qual seria o título então a sarah me contou seu título invisível e seu título invisível me sugeriu mais uma forma [de ler me indicou mais um caminho: nem tão de perto como borges nem tão de longe como novarina o título invisível era “o império de costas” e fiquei pensando em como seria ler algo que está de costas mas também fiquei pensando em como seria ler de costas será que saber um título que é invisível seria um modo de ler o livro de costas? pensando nisso deixo aqui o convite ao leitor para entrar assim [nas fábulas dessa xerazade:
  • 19. 19 está um vendaval fortíssimo pode ser numa ilha como lítladímun ou em algum canto no oriente os olhos estão fixos para acompanhar o fio das [histórias e você é arrastado de costas
  • 20. 20
  • 21. 21
  • 22. 22 senhora Uyen Thi Le já a conheço atrás das portas com a família bebendo o chá ao som bonito de seu velório sorrio e penso nos meus vivos e em Ho Chi Minh embalsamado e nesta criança vadia sem chinelos nada morta de arma na mão fazendo cara esquisita .^ ~ ^ ~ ^` ´
  • 23. 23 é meu amor, não diz uma palavra inteira carece ser ensinada da guerrilha vietnamita e da união do norte e o sul senhora, deixo-lhe alguma lágrima, prece e, em respeito, também a criança me segue evadindo o cortejo atrás dos músicos
  • 24. forma tem o que seu desejo quis e se não o tem agora, é porque desejou também o tempo e se não é idêntico a si, é porque se desejou e se no tempo move resistências, estas também desejou 24
  • 25. abandona tempo, corpo, espaço e algo ainda quererá forma transcende-a, rompe, funde ainda a possui 25
  • 26. 26 Em cada rio mora a face de um deus. E a terra esfarela o corpo de um deus antigo. Êxtase trêmulo da garoa. Cada pardal mantém um de seus pensamentos. Nublado, o dia guarda o prazer de um deus em gema. •
  • 27. 27 Um politeísta encontra por vezes um só deus. E o monoteísta de vez em quando ama um deus inteiro. Não se pode amar o Um se não se tropeça por suas faces. Gênero faz adorar inconciliáveis. O alienado se confunde, o único se esfacela. Somos o Amado de muitos amantes. Tantos à face de quem amamos.
  • 28. 28 Mesquita de Neve chamando chamando • vi-te, Istambul, conheci minhas costas soube que também vim à vida com um império acabado • minha alegria em teus bazares em tudo que vem de ti, esposa proibida •
  • 29. 29 (dominó nada falam os homens nas casas de chá) • que mesquitas guardam conforme Alá adornou o segredo que volteiam as gaivotas? • amanhecer goteja desejo calcificado haréns sublimados na cerração que é mais encantador que a sombra de Istambul
  • 30. 30 dançando entre roseirais? • sobre as cidades subterrâneas da Anatólia neva novamente
  • 31. 31 a roda e o menino de Kohl os olhos curvados em kohl tirando para si meus homens verdes menino, você não sabe que é musa alaúde sem compartimento e um motorista dos tenores amanhã ou hoje sentarei em sua cidade do interior tentando imitá-lo acenderei meus pés
  • 32. 32 encarnamos mais de um deus pontes dos que precisavam se rever na terra e é para tanto que nos apertamos contra o outro vazando campos saqueados é preciso que dancemos todos os dias amar a roda ser justo com os pés ao mover-se pelas pessoas dá-lhes nos espaços em que balançam os braços a capacidade de dizer sim viaja doze horas para enjaular sal
  • 33. 33 seus amigos amassam papéis na boca de microfones mergulham notas de cem em aquários caminham pelas praças e gritam-lhes: bichas até em Versalhes dançava-se mais que entre nossos amigos agora onde está a peneira das suas mãos contra a chuva? dê-me para ninar suas lamparinas e seu azeite, mas não todo menino de quem se diz: são parecidos carrego na carteira sua foto com minha idade mostro como se fosse eu mas quando você pinta os olhos está mais belo do que todas as minhas mulheres o rosto, as luas é quando anoitece, sou árabe
  • 34. 34 a argamassa no interior da Anatólia a barba do capitão a desculpa do sol a Anatólia clássica escrevo de bruços, enterrando Istambul amar atravessando os homens e as mulheres • meu peito de urso jaquetas de zodíacos tortos deixe deus entrar pela cozinha e a aquarela desviar para o mar
  • 35. 35 me fará dizer não à fuga instalada enquanto trunfo nas minhas facas e cortará os gastos da bagagem os setenta que gasto todos os dias em que [planejo gastar dez as sabotagens em direção à Indochina e saberei a verdade vomitada por uma estrela a respeito da próxima partida óleos aromáticos em sua pele vegetal da oceania menino usa-me para limpar um lugar em que possa dormir é preciso que dancemos todos os dias amar a roda ser justo com os pés
  • 36. 36 mover-se menos à ausência de palcos ao fim das colheitas reconheço-me as pernas e a fronte encostadas as respirações cruzadas enquanto somos lançados em um colchão de acampar para o interior de águas assombrosas sujas de homens amarrados é preciso manter a calma subir lentamente os degraus não atrasar os demais saltar com algum impulso um trampolim vertical compreender-nos e dar o quanto antes
  • 37. 37 a ação devida não há entre nossas pernas possibilidade de ressecamento mas eras glaciais, o surgimento da agricultura revertendo os festivais da primavera na íris quando todos os demais lançam-se ao retiro à ressaca em chácaras no verão em vultos e vultos você partindo as rotas das flores assando as gemas das cascatas louca lua pontua Minas Gerais esta, sim, de queijo ficou ali pouco tempo durmo antes de anoitecer
  • 38. 38 seu vulto estudei e conhecer-me tornou-se minha única dívida estende as mãos contra a noite estende-as bem crave as unhas nesta janela atenha-se a este ponto ele não resistirá deus de fato é que será passado para o lado de cá deite-se sabendo que amanhã não será interior talvez não possa controlar os sonhos dos rebeldes sua gratidão menino, você não sabe que é musa
  • 39. 39 estátua imensa do que almejo é um alaúde sem compartimento e um motorista dos tenores
  • 40. 40 Você se casou com flores artificiais no cabelo. Imagino a textura do pó sobre seu rosto e o tom de base que escolheu. Ele lhe dará tempo. Tempo? Poderia levar você para dormir na casa da vovó. Ela não desconfiaria. Você se lembra de nós brincando no box? Se lembra de medirmos seus seios na máquina [de costura? Você se casou com o tênis colorido que usa para trabalhar. Se lembra quando seu pai nos proibiu de irmos [ao jantar? Que comia ruffles e fanta uva chorando na beliche? Que conheci você na piscina, dando caldos nas [amigas? E que tinha medo de trampolim?
  • 41. 41 Cortaram a árvore com nossas iniciais. Você não confiava em músicos que confiavam em ritmos. Me disse que todos, menos as crianças, têm pavor de visitar os velhos. Mas está bem. Está ok. Você casou com flores de plástico no cabelo. Como as que, um dia, eu desempoeirei.
  • 42. 42 um velho nome Mas o milharal escorraça o saibro mugindo e embebendo a planta no haxixe abre seu peito de ouro ao céu e os cavalos descem a estiagem para dentro duma cerca e as galinhas todas cegas fazem o amotinado estressado Como se você pegasse o vaso da ama-de-leite e descesse os arabescos garatujando toda a extensão do céu furado e partido quando ficou este pedaço comigo até que kairós deu um ciclo
  • 43. 43 nas linhas convulsionadas por uma temporada sem fiscalizar o recife e os cascos a memória dos peixes no parcel os fios sem cabos Caminhando eriçado você ficou com um pouco de cintilação depois de ter passado pelo celeiro sofreu alguma pequena morte assim que ela não pôde dizer o que queria e toda uma faringe não o permitia mais querer sabê-lo e para perto do ribeirão foram todos os hirsutas em suas mãos copos de cones e folhas Eu já agitada demais para esperar os cabelos crescerem
  • 44. 44 ou para a caligrafia do hebraico como se pontilhões agulhando-me coçassem de cada palavra sendo assim impossível – você me disse – parar de escrever enquanto os outros falavam e perseguir o comichão e debruçado arrancou uma de minhas mãos com seu punho babado: idiota escrever sobre o que nem é símbolo e eu não podia simplesmente dar formas fiquei para trás com a rotação da terra os dedos mindinhos azuis unhas cheias de minhocas gritando e gritando e gritando não me diga mais este nome não me diga mais
  • 45. 45 este nome não me diga mais que você sabe não menosprezar [a visão daquele dia e esquecerá que eu sei para trás bocejando e lenhando para alguns animais antiquados racionais e demoníacos A caravana foi fazendo ângulos como a dobra de uma fronteira na qual eu estendia minha rede entre a artéria e a veia Uma rede feita dos pelos do menino que se foi Uma rede feita de um zodíaco desconhecido Eu realmente me cansei de suas feiras de pastéis [e assembleias E os jipes não se esqueceram de mim Então eu caluniei tanto as palavras de que
  • 46. 46 todos se cansaram de me ouvir dizer o quão eram vazias e continuei como se os sinos virassem cítaras e as cobras subiram por minha coluna até o céu e nunca mais lavamos as mãos com algum risco sobre o algodão e a montanha tornou-se plana e todo caminho era uma montanha E tudo o que vibrava picou de repente maliciosamente ou não e naquele dia tomamos banho em um lago escuso tão limpo quanto a areia e batendo os pés gargarejamos e borbulhamos entre os dentes um velho nome
  • 47. 47 no retorno Trouxe-me um líquido verde para a garganta, nossa faringe única de cinco milhas. A insônia a invade duas vezes a cada ano bissexto, e é com as mesmas mãos que ela faz sexo. Acontece que o espaço entre a sobrancelha e o [olho é muito estreito, às vezes, e, às vezes, o rosto fica roxo no escuro. Às vezes, sua pele tem o desgosto da minha [insistência. É nano o exagero de tudo o que se deseja. Às vezes, aquelas listras dadas aos vícios abrem [poros de sua aspereza. E o rosto de uma impossível estátua, de uma asa.
  • 48. 48 Batemos os dentes e nunca poderemos ver nosso [crânio. Nadamos três nuas na piscina. Cada uma com seus líquidos. Copos de uísque abriam-se à chuva. Uma camisa de meu pai retorna à estante. Comenta-se que ele dormiu no meu quarto enquanto estive fora. No retorno, ele diz: você fica bem de verde. E sei que limpou secretamente o inverso de [minha gaveta. Líquido de sonhos parado nas rebordas dos olhos. Mastigo escondido seus cílios que caem. Veio até mim com o cheiro ancestral dos [mergulhados. Quando espremo meu nariz contra o espelho sinto este cheiro que não é meu.
  • 49. 49 E na sua volta choverá tanto quanto em Ubatuba. E ele dirá: parece Ubatuba. Pois a chuva cairá muito de repente.
  • 50. 50 poema da demência cada brasileiro nasce devendo 10.000 reais cada norte-americano deve, já ao nascer, 47.000 dólares eu devo dois calhamaços que boa parte da população não leria por mais que você sempre sai magnetizado do cinema torna-se aparente que adquiriu uma expressão nova pensa nas pessoas sardentas e torradas o sol anda sempre cinzelado ele fica bem sendo menino todos preferem seu sorriso assim embora, no reflexo dos transportes públicos, aqueles dois olhos de gato
  • 51. 51 se fico doente a fim de não viajar e penso a [doença, estou doente quando penso em crianças, estou doente o professor carrega os inconscientes dos seus alunos há pequenos psicopatas em seus sonhos não sei disso mas adivinho pelo peso de suas unhas ao serem cortadas carregam seus pensamentos seus tablets e suas palmas umas contra as outras e os trinta braços erguidos em êxtase há giz por toda parte
  • 52. 52 e microfones que zumbem tirando a lentidão das dívidas todos bocejam ao fim do dia o travesseiro faz um ruído ensurdecedor ao [tentar encaixar-se à minha cabeça eu vejo todo o seu esforço e a solitude não permite que eu lhe retire as rodinhas nem que remova seu cercado escorregadia e ciumenta, ela fugiria há nada para se salvar, a não ser Lítla Dímun
  • 53. 53 o erro não, eles não podem me culpar se meu erro foi, [apenas, ter comido meu próprio uniforme e ter rascunhado 54 vezes as arestas de uma única saída para a praia haver crido que éramos presos tê-lo escrito com meu sangue em lençóis azuis e perseguido, em um sonho, uma cadeira sagrada com etiqueta e um nome e ter plantado o eterno em jardins suspensos cujos mecanismos das sementes eu mesmo parafusei
  • 54. 54 se meu erro foi, percebendo que saía leite de [meu peito, bebê-lo e me esquecer das papoulas
  • 55. 55
  • 56. 56
  • 57. 57
  • 58. 58
  • 59. 59 KRAFT coleção Novíssimos poetas em sua primeira recolha impressa. 1 - Fernanda Morse 2 - João Gabriel Ascenso 3 - Liv Lagerblad 4 - Heyk Pimenta 5 - Sarah Valle 6 - Mariana Campos
  • 60. 60 Cozinha Experimental editoracozinhaexperimental.blogspot.com.br editores responsáveis: Manolo Santacruz e Barateza Duran conselho editorial: Marcelo Reis de Mello, Diana Klinger, Heyk Pimenta e Germano Weiss padrão das guardas: Julian Imayuki Duarte diagramação: Barateza Duran revisão: Heyk Pimenta e Marcelo Reis de Mello contato valle.sarah@gmail.com KRAFT coleção V181s Valle, Sarah. Sarah Valle: poemas / Sarah Valle. — Rio de Janeiro: Cozinha Experimental, 2014. 52 p. ; 18 cm. – (Kraft; v.5) ISBN 978-85-910354-5-8 1. Poesia brasileira. 2. Poesia: século 21. I. Título. II. Série CDD: 869.1
  • 61. 61 /100 Impresso na gráfica Singular Digital, em papel polén Soft 70 gr. e finalizado nas oficinas da Editora Cozinha Expe- rimental em novembro de 2014.
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