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RUBENS GOMES LACERDA
OS ARTESÃOS DA MEMÓRIA NAS TRAMAS E RETRAMAS DA HISTÓRIA:
Identidade e memória em Cáceres no limiar do século XXI.
Cuiabá, fevereiro de 2009
RUBENS GOMES LACERDA
OS ARTESÃOS DA MEMÓRIA NAS TRAMAS E RETRAMAS DA HISTÓRIA:
Identidade e memória em Cáceres no limiar do século XXI.
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa
de Pós-graduação em História, do Instituto de
Ciências Humanas e Sociais da UFMT, para
obtenção do título de Mestre em História, sob a
orientação da Prof. Dra. Ludmila de Lima Brandão.
Cáceres, fevereiro de 2009
RUBENS GOMES LACERDA
OS ARTESÃOS DA MEMÓRIA NAS TRAMAS E RETRAMAS DA HISTÓRIA:
Identidade e memória em Cáceres no limiar do século XXI.
Banca Examinadora
____________________________________________________
Prof. Dra. Ludmila de Lima Brandão – orientadora
Universidade Federal de Mato Grosso.
____________________________________________________
Profª. Dr. Oswaldo Machado Filho – membro interno
Universidade Federal de Mato Grosso.
____________________________________________________
Prof. Dr. Domingos Sávio da Cunha Garcia – membro externo
Universidade do Estado de Mato Grosso – Cáceres – MT.
ABREVIATURAS
AHU Arquivo Histórico Ultramarino
IHGMT Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso
UFMT Universidade Federal de Mato Grosso
UNEMAT Universidade do Estado de Mato Grosso
APMC Arquivo Público Municipal de Cáceres
SPHAN Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
IPHAN Instituto do Patrimônio Histórico Artístico Nacional
IHMT Instituto Histórico de Mato Grosso
A Patrícia, Joana e Ludmila, exemplos respectivamente de: alegria, perseverança e ousadia.
AGRADECIMENTO
Agradeço todos e todas que contribuíram ou atrapalharam durante a elaboração desta
dissertação.
A vida não é o que a gente viveu, e sim o que a gente recorda e como
recorda para contá-la.
(Gabriel García Marquez)
Escrevo o idioleto manoelês arcaico (idioleto é o dialeto que os idiotas
usam para falar com as paredes e com as moscas) Preciso de atrapalhar as
significâncias. O despropósito é mais saudável do que o solene. (Para
limpar das palavras alguma solenidade - uso bosta.) Sou muito higiênico. E
pois. O que ponho de central nos escritos é a vigilância para não cair na
tentação de me achar menos tolo que os outros. Sou bem conceituado para
parvo. Disso forneço certidão.
(Manuel de Barros)
SUMÁRIO
RESUMO...................................................................................................................................1
SUGESTÕES DE LEITURA...................................................................................................2
I FLUXO – INTRODUÇÃO OUTEXTO?.............................................................................4
II FLUXO – A HISTÓRIA FOI SALVA PELO TURISMO?............................................22
O marco que ainda demarca.....................................................................................................29
III FLUXO – POR UMA EPISTEMOLOGIA DA DIFERENÇA: O TRAÇO
NARRATIVO NA ESCRITURA HISTORIOGRÁFICA...................................................34
IV FLUXO – OS ARTESÃOS DA MEMÓRIA DAS TRAMAS E RETRAMAS DA
HISTÓRIA..............................................................................................................................54
A espetacularização de um acontecimento...............................................................................73
Fim ou início desta história.....................................................................................................87
CONSIDERAÇÕES FINAIS.................................................................................................91
REFERÊNCIAS DOCUMENTAIS E BIBLIOGRÁFICAS...............................................94
LISTA DE TABELAS
TABELA I – Ordem de desfile de associações.........................................................................78
TABELA II – Ordem de desfile dos colégios.....................................................................79
LISTA DE IMAGENS
IMAGEM I – Imagem existente na parte interna da loja de eletrodomésticos: City Lar.........30
IMAGEM II – Pintura feita no muro da Câmara Municipal de Cáceres..................................30
IMAGEM III – Distintivo do bicentenário...............................................................................32
IMAGEM IV – Jornal Correio Cacerense 10/10/1978.............................................................32
IMAGEM V – Mapa do desfile................................................................................................81
1
RESUMO
A presente dissertação tem os objetivos de: pesquisar, compreender e problematizar quando e
como, a partir de determinadas práticas sociais, algumas práticas discursivas ou não
discursivas, ganharam respaldo dentro de determinadas relações de poder e saber, que as
possibilitaram engendrar a invenção de uma determinada memória para Cáceres; tentar
perceber a emergência de um objeto de saber e um espaço de poder; estudar como se formou
um arquivo de imagens e enunciados, um estoque de “verdades”, uma determinada
visibilidade e dizisibilidade desta memória, que pretendeu e pretende direcionar
comportamentos e atitudes, dirigir, inclusive, o olhar e a fala da imprensa/mídia; como e, a
partir de quais ressonâncias discursivas, a própria idéia de “identidade” impõe uma dada
forma de abordagem imagética e discursiva para falar e mostrar a “verdadeira” “história” da
cidade.
Palavras-chave: História; Memória; Identidade; Narrativa.
2
Sugestões de leituras.
Sem querermos ter a pretensão de definir a melhor, ou, as possíveis, maneiras de se
ler esta dissertação, mas, sobretudo, interessados em fazer alguns comentários, mesmo que en
passant, sobre a forma/conteúdo de alguns fluxos que a compõem, é que recomendamos duas
possibilidades de lê-la.
A primeira e mais convencional, seria a partir da leitura diacrônica de seus
respectivos fluxos. Entretanto, para quem se interessa mais pelas discussões teóricas e,
conseqüentemente, busca saber logo de início qual é o lugar social1
da fala de quem constrói
este texto, talvez seja mais interessante começar pela leitura do III fluxo – Por uma
epistemologia da diferença: o traço narrativo na escritura historiográfica –, no qual as
discussões teóricas são tratadas de maneira mais especifica e constante.
Resumidamente, podemos observar que este III fluxo tem o principal objetivo de
instigar e constituir um espaço de debate relacionado à “volta”, ou mais propriamente, à
percepção da existência, e/ou, principalmente, da revalorização do traço narrativo na escritura
historiográfica. Suscitar, também, a discussão sobre a presença da subjetividade do historiador
durante a tessitura do texto de história. Para tanto, buscamos construir nossa argumentação a
partir das misturas2
e contaminações teóricas – das idéias-práticas-de-vida – de autores como:
Paul Veyne, Hayden White, David Harlan, Michel Foucault, Nietzsche, Lawrence Stone,
Antônio Paulo Benatti, Gilles Deleuze, Barthes, Guattari, Manoel de Barros... Enfim, Idéias-
práticas-de-vida que sempre estão perpassando e, ao mesmo tempo, permeadas por uma
1
CERTEAU, Michel de. “A operação historiográfica”, in A escrita da História. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2000. Na primeira parte deste texto, relacionada à observação da importância do lugar social da
fala, Certeau procura demonstrar a correlação existente entre o discurso científico (com regras próprias
pertinentes a cada área do conhecimento) e a sociedade, pois para o autor: “Em história, é abstrata a doutrina que
recalca a sua relação com a sociedade. El
a nega aquilo em função de que se elabora. Sofre, então, os efeitos de distorção devidos à eliminação daquilo que
a situa de fato sem que ela o diga ou saiba”.
2
A idéia de mistura aqui adotada, busca caracterizar a importância do diálogo e da superação das fronteiras
disciplinares, para a produção de um conhecimento transdisciplinar que não busque separar de forma fixa o
mundo da natureza e o mundo da cultura; que não faça, assim como tentou fazer o pensamento moderno, uma
escansão bem definida entre o que seria a matéria e o objeto e o que seria simbólico e subjetivo, pois a idéia de
mistura nos possibilita perceber que o conhecimento não deve ter a preocupação da pureza, da razão pura tão
apregoada por Kant, mas antes, a percepção das positividades surgidas durante as contaminações, das
hibridações, diria Néstor García Canclini; enfim, de todo o amálgama cultural, político, natural, concreto,
simbólico..., que, em razão de sua mistura, constituem e, ao mesmo tempo, são constituídos pelo acontecer
humano a partir de sua interação com a natureza. Para uma melhor apreciação desta idéia, ler: LATOUR, Bruno.
Nos nunca fomos modernos: ensaios de antropologia simétrica. Rio de Janeiro: Editora 34, 1994, p.77; e :
CANCLINI, Néstor Garcia. Culturas Hibridas. - 4. Ed. São Paulo: Edusp, 2008, desta ultima obra ler,
sobretudo, o texto da introdução da edição de 2001.
3
estética da existência/escrita que incita a franca e aberta discussão sobre a economia de um
texto, sobre a arquitetura de um argumento, sobre as práticas de saber/poder existentes na
elaboração/invenção do conhecimento, sobre a lógica dos enunciados. Toda esta discussão, é
interessante ressaltar, está afetada pelas ressonâncias3
dos debates existentes em outras áreas
do conhecimento, pois, de forma mais ampla, podemos perceber que esta preocupação surgida
nas últimas décadas, por parte de algumas tendências historiográficas, preocupadas em refletir
sobre (e avaliar) a importância do estudo de questões concernentes ao traço narrativo, ou seja,
relacionadas ao estilo; à relação forma/conteúdo do texto de história; à subjetividade do autor
na urdidura do texto; à ficção, presentes ou não no discurso do historiador..., estão, em último
caso, afetadas/misturadas pelos interesses de analisar e destacar os interstícios e possíveis
interfaces existentes entre o discurso da historiografia, da ciência do século XX, da literatura e
das artes de modo geral.
Ainda dentro desta segunda maneira de se ler o texto, após a leitura deste III fluxo,
pode-se então, voltar à seqüência diacrônica: ler o I fluxo – Introdução ou texto? – em que já
são anunciadas e, ao mesmo tempo, discutidas algumas questões presentes nos fluxos
subseqüentes, como também, enumerados e explicados os postulados da forma/conteúdo
adotada na escritura da dissertação.
3
Gilles Deleuze recorre ao termo ressonância, emprestado da teoria musical, para destacar que a arte, a filosofia,
a ciência, mesmo participando de linhas melódicas distintas, estabelecem relações de troca. DELEUZE, Gilles.
Conversações – 1972-1990. Rio de Janeiro: Editora 34, 1992.
4
I FLUXO
Introdução ou texto?
Memória Histórica de Cáceres
Cáceres foi fundada em seis de Outubro de 1778, pelo governador de Mato Grosso na
época, Luis de Albuquerque de Melo Pereira e Cáceres, recebendo o nome de Vila Maria
do Paraguai, em homenagem à rainha reinante de Portugal. Conta-se que a fundação do
povoado à margem esquerda do rio Paraguai, ocorreu por quatro motivos principais; a
defesa e o incremento das fronteiras do domínio de Portugal a Oeste; a abertura de uma via
de navegação com a cidade de São Paulo; a facilidade tanto das comunicações quanto das
relações comerciais entre as cidades de Vila Bela da Santíssima Trindade e Cuiabá e a
fertilidade do solo da região; prenúncio de riquezas.
Passado mais de um século de sua fundação, poucas mudanças houveram. O grande
destaque local era a fazenda Jacobina; que em 1827, de acordo com o testemunho de
Hércules Florence, citado por Natalino Ferreira Mendes na obra Historia de Cáceres, “era a
mais rica fazenda da província, tanto em área como em produção”. Descrito pelo Professor
Natalino Ferreira Mendes em Memória cacerense, “havia cerca 60 mil reses povoando os
campos da Jacobina, situada junto a serra do mesmo nome à entrada de Vila Maria do
Paraguai. Consta ainda, que a Fazenda Jacobina possuía 200 escravos e um grande engenho
movido por força hidráulica”.
Historiadores reputam à Jacobina o início de tudo na região, há registros de que nesta
Fazenda, Sabino Vieira, chefe da malograda revolução baiana denominada “sabinada”, foi
se refugiar até sua morte em 1846.
Maria Josefa de Jesus, filha do fundador da fazenda Jacobina, casou-se com João Carlos
Pereira Leite, que veio a fundar a fazenda Descalvados, que também se tornou uma das
maiores e mais antigas fazendas da província. Por sua vez um genro de João Carlos Pereira
Leite, Joaquim José Gomes da Silva, atravessou o pantanal matogrossense em direção ao
sul, hoje Estado de Mato Grosso do Sul para fundar no “firme”, a Nhecolândia.
O povoado de Vila Maria do Paraguai, na época, não se passava de uma aldeia centrada em
torno da igrejinha São Luiz de França. “Segundo o historiador, professor Natalino Ferreira
Mendes, em meados do século XIX, a vila experimentou algum progresso em razão do
ciclo da indústria extrativista da poaia (ipecacuanha) – o ouro negro da floresta”, e da
borracha, que juntamente com a bovinocultura eram a economia da região; impulsionada
pela abertura da navegação fluvial do rio Paraguai, estabelecendo a ligação com a cidade de
Corumbá.
Em 1860, Vila Maria do Paraguai possuía uma Câmara Municipal, mas somente em 23 de
Junho de 1874 foi elevada a categoria de cidade, recebendo o nome de São Luiz de
Cáceres. O nome foi uma homenagem ao santo padroeiro e o fundador da localidade. No
ano de 1938, por força de um Decreto Lei Estadual, o município passou a ter o nome que
trás até a atualidade: Cáceres. 4
Este é apenas um enunciado/sintetizador produtor de um efeito de verdade vinculado
a uma prática discursiva5
– reiterada em muitos momentos, por algumas práticas não
discursivas –, que constantemente procuram estabelecer os contornos mais importantes da
história de Cáceres, ou de forma mais geral, pretendem constituir os elementos e traços
4
Texto presente no cardápio do Knôa – restaurante situado às margens da baia do Malheiros no rio Paraguai –
ano de 2007.
5
Tanto o conceito de prática discursiva quanto de prática não discursiva está sendo utilizado neste texto, dentro
do referencial teórico foucaultiano existente em obras como: FOUCAULT, Michel. Arqueologia do Saber. 5ª
Edição. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997. FOUCAULT. Michel. Microfísica do poder. Organização e
Tradução de Roberto Machado. Rio de Janeiro: Edições Graal. 1979.
5
históricos correlacionados à construção de todo um arcabouço de memórias direcionado e
preocupado, em definir uma determinada identidade cacerense.
Contudo, como historiadores envolvidos em uma atividade profissional, que em nosso
tempo – assinalou De Certeau6
– possui três aspectos importantes: o lugar social da fala, uma
prática científica e uma escritura, ser-nos-á necessário problematizar7
estas referidas práticas
discursivas e não discursivas que, auspiciam a condição de discursos e práticas sociais
autorizadas, a designarem o que deve ser ou não considerado pertinente para a história e a
identidade cacerense, ou ainda, de forma mais radical, pensarmos sobre a própria lógica de
um sujeito de conhecimento, com fala competente e autorizada sobre o passado – o
historiador. Assim, buscando também nos posicionar a respeito de nossa própria concepção
do discurso historiográfico, pois como bem observou o escritor Paul Valéry, ainda em 1932,
falando para alunos de um liceu francês sobre um dos seus temas prediletos:
Todas essas convenções são inevitáveis. Minha única crítica é a negligência que não as
torna explicáveis, conscientes, sensíveis ao espírito. Lamento que não se tenha feito com a
história o que as ciências exatas fizeram consigo mesmas, quando revisaram seus
fundamentos, pesquisaram com maior acuidade seus axiomas, enumeraram seus
postulados.8
É claro que essa observação de Paul Valéry não é original nem inovadora, pois
podemos encontrar questionamentos tão incisivos e diretos quanto estes, sobre a elaboração
do conhecimento histórico, desde o século XIX, em autores como Nietzsche ou Burckhardt9
.
Também não podemos mais afirmar que atualmente a historiografia permaneça totalmente
indiferente às discussões relacionadas à epistemologia do conhecimento. A própria concepção
de ciência10
do século XX está permeada por outros parâmetros bem diferentes daqueles
6
CERTEAU, Michel de. “A operação historiográfica”, In: A escrita da História. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2000.
7
A expressão problematizar, neste caso, esta relacionada à acepção utilizada a partir das reflexões presentes em:
VEBVRE, Lucien. Viver a história. In: Combates pela história. Vol. I., Lisboa: Editora Presença, 1977, p. 43.
8
Valéry, Paul. Discurso sobre a história. In, Variedades. São Paulo: Iluminuras, 1999, p. 113.
9
Conforme afirma: GUIMARAES, Manuel Luiz. A cultura histórica oitocentista: a constituição de uma
memória disciplinar. In: PESAVENTO, Sandra Jatahi. (org.) História Cultural: experiências de pesquisa. Porto
Alegre: Editora da UFRGS, 2003, p.12.
10
Concepção que não está preocupada em elaborar apenas leis universalizantes e bem definidas, porque,
construídas por axiomas bem mais rígidos, pois esta concepção de ciência do século XX compreende, também, a
produção do conhecimento a partir de uma postura que trabalha com as probabilidades, com as possibilidades,
com conceitos mais relativos, mesmo em áreas tidas como mais exatas. Neste caso podemos destacar a física
quântica de Einstein, com sua teoria geral da relatividade, em que tempo e espaço são considerados relativos, ou
ainda, de uma nova matemática aludida pelo princípio da incerteza de Heisenberg. Para melhor compreensão
sobre esta temática ler: EINSTEIN, Albert. Escritos da maturidade: artigos sobre ciência, educação, relações
sociais, racismo, ciências sociais e religião. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1994. REISEMBERG, Werner. A
parte e o todo: encontros e conversas sobre física, filosofia, religião e política. Rio de Janeiro: Contraponto,
1996, p.98.
6
formulados e defendidos no século XIX11
. No entanto, a observação de Valéry foi interessante
para assinalar certa (in)-consonância existente entre a maneira de se produzir – e,
fundamentalmente, perceber o produto desse conhecimento histórico –, e os principais
desdobramentos teóricos e metodológicos relacionados à elaboração do conhecimento
produzido na primeira metade do século XX, como também, eou, principalmente, de nos
ajudar a desnaturalizar o efeito de verdade engendrado pela prática discursiva presente no
texto do enunciado/sintetizador supracitado logo no início deste texto/introdução.
Antes de iniciarmos propriamente a desconstrução deste enunciado/sintetizador
que, aliás, será feita não de forma pontual, mas, sim, no transcorrer de toda a dissertação, é
importante assinalar – para evitarmos os mesmos erros denunciados por Valéry – a existência
de três principais dificuldades encontradas no momento em que se fez necessário: elaborar
discursivamente, na forma de dissertação, um texto que tivesse a intenção e, sobretudo, a
pertinência de tratar da melhor maneira possível a temática que suscitou a elaboração deste
trabalho.
A primeira, diz respeito a uma problemática bem própria da historiografia
relacionada ao estudo de temas e períodos mais contemporâneos, em que a abundância de
fontes torna-se um problema constante, pois sempre resta certa dúvida em quais fontes ou
episódios da história vivida, se buscará evidenciar no texto escrito. Pretendemos, no entanto,
dirimir esta indecisão, buscando logo de início, argumentar e explicar que, todas as fontes
utilizadas – sejam elas imagéticas, discursivas, iconográficas, orais... (sem hierarquias), ou os
episódios e idéias que estejam correlacionados às mesmas –, estão, nesta dissertação,
relacionadas a uma específica economia do texto12
; a uma determinada preocupação de
estabelecer alguns efeitos discursivos; a toda uma estratégia enunciativa, com o objetivo de
instaurar uma argumentação própria, diretamente correlacionada à construção deste objeto de
estudo, pois como tão bem pensou Paul Veyne: Como o romance, a história seleciona,
simplifica, organiza, faz com que um século caiba em uma página, e essa síntese da narrativa
é tão espontânea quanto a nossa memória, quando evocamos os dez últimos anos que
vivemos13
.
11
A ciência deste século XIX é muito pautada pelos enunciados produzidos a partir de uma linguagem
axiomática. A física newtoniana com seus axiomas absolutos, relacionados à definição de tempo e espaço, ou o
método cartesiano de Descartes, têm muita influência sobre as formas de se perceber e postular a elaboração do
conhecimento durante o século XIX.
12
A expressão “economia do texto” está sendo empregada no sentido de plano argumentativo, estratégia
discursiva e construção textual.
13
VEYNE, Paul. Como se escreve a história, Brasília. Ed. da UNB, 1982, p.18.
7
Podemos ainda acrescentar que tanto as fontes como as idéias dos mais diferentes
autores, agenciadas14
– para usarmos uma expressão deleuziana – neste texto, estão
funcionando ao mesmo tempo, sem distinção ou primazia de uma sobre a outra, como a
matéria prima e os instrumentos operacionais necessários para elaboração do produto final,
porque, assim como Antonio Vasconcelos, também não concordamos com um determinado
viés historiográfico que postula a seguinte máxima:
(...) historiadores pesquisam as “fontes primárias” (a história vivida de fato), informam-se
com as “fontes secundárias” (a historiografia), e inspiram-se de forma mais ou menos
consciente nas teorias produzidas pelos “outros” das Ciências Humanas. Dito de outro
modo, os historiadores trabalham materialmente a história, tal como mineiros enfurnados
em minas preciosas e sem jamais se expor à luz do sol, enquanto aos “outros” cabe pensar a
história, trazendo as luzes para os materiais valiosos levantados pelos primeiros. 15
Não basta compreender a prática do artífice – historiador – deste produto que é o
texto de história, de uma maneira tão esquemática assim, na qual o historiador,
necessariamente, tivesse que ter para sua elaboração, uma matéria prima – fontes –
relacionada à história vivida da qual ele escolheu falar sobre, e as ferramentas teóricas e
metodológicas necessárias para uma determinada tecnologia de produção. Afinal, apesar de
considerarmos interessante a idéia de perceber o referencial teórico e o aporte metodológico
como ferramentas, que devem ser utilizadas de acordo com as necessidades exigidas durante a
elaboração do texto de história, também - em muitas circunstâncias -, compreendemos o
documento, se constituindo como ferramenta, ou ainda, como uma janela aberta para o
pensamento e para reflexão. Definitivamente, não o percebemos simplesmente como
referencial da história vivida, mas antes, como também sendo parte desta história vivida.
A segunda dificuldade é de caráter metodológico que, no entanto, está também
correlacionada a questão teórica, ou seja, a uma epistemologia da diferença, pensada e
elaborada por Foucault em sua arqueologia do saber, onde a metodologia não é definida a
priori, antes do exercício prático da pesquisa, em que já se sai de início com um alvo ou
hipótese fixa, e só se vai ao arquivo, para encontrar documentos que confirmem as hipóteses
pré-estabelecidas. Nesta epistemologia da diferença, a metodologia é estabelecida no próprio
14
Agenciar a idéia de um autor significa dizer ou praticar com esta idéia outra administração teórica, pois não
necessariamente, esta idéia será utilizada da mesma forma que seu próprio autor a usa, significa reconhecer que
em alguns momentos esta idéia pode até funcionar dentro de outra lógica, inclusive, em circunstâncias e a partir
de interesses bem diferentes dos preconizados pelo seu autor, é, no limite, assumir a possibilidade de construir a
partir desta idéia, ou afetado por esta idéia, outra idéia, mesmo que nas costas do autor.
15
AZEVEDO, Clelia Marinho de. “prefácio”. In: VASCONCELOS. José Antonio. Quem tem medo de teoria? A
ameaça do pós-modernismo na Historiografia americana. São Paulo: Annablume, FAPESP, 2005, p. 13.
8
exercício prático da pesquisa, não com o interesse de estabelecer um neo-positivismo, no qual
os documentos controlam e oprimem a atividade do pesquisador, mas, sim, que é justamente
no contato e familiarização com a linguagem e os efeitos de verdade produzidos pela
documentação que, vão surgir os deslocamentos referenciais, teóricos e metodológicos da
pesquisa, ou como bem observou Foucault:
(...) por uma mutação que não data de hoje, mas que, sem dúvida, ainda não se concluiu, a
história mudou sua posição a cerca do documento: ela considera como sua tarefa
primordial, não interpretá-lo, não determinar se diz a verdade nem qual é seu valor
expressivo, mas sim trabalhá-lo no interior e elaborá-lo: ela o organiza, recorta, distribui,
ordena e reparte em níveis, estabelece séries, distingue o que é pertinente do que não é,
identifica elementos, define unidades, descreve relações. 16
O método de construção utilizado na engenharia deste artefato literário17
– Os
artesãos da memória nas tramas e retramas da história: Identidade e memória em
Cáceres no limiar do século XX – se coaduna principalmente da mistura e da contaminação,
surgida entre uma genealogia18
nietzscheana e uma arqueologia foucaultina19
, além disto, a
economia do texto também busca operacionalizar na sua escritura, uma forma/conteúdo
inspirada na idéia deleuzo-guattariana20
do pensamento rizomático.
16
FOUCAULT, Michel. Arqueologia do Saber. 5ª Edição. Rio de Janeiro: Ed. Forense Universitária, 1997, p.7.
17
A este respeito ler: WHITE, Hayden. A história como artefato literário. In: Trópicos do discurso: Ensaios
sobre a Crítica Cultural. Trad. Alípio Correia de França. São Paulo. Edusp. 1994. Ou ainda do mesmo autor:
WHITE, Hayden, “Teoria Literária e escrita da história”. Estudos históricos, Rio de Janeiro, vol. 7, n.3, p. 25.
18
O método genealógico de Nietzsche está preocupado em dessacralizar o discurso das origens primeiras, com
toda sua pompa e solenidade, assim, o autor faz um estudo da “genealogia da moral” bem diferente de uma
tradição filosófica ocidental. Para Nietzsche, a moral deve ser historicizada e desnaturalizada, não mais deve ser
vista como algo supra-humano ou transcendental, mas, sim, como algo construído pelo próprio homem, para o
próprio homem, dentro de uma relação de poder e saber. NIETZSCHE Friedrich. “Para a genealogia da moral.
In: Os pensadores. 3. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983.
19
Talvez seja importante acrescentarmos que, além da “Arqueologia do saber,” e, também, partido desta
contaminação provocada pelo pensamento nietzcheano, esta dissertação pretende operacionalizar na sua
metodologia, todo o referencial teórico de uma “Microfísica do poder,” para assim, estudar as relações de poder
e saber, existentes na fala e nos discursos relacionados a uma pratica discursiva e não discursiva do
enunciado/sintetizador que inicia este fluxo: FOUCAULT, Michel. Nietzsche, a genealogia e a história. In:
“FOUCAULT. M. Microfísica do poder. Organização e Tradução de Roberto Machado. Rio de Janeiro: Edições
Graal. 1979.
20
DELEUZE, Gilles, 1925-1995 Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia, vol. 1; tradução de Aurélio Guerra
Neto e Célia Pinto Costa. – São Paulo: Ed. 34, 1995. Quando o filósofo francês Gilles Deleuze tomou
emprestado da botânica o termo rizoma e o aplicou no estudo da filosofia, ele enumerou pelo menos seis
princípios que o caracterizam. Os Princípios de Conexão e Heterogeneidade (1 e 2) explicitam que qualquer
ponto de um rizoma pode e deve conectar-se a qualquer outro ponto ou conjunto heterogêneo. Não há uma
ordem fixa. O Princípio de Multiplicidade (3) diz que é sempre uma multiplicidade que fala e age, mudando de
natureza ao se conectar com outra, ou seja, qualquer parte, quando analisado, pode se revelar como sendo
composto pelo rizoma, porque é da mesma natureza. O Princípio de Ruptura A-significante (4) refere-se ao fato
de que o rizoma pode ser rompido, quebrado ou retomado desde qualquer uma de suas linhas. Os Princípios de
Cartografia e de Decalcomania (5 e 6) regem que um rizoma funciona por proximidade, sendo estranho a um
modelo que remete à idéia de reprodução ao infinito, pois possui diversos centros que são permanentemente
móveis.
9
A terceira dificuldade, talvez de ordem mais pessoal do que geral – no sentido de uma
invariável na elaboração de textos –, foi encontrada na demora em percebermos a importância
da escrita para o pensamento. Parece que no ato da escrita, o pensamento se constitui
efetivamente, é como se ela fosse o próprio pensamento em ação21
. Assim, tomar nota, ter a
preocupação de anotar algo para não perder a oportunidade de “revelar” sua emergência, seria
muito mais um ato de início do que de fim. É como se escrever, ou mesmo simplesmente
anotar, fosse, não aquilo que vai garantir a emergência de algo já existente em latência, mas,
sobretudo, aquilo que vai possibilitar o início da existência de algo, não apenas pelo caráter de
materializá-lo em texto, mas, principalmente, pelo momento de construção/invenção
proporcionado pelo ato de escrever. Talvez seja isso que interessava Deleuze e Guattari
quando afirmaram: Escrever nada tem a ver com significar, mas com agrimensar,
cartografar, mesmo que sejam regiões ainda por vir22
; o pensamento, não está
necessariamente em latência à espera da melhor forma de escrita, para externá-lo da maneira
mais apropriada, pois a escrita também faz parte do próprio exercício de pensamento; ela não
simplesmente reflete a realidade, porque esta escrita também é, e constitui a realidade.
Estas principais dificuldades e, principalmente, a política23
teórica e ao mesmo tempo
textual, em relação às quais consideramos importante nos posicionar, nos levaram a pensar em
uma forma/conteúdo de escrita não totalmente estriada, mas o máximo possível lisa24
e, por
21
BRANDÃO, L. L. . A casa subjetiva: matérias afetos e espaços domésticos. São Paulo: Perspectiva, 2002.
22
Idem, p.13.
23
Política pensada não necessariamente a partir da idéia de filiações, ou dentro de um espírito correligionário da
defesa empedernida de algumas premissas, mas antes, política como uma orientação teórica, como uma tática ou,
ainda, como um posicionamento itinerante e cosmopolita.
24
A diferença existente entre um texto liso e um texto estriado reside no fato de que este último, ao contrário do
primeiro, constitui-se dentro de uma prática enunciativa baseada na metáfora da fundamentação. Seus
argumentos são pautados e agarrados às estrias referenciais, para assim, conseguirem manter seu caule
argumentativo de pé, a partir da sustentação teórica de suas raízes conceituais. Não é por acaso, para ficarmos
apenas com dois exemplos, que os textos marxistas, ou da segunda fase dos annales, inspirados no pensamento
braudeliano, dão tanto valor ao estudo das estruturas. Estas, assim como as raízes do texto arvore, estão, no caso
marxista, na base da pirâmide explicativa do modo de produção, no caso dos annales, na parte mais estável e fixa
da história, bem diferente das conjunturas e dos fatos de curta duração, muito perigosos para o historiador
fundamentar a produção de seu texto. Já o texto liso, não se preocupa em ser tecido com retalhos factuais, com
farrapos de memórias; tem sua tessitura alinhavada, em alguns momentos, até por agulhas teóricas diferentes;
este tipo de texto reconhece a importância da intertextualidade observada por Barthes, não para se buscar mapear
e esquadrinhar os constructos intertextuais e sua locução referencial, mas, sobretudo, para poder denunciar as
próprias relações de poder/saber existentes na e, pela linguagem, não custa lembrar que foi o próprio Barthes que
sentenciou: a língua caracteriza-se muito mais pelo o que ela nos obriga a falar, do que pelo o que ela nos
permite dizer; este tipo de texto sabe que as lacunas, ou os buracos existentes no seu rendilhado, também ajudam
a constituir as formas das figuras desenhadas pela prática de coser seus argumentos; este tipo de texto, para
usarmos outra metáfora, aproveita em sua culinária, até os restos de teorias que são cozidas em banho-maria,
dentro de um caldearão metodológico preocupado em aproveitá-las para o jantar solene da história, que tem à
mesa, figuras ilustres: dona estruturas, senhor modos de produção, senhorita dialética, mas também a indesejada,
porém, sempre presente, narrativa, com seu discurso repleto de metáforas, interpretações e aporias, enfim de um
pensamento desestabilizador, porque nem sempre esta preocupada em se agarrar às estrias convenciona, mas
principalmente, em afetar, em tocar e contaminar. BARTHES, Roland. Aula – 7ª ed. São Paulo: Editora Cultrix,
10
isso mesmo, com alto grau de risco. Assim, pode-se afirmar que este texto na sua organização,
não tem a preocupação de se constituir com escansões bem definidas, preocupadas em discutir
e separar a matéria narrada em capítulos, onde a metáfora da verticalização/fundamentação25
,
normalmente trabalha com a estratégia de construir a sensação iluminista/evolucionista do
argumento esquemático, ou para usarmos uma observação deleuzo-guattariana – do
pensamento árvore –, em que a raiz, constitui-se como a fundamentação teórica que dará
sustentação ao caule argumentativo do texto, e possibilitará o desabrochamento da bela flor da
razão, afinal:
Para os teóricos da modernidade o visível não passa de aparência. Subjacente a tudo o que
vemos, existe um nível mais profundo, essencial, e é somente a partir dele que podemos
verdadeiramente entender nossos objetos de estudo. Para o marxismo, por exemplo, as
instituições, a superestrutura, que constitui o campo do visível, se explica somente a partir
da estrutura – a essência –, uma instância invisível, mas primordial. Do mesmo modo, para
a psicanálise, o comportamento humano, que constitui o campo do visível, se explica por
mecanismos psicológicos complexos, inconscientes, e, portanto, invisíveis. Tais metáforas
de verticalidade, porém, esfacelam-se frente à crítica empreendida pelos teóricos do pós-
modernismo. 26
É, justamente, pela desconfiança que adquirimos sobre a plausibilidade deste
pensamento moderno, em tempos de pós-modernidade27
, que optamos por não adotar uma
escrita com a mesma esquemática das introduções elaboradas em consonância com este
pensamento moderno. Por isto, este I fluxo, não funciona apenas como arauto do discurso
principal, bem ao estilo das clássicas introduções, possuidoras da peculiar característica de
anunciar resumidamente os temas e discussões dos capítulos subseqüentes, pois este fluxo – a
partir de uma metalinguagem – já é inicio, meio e fim da discussão. Funciona dentro de uma
1996; ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. A invenção do nordeste e outras artes. – 2. ed – Recife:
FJN, Ed. Massangana; São Paulo: Cortez, 2001. VEYNE, Paul. Como se escreve a historia e Foucault
revoluciona a historia. 4 ed. Trad. De Alda Baltar e Maria Auxiliadora Kneipp, Brasília: UNB, 1998.
25
VASCONCELOS. José Antônio. Quem tem medo de teoria? A ameaça do pós-modernismo na Historiografia
americana
26
Idem, p.17.
27
Talvez, nestes tempos de pós-modernidade, a metáfora mais interessante para ser utilizada a respeito da
produção e recepção do conhecimento, seja a da antena, pois em meio a este turbilhão de informações, de
pessoas e mercadorias em constante circulação, com uma velocidade cada vez maior, o importante é estar atento
– “antenado” - com as contínuas mudanças, provocadas e viabilizadas por toda esta circulação. O conhecimento
não pode estar apenas enraizado, porque deve também aproveitar toda a vantagem oportunizada pelas idéias que
circulam: o importante é ficar ligado, interligado, inteirado, conectado..., não afixado, enraizado, empoçado.
Assim, estar bem fundamentado, lastreado, ou ainda embasado, pode não ser mais tão interessante, para um
tempo em que as conexões do conhecimento são constituídas muito mais por contaminação e afetamento, do que
pelas firmes e sólidas premissas do torrão natal/epistemológico. Paradoxalmente em um mundo de especialistas
– com doutores especializados na asa esquerda da borboleta –, se vêem cada vez mais físicos comentando e
debatendo a respeito da estilística literária utilizada no constructo de suas teorias, literatos debatendo sobre
cosmogonia, historiadores analisando questões concernentes aos efeitos de verdade presentes no discurso
científico, filósofos emprestando conceitos e terminologias da botânica. Curiosamente, nesta sociedade de
especialistas, estes discursos reverberam com grande intensidade.
11
determina economia textual que depende, significativamente, de um texto/texto e não de uma
texto/introdução.
Desta forma, esta dissertação, mesmo que nem sempre consiga fazer o que anuncia,
busca funcionar discursivamente como texto grama – rizomático – onde todas as partes se
pretendem autônomas e ao mesmo tempo ligadas ao todo, bem ao estilo do que explicou
Charles Baudelaire, no preâmbulo de um dos clássicos de sua literatura – Le spleen de Paris –
, que Zigmund Baumam cita e ao mesmo tempo lamenta-se por não ter pensado antes:
Meu caro amigo, estou lhe enviando um pequeno trabalho do qual se poderia dizer, sem
injustiça, que não é cabeça nem rabo, já que tudo nele é, ao contrário, uma cabeça e um
rabo, alternada e reciprocamente. Suplico-lhe que leve em consideração a conveniência
admirável que tal combinação oferece a todos nós – a você, a mim e ao leitor. Podemos
abreviar – eu, meus devaneios; você, o texto; o leitor, sua leitura. Pois eu não atrelo
interminavelmente a fadigada vontade de qualquer um deles a uma trama supérflua. Retire
um anel, e as tortuosas partes desta fantasia voltarão a se unir sem dificuldade. Corte um
pedacinho e vai descobrir que cada um deles tem vida própria. Na expectativa de que
algumas destas fatias possam agradá-lo e diverti-lo, ouso dedicar-lhe a obra inteira28
.
Por tanto, podemos considerar que as possíveis flores, surgidas na forma/conteúdo
tiririca29
deste texto, sejam pensadas como elementos individuais e coletivos que constituem
ao mesmo tempo a beleza da singularidade e do conjunto. Não se preocupam em se constituir
como um raro pensamento orquídea, jardim de Versalhes, marco do Jauru30
, Casa Dulce31
,
Fazenda Jacobina32
, Fazenda Descalvados33
..., com definições bem nítidas dos contornos e
conceitos da história, porque, em muitas circunstâncias, preferiremos trabalhar com
28
Cf, BAUMAN, ZYGMUNT, 1925-Amor Líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos; Trad. Carlos
Alberto Medeiros. – Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004, p.16.
29
Erva daninha – um bom exemplo de rizoma – que se alastra com grande rapidez, se constitui no solo
aparentemente como grama, todavia, não pode ser retira ou extirpada da mesma maneira que a grama, pois não se
afixa a partir de raízes, mas sim por bulbos espalhados e interligados em profundidade bem variada.
30
Marco histórico relacionado ao tratado de Madri, firmado entre as coroas de Portugal e Espanha no ano de1750,
o mesmo é tombado pelo IPHAN – Instituto do Patrimônio histórico e Artístico Nacional –, e atualmente
encontra-se na Praça Barão do Rio Branco na cidade de Cáceres. COSTA, César da. O Marco do Jauru na
constituição de um imaginário. Monografia. Cáceres: UNEMAT, 2003.
31
Casa Comercial que possuiu certa importância no comércio de Cáceres durante o início do século XX.
TARTARI, Juliane Cristina. Casas comerciais em Cáceres 1890-1920. 2007. Monografia. Cáceres: UNEMAT,
2007.
32
Fazenda muito cita nos discursos dos memorialistas da cidade e grande orgulho dos Pereira Leite, família
abastada da cidade. LEITE, Luís-Phílippe Pereira. Vila Maria dos Meus Maiores. Ed. Mato Grosso: IHGMT,
1978; . CORREA FILHO, Virgilio. Pantanais mato-grossenses. Cuiabá: IHGB/MT, p. 66-70.
33
Esta outra fazenda sempre esta presente na fala destes memorialistas, foi também estudada, de forma mais
crítica, em trabalhos monográficios, em artigos e, inclusive, em uma tese de doutorado. GARCIA, Domingos
Sávio da Cunha. Cobiçada Carne. Revista de História da Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, p.34 – 37,01 fev.
2008; Kleiton, César Silva de Almeida. Descalvados: 1872-1882. De uma rudimentar salgadeira a uma fabrica
de extrato de carne. Monografia. Cáceres: UNEMAT, 2008; GARCIA, Domingos Sávio. Territórios e Negócios
na Era dos Impérios: Os Belgas na Fronteira Oeste do Brasil. Tese de Doutorado. Campinas: Unicamp, 2005.
12
metáforas, com o Café Nice34
, com a desconstrução de mitos35
, com a desnaturalização das
identidades36
..., ao invés de conceitos bem fixos e definidos, pois aprendemos com Hayden
White que:
A narrativa histórica não imagina as coisas que indica, ela trás a mente imagens das coisas
que indica, tal como o faz a metáfora (...) Corretamente entendidas, as narrativas histórias
nunca devem ser lidas como símbolos inequívocos dos acontecimentos que relatam, mas
antes como estruturas simbólicas, metáforas de longo alcance, que comparam os
acontecimentos nelas expostos com alguma forma com que já estamos familiarizados em
nossa cultura literária. 37
Preferimos o texto rizomático, com os argumentos e idéias se alastrando por todas as
partes, em que as notas de roda-pé ou as citações se constituem como elementos da própria
forma/conteúdo do texto, ou seja, não são pensadas como as referências teóricas e
metodológicas que embasam e validam os argumentos do texto, mas antes, dentro de uma
economia textual esquizofrênica, que se recusa a trabalhar seguindo apenas uma linha ou
34
Estabelecimento comercial – bar – situado na frente da rodoviária. Até 2004 tinha a vizinhança/interação de
outro estabelecimento que poderíamos nominar e definir como pertencendo à zona do baixo meretrício, mas que
popularmente era chamado de “cai pinto”. O “café Nice” tem a peculiar característica de não fechar suas portas,
há quase três décadas. É freqüentado, normalmente, por pessoas pertencentes à classe social financeiramente
mais pobre. Pessoas tidas como de bem e de bens, dificilmente freqüentam o lugar, e, quando o fazem,
geralmente é para comprar bebidas, cigarros, um sexo barato, uma droga misturada, todavia, não gostam de
assumir. Despreocupados, porém, não totalmente, pois o quartel central da polícia militar não fica a mais de 100
(cem) metros de distância, com esta questão da imagem, são as nômades vidas que por estas imediações
constroem suas relações interpessoais, dentro de uma política da sobrevivência com códigos próprios. Nômades
por opção, ou por ocasião, no caso dos que não tem um lar sedentário para habitar. Talvez o “Café Nice”, após a
desterritorialização provocada pela perda do lar sedentário, seja para estas pessoas uma outra forma de
reterritorialização, para aonde os mesmos quase sempre voltam e batem o ponto, para usarmos uma linguagem
mais sedentária. Nestas primeiras/poucas palavras sobre o “Café Nice”, podemos observar que estas vidas
possuem uma memória diversificada, que ainda precisam ser mais observadas, não só pelos historiadores, mas
também por qualquer pessoa preocupada em tentar perceber outros aspectos da cidade, bem diferentes daqueles
já tão propalados pela mídia ou pela memória disciplinarizada dos memorialistas, inclusive, por uma parcela da
história produzida na academia.
35
O principal objetivo neste caso está relacionado ao interesse de problematizar estes espaços de memória, para
assim, buscar dessacralizar esta memória mais sedimentada nos exemplos de vida dos grandes mitos/heróis da
história, ou ainda em desconstruir o castelo de uma história denominada por Nietzsche como monumental,
construído, é importante destacar, com a argamassa política e os blocos de memória pertencentes às grandes
biografias, às grandes fazendas, às grandes casas de comércio, aos monumentos do poder civil, militar e
eclesiástico.
36
Percebermos toda a maldade, e, em alguns momentos, até certa grosseria produzida por este discurso das
identidades, pois em virtude de sua postura homogeneizante, acaba desconsiderando toda a diversidade existente
na cidade. O outro, o pau-rodado, o boliviano, os freqüentadores do Café Nice, as prostitutas, os mendigos..., são
percebidos/percebidas – dentro deste discurso histórico das identidades – como a diferença ameaçadora, porque,
ao fim e ao cabo, estas dessemelhanças talvez sirvam para percebermos que o outro, curiosamente, é maioria, ou
ainda, num sentido mais extremado e, jogando um pouco com as palavras, que: o que nos torna mais iguais é
justamente o fato de sermos bem diferentes. A aparente coerência existente neste discurso das indenidades é
muito frágil, por isso, o constante medo do outro, pois a percepções destas diferenças, nos força a observar
nossas próprias ambigüidades e paradoxos.
37
WHITE, Hayden. Trópicos do discurso: Ensaios sobre a Crítica Cultural. Trd. Alípio Correia de França. São
Paulo. Edusp. 1994, p. 108.
13
corrente de pensamento. Esta esquizofrenia textual tem medo dos fixos e pesados grilhões
teóricos, que propõem uma única e fiel linha metodológica. Porque ter esquizofrenia teórica, é
salutar, impede o desespero do personagem de Borges que não conseguia se esquecer de nada,
pois assustadoramente lembrava-se de tudo.
No texto rizomático a simbiose existente entre as notas de roda-pé e as citações,
possibilita e constrói uma argumentação que se espalha com as metáforas e
palavras/protéicas38
se proliferando em várias direções e com múltiplos sentidos. Palavras que
não obedecem à estabilidade do signo – união entre uma palavra (o significante) e a idéia ou
objeto por ela representado (o significado) – da lingüística estruturalista de Fernand de
Saussure. Temos que assumir, contaminados por uma gramatologia produzida por Jacques
Derrida, a existência de vermes nos vernáculos, Na história de Donald Barthelme, A Picture
History of the war, o general exclama: “Existem vermes nas palavras, os vermes nas
palavras são como feijões mexicanos saltitantes, agitados pelo calor da boca39
, ou
acrescentando nossos próprios vernáculo/vermes à esta afirmação: agitados também, pelo
fluxo de pensamentos agenciados durante a atividade cerebral/corporal da escrita. Com isto
queremos salientar que o texto rizomático não trabalha com a mesma lógica enunciativa do
texto árvore, lógica está que – nas ciências sociais –, quase sempre está preocupada no esmero
das citações, percebidas com a importante função de referenciar, ou, às vezes, na literatura,
pela meticulosa busca de lapidar e polir o vernáculo, com o objetivo de extirpar seus vermes.
Aliás, uma busca inútil e até contraproducente, pois tanto quanto no corpo humano, os vermes
das palavras não podem ser totalmente extirpados, afinal, os mesmos, também fazem parte da
vida existente no corpo e nas palavras.
Manuel Bandeira, mesmo sendo um homem do pensamento moderno, ao se posicionar
contra a estilística parnasiana, identificou e denunciou os excessos desta busca, com os
seguintes versos:
Estou farto do lirismo comedido
do lirismo bem comportado
Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente protocolo e
[manifestações de apreço ao Sr. Diretor
Estou farto do lirismo que pára e vai averiguar no dicionário o cunho
[vernáculo de um vocábulo
Abaixo os puristas
(...) Quero antes o lirismo dos loucos
38
Ct. HARLAN. David, “A história intelectual e o retorno da literatura”. Trad. José Antônio Vasconcelos. In:
RAGO, Margarete, OLIVEIRA, Gimenez, ALUÍZO de, Renato. (org.) Narrar o passado, repensar a história:
UNICAMP, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, 2000.p. 17.
39
Idem, p. 17.
14
O lirismo dos bêbedos
O lirismo difícil e pungente dos bêbedos
O lirismo dos clowns de Shakespeare
- Não quero mais saber do lirismo que não é libertação40
.
Como já foi externado anteriormente, não estamos interessados em fazer uma
argumentação que funcione a partir da idéia de fundamentação, por considerarmos a metáfora
da verticalização muito gasta/clichê, interessamo-nos sim, em uma dermatologia teórica onde
o mais profundo está na superfície, porque, espantar-se com o óbvio41
, quase sempre é mais
difícil. Não queremos ler as entrelinhas, nem acreditamos que exista esta leitura das
entrelinhas. Não utilizamos as idéias de autores para justificar e fundamentar nossos
argumentos; no máximo, agenciamos as idéias e conceitos dos autores que nos tocam e nos
afetam – de forma direta ou indireta – para que as mesmas também façam parte do fluxo de
enredo deste texto.
Nesta miscelânea teórico-metodológica, o importante é tentar operacionalizar estas
diferentes ferramentas teóricas no exercício de construção/invenção deste objeto de estudo.
Numa comparação mais extremada, é tentar orquestrar músicos que, não raro, se contrapõe
totalmente. É procurar treinar o ouvido para conseguir apreciar, ou quando muito, suportar um
acorde dissonante, reverberado em uma assonância estranha à partitura teórica da
fundamentação.
A partir do agenciamento da idéia de fluxo de Deleuze e, da estratégia de escrita,
adotada por Charles Baudelaire em – Le spleen de Paris – que, buscamos tramar a tessitura
desta dissertação, não em capítulos, mas, sim, em fluxos com relativa independência entre si,
não total, pois ao contrário da obra: O jogo da Amarelinha42
de Julio Cortázar, em que os
diferentes e possíveis fins da história são prenunciados pelo auto, infelizmente, esta
dissertação não tem a mesma amplitude de possibilidades da história de Cortázar, nem a total
independência do texto de Baudelaire, porque seus objetivos se assemelham bem mais à idéia
de fluxos discursivos que emergem da necessidade de reiterar constantemente uma
determinada visão da história, para qual, não existe uma separação entre forma e conteúdo,
afinal, mesmo a lingüística mais estruturalista de Ferdinand de Saussure, há muito tempo
40
BANDEIRA, Manoel. Poética. In: MORICONI, Ítalo (org). Os cem melhores poemas brasileiros do século.
Rio de Janeiro: Objetiva, 2001, p. 31.
41
VEYNE, Paul. Como se escreve a história, Brasília. Ed. da UNB, 1982, p.24.
42
CORTÁZAR, Julio. O jogo da amarelinha. Tradução de Fernando de Castro Ferro.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.
15
atrás, já defendia com certa insistência que a linguagem constitui e articula a realidade, ao
invés de simplesmente expressá-la ou refleti-la43
.
Levando em conta a importância da linguagem na construção de um determinado
objeto de estudo, é que resolvemos adotar esta específica urdidura textual, construída
mediante distintos fluxos, os quais não obstante serem diferentes, e relativamente
independentes, acabam por trabalhar discursivamente em consonância com uma mesma idéia
e concepção de história. Em muitos aspectos, a pesquisa e assuntos abordados nesta
dissertação, são, e/ou funcionam, como pretextos para se falar e escrever sobre uma
determinada política/teórica dentro da e, para a, história.
Um exemplo mais direto desta política44
teórica pode ser encontrado no II fluxo – A
história foi salva pelo turismo? –, onde buscamos metodologicamente operacionalizar uma
pesquisa genealógica45
das práticas discursivas e não discursivas relacionadas ao turismo em
Mato Grosso, para assim, tentar perceber em quais circunstâncias a discussão da memória, ou
de forma mais geral, de uma determinada concepção de história esteve ou não, funcionando
dentro da mesma lógica de enunciação destas respectivas práticas discursivas e não
discursivas do turismo.
Entretanto, é importante ressaltar, que não estamos aqui buscando construir uma
história da longa duração46
, em que um conceito, ou uma palavra – o turismo – seja pensada
sem se levar em consideração sua própria historicidade, buscando, assim, se estabelecer uma
continuidade sem rupturas, dentro de uma lógica de enunciação que oblitera todas as
descontinuidades e rupturas que permearam sua existência.
O interessante neste II fluxo é percebermos que esta prática discursiva e não discursiva
do turismo, em muitos momentos, esteve correlacionada, interligada, afetada e afetando a
construção e definição de uma determinada forma de ver e escrever a história sobre Mato
Grosso47
, em que o discurso das identidades mistura-se ao interesse de cartografar os
principais contornos de uma região geográfica, onde a natureza constitui-se como importante
tema e elemento deste discurso identitário.
Inclusive, ser-nos-á importante salientar que o principal motivo que nos instigou a
fazer a pesquisa necessária para a elaboração desta dissertação, foi suscitado pela percepção
43
HARLAN, David, op, cit, p. 16.
44
Política teórica que suspeita do discurso solene e homogeneizante das origens.
45
FOUCAULT. Michel. Nietzsche, a genealogia e a história, In: Microfísica do poder. Organização e Tradução
de Roberto Machado. Rio de Janeiro: Edições Graal. 1979.
46
BRAUDEL, Fernand. A longa duração, In: Escritos sobre História. Trad. J. Ginsburg e Tereza C. S. da Mota.
São Paulo: Perspectiva, 1978, p. 44-46.
47
CORREA FILHO, Virgilio. “Pantanais mato-grossenses”. Cuiabá: IHGB/MT, p. 66-70. CORRÊA FILHO,
Virgilio. Entraves ao turismo. Mensário do Jornal do Comércio. Rio de Janeiro, Abril/1941.
16
de que os discursos presentes desde a primeira legislação municipal48
, preocupada com a
temática do patrimônio histórico, até as falas mais atuais, relacionadas à definição do que
deve ou não ser considerado como patrimônio histórico de Cáceres, estão, afetadas por uma
concepção de história impregnada pelas idéias do discurso identitário.
Neste sentido, buscamos pesquisar, compreender e problematizar quando e como, a
partir de determinadas práticas sociais49
, algumas práticas discursivas ou não-discursivas,
ganharam respaldo dentro de determinadas relações de poder e saber, que as possibilitaram
engendrar a invenção de uma determinada memória para Cáceres; tentar, também, perceber a
emergência de um objeto de saber e um espaço de poder; estudar como se formou um arquivo
de imagens50
e enunciados, um estoque de “verdades”, uma determinada visibilidade e
dizisibilidade desta memória que pretendeu e pretende direcionar comportamentos e atitudes
e, dirigir inclusive, o olhar e a fala da mídia; como e a partir de quais ressonâncias
discursivas, a própria idéia de “identidade cacerense” impõe uma dada forma de abordagem
imagética e discursiva, para falar e mostrar a “verdadeira” “história” da cidade.
Ao fazermos a pesquisa/escritura do momento de emergência desta memória,
percebemos a importância do traço identitário para construção/invenção de uma determinada
história de Cáceres. Buscamos então – a partir do mesmo método genealógico já adotado no II
fluxo, como também, afetados pela idéia de ressonância –, realizar um estudo do momento no
qual este discurso das identidades ganhou maior dizibilidade na cidade.
A feitura deste estudo nos levou a pesquisar/escrever o IV fluxo – Os artesões da
memória nas tramas e retramas da história –, em que efetuamos a narração de alguns
acontecimentos ocorridos no dia 6 de Outubro de 1978 – ano das comemorações do
bicentenário de Cáceres –, e, em certos momentos, também tentamos conjecturar uma
específica intriga textual para estes acontecimentos, com o objetivo de perceber/destacar que,
estas solenidades e comemorações, ocorridas tanto neste dia específico como também no
transcorrer de todo deste ano, estavam articuladas e interligadas a uma determinada prática
discursiva, emitida nos escritos e falas das autoridades civis, militares e eclesiásticas.
A principal constante lexicológica desta prática discursiva era o traço histórico. É
como se todas estas autoridades, independente de sua formação/função profissional,
estivessem em um determinado fluxo enunciativo, onde as palavras correlacionadas à história
48
Decreto lei n.165 de 19 de Abril de 1994.
49
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: artes de fazer. (Trad.) Ephrain F. Alves. Vol. I. Petrópolis,
RJ: Vozes, 1994.
50
Catedral de São Luiz de Cáceres, marco do Jauru, os casarões do centro, a bicicleta, a ponte branca, as
fazendas históricas...
17
de Cáceres ficavam reverberando e produzindo eco de discurso em discurso, e, assim,
constituindo toda uma coerência argumentativa interessada em engendrar uma fala
competente/autorizada, constantemente preocupada em definir e delimitar os contornos mais
importantes da história, ou mesmo da identidade do povo cacerense.
Um bom exemplo das ressonâncias51
– tanto destes discursos, quanto da literatura52
que
os contaminou – que ainda reverberam na história escrita e vivida atualmente na cidade de
Cáceres, pode ser encontrado no fragmento/sintetizador presente no texto do cardápio do
Knôas. O texto deste cardápio não é único, pois muitos são os breves históricos construídos a
partir desta mesma forma/conteúdo. Quando ocorrem mudanças, geralmente elas estão mais
relacionadas às informações utilizadas no breve histórico, do que propriamente na alteração
desta forma/conteúdo de se pensar e escrever a história, assim, podemos encontrar textos
muito semelhantes nos cardápios de outros restaurantes53
, em sites de agências de turismo54
,
no site da Sematur55
, em folders de pousadas,56
em blog57
...
Quando destacamos que este texto, constitui-se como um bom exemplo das
ressonâncias das práticas discursivas contemporâneas ao ano de 1978 que ainda reverberam
atualmente, não é simplesmente pelo fato de a maioria destes textos estarem utilizando, e em
algumas circunstâncias até plagiando, as informações contidas em um artigo58
de Natalino
Ferreira Mendes, produzido para um caderno especial do Correio Cacerense, publicado no dia
do bicentenário. Falamos em ressonância neste caso, sobretudo, porque percebemos a
permanência de uma visão da história que ainda se auspicia na condição e competência de
definir a história de um povo, de um país, de um estado, de uma cidade..., em poucas palavras
– em um breve histórico. Os postulados desta prática discursiva que ainda ecoam na cidade de
Cáceres ou em diversas escolas deste país, assemelham-se bastante ao discurso da
estereotipia, pois:
51
Na cidade de Cáceres existe na fala e na escrita do discurso interessado em exibir uma suposta identidade da
cidade, ou os exemplos da cultura material e imaterial que devem ser considerados como patrimônio histórico,
ainda as ressonâncias de todas as práticas discursivas elaboradas e emitidas naquele ano do bicentenário.
52
LEITE, Luis-Phelippe Pereira. Vila Maria dos Meus Maiores. Ed. Mato Grosso: IHGMT, 1978. Ainda deste
mesmo autor, as obras: “O Médico de Jacobina, Dr. Pedro Nolasco Pereira Leite” e “O Engenho da Estrada
Real”. CORREA FILHO, Virgilio. Pantanais mato-grossenses. Cuiabá: IHGB/MT, p. 66-70.
53
Restaurante Corimba – localizado às margens da baia do Malheiros, Rio Paraguai – 2006, ou ainda, o
restaurante Etrúria, situado no calçadão da Praça Barão do Rio Branco, ano 2009.
54
?
55
Secretaria Municipal de Turismo de Cáceres.
56
Folders da Pousada Fordinho.
57
D:fontes de sites de pesquisa- Cáceres - MT.mht, visitado em 18.02.2008
58
MENDES, Natalino Ferreira. Cáceres – Duzentos Anos. Caderno especial do Correio Cacerense. 06/10/1978,
ano II, n. 353.
18
O discurso da estereotipia é um discurso assertivo, repetitivo, é uma fala arrogante, uma
fala que leva à estabilidade acrítica, é fruto de uma voz segura e auto-suficiente que se
arroga no direito de dizer o que o outro é em poucas palavras. O estereótipo nasce de uma
caracterização grosseira e indiscriminada no grupo estranho, em que as multiplicidades e as
diferenças individuais são apagadas em nome de semelhanças superficiais do grupo. 59
Em Cáceres, ou no velho/novo Mato Grosso, durante o ano de 1978 – velho porque
permaneceu com a mesma capital e também conservara o mesmo nome, novo porque após a
divisão, ocorrida um ano antes, teria que ser escrita uma nova história para o estado, com
novos heróis –, existia uma preocupação de se escrever a história do estado e da cidade. Esta
história, entretanto, não se justifica apenas pela divisão do estado, também temos que levar
em conta a importante questão da presença do outro, do imigrante que afluiu para o estado
com grande intensidade durante estes anos setenta60
. Do outro que representa a ameaçadora
diferença visível na culinária, no sotaque, no vocabulário, nas formas de sociabilidade, na
concepção de tempo, enfim, nos traços culturais. É a partir deste contato com o outro que o
discurso da identidade ganha maior importância, e emerge todo um interesse em construir
uma história que tenha uma memória disciplinada em comum; disciplinada, porque, quem se
arvora a esta condição de memorialista, varia muito pouco o seu repertório.
Na cidade, sobretudo após o bicentenário, não faltaram discursos que ressaltavam a
importância de se escrever e preservar a história local, em decorrência da iminente destruição
do passado, provocada pelo processo modernizador em que o estado estava ingressando.
Voltando aos comentários e, ao mesmo tempo continuando, pelo menos em parte, esta
discussão relacionada às ressonâncias desta determinada prática discursiva que ainda
reverberam atualmente, no IV fluxo, além do estudo destas práticas discursivas, também
foram analisadas certas práticas não discursivas como, por exemplo, o desfile do bicentenário,
com toda sua conotação imagética e linguagem corporal/gestual. Especificamente sobre o
desfile do bicentenário, podemos observar que essa prática não possui mais tanta influência
sobre o cotidiano da cidade. Primeiro porque o desfile não é realmente algo que faça parte da
vida cotidiana, pois apresentam uma característica mais solene e excepcional; segundo,
porque atualmente não temos uma cultura dos desfiles61
bem arraigada na mentalidade da
população, bem ao contrário do que ocorria naqueles últimos anos da década de setenta, com
59
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. A invenção do nordeste e outras artes – 2. ed – Recife: FJN,
Ed. Massangana; São Paulo: Cortez, 2001, p.20.
60
Um importante trabalho sobre a vinda de grande quantidade de migrante para região da grande Cáceres, ou
mais especificamente, para localidade que futuramente iria se tornar um novo município é o trabalho de:
HEISNT, Andréa de Cássia. Bandeirantes do século vinte. Memória e ocupação da terra em Mirassol D`Oeste,
Mato Grosso. Dissertação de Mestrado em História. Cuiabá: Universidade Federal de Mato Grosso, 2003.
61
FAUSTO, Boris, História do Brasil. São Paulo, Edusp, 1995; SKIDMORE, Thomas E. Brasil de Castelo a
Tancredo. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1988.
19
um regime militar que tinha total interesse em construir/conservar, a partir da atmosfera de
festividade existente nos desfiles, um comportamento coesivo e ordenado baseado na
comunhão identitária de uma história ufanista e homogeneizante.
Todo o debate relacionado à identidade, a história e a memória nos levaram a
refletir/escrever a respeito dos efeitos de verdade produzidos pela fala competente/autorizada,
sobre a importância e contribuições da fala competente/autorizada para as construções
identitárias, como também, procuramos desenvolver um debate relacionado às interfaces e
interstícios existentes entre o discurso de uma elite política e o interesse de se constituir uma
dada identidade para a população de Cáceres. Tudo isto, viabilizado por uma concepção de
história pautada no paradigma da representação, no qual a linguagem é pensada como reflexo
da realidade.
Para entendermos melhor a lógica enunciativa da postura e preservacionista adotada na
cidade de Cáceres, se fez necessário e importante, estudarmos as principais características dos
enunciados emitidos por integrantes do IHGMT, como Luís-Fillippe Pereira Leite, que,
influenciam e/ou funcionam na mesma lógica de toda uma prática discursiva presente nos
enunciados elaborados por memorialistas62
, autoridades63
, livros64
, monografias65
, sites66
,
blogs67
...
Atualmente, a lógica enunciativa relacionada à intenção de se preservar a memória de
cidades, estados, países, ou em uma visão mais abrangente, da humanidade, mesmo que bem
intencionada, pois está suscetível ao diálogo interdisciplinar, estabelecido entre profissionais
de várias áreas do conhecimento como: arquitetos, historiadores, urbanistas, paisagistas,
antropólogos, sociólogos..., em que a questão do patrimônio histórico, normalmente é
vislumbrada como fundamental para preservações e manutenção de uma determinada
identidade cultural, porque, segundo esta lógica:
62
MENDES, Natalino Ferreira. Efeméride cacerense. Volume I, Brasília, 1992. Deste mesmo autor as obras:
“Marco do Jauru”, 1983; “Memória Cacerense”, 1982; BAPTISTA, Martha: Estela de uma vida inteira: a
história de Cáceres contada através das lembranças da vó Estela, 1998.
63
Fala do governador do Estado de Mato Grosso Blairo Maggi, quando veio a Cáceres durante o circuito
nacional de Vôlei de Areia no ano de 2008.
64
PITALUGA, Carlos e Vicente, João Carlos. Breve História de Mato Grosso e de seus municípios. Cuiabá,
1994; COSTA, Antônio Ferreira da. Pantanal em versos e rimas. Cuiabá: KCM, 2007.
65
SANTANA, Eliane da Silva. Museu histórico de Cáceres no período de 1978 à 1979. Monografia. Cáceres:
UNEMAT, 2002; CATELAN, Leonildes Maria. Ponte branca na memória cacerense. Monografia. Cáceres:
UNEMAT, 2001.
66
http://www.caceres.mt.gov.br/index2.php?cod_sec=4, visitado em 21.12.2008;
http://pt.wikipedia.org/wiki/C%C3%A1ceres_(Mato_Grosso), visitado em 21.12.2008;
http://www.citybrazil.com.br/mt/caceres/historia.php, visitado em 21.12.2008;
http://www.apontador.com.br/guia_cidades/mapas/MT/caceres.html, visitado em 21.12.2008
67
D:fontes de sites de pesquisa- Cáceres - MT.mht, visitado em 18.02.2008
20
A cidade guarda em si as cicatrizes de vários momentos diferentes de luta: as teimosas
marcas de uma memória inscritas nas pedras do calçamento, os monumentos aos sucessivos
vencedores, os rastros de um passado que permanentemente se tenta ocultar ou maquiar. 68
Curiosamente e paradoxalmente, esta lógica, urde sua argumentação a partir de
discussões e textos delineados em encontros internacionais como, por exemplo, as
recomendações de preservação e restauração de monumentos, existentes nos 16 artigos da
Carta de Veneza69
de 1964, consagrada como a mais importante referência/doutrina
urbanística do Ocidente. Assim, busca-se preservar uma determinada e local identidade
cultural, recorrendo-se a paradigmas e premissas teóricas universalizantes; os centros
históricos de diferentes cidades do mundo, cada vez mais se parecem participando de uma
mesma prática discursiva consciente e/ou inconsciente que busca controlar a própria noção e
compreensão do que deve ou não ser considerado patrimônio histórico, e, ainda, disciplinar as
práticas sociais70
dos transeuntes destes lugares.
Guattari, a partir de sua arguta sensibilidade, e preocupado em refletir sobre algumas
características da paisagem urbana desta sociedade que ele denomina de pós-moderma,
descreveu este paradoxo com as seguintes palavras:
Vamos, então, desmascarar o paradoxo de uma vez. Tudo circula: música, slogans de
propaganda, turistas, bits de informação, filiais de indústrias; e, ao mesmo tempo, tudo
parece estar coagulado, parado no mesmo lugar, as diferenças entre o estado das coisas
atenuando-se cada vez mais. Os espaços tornaram-se estandardizados, tudo passou a ser
intercambiável equivalente. Turistas, por exemplo, viajam cada vez mais sem sair do lugar,
utilizando o mesmo tipo de avião, ônibus de excursão, quarto de hotel e simplesmente
contemplando o cenário que já viram antes uma centena de vezes na tela da televisão ou em
algum guia de viagem. 71
Quando nos propomos a problematizar este discurso das identidades, não estamos
querendo construir simplesmente um discurso niilista e inconseqüente; problematizar neste
caso significa ter a preocupação de não perceber estas identidades como óbvias e naturais, ou
naturais porque óbvias; percebê-las, aliás, como tudo que é próprio do acontecer humano,
como tendo uma historicidade, repleta de coerências e incoerências, em que os jogos de poder
e saber, interagem de forma direta e indireta na constituição destas identidades, onde as
heterogeneidades e heterotopias, são obliteradas em detrimento da maior visibilidade
oportunizada ao discurso do mesmo, do igual, do semelhante.
68
PEREIRA CUNHA. Maria Clementina (org.). O Direito à Memória: Patrimônio Histórico e cidadania. São
Paulo: DPH/SP, 1992, p.10.
69
CADERNO de documentos n 3. Cartas Patrimoniais. Brasília: Ministério da Cultura/Instituto do Patrimônio
Histórico e artístico nacional – IPHAN, 1995.
70
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: artes de fazer. (Trad.) Ephrain F. Alves. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994.
71
GUATARRI, Felix. A restauração da paisagem urbana. In: Revista do Patrimônio Histórico Artístico e
Cultural – Cidadania, n°24, 1996.
21
É justamente por estarmos posicionados, e nos posicionando, a favor de uma dada
postura historiográfica – epistemologia da diferença –, que se pretende mais polissêmico e
interessado em fazer emergir as diferenças, as dessemelhanças, a pluralidade, que,
consideramos esta fala competente/autorizada respaldada no álibi72
da preservação,
insuficiente para se pensar a memória, e, sobretudo a história de Cáceres, pois a mesma, não
raro, nem se preocupa em distinguir as diferenças existentes entre memória e história, afinal,
Reconhecê-las – as tensões entre memória e história – é tarefa fundamental para a
historicização da prática de nosso ofício. Enquanto a primeira – a memória – situa-se no
campo dos afetos e dos sentimentos, procurando sacralizar os objetos que reverencia, a
segunda – a história – pretende uma operação intelectual, um exercício crítico capaz de
investigar as construções da memória, retirando dos altares e trazendo para o mundo dos
homens, aqueles objetos sacralizados, sejam eles os autores do passado, os eventos
fundadores ou as formas narrativas elaboradas a partir das experiências do passado Refazer
essa gênese e este percurso impõe-se como condição para devolvermos ao homem sua
historicidade e á história como disciplina sua capacidade crítica como conhecimento. 73
Fala competente/autorizada que, em muitas circunstâncias, por não perceber esta
distinção, acaba querendo sedimentar uma memória que na prática reside em poucos lugares,
como se esta fosse a única, ou, ainda pior, a memória de todos. Esta epistemologia da
diferença instiga-nos a ampliar a discussão, a dar dizibilidade e visibilidade a outras falas, a
outros fragmentos de memória, a outras concepções de história; incita-nos, inclusive, a
problematizar nossa própria condição de sujeitos de conhecimento, com fala também
competente/autorizada, ou seja, termos a coragem de colocar sobre suspeição nosso próprio
discurso, assumir e externar qual é o efeito de verdade que pretendemos instaurar, a partir de
nossas relações específicas de saber/poder. Para assim, tentarmos evitar, pelo menos em parte,
aquela mesma negligência percebida e denunciada por Valéry.
72
MONNET, Jérôme. O Álibi do Patrimônio: Crise da cidadania, gestão urbana e nostalgia do passado, In:
Revista do Patrimônio Histórico Artístico e Cultural – Cidadania, n°24, 1996.
73
GUIMARAES, Manuel Luiz. A cultura histórica oitocentista: a constituição de uma memória disciplinar. In:
PESAVENTO, Sandra Jatahy. (org.) História Cultural: experiências de pesquisa. Porto Alegre: Editora da
UFRGS, 2003, p.10.
22
II FLUXO
A História foi salva pelo Turismo?
Uma cultura está bem morta quando a defendem em vez de inventá-la
Paul Veyne
Estaria o velho – orgânico74
– historiador mato-grossense Virgilio Correa Filho, em
um artigo intitulado: Entraves ao turismo75
, publicado no Mensário do Jornal do Comércio,
já no ano de 1941, prenunciando aquilo que se tornaria um dos elementos fundamentais do
discurso preservacionista, tanto no Brasil como no mundo? Ou apenas, sua fala está situada
dentro de uma prática discursiva bem própria do seu tempo? Ou ainda – e, reiterando a idéia
da última pergunta –, pensando-se numa expressão bem própria do historiador Lucien Febvre,
a história é filha de seu tempo, logo, o autor Virgilio Correia, também seria Filho do seu
tempo?
Neste artigo, Virgílio vai comentar sobre a importância de se programar a atividade do
turismo em Mato Grosso, a qual considera como uma tendência mundial de incentivo a
economia. Assim, em virtude da exuberância da fauna e da flora do país, deveriam existir
mais iniciativas e planejamento nesta área, para oportunizar o melhor aproveitamento
econômico do turismo.
O fato é que não podemos nem menosprezar, muito menos, supervalorizar a produção
intelectual/política de um autor como Virgilio Correia Filho.
Não devemos menosprezar, porque, suas contribuições de pesquisa em arquivo,
coligindo e sistematizando dados em acervos, são significativas, afinal, podemos destacar sua
preocupação com a importância e o estado de conservação da documentação destes arquivos.
Um bom exemplo desta preocupação pode ser observado num artigo que publica em 1942 no
Mensário do Jornal do Comércio76
, no qual, Virgilio busca alertar para a precariedade do
estado de preservação destes arquivos tão importantes, segundo ele, para o estudo da
ocupação e desenvolvimento da fronteira oeste do Brasil. Chegando mesmo a sugerir a
transferência de alguns documentos para o Arquivo Nacional do Rio de Janeiro.
Também não devemos supervalorizar suas falas e ações, apenas construindo um
discurso empolgado pela sua consciência intelectual, porque em casos como este, sempre é
74
GRAMSCI, Antonio. Os intelectuais e a organização da cultura. Trad. Carlos N. Coutinho. 4 ed. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 1982.
75
CORRÊA FILHO, Virgilio. Entraves ao turismo. Mensário do Jornal do Comércio. Rio de Janeiro, Abri/1941.
76
CORRÊA FILHO, Virgílio. “Documento destinado às chamadas devoradoras” (Delegacia Fiscal) Jornal do
Comércio. Rio de Janeiro, 8/3/1942.
23
pertinente adotar uma postura mais interpretativa, que busque perceber em qual lógica de
funcionamento discursivo está situada a fala de um intelectual como Virgilio Correa Filho,
vinculado e articulado a uma elite local. Neste sentido, tentarmos observar as intenções e a
postura apresentada nos enunciados de intelectuais refestelados em instituições como o
IHGMT, quando se arvoram na condição de se constituir como fala competente/autorizada,
para discutir e emitir opiniões sobre variados temas, relacionados à vida política, social,
econômica e cultural..., ou seja, buscar perceber/problematizar certa vontade de poder/saber.
Uma década antes destes artigos de Virgílio Corrêa Filho, numa revista de circulação
nacional – O Cruzeiro –, um caçador de origem russa, relativamente extravagante, com o
nome de Sasha Siemel, em um ambiente interpretado pela revista como exótico e selvagem –
o Pantanal –, ganha certa vizibilidade nacional, chegando até a adquirir uma relativa
dizibilidade internacional. Pois, o mesmo, em 1935, guiou o filho do presidente norte-
americano Theodor Roosevelt em incursão aventureira por esse pantanal. Os historiadores
Cezar Benevides e Nonci Leonzo, na obra Miranda Estância, estudaram esta revista, e num
fragmento desta obra, vão observar que:
Frederico Chateaubriand, irmão de Assis Chateaubriand, traçou na revista o cruzeiro, o
perfil de um russo que se tornou um mito no pantanal. Ajudou a popularizar essa figura
enigmática que, chegou a viver com sua família norte-americana na Miranda Estância: Ali
descobriu o caminho da aventura em Mato Grosso: Mergulhou pelos pantanais da província
ainda meio selvagem atrás de onças, tem um livro escrito: Tigrero biografia de sua luta com
tigres, está claro. Nesta luta o importante é que Sasha não segue as técnicas usuais das
caçadas a tiro. Usa um método pessoal, a lança. Metesse nos carrascais com um cão. A fera,
descoberta pelo rafeiro, começa a ser acuada, até o momento em que investe contra Sacha.
Esta é então a ora que ele certeiro, a fere com a lança77
.
Além da originalidade do método de caça utilizado por Sasha, tão bem descrito pelos
historiadores a partir da análise do enunciado supracitado, também devemos nos atentar para a
intenção de se construir uma coerência enunciativa sobre o pantanal.
Um conjunto de palavras, como exótico, selvagem, distante..., vão dar e, ao mesmo
tempo, construir sentidos para se pensar esta região do Brasil. Não devemos nos esquecer que,
homens de imprensa como os irmãos Chateaubriand, têm bem a noção dos efeitos que a
linguagem é capaz de produzir, no sentido de construir o mundo, de influenciar a percepção
deste mundo constituidor e constituído pela, e na linguagem.
77
BENEVIDES, César; LEONSO, Nanci. Miranda Estância: Ingleses, peões e caçadores no pantanal mato-
grossense. Rio de Janeiro: FGV, 1999, p.86.
24
De certa maneira, talvez já esteja presente neste enunciado da revista O Cruzeiro, uma
prática discursiva que busca simultaneamente: definir as principais características desta região
do país – o Pantanal –; e delimitar uma possível atividade de exploração econômica para esta
região correlacionada ao turismo. Pois, se é anacrônico pensarmos na expressão “indústria do
turismo” 78
para esse período, em virtude da não existência, ainda, do pleno agenciamento
imagético/discursivo, vinculado à indústria cultura relacionada ao turismo; contudo, nós, já
podemos perceber, mesmo que de maneira incipiente – porém, com alguma coerência –, a
preocupação de se publicizar uma determinada imagem deste Pantanal apropriada à atividade
do turismo. Claro que de um turismo mais predatório, bem aos moldes das aventuras de Sasha
que, em um ambiente exótico e selvagem, vai adentrar esta perigosa “região inóspita”, com
feras tão selvagens quanto um tigre nas florestas Asiáticas, ou um leão nas savanas Africanas,
ou mesmo um Urso nas florestas Canadenses.
Parece que as palavras: “exótico”, “selvagen”, “distante”, “pantanal”..., já trazem no
ato de sua enunciação, a imagem e a necessidade de outras palavras, como: “caçada”,
“arriscar-se”, “aventurar-se”, “mito” e, ainda, a metáfora “mergulhar nas águas desconhecidas
e distantes do Pantanal”, para assim, dar maior sentido e coerência a todo o enunciado;
porque, só uma figura mítica como Sasha, com uma técnica de caça totalmente irreverente, e,
com a deliberada índole aventureira, disposta a literalmente mergulhar neste pantanal exótico
e selvagem, poderia estar interessada em adentrar esta região cheia de feras. Por esta razão,
podemos observar que o perfil do possível turista que se direciona para estes locais, neste
período, vai estar mais correlacionado a figura do caçador em busca de aventuras.
Entretanto, não estamos preocupados nesta dissertação, em elaborar uma narrativa
linear da origem e das práticas discursivas correlacionadas ao turismo em Mato Grosso – com
seu desenvolvimento em diferentes períodos, a partir de uma coerência que, não raro,
transforma estes distintos períodos na mesma coisa, pois normalmente oblitera suas diferenças
e contradições –, assim, nós, no desenvolvimento da trama desta dissertação, temos antes, o
interesse de dar vizibilidade também e/ou, sobretudo, às diferenças; buscamos perceber as
próprias contradições e mudanças existentes nestas práticas discursivas relacionadas ao
turismo, ou seja, estamos motivados em – a partir de uma preocupação foucaultiana, inspirada
em grande parte, no método genealógico de pesquisa – construir uma narrativa da diferença,
78
Termo que, aliás, é mais apropriado para ser empregado na segunda metade do século XX, a partir da
constituição efetiva de uma cultura de massas, muito bem teorizada por: ADORNO, Theodor W. Indústria
Cultural e Sociedade. São Paulo: Paz e terra, 2002, p. 107.
25
da dispersão, da própria contradição e incoerência daquilo que aparenta ser uno e totalmente
coerente, pois,
(...) Nietzsche genealogista recusa, (...) a pesquisa da origem (Usprung) (...) Por que,
principalmente, a pesquisa neste sentido, se esforça para recolher nela a essência
exata da coisa, sua mais pura possibilidade, sua identidade cuidadosamente
recolhida em si mesma, sua forma imóvel e anterior a tudo que é externo, acidental,
sucessivo. Procurar uma tal origem é procurar reencontrar “o que era
imediatamente”o “aquilo mesmo” de uma imagem exatamente adequada a si; é
tomar por acidente todas as peripécias que puderam ter acontecido, todas as astúcias,
todos os disfarces; é querer tirar todas as mascaras para em fim revelar uma
identidade primeira.79
Por este motivo buscarmos entender que, em muitos momentos, este enunciado do
turismo, esteve correlacionado, misturado e contaminado por outros fluxos – para usarmos
uma expressão deleuziana – da vida; fluxos econômicos, fluxos sociais, fluxos políticos,
fluxos culturais... Assim, a grande preocupação que temos como historiadores, é justamente
de historicizar a própria palavra turismo, observar suas mudanças. Não pretendemos
estabelecer uma continuidade a-históricas para esta palavra, não queremos definir, de forma
categórica e conceitual, o significado da expressão turismo, mas, sim, procurar compreender
como ela vai funcionar, em diferentes períodos, dentro, no meio e fora, da lógica mais ampla
de enunciação e definição desta região (o Pantanal), ou, ainda, na elaboração da identidade
que constantemente procura definir e delimita tanto o pantanal enquanto região geográfica,
como também a própria história passada, pressente e, em alguns momentos, em projeções
futuras.
Um bom exemplo de descontinuidade, sobre a conotação da palavra turismo, pode ser
observado na mudança que a mesma ganha naquele artigo elaborado por Virgilio Correa filho,
em que o turismo, de atividade econômica predatória ao estilo Sasha, passa a funcionar dentro
de outro fluxo econômico permeado por fluxos sociais e políticos perpassados pelas
discussões relacionadas à importância da história. Afinal, no mesmo ano deste artigo, o
IHGMT – Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso –, em virtude da vinda do
representante do SPHAN – Serviço do Patrimônio histórico e Artístico Nacional – Dr. Luiz de
Castro Faria, vai segundo a historiadora Elizabeth Madureira80
, nomeia comissão para fazer o
levantamento do patrimônio histórico e artístico de Mato Grosso. Resultando desta visita, um
estudo oficial dos possíveis bens patrimoniais existentes em Mato Grosso, sobretudo,
79
FOUCAULT, Michel. “Nietzsche, genealogia e a história”. In Microfísikca do poder. Rio de Janeiro: Graal,
1979, p.17.
80
SIQUEIRA, Elizabethe M. “Resumo informativo das atas das reuniões do IHMT, 1919-1971” Revista do
IHGMT, 1994, p. 114.
26
buscando dar maior ênfase a grade importância de se entender a historia deste país, a partir do
estudo e compreensão da ocupação desta parte da colônia.
Neste levantamento, vai ser o patrimônio histórico relacionado à cultura material que
vai ganhar visibilidade. Como no destaque dado à construção militar efetuada pela monarquia
portuguesa, do Forte Príncipe da Beira. Desta forma, podemos observar que, entre as décadas
de 40 e 50, as primeiras políticas e iniciativas preservacionistas do SPHAN, em Mato Grosso,
apresentam certa consonância com as diretrizes já adotadas até então pelo órgão em outras
partes do país. Ou seja, a predominância em se preocupar com bens de pedra e cal, no caso de
Mato Grosso, pedra e cal vinculada a um passado bandeirantizado, representado em
edificações da elite católica, governamental e/ou militar.
Esta nova lógica de funcionamento do discurso do turismo, articulada com a intenção
de se dar destaque também para a importância histórica de Mato Gross, pode ser entendida
como uma maneira encontra pelos intelectuais do IHGMT e da elite local, em conjuminar
esforços para reiterar a importância de Mato Grosso no cenário mais amplo da história
nacional, tanto a partir de sua natureza, como também de sua própria história.
Parece que um intelectual/político como Virgilio Correia Filho, vinculado e articulado
a uma elite política local, preocupada em consolidar uma identidade para Mato Grosso, já na
primeira metade do século XX, tem a noção das possíveis vantagens que os enunciados
relacionados ao turismo podem contribuir para as práticas discursivas preocupadas em definir
uma identidade para o Estado.
Não devemos nos esquecer que, pelo menos desde 1919, ano das comemorações do bi-
centenário da cidade de Cuiabá, ou ainda em 1922, quando vão se preocupar em comemorar o
primeiro centenário da independência, o IHMT futuro IHGMT, vai ser criado, sob a
influência de um sócio itinerante do IHGB – Instituto Histórico e Geográfico do Brasil –, Dr.
Eurico de Góes, o qual chega a Cuiabá em 1918. O interessante é percebermos que todas estas
iniciativas vão, de certa maneira, coadunar-se aos interesses políticos desta elite local, que
constantemente tem sempre o interesse de dominar os sentidos da história, a partir da
instauração de uma memória mais sedimentada e cristalizada nos exemplos de seus
antepassados, tidos como verdadeiros produtores desta história.
Afinal, é muito perigoso para quem exerce o poder, permitir que a história possa vir a
ter múltiplos sentidos, oriundos de diferentes exemplos de memória que, em muitas
circunstâncias e situações, pode ser totalmente diferente daquela memória evocada e
propalada como sendo de todos, pela elite que exerce o poder institucionalizado de Estado.
27
Talvez, sejam por estas razões, que sempre existem estes rituais simbólicos, como as
comemorações do bi-centenário, ou da independência, justamente para teatralizar esta
memória que interessa a elite governamental, pois as instituições que operacionalizam este
poder precisam exercê-lo constantemente, para tornar coerente e articulada a lógica de
funcionamento desse poder que, para Foucault, esta pulverizado, permeado, e, ao mesmo
tempo, perpassando todos os espaços e saberes dessa sociedade que o autor denomina de
disciplinar81
. Esta sociedade disciplinar, pensada e teorizada por Foucault, funciona a partir de
uma microfísica do poder que está presente nas: instituições de repressão mais direta, como a
polícia e o exército; nos discursos de higienização e organização, emitidos pelos sanitaristas e,
futuramente, pelos urbanistas; nos discursos de medicalização da sociedade presentes nas
práticas sociais e enunciados dos hospitais e asilos; ou ainda, de toda uma multiplicidade de
saberes científico/pedagógicos, dos quais a história enquanto disciplina e a escola enquanto
instituição, também estão inseridas.
Só para pontuarmos a discussão, nos exemplos da história e da escola, são geralmente
a partir das práticas sociais exercidas constantemente nas escolas, e dos enunciados
discursivos emitidos pelos professores de história, seja nas series mais elementar, ou até nas
universidades, e, principalmente, nestes momentos de comemoração como: do bi-sentenario
ou da independência, que podemos compreender certa tentativa de buscar disciplinarizar a
memória e construir uma determinada visão da história.
Se em 1919, ou 1922, Cuiabá ainda não tinha um sistema escolar quantitativamente
suficiente para exercer essa função de disciplinarizar a memória, mas, seguramente, as
instituições que existiam procuraram exercer este papel, participando destes rituais simbólicos
do bicentenário e das comemorações da independência do país, tão importantes para a
teatralização e construção de uma determinada visão da história normalmente ufanista,
baseada nos exemplos e biografias de grandes personalidades da elite mato-grossense e do
país.
Outro aspecto importante para salientarmos sobre estas iniciativas correlacionadas a
estes eventos, como: comemorações, criação de instituições, constituição de comissão de
pesquisa e levantamentos relacionados à construção de uma determinada história para
Cuiabá..., é esta constante vinculação da figura de uma pessoa vinda de outras partes do país,
81
FOUCAUT, M. Microfísica do poder. Organização e Tradução de Roberto Machado. Rio de Janeiro: Edições
Graal. 1979;
28
representando outras instituições que já existem nestes outros locais da federação, para ajudar
e incentivar a implantação das mesmas em Cuiabá.
Parece que existe um esforço no sentido – mesmo em assuntos próprios do passado,
como esta construção de uma história e de uma identidade de Cuiabá – de participar, e,
também, constituir na cidade estas instituições e todos os aspectos analítico/políticos que as
mesmas possibilitam/incentivam, como os textos produzidos pelos intelectuais do
IHMT/IHGMT nos seus próprios periódicos e materiais; em livros; jornais da cidade, ou
mesmo, de outros locais do país, como os artigos elaborados por Virgilio. Neste sentido, o
IHGMT representa a preocupação de se demonstrar que Cuiabá tem a percepção das
inovações trazidas pela modernidade, ou, pelo menos, está articulado e atento às
transformações já existentes no presente. Simbolizadas não apenas nas novas tecnologias, mas
também em novas formas de sociabilidade e organização do tecido social.
Ter uma instituição como o IHGMT, significa não apenas estar preocupado em
respeitar e dar a devida importância ao passado, como pensa e descreve Paulo Pitaluga:
Em 1918 historiadores e homens de letras de Mato Grosso, preocupados em não deixar
passar sem qualquer lembrança a data referente aos dois séculos de Cuiabá reuniram
pequeno grupo e fizeram comissão, com o objetivo de implementar e desenvolver, junto à
sociedade cuiabana e às autoridades constituídas a idéia da comemoração do bi-centenário
da Capital do Estado. (...)82
Significa, sobretudo, constituir um novo espaço de poder/saber relacionado à intenção
de se inventar/construir, a partir de uma fala competente/autorizada, uma determinada leitura
da história de Mato Grosso, que normalmente privilegia as memórias de um passado
bandeirantizado e repleto de exemplos heróicos. Não custa lembrarmos que ainda hoje existe
certa ressonância desta interpretação da historia nas publicações do IHGMT, pois o próprio
Paulo Pitaluga, ao se reportar a esta movimentação de historiadores e homens de letras, para
convencerem a sociedade e as autoridades constituídas a respeito da importância do bi-
centenario, considera que, (...) Seria uma justa homenagem aos bandeirantes pioneiros que
comandados por Pascoal Moreira Cabral, se instalaram as margens do coxipó em princípios
do século XVIII. 83
82
COSTA e “SILVA, Paulo Pitaluga.” Fundação “do Instituto Histórico de Mato Grosso”. Revista do IHGMT,
p. 205
83
Idem, p. 205.
29
O marco que ainda demarca
Esta história bandeirantizada, vivida durante as disputas e negociações territoriais de
dois impérios ultramarinos84
, vai adquirir grande visibilidade na construção de todo um
arcabouço de memória, sobretudo, em cidades como Cáceres, Corumbá, Cuiabá... Nestas
cidades, ao observarmos os nomes de ruas, avenidas, praças, prédios públicos..., podemos
perceber os diferentes momentos da invenção de um Estado/Nação – Brasil –, com heróis da
monarquia, da república, e inclusive do próprio período colonial, de um tempo “em que
Brasil ainda não era Brasil, sendo melhor chamá-lo de América portuguesa, pois como
portugueses da América, mais do que brasileiros – designativo dos comerciantes de pau-
brasil –, se viam os próprios habitantes do território” 85
·.
Na cidade de Cáceres, por exemplo, no limiar do século XX, e inicio do século XXI,
entre os vários ícones/palavras/símbolos86
que constantemente são agenciados pelo discurso
identitário, para se definir uma identidade comum ao povo cacerense, seguramente o marco
do Jauru, inscreve-se como elemento constante deste arcabouço de memória. Podemos
encontrar a sua imagem nos mais diferentes momentos e lugares da cidade: nos folders de
divulgação das pousadas; no layout dos programas televisivos da cidade; em banires de
publicidade; nas imagens, afixadas em diferentes tipos de estabelecimentos comerciais; na
logomarca de diferentes administrações publicas; na mochila e na camisa, doadas aos alunos
da rede pública municipal; nos slogans de propaganda política...; enfim, sem qualquer
preocupação em exagerar, podemos perceber que o marco do Jauru ainda demarca os
contornos de uma história de Cáceres.
É como se este elemento da cultura material, proveniente da negociação metropolitana
de dois impérios, mesmo após sua superação diplomática, continuasse a marcar e delimitar
um território, agora balizado por uma nova catografia. Uma cartografia dos sentidos, uma
cartografia da memória, uma cartografia das identidades. Talvez uma cartografia dos
sentimentos, da noção de pertencimento, da sensação de memória em comum.
O marco acaba se constituindo como uma espécie de curinga, neste baralho de cartas
memoráveis, porque serve para qualquer tipo de configuração no jogo do discurso identitário.
Sua imagem é agenciada não apenas pelo poder político, mas também pelo capital:
84
Portugal e Espanha em suas constates disputas territoriais no novo mundo.
85
SOUZA. Laura de Mello e. Aspectos da Historiografia da Cultura sobre Brasil Colônia, In: FREITAS, Marco
Cezar. Historiografia Brasileira em Perspectiva. São Paulo: Editora Contexto, 2003, p. 39
86
Casa Dulce, Catedral, Viola de cocho, Casa Rosada, Tuiuiú, vitória regia, jacaré, bicicleta...
30
Imagem existente na parte interna da
loja de eletrodomésticos: City Lar 2008
Pintura feita no muro da Câmara
Municipal de Cáceres 2009
O jogo/discurso do turismo, mesmo partindo de um quite de imagens/cartas mais
relacionado à natureza, como o tuiuiú, a onça pintada, o jacaré, o Rio Paraguai, ou de forma
mais ampla, do conjunto de imagens atribuídas normalmente ao pantanal, acaba, porém,
também fazendo uso do curinga – marco do Jauru –, na organização de seu jogo discursivo,
ou seja, mesmo nos enunciados da fala ecológica, correlacionada ao interesse de evidenciar a
fauna e a flora local, podemos encontrar a presença ou, mais propriamente, a mistura dos
traços da memória identitária concernentes ao marco.
Ao percebermos essa constante simbólica, com toda a preocupação em utilizar as
imagens do marco do Jauru, em tão diferentes locais e circunstâncias, duas perguntas ou,
melhor, duas problemáticas, acabaram se constituindo como importantes questões desta
dissertação. Primeiro, por que essa amplitude de possibilidades de uso? Segundo, e talvez
principal, quando e, sobretudo, como essa imagem do marco passa a adquirir essa nova
conotação simbólica? Ou seja, como de um simples elemento/resquício da cultura material de
uma cartografia antiga87
, metamorfoseia-se em símbolo cultural, quase mesmo, num elemento
da cultura imaterial, transformando-se assim em um sofisticado curinga simbólico.
A primeira pergunta pode ser respondida ao observarmos que o marco está articulado,
misturado e impregnado pela lógica de funcionamento do discurso das identidades, dentro de
uma relação de poder e saber que busca disciplinar uma determinada memória para cidade.
Memória interessada em construir uma historia eivada pelo discurso grandiloqüente de um
passado bandeirantizado.
87
Geografia de general, ou melhor, de Capitão General e Governador do século XVIII, que busca esquadrinhar e
ocupara as terras do novo mundo, dentro da lógica bem própria do UTI POSSIDETIS.
31
Ao fazermos um estudo genealógico de quando e como o marco se tornou um
importante elemento deste discurso identitário, chegamos a conclusão que a gênese desta
transformação está situada no final da década de 70, mais propriamente, entre os anos de 77 e
78, quando vai surgir, também em Cáceres, todo um interesse de se construir uma história da
cidade baseada em fragmentos de memória pertencentes a um segmento social – elite
econômica e política – da população cacerense.
Em 1977 podemos ver já estampada – no cabeçário do recente jornal criado na
cidade88
– a figura do marco do Jauru, mas talvez mais importante ainda, seja percebermos
que a figura que ganhou o concurso para o Distintivo Do Bicentenário, tenha também a
presença do marco do Jauru, inclusive, o vencedor deste concurso, Wandyonon Vanini Filho
teve toda uma preocupação em explicar os sentidos da imagem:
88
Correio Cacerense, jornal criado no ano de 1977.
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  • 1. RUBENS GOMES LACERDA OS ARTESÃOS DA MEMÓRIA NAS TRAMAS E RETRAMAS DA HISTÓRIA: Identidade e memória em Cáceres no limiar do século XXI. Cuiabá, fevereiro de 2009
  • 2. RUBENS GOMES LACERDA OS ARTESÃOS DA MEMÓRIA NAS TRAMAS E RETRAMAS DA HISTÓRIA: Identidade e memória em Cáceres no limiar do século XXI. Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em História, do Instituto de Ciências Humanas e Sociais da UFMT, para obtenção do título de Mestre em História, sob a orientação da Prof. Dra. Ludmila de Lima Brandão. Cáceres, fevereiro de 2009
  • 3. RUBENS GOMES LACERDA OS ARTESÃOS DA MEMÓRIA NAS TRAMAS E RETRAMAS DA HISTÓRIA: Identidade e memória em Cáceres no limiar do século XXI. Banca Examinadora ____________________________________________________ Prof. Dra. Ludmila de Lima Brandão – orientadora Universidade Federal de Mato Grosso. ____________________________________________________ Profª. Dr. Oswaldo Machado Filho – membro interno Universidade Federal de Mato Grosso. ____________________________________________________ Prof. Dr. Domingos Sávio da Cunha Garcia – membro externo Universidade do Estado de Mato Grosso – Cáceres – MT.
  • 4. ABREVIATURAS AHU Arquivo Histórico Ultramarino IHGMT Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso UFMT Universidade Federal de Mato Grosso UNEMAT Universidade do Estado de Mato Grosso APMC Arquivo Público Municipal de Cáceres SPHAN Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional IPHAN Instituto do Patrimônio Histórico Artístico Nacional IHMT Instituto Histórico de Mato Grosso
  • 5. A Patrícia, Joana e Ludmila, exemplos respectivamente de: alegria, perseverança e ousadia.
  • 6. AGRADECIMENTO Agradeço todos e todas que contribuíram ou atrapalharam durante a elaboração desta dissertação.
  • 7. A vida não é o que a gente viveu, e sim o que a gente recorda e como recorda para contá-la. (Gabriel García Marquez) Escrevo o idioleto manoelês arcaico (idioleto é o dialeto que os idiotas usam para falar com as paredes e com as moscas) Preciso de atrapalhar as significâncias. O despropósito é mais saudável do que o solene. (Para limpar das palavras alguma solenidade - uso bosta.) Sou muito higiênico. E pois. O que ponho de central nos escritos é a vigilância para não cair na tentação de me achar menos tolo que os outros. Sou bem conceituado para parvo. Disso forneço certidão. (Manuel de Barros)
  • 8. SUMÁRIO RESUMO...................................................................................................................................1 SUGESTÕES DE LEITURA...................................................................................................2 I FLUXO – INTRODUÇÃO OUTEXTO?.............................................................................4 II FLUXO – A HISTÓRIA FOI SALVA PELO TURISMO?............................................22 O marco que ainda demarca.....................................................................................................29 III FLUXO – POR UMA EPISTEMOLOGIA DA DIFERENÇA: O TRAÇO NARRATIVO NA ESCRITURA HISTORIOGRÁFICA...................................................34 IV FLUXO – OS ARTESÃOS DA MEMÓRIA DAS TRAMAS E RETRAMAS DA HISTÓRIA..............................................................................................................................54 A espetacularização de um acontecimento...............................................................................73 Fim ou início desta história.....................................................................................................87 CONSIDERAÇÕES FINAIS.................................................................................................91 REFERÊNCIAS DOCUMENTAIS E BIBLIOGRÁFICAS...............................................94
  • 9. LISTA DE TABELAS TABELA I – Ordem de desfile de associações.........................................................................78 TABELA II – Ordem de desfile dos colégios.....................................................................79
  • 10. LISTA DE IMAGENS IMAGEM I – Imagem existente na parte interna da loja de eletrodomésticos: City Lar.........30 IMAGEM II – Pintura feita no muro da Câmara Municipal de Cáceres..................................30 IMAGEM III – Distintivo do bicentenário...............................................................................32 IMAGEM IV – Jornal Correio Cacerense 10/10/1978.............................................................32 IMAGEM V – Mapa do desfile................................................................................................81
  • 11. 1 RESUMO A presente dissertação tem os objetivos de: pesquisar, compreender e problematizar quando e como, a partir de determinadas práticas sociais, algumas práticas discursivas ou não discursivas, ganharam respaldo dentro de determinadas relações de poder e saber, que as possibilitaram engendrar a invenção de uma determinada memória para Cáceres; tentar perceber a emergência de um objeto de saber e um espaço de poder; estudar como se formou um arquivo de imagens e enunciados, um estoque de “verdades”, uma determinada visibilidade e dizisibilidade desta memória, que pretendeu e pretende direcionar comportamentos e atitudes, dirigir, inclusive, o olhar e a fala da imprensa/mídia; como e, a partir de quais ressonâncias discursivas, a própria idéia de “identidade” impõe uma dada forma de abordagem imagética e discursiva para falar e mostrar a “verdadeira” “história” da cidade. Palavras-chave: História; Memória; Identidade; Narrativa.
  • 12. 2 Sugestões de leituras. Sem querermos ter a pretensão de definir a melhor, ou, as possíveis, maneiras de se ler esta dissertação, mas, sobretudo, interessados em fazer alguns comentários, mesmo que en passant, sobre a forma/conteúdo de alguns fluxos que a compõem, é que recomendamos duas possibilidades de lê-la. A primeira e mais convencional, seria a partir da leitura diacrônica de seus respectivos fluxos. Entretanto, para quem se interessa mais pelas discussões teóricas e, conseqüentemente, busca saber logo de início qual é o lugar social1 da fala de quem constrói este texto, talvez seja mais interessante começar pela leitura do III fluxo – Por uma epistemologia da diferença: o traço narrativo na escritura historiográfica –, no qual as discussões teóricas são tratadas de maneira mais especifica e constante. Resumidamente, podemos observar que este III fluxo tem o principal objetivo de instigar e constituir um espaço de debate relacionado à “volta”, ou mais propriamente, à percepção da existência, e/ou, principalmente, da revalorização do traço narrativo na escritura historiográfica. Suscitar, também, a discussão sobre a presença da subjetividade do historiador durante a tessitura do texto de história. Para tanto, buscamos construir nossa argumentação a partir das misturas2 e contaminações teóricas – das idéias-práticas-de-vida – de autores como: Paul Veyne, Hayden White, David Harlan, Michel Foucault, Nietzsche, Lawrence Stone, Antônio Paulo Benatti, Gilles Deleuze, Barthes, Guattari, Manoel de Barros... Enfim, Idéias- práticas-de-vida que sempre estão perpassando e, ao mesmo tempo, permeadas por uma 1 CERTEAU, Michel de. “A operação historiográfica”, in A escrita da História. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2000. Na primeira parte deste texto, relacionada à observação da importância do lugar social da fala, Certeau procura demonstrar a correlação existente entre o discurso científico (com regras próprias pertinentes a cada área do conhecimento) e a sociedade, pois para o autor: “Em história, é abstrata a doutrina que recalca a sua relação com a sociedade. El a nega aquilo em função de que se elabora. Sofre, então, os efeitos de distorção devidos à eliminação daquilo que a situa de fato sem que ela o diga ou saiba”. 2 A idéia de mistura aqui adotada, busca caracterizar a importância do diálogo e da superação das fronteiras disciplinares, para a produção de um conhecimento transdisciplinar que não busque separar de forma fixa o mundo da natureza e o mundo da cultura; que não faça, assim como tentou fazer o pensamento moderno, uma escansão bem definida entre o que seria a matéria e o objeto e o que seria simbólico e subjetivo, pois a idéia de mistura nos possibilita perceber que o conhecimento não deve ter a preocupação da pureza, da razão pura tão apregoada por Kant, mas antes, a percepção das positividades surgidas durante as contaminações, das hibridações, diria Néstor García Canclini; enfim, de todo o amálgama cultural, político, natural, concreto, simbólico..., que, em razão de sua mistura, constituem e, ao mesmo tempo, são constituídos pelo acontecer humano a partir de sua interação com a natureza. Para uma melhor apreciação desta idéia, ler: LATOUR, Bruno. Nos nunca fomos modernos: ensaios de antropologia simétrica. Rio de Janeiro: Editora 34, 1994, p.77; e : CANCLINI, Néstor Garcia. Culturas Hibridas. - 4. Ed. São Paulo: Edusp, 2008, desta ultima obra ler, sobretudo, o texto da introdução da edição de 2001.
  • 13. 3 estética da existência/escrita que incita a franca e aberta discussão sobre a economia de um texto, sobre a arquitetura de um argumento, sobre as práticas de saber/poder existentes na elaboração/invenção do conhecimento, sobre a lógica dos enunciados. Toda esta discussão, é interessante ressaltar, está afetada pelas ressonâncias3 dos debates existentes em outras áreas do conhecimento, pois, de forma mais ampla, podemos perceber que esta preocupação surgida nas últimas décadas, por parte de algumas tendências historiográficas, preocupadas em refletir sobre (e avaliar) a importância do estudo de questões concernentes ao traço narrativo, ou seja, relacionadas ao estilo; à relação forma/conteúdo do texto de história; à subjetividade do autor na urdidura do texto; à ficção, presentes ou não no discurso do historiador..., estão, em último caso, afetadas/misturadas pelos interesses de analisar e destacar os interstícios e possíveis interfaces existentes entre o discurso da historiografia, da ciência do século XX, da literatura e das artes de modo geral. Ainda dentro desta segunda maneira de se ler o texto, após a leitura deste III fluxo, pode-se então, voltar à seqüência diacrônica: ler o I fluxo – Introdução ou texto? – em que já são anunciadas e, ao mesmo tempo, discutidas algumas questões presentes nos fluxos subseqüentes, como também, enumerados e explicados os postulados da forma/conteúdo adotada na escritura da dissertação. 3 Gilles Deleuze recorre ao termo ressonância, emprestado da teoria musical, para destacar que a arte, a filosofia, a ciência, mesmo participando de linhas melódicas distintas, estabelecem relações de troca. DELEUZE, Gilles. Conversações – 1972-1990. Rio de Janeiro: Editora 34, 1992.
  • 14. 4 I FLUXO Introdução ou texto? Memória Histórica de Cáceres Cáceres foi fundada em seis de Outubro de 1778, pelo governador de Mato Grosso na época, Luis de Albuquerque de Melo Pereira e Cáceres, recebendo o nome de Vila Maria do Paraguai, em homenagem à rainha reinante de Portugal. Conta-se que a fundação do povoado à margem esquerda do rio Paraguai, ocorreu por quatro motivos principais; a defesa e o incremento das fronteiras do domínio de Portugal a Oeste; a abertura de uma via de navegação com a cidade de São Paulo; a facilidade tanto das comunicações quanto das relações comerciais entre as cidades de Vila Bela da Santíssima Trindade e Cuiabá e a fertilidade do solo da região; prenúncio de riquezas. Passado mais de um século de sua fundação, poucas mudanças houveram. O grande destaque local era a fazenda Jacobina; que em 1827, de acordo com o testemunho de Hércules Florence, citado por Natalino Ferreira Mendes na obra Historia de Cáceres, “era a mais rica fazenda da província, tanto em área como em produção”. Descrito pelo Professor Natalino Ferreira Mendes em Memória cacerense, “havia cerca 60 mil reses povoando os campos da Jacobina, situada junto a serra do mesmo nome à entrada de Vila Maria do Paraguai. Consta ainda, que a Fazenda Jacobina possuía 200 escravos e um grande engenho movido por força hidráulica”. Historiadores reputam à Jacobina o início de tudo na região, há registros de que nesta Fazenda, Sabino Vieira, chefe da malograda revolução baiana denominada “sabinada”, foi se refugiar até sua morte em 1846. Maria Josefa de Jesus, filha do fundador da fazenda Jacobina, casou-se com João Carlos Pereira Leite, que veio a fundar a fazenda Descalvados, que também se tornou uma das maiores e mais antigas fazendas da província. Por sua vez um genro de João Carlos Pereira Leite, Joaquim José Gomes da Silva, atravessou o pantanal matogrossense em direção ao sul, hoje Estado de Mato Grosso do Sul para fundar no “firme”, a Nhecolândia. O povoado de Vila Maria do Paraguai, na época, não se passava de uma aldeia centrada em torno da igrejinha São Luiz de França. “Segundo o historiador, professor Natalino Ferreira Mendes, em meados do século XIX, a vila experimentou algum progresso em razão do ciclo da indústria extrativista da poaia (ipecacuanha) – o ouro negro da floresta”, e da borracha, que juntamente com a bovinocultura eram a economia da região; impulsionada pela abertura da navegação fluvial do rio Paraguai, estabelecendo a ligação com a cidade de Corumbá. Em 1860, Vila Maria do Paraguai possuía uma Câmara Municipal, mas somente em 23 de Junho de 1874 foi elevada a categoria de cidade, recebendo o nome de São Luiz de Cáceres. O nome foi uma homenagem ao santo padroeiro e o fundador da localidade. No ano de 1938, por força de um Decreto Lei Estadual, o município passou a ter o nome que trás até a atualidade: Cáceres. 4 Este é apenas um enunciado/sintetizador produtor de um efeito de verdade vinculado a uma prática discursiva5 – reiterada em muitos momentos, por algumas práticas não discursivas –, que constantemente procuram estabelecer os contornos mais importantes da história de Cáceres, ou de forma mais geral, pretendem constituir os elementos e traços 4 Texto presente no cardápio do Knôa – restaurante situado às margens da baia do Malheiros no rio Paraguai – ano de 2007. 5 Tanto o conceito de prática discursiva quanto de prática não discursiva está sendo utilizado neste texto, dentro do referencial teórico foucaultiano existente em obras como: FOUCAULT, Michel. Arqueologia do Saber. 5ª Edição. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997. FOUCAULT. Michel. Microfísica do poder. Organização e Tradução de Roberto Machado. Rio de Janeiro: Edições Graal. 1979.
  • 15. 5 históricos correlacionados à construção de todo um arcabouço de memórias direcionado e preocupado, em definir uma determinada identidade cacerense. Contudo, como historiadores envolvidos em uma atividade profissional, que em nosso tempo – assinalou De Certeau6 – possui três aspectos importantes: o lugar social da fala, uma prática científica e uma escritura, ser-nos-á necessário problematizar7 estas referidas práticas discursivas e não discursivas que, auspiciam a condição de discursos e práticas sociais autorizadas, a designarem o que deve ser ou não considerado pertinente para a história e a identidade cacerense, ou ainda, de forma mais radical, pensarmos sobre a própria lógica de um sujeito de conhecimento, com fala competente e autorizada sobre o passado – o historiador. Assim, buscando também nos posicionar a respeito de nossa própria concepção do discurso historiográfico, pois como bem observou o escritor Paul Valéry, ainda em 1932, falando para alunos de um liceu francês sobre um dos seus temas prediletos: Todas essas convenções são inevitáveis. Minha única crítica é a negligência que não as torna explicáveis, conscientes, sensíveis ao espírito. Lamento que não se tenha feito com a história o que as ciências exatas fizeram consigo mesmas, quando revisaram seus fundamentos, pesquisaram com maior acuidade seus axiomas, enumeraram seus postulados.8 É claro que essa observação de Paul Valéry não é original nem inovadora, pois podemos encontrar questionamentos tão incisivos e diretos quanto estes, sobre a elaboração do conhecimento histórico, desde o século XIX, em autores como Nietzsche ou Burckhardt9 . Também não podemos mais afirmar que atualmente a historiografia permaneça totalmente indiferente às discussões relacionadas à epistemologia do conhecimento. A própria concepção de ciência10 do século XX está permeada por outros parâmetros bem diferentes daqueles 6 CERTEAU, Michel de. “A operação historiográfica”, In: A escrita da História. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2000. 7 A expressão problematizar, neste caso, esta relacionada à acepção utilizada a partir das reflexões presentes em: VEBVRE, Lucien. Viver a história. In: Combates pela história. Vol. I., Lisboa: Editora Presença, 1977, p. 43. 8 Valéry, Paul. Discurso sobre a história. In, Variedades. São Paulo: Iluminuras, 1999, p. 113. 9 Conforme afirma: GUIMARAES, Manuel Luiz. A cultura histórica oitocentista: a constituição de uma memória disciplinar. In: PESAVENTO, Sandra Jatahi. (org.) História Cultural: experiências de pesquisa. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2003, p.12. 10 Concepção que não está preocupada em elaborar apenas leis universalizantes e bem definidas, porque, construídas por axiomas bem mais rígidos, pois esta concepção de ciência do século XX compreende, também, a produção do conhecimento a partir de uma postura que trabalha com as probabilidades, com as possibilidades, com conceitos mais relativos, mesmo em áreas tidas como mais exatas. Neste caso podemos destacar a física quântica de Einstein, com sua teoria geral da relatividade, em que tempo e espaço são considerados relativos, ou ainda, de uma nova matemática aludida pelo princípio da incerteza de Heisenberg. Para melhor compreensão sobre esta temática ler: EINSTEIN, Albert. Escritos da maturidade: artigos sobre ciência, educação, relações sociais, racismo, ciências sociais e religião. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1994. REISEMBERG, Werner. A parte e o todo: encontros e conversas sobre física, filosofia, religião e política. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996, p.98.
  • 16. 6 formulados e defendidos no século XIX11 . No entanto, a observação de Valéry foi interessante para assinalar certa (in)-consonância existente entre a maneira de se produzir – e, fundamentalmente, perceber o produto desse conhecimento histórico –, e os principais desdobramentos teóricos e metodológicos relacionados à elaboração do conhecimento produzido na primeira metade do século XX, como também, eou, principalmente, de nos ajudar a desnaturalizar o efeito de verdade engendrado pela prática discursiva presente no texto do enunciado/sintetizador supracitado logo no início deste texto/introdução. Antes de iniciarmos propriamente a desconstrução deste enunciado/sintetizador que, aliás, será feita não de forma pontual, mas, sim, no transcorrer de toda a dissertação, é importante assinalar – para evitarmos os mesmos erros denunciados por Valéry – a existência de três principais dificuldades encontradas no momento em que se fez necessário: elaborar discursivamente, na forma de dissertação, um texto que tivesse a intenção e, sobretudo, a pertinência de tratar da melhor maneira possível a temática que suscitou a elaboração deste trabalho. A primeira, diz respeito a uma problemática bem própria da historiografia relacionada ao estudo de temas e períodos mais contemporâneos, em que a abundância de fontes torna-se um problema constante, pois sempre resta certa dúvida em quais fontes ou episódios da história vivida, se buscará evidenciar no texto escrito. Pretendemos, no entanto, dirimir esta indecisão, buscando logo de início, argumentar e explicar que, todas as fontes utilizadas – sejam elas imagéticas, discursivas, iconográficas, orais... (sem hierarquias), ou os episódios e idéias que estejam correlacionados às mesmas –, estão, nesta dissertação, relacionadas a uma específica economia do texto12 ; a uma determinada preocupação de estabelecer alguns efeitos discursivos; a toda uma estratégia enunciativa, com o objetivo de instaurar uma argumentação própria, diretamente correlacionada à construção deste objeto de estudo, pois como tão bem pensou Paul Veyne: Como o romance, a história seleciona, simplifica, organiza, faz com que um século caiba em uma página, e essa síntese da narrativa é tão espontânea quanto a nossa memória, quando evocamos os dez últimos anos que vivemos13 . 11 A ciência deste século XIX é muito pautada pelos enunciados produzidos a partir de uma linguagem axiomática. A física newtoniana com seus axiomas absolutos, relacionados à definição de tempo e espaço, ou o método cartesiano de Descartes, têm muita influência sobre as formas de se perceber e postular a elaboração do conhecimento durante o século XIX. 12 A expressão “economia do texto” está sendo empregada no sentido de plano argumentativo, estratégia discursiva e construção textual. 13 VEYNE, Paul. Como se escreve a história, Brasília. Ed. da UNB, 1982, p.18.
  • 17. 7 Podemos ainda acrescentar que tanto as fontes como as idéias dos mais diferentes autores, agenciadas14 – para usarmos uma expressão deleuziana – neste texto, estão funcionando ao mesmo tempo, sem distinção ou primazia de uma sobre a outra, como a matéria prima e os instrumentos operacionais necessários para elaboração do produto final, porque, assim como Antonio Vasconcelos, também não concordamos com um determinado viés historiográfico que postula a seguinte máxima: (...) historiadores pesquisam as “fontes primárias” (a história vivida de fato), informam-se com as “fontes secundárias” (a historiografia), e inspiram-se de forma mais ou menos consciente nas teorias produzidas pelos “outros” das Ciências Humanas. Dito de outro modo, os historiadores trabalham materialmente a história, tal como mineiros enfurnados em minas preciosas e sem jamais se expor à luz do sol, enquanto aos “outros” cabe pensar a história, trazendo as luzes para os materiais valiosos levantados pelos primeiros. 15 Não basta compreender a prática do artífice – historiador – deste produto que é o texto de história, de uma maneira tão esquemática assim, na qual o historiador, necessariamente, tivesse que ter para sua elaboração, uma matéria prima – fontes – relacionada à história vivida da qual ele escolheu falar sobre, e as ferramentas teóricas e metodológicas necessárias para uma determinada tecnologia de produção. Afinal, apesar de considerarmos interessante a idéia de perceber o referencial teórico e o aporte metodológico como ferramentas, que devem ser utilizadas de acordo com as necessidades exigidas durante a elaboração do texto de história, também - em muitas circunstâncias -, compreendemos o documento, se constituindo como ferramenta, ou ainda, como uma janela aberta para o pensamento e para reflexão. Definitivamente, não o percebemos simplesmente como referencial da história vivida, mas antes, como também sendo parte desta história vivida. A segunda dificuldade é de caráter metodológico que, no entanto, está também correlacionada a questão teórica, ou seja, a uma epistemologia da diferença, pensada e elaborada por Foucault em sua arqueologia do saber, onde a metodologia não é definida a priori, antes do exercício prático da pesquisa, em que já se sai de início com um alvo ou hipótese fixa, e só se vai ao arquivo, para encontrar documentos que confirmem as hipóteses pré-estabelecidas. Nesta epistemologia da diferença, a metodologia é estabelecida no próprio 14 Agenciar a idéia de um autor significa dizer ou praticar com esta idéia outra administração teórica, pois não necessariamente, esta idéia será utilizada da mesma forma que seu próprio autor a usa, significa reconhecer que em alguns momentos esta idéia pode até funcionar dentro de outra lógica, inclusive, em circunstâncias e a partir de interesses bem diferentes dos preconizados pelo seu autor, é, no limite, assumir a possibilidade de construir a partir desta idéia, ou afetado por esta idéia, outra idéia, mesmo que nas costas do autor. 15 AZEVEDO, Clelia Marinho de. “prefácio”. In: VASCONCELOS. José Antonio. Quem tem medo de teoria? A ameaça do pós-modernismo na Historiografia americana. São Paulo: Annablume, FAPESP, 2005, p. 13.
  • 18. 8 exercício prático da pesquisa, não com o interesse de estabelecer um neo-positivismo, no qual os documentos controlam e oprimem a atividade do pesquisador, mas, sim, que é justamente no contato e familiarização com a linguagem e os efeitos de verdade produzidos pela documentação que, vão surgir os deslocamentos referenciais, teóricos e metodológicos da pesquisa, ou como bem observou Foucault: (...) por uma mutação que não data de hoje, mas que, sem dúvida, ainda não se concluiu, a história mudou sua posição a cerca do documento: ela considera como sua tarefa primordial, não interpretá-lo, não determinar se diz a verdade nem qual é seu valor expressivo, mas sim trabalhá-lo no interior e elaborá-lo: ela o organiza, recorta, distribui, ordena e reparte em níveis, estabelece séries, distingue o que é pertinente do que não é, identifica elementos, define unidades, descreve relações. 16 O método de construção utilizado na engenharia deste artefato literário17 – Os artesãos da memória nas tramas e retramas da história: Identidade e memória em Cáceres no limiar do século XX – se coaduna principalmente da mistura e da contaminação, surgida entre uma genealogia18 nietzscheana e uma arqueologia foucaultina19 , além disto, a economia do texto também busca operacionalizar na sua escritura, uma forma/conteúdo inspirada na idéia deleuzo-guattariana20 do pensamento rizomático. 16 FOUCAULT, Michel. Arqueologia do Saber. 5ª Edição. Rio de Janeiro: Ed. Forense Universitária, 1997, p.7. 17 A este respeito ler: WHITE, Hayden. A história como artefato literário. In: Trópicos do discurso: Ensaios sobre a Crítica Cultural. Trad. Alípio Correia de França. São Paulo. Edusp. 1994. Ou ainda do mesmo autor: WHITE, Hayden, “Teoria Literária e escrita da história”. Estudos históricos, Rio de Janeiro, vol. 7, n.3, p. 25. 18 O método genealógico de Nietzsche está preocupado em dessacralizar o discurso das origens primeiras, com toda sua pompa e solenidade, assim, o autor faz um estudo da “genealogia da moral” bem diferente de uma tradição filosófica ocidental. Para Nietzsche, a moral deve ser historicizada e desnaturalizada, não mais deve ser vista como algo supra-humano ou transcendental, mas, sim, como algo construído pelo próprio homem, para o próprio homem, dentro de uma relação de poder e saber. NIETZSCHE Friedrich. “Para a genealogia da moral. In: Os pensadores. 3. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983. 19 Talvez seja importante acrescentarmos que, além da “Arqueologia do saber,” e, também, partido desta contaminação provocada pelo pensamento nietzcheano, esta dissertação pretende operacionalizar na sua metodologia, todo o referencial teórico de uma “Microfísica do poder,” para assim, estudar as relações de poder e saber, existentes na fala e nos discursos relacionados a uma pratica discursiva e não discursiva do enunciado/sintetizador que inicia este fluxo: FOUCAULT, Michel. Nietzsche, a genealogia e a história. In: “FOUCAULT. M. Microfísica do poder. Organização e Tradução de Roberto Machado. Rio de Janeiro: Edições Graal. 1979. 20 DELEUZE, Gilles, 1925-1995 Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia, vol. 1; tradução de Aurélio Guerra Neto e Célia Pinto Costa. – São Paulo: Ed. 34, 1995. Quando o filósofo francês Gilles Deleuze tomou emprestado da botânica o termo rizoma e o aplicou no estudo da filosofia, ele enumerou pelo menos seis princípios que o caracterizam. Os Princípios de Conexão e Heterogeneidade (1 e 2) explicitam que qualquer ponto de um rizoma pode e deve conectar-se a qualquer outro ponto ou conjunto heterogêneo. Não há uma ordem fixa. O Princípio de Multiplicidade (3) diz que é sempre uma multiplicidade que fala e age, mudando de natureza ao se conectar com outra, ou seja, qualquer parte, quando analisado, pode se revelar como sendo composto pelo rizoma, porque é da mesma natureza. O Princípio de Ruptura A-significante (4) refere-se ao fato de que o rizoma pode ser rompido, quebrado ou retomado desde qualquer uma de suas linhas. Os Princípios de Cartografia e de Decalcomania (5 e 6) regem que um rizoma funciona por proximidade, sendo estranho a um modelo que remete à idéia de reprodução ao infinito, pois possui diversos centros que são permanentemente móveis.
  • 19. 9 A terceira dificuldade, talvez de ordem mais pessoal do que geral – no sentido de uma invariável na elaboração de textos –, foi encontrada na demora em percebermos a importância da escrita para o pensamento. Parece que no ato da escrita, o pensamento se constitui efetivamente, é como se ela fosse o próprio pensamento em ação21 . Assim, tomar nota, ter a preocupação de anotar algo para não perder a oportunidade de “revelar” sua emergência, seria muito mais um ato de início do que de fim. É como se escrever, ou mesmo simplesmente anotar, fosse, não aquilo que vai garantir a emergência de algo já existente em latência, mas, sobretudo, aquilo que vai possibilitar o início da existência de algo, não apenas pelo caráter de materializá-lo em texto, mas, principalmente, pelo momento de construção/invenção proporcionado pelo ato de escrever. Talvez seja isso que interessava Deleuze e Guattari quando afirmaram: Escrever nada tem a ver com significar, mas com agrimensar, cartografar, mesmo que sejam regiões ainda por vir22 ; o pensamento, não está necessariamente em latência à espera da melhor forma de escrita, para externá-lo da maneira mais apropriada, pois a escrita também faz parte do próprio exercício de pensamento; ela não simplesmente reflete a realidade, porque esta escrita também é, e constitui a realidade. Estas principais dificuldades e, principalmente, a política23 teórica e ao mesmo tempo textual, em relação às quais consideramos importante nos posicionar, nos levaram a pensar em uma forma/conteúdo de escrita não totalmente estriada, mas o máximo possível lisa24 e, por 21 BRANDÃO, L. L. . A casa subjetiva: matérias afetos e espaços domésticos. São Paulo: Perspectiva, 2002. 22 Idem, p.13. 23 Política pensada não necessariamente a partir da idéia de filiações, ou dentro de um espírito correligionário da defesa empedernida de algumas premissas, mas antes, política como uma orientação teórica, como uma tática ou, ainda, como um posicionamento itinerante e cosmopolita. 24 A diferença existente entre um texto liso e um texto estriado reside no fato de que este último, ao contrário do primeiro, constitui-se dentro de uma prática enunciativa baseada na metáfora da fundamentação. Seus argumentos são pautados e agarrados às estrias referenciais, para assim, conseguirem manter seu caule argumentativo de pé, a partir da sustentação teórica de suas raízes conceituais. Não é por acaso, para ficarmos apenas com dois exemplos, que os textos marxistas, ou da segunda fase dos annales, inspirados no pensamento braudeliano, dão tanto valor ao estudo das estruturas. Estas, assim como as raízes do texto arvore, estão, no caso marxista, na base da pirâmide explicativa do modo de produção, no caso dos annales, na parte mais estável e fixa da história, bem diferente das conjunturas e dos fatos de curta duração, muito perigosos para o historiador fundamentar a produção de seu texto. Já o texto liso, não se preocupa em ser tecido com retalhos factuais, com farrapos de memórias; tem sua tessitura alinhavada, em alguns momentos, até por agulhas teóricas diferentes; este tipo de texto reconhece a importância da intertextualidade observada por Barthes, não para se buscar mapear e esquadrinhar os constructos intertextuais e sua locução referencial, mas, sobretudo, para poder denunciar as próprias relações de poder/saber existentes na e, pela linguagem, não custa lembrar que foi o próprio Barthes que sentenciou: a língua caracteriza-se muito mais pelo o que ela nos obriga a falar, do que pelo o que ela nos permite dizer; este tipo de texto sabe que as lacunas, ou os buracos existentes no seu rendilhado, também ajudam a constituir as formas das figuras desenhadas pela prática de coser seus argumentos; este tipo de texto, para usarmos outra metáfora, aproveita em sua culinária, até os restos de teorias que são cozidas em banho-maria, dentro de um caldearão metodológico preocupado em aproveitá-las para o jantar solene da história, que tem à mesa, figuras ilustres: dona estruturas, senhor modos de produção, senhorita dialética, mas também a indesejada, porém, sempre presente, narrativa, com seu discurso repleto de metáforas, interpretações e aporias, enfim de um pensamento desestabilizador, porque nem sempre esta preocupada em se agarrar às estrias convenciona, mas principalmente, em afetar, em tocar e contaminar. BARTHES, Roland. Aula – 7ª ed. São Paulo: Editora Cultrix,
  • 20. 10 isso mesmo, com alto grau de risco. Assim, pode-se afirmar que este texto na sua organização, não tem a preocupação de se constituir com escansões bem definidas, preocupadas em discutir e separar a matéria narrada em capítulos, onde a metáfora da verticalização/fundamentação25 , normalmente trabalha com a estratégia de construir a sensação iluminista/evolucionista do argumento esquemático, ou para usarmos uma observação deleuzo-guattariana – do pensamento árvore –, em que a raiz, constitui-se como a fundamentação teórica que dará sustentação ao caule argumentativo do texto, e possibilitará o desabrochamento da bela flor da razão, afinal: Para os teóricos da modernidade o visível não passa de aparência. Subjacente a tudo o que vemos, existe um nível mais profundo, essencial, e é somente a partir dele que podemos verdadeiramente entender nossos objetos de estudo. Para o marxismo, por exemplo, as instituições, a superestrutura, que constitui o campo do visível, se explica somente a partir da estrutura – a essência –, uma instância invisível, mas primordial. Do mesmo modo, para a psicanálise, o comportamento humano, que constitui o campo do visível, se explica por mecanismos psicológicos complexos, inconscientes, e, portanto, invisíveis. Tais metáforas de verticalidade, porém, esfacelam-se frente à crítica empreendida pelos teóricos do pós- modernismo. 26 É, justamente, pela desconfiança que adquirimos sobre a plausibilidade deste pensamento moderno, em tempos de pós-modernidade27 , que optamos por não adotar uma escrita com a mesma esquemática das introduções elaboradas em consonância com este pensamento moderno. Por isto, este I fluxo, não funciona apenas como arauto do discurso principal, bem ao estilo das clássicas introduções, possuidoras da peculiar característica de anunciar resumidamente os temas e discussões dos capítulos subseqüentes, pois este fluxo – a partir de uma metalinguagem – já é inicio, meio e fim da discussão. Funciona dentro de uma 1996; ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. A invenção do nordeste e outras artes. – 2. ed – Recife: FJN, Ed. Massangana; São Paulo: Cortez, 2001. VEYNE, Paul. Como se escreve a historia e Foucault revoluciona a historia. 4 ed. Trad. De Alda Baltar e Maria Auxiliadora Kneipp, Brasília: UNB, 1998. 25 VASCONCELOS. José Antônio. Quem tem medo de teoria? A ameaça do pós-modernismo na Historiografia americana 26 Idem, p.17. 27 Talvez, nestes tempos de pós-modernidade, a metáfora mais interessante para ser utilizada a respeito da produção e recepção do conhecimento, seja a da antena, pois em meio a este turbilhão de informações, de pessoas e mercadorias em constante circulação, com uma velocidade cada vez maior, o importante é estar atento – “antenado” - com as contínuas mudanças, provocadas e viabilizadas por toda esta circulação. O conhecimento não pode estar apenas enraizado, porque deve também aproveitar toda a vantagem oportunizada pelas idéias que circulam: o importante é ficar ligado, interligado, inteirado, conectado..., não afixado, enraizado, empoçado. Assim, estar bem fundamentado, lastreado, ou ainda embasado, pode não ser mais tão interessante, para um tempo em que as conexões do conhecimento são constituídas muito mais por contaminação e afetamento, do que pelas firmes e sólidas premissas do torrão natal/epistemológico. Paradoxalmente em um mundo de especialistas – com doutores especializados na asa esquerda da borboleta –, se vêem cada vez mais físicos comentando e debatendo a respeito da estilística literária utilizada no constructo de suas teorias, literatos debatendo sobre cosmogonia, historiadores analisando questões concernentes aos efeitos de verdade presentes no discurso científico, filósofos emprestando conceitos e terminologias da botânica. Curiosamente, nesta sociedade de especialistas, estes discursos reverberam com grande intensidade.
  • 21. 11 determina economia textual que depende, significativamente, de um texto/texto e não de uma texto/introdução. Desta forma, esta dissertação, mesmo que nem sempre consiga fazer o que anuncia, busca funcionar discursivamente como texto grama – rizomático – onde todas as partes se pretendem autônomas e ao mesmo tempo ligadas ao todo, bem ao estilo do que explicou Charles Baudelaire, no preâmbulo de um dos clássicos de sua literatura – Le spleen de Paris – , que Zigmund Baumam cita e ao mesmo tempo lamenta-se por não ter pensado antes: Meu caro amigo, estou lhe enviando um pequeno trabalho do qual se poderia dizer, sem injustiça, que não é cabeça nem rabo, já que tudo nele é, ao contrário, uma cabeça e um rabo, alternada e reciprocamente. Suplico-lhe que leve em consideração a conveniência admirável que tal combinação oferece a todos nós – a você, a mim e ao leitor. Podemos abreviar – eu, meus devaneios; você, o texto; o leitor, sua leitura. Pois eu não atrelo interminavelmente a fadigada vontade de qualquer um deles a uma trama supérflua. Retire um anel, e as tortuosas partes desta fantasia voltarão a se unir sem dificuldade. Corte um pedacinho e vai descobrir que cada um deles tem vida própria. Na expectativa de que algumas destas fatias possam agradá-lo e diverti-lo, ouso dedicar-lhe a obra inteira28 . Por tanto, podemos considerar que as possíveis flores, surgidas na forma/conteúdo tiririca29 deste texto, sejam pensadas como elementos individuais e coletivos que constituem ao mesmo tempo a beleza da singularidade e do conjunto. Não se preocupam em se constituir como um raro pensamento orquídea, jardim de Versalhes, marco do Jauru30 , Casa Dulce31 , Fazenda Jacobina32 , Fazenda Descalvados33 ..., com definições bem nítidas dos contornos e conceitos da história, porque, em muitas circunstâncias, preferiremos trabalhar com 28 Cf, BAUMAN, ZYGMUNT, 1925-Amor Líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos; Trad. Carlos Alberto Medeiros. – Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004, p.16. 29 Erva daninha – um bom exemplo de rizoma – que se alastra com grande rapidez, se constitui no solo aparentemente como grama, todavia, não pode ser retira ou extirpada da mesma maneira que a grama, pois não se afixa a partir de raízes, mas sim por bulbos espalhados e interligados em profundidade bem variada. 30 Marco histórico relacionado ao tratado de Madri, firmado entre as coroas de Portugal e Espanha no ano de1750, o mesmo é tombado pelo IPHAN – Instituto do Patrimônio histórico e Artístico Nacional –, e atualmente encontra-se na Praça Barão do Rio Branco na cidade de Cáceres. COSTA, César da. O Marco do Jauru na constituição de um imaginário. Monografia. Cáceres: UNEMAT, 2003. 31 Casa Comercial que possuiu certa importância no comércio de Cáceres durante o início do século XX. TARTARI, Juliane Cristina. Casas comerciais em Cáceres 1890-1920. 2007. Monografia. Cáceres: UNEMAT, 2007. 32 Fazenda muito cita nos discursos dos memorialistas da cidade e grande orgulho dos Pereira Leite, família abastada da cidade. LEITE, Luís-Phílippe Pereira. Vila Maria dos Meus Maiores. Ed. Mato Grosso: IHGMT, 1978; . CORREA FILHO, Virgilio. Pantanais mato-grossenses. Cuiabá: IHGB/MT, p. 66-70. 33 Esta outra fazenda sempre esta presente na fala destes memorialistas, foi também estudada, de forma mais crítica, em trabalhos monográficios, em artigos e, inclusive, em uma tese de doutorado. GARCIA, Domingos Sávio da Cunha. Cobiçada Carne. Revista de História da Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, p.34 – 37,01 fev. 2008; Kleiton, César Silva de Almeida. Descalvados: 1872-1882. De uma rudimentar salgadeira a uma fabrica de extrato de carne. Monografia. Cáceres: UNEMAT, 2008; GARCIA, Domingos Sávio. Territórios e Negócios na Era dos Impérios: Os Belgas na Fronteira Oeste do Brasil. Tese de Doutorado. Campinas: Unicamp, 2005.
  • 22. 12 metáforas, com o Café Nice34 , com a desconstrução de mitos35 , com a desnaturalização das identidades36 ..., ao invés de conceitos bem fixos e definidos, pois aprendemos com Hayden White que: A narrativa histórica não imagina as coisas que indica, ela trás a mente imagens das coisas que indica, tal como o faz a metáfora (...) Corretamente entendidas, as narrativas histórias nunca devem ser lidas como símbolos inequívocos dos acontecimentos que relatam, mas antes como estruturas simbólicas, metáforas de longo alcance, que comparam os acontecimentos nelas expostos com alguma forma com que já estamos familiarizados em nossa cultura literária. 37 Preferimos o texto rizomático, com os argumentos e idéias se alastrando por todas as partes, em que as notas de roda-pé ou as citações se constituem como elementos da própria forma/conteúdo do texto, ou seja, não são pensadas como as referências teóricas e metodológicas que embasam e validam os argumentos do texto, mas antes, dentro de uma economia textual esquizofrênica, que se recusa a trabalhar seguindo apenas uma linha ou 34 Estabelecimento comercial – bar – situado na frente da rodoviária. Até 2004 tinha a vizinhança/interação de outro estabelecimento que poderíamos nominar e definir como pertencendo à zona do baixo meretrício, mas que popularmente era chamado de “cai pinto”. O “café Nice” tem a peculiar característica de não fechar suas portas, há quase três décadas. É freqüentado, normalmente, por pessoas pertencentes à classe social financeiramente mais pobre. Pessoas tidas como de bem e de bens, dificilmente freqüentam o lugar, e, quando o fazem, geralmente é para comprar bebidas, cigarros, um sexo barato, uma droga misturada, todavia, não gostam de assumir. Despreocupados, porém, não totalmente, pois o quartel central da polícia militar não fica a mais de 100 (cem) metros de distância, com esta questão da imagem, são as nômades vidas que por estas imediações constroem suas relações interpessoais, dentro de uma política da sobrevivência com códigos próprios. Nômades por opção, ou por ocasião, no caso dos que não tem um lar sedentário para habitar. Talvez o “Café Nice”, após a desterritorialização provocada pela perda do lar sedentário, seja para estas pessoas uma outra forma de reterritorialização, para aonde os mesmos quase sempre voltam e batem o ponto, para usarmos uma linguagem mais sedentária. Nestas primeiras/poucas palavras sobre o “Café Nice”, podemos observar que estas vidas possuem uma memória diversificada, que ainda precisam ser mais observadas, não só pelos historiadores, mas também por qualquer pessoa preocupada em tentar perceber outros aspectos da cidade, bem diferentes daqueles já tão propalados pela mídia ou pela memória disciplinarizada dos memorialistas, inclusive, por uma parcela da história produzida na academia. 35 O principal objetivo neste caso está relacionado ao interesse de problematizar estes espaços de memória, para assim, buscar dessacralizar esta memória mais sedimentada nos exemplos de vida dos grandes mitos/heróis da história, ou ainda em desconstruir o castelo de uma história denominada por Nietzsche como monumental, construído, é importante destacar, com a argamassa política e os blocos de memória pertencentes às grandes biografias, às grandes fazendas, às grandes casas de comércio, aos monumentos do poder civil, militar e eclesiástico. 36 Percebermos toda a maldade, e, em alguns momentos, até certa grosseria produzida por este discurso das identidades, pois em virtude de sua postura homogeneizante, acaba desconsiderando toda a diversidade existente na cidade. O outro, o pau-rodado, o boliviano, os freqüentadores do Café Nice, as prostitutas, os mendigos..., são percebidos/percebidas – dentro deste discurso histórico das identidades – como a diferença ameaçadora, porque, ao fim e ao cabo, estas dessemelhanças talvez sirvam para percebermos que o outro, curiosamente, é maioria, ou ainda, num sentido mais extremado e, jogando um pouco com as palavras, que: o que nos torna mais iguais é justamente o fato de sermos bem diferentes. A aparente coerência existente neste discurso das indenidades é muito frágil, por isso, o constante medo do outro, pois a percepções destas diferenças, nos força a observar nossas próprias ambigüidades e paradoxos. 37 WHITE, Hayden. Trópicos do discurso: Ensaios sobre a Crítica Cultural. Trd. Alípio Correia de França. São Paulo. Edusp. 1994, p. 108.
  • 23. 13 corrente de pensamento. Esta esquizofrenia textual tem medo dos fixos e pesados grilhões teóricos, que propõem uma única e fiel linha metodológica. Porque ter esquizofrenia teórica, é salutar, impede o desespero do personagem de Borges que não conseguia se esquecer de nada, pois assustadoramente lembrava-se de tudo. No texto rizomático a simbiose existente entre as notas de roda-pé e as citações, possibilita e constrói uma argumentação que se espalha com as metáforas e palavras/protéicas38 se proliferando em várias direções e com múltiplos sentidos. Palavras que não obedecem à estabilidade do signo – união entre uma palavra (o significante) e a idéia ou objeto por ela representado (o significado) – da lingüística estruturalista de Fernand de Saussure. Temos que assumir, contaminados por uma gramatologia produzida por Jacques Derrida, a existência de vermes nos vernáculos, Na história de Donald Barthelme, A Picture History of the war, o general exclama: “Existem vermes nas palavras, os vermes nas palavras são como feijões mexicanos saltitantes, agitados pelo calor da boca39 , ou acrescentando nossos próprios vernáculo/vermes à esta afirmação: agitados também, pelo fluxo de pensamentos agenciados durante a atividade cerebral/corporal da escrita. Com isto queremos salientar que o texto rizomático não trabalha com a mesma lógica enunciativa do texto árvore, lógica está que – nas ciências sociais –, quase sempre está preocupada no esmero das citações, percebidas com a importante função de referenciar, ou, às vezes, na literatura, pela meticulosa busca de lapidar e polir o vernáculo, com o objetivo de extirpar seus vermes. Aliás, uma busca inútil e até contraproducente, pois tanto quanto no corpo humano, os vermes das palavras não podem ser totalmente extirpados, afinal, os mesmos, também fazem parte da vida existente no corpo e nas palavras. Manuel Bandeira, mesmo sendo um homem do pensamento moderno, ao se posicionar contra a estilística parnasiana, identificou e denunciou os excessos desta busca, com os seguintes versos: Estou farto do lirismo comedido do lirismo bem comportado Do lirismo funcionário público com livro de ponto expediente protocolo e [manifestações de apreço ao Sr. Diretor Estou farto do lirismo que pára e vai averiguar no dicionário o cunho [vernáculo de um vocábulo Abaixo os puristas (...) Quero antes o lirismo dos loucos 38 Ct. HARLAN. David, “A história intelectual e o retorno da literatura”. Trad. José Antônio Vasconcelos. In: RAGO, Margarete, OLIVEIRA, Gimenez, ALUÍZO de, Renato. (org.) Narrar o passado, repensar a história: UNICAMP, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, 2000.p. 17. 39 Idem, p. 17.
  • 24. 14 O lirismo dos bêbedos O lirismo difícil e pungente dos bêbedos O lirismo dos clowns de Shakespeare - Não quero mais saber do lirismo que não é libertação40 . Como já foi externado anteriormente, não estamos interessados em fazer uma argumentação que funcione a partir da idéia de fundamentação, por considerarmos a metáfora da verticalização muito gasta/clichê, interessamo-nos sim, em uma dermatologia teórica onde o mais profundo está na superfície, porque, espantar-se com o óbvio41 , quase sempre é mais difícil. Não queremos ler as entrelinhas, nem acreditamos que exista esta leitura das entrelinhas. Não utilizamos as idéias de autores para justificar e fundamentar nossos argumentos; no máximo, agenciamos as idéias e conceitos dos autores que nos tocam e nos afetam – de forma direta ou indireta – para que as mesmas também façam parte do fluxo de enredo deste texto. Nesta miscelânea teórico-metodológica, o importante é tentar operacionalizar estas diferentes ferramentas teóricas no exercício de construção/invenção deste objeto de estudo. Numa comparação mais extremada, é tentar orquestrar músicos que, não raro, se contrapõe totalmente. É procurar treinar o ouvido para conseguir apreciar, ou quando muito, suportar um acorde dissonante, reverberado em uma assonância estranha à partitura teórica da fundamentação. A partir do agenciamento da idéia de fluxo de Deleuze e, da estratégia de escrita, adotada por Charles Baudelaire em – Le spleen de Paris – que, buscamos tramar a tessitura desta dissertação, não em capítulos, mas, sim, em fluxos com relativa independência entre si, não total, pois ao contrário da obra: O jogo da Amarelinha42 de Julio Cortázar, em que os diferentes e possíveis fins da história são prenunciados pelo auto, infelizmente, esta dissertação não tem a mesma amplitude de possibilidades da história de Cortázar, nem a total independência do texto de Baudelaire, porque seus objetivos se assemelham bem mais à idéia de fluxos discursivos que emergem da necessidade de reiterar constantemente uma determinada visão da história, para qual, não existe uma separação entre forma e conteúdo, afinal, mesmo a lingüística mais estruturalista de Ferdinand de Saussure, há muito tempo 40 BANDEIRA, Manoel. Poética. In: MORICONI, Ítalo (org). Os cem melhores poemas brasileiros do século. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001, p. 31. 41 VEYNE, Paul. Como se escreve a história, Brasília. Ed. da UNB, 1982, p.24. 42 CORTÁZAR, Julio. O jogo da amarelinha. Tradução de Fernando de Castro Ferro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.
  • 25. 15 atrás, já defendia com certa insistência que a linguagem constitui e articula a realidade, ao invés de simplesmente expressá-la ou refleti-la43 . Levando em conta a importância da linguagem na construção de um determinado objeto de estudo, é que resolvemos adotar esta específica urdidura textual, construída mediante distintos fluxos, os quais não obstante serem diferentes, e relativamente independentes, acabam por trabalhar discursivamente em consonância com uma mesma idéia e concepção de história. Em muitos aspectos, a pesquisa e assuntos abordados nesta dissertação, são, e/ou funcionam, como pretextos para se falar e escrever sobre uma determinada política/teórica dentro da e, para a, história. Um exemplo mais direto desta política44 teórica pode ser encontrado no II fluxo – A história foi salva pelo turismo? –, onde buscamos metodologicamente operacionalizar uma pesquisa genealógica45 das práticas discursivas e não discursivas relacionadas ao turismo em Mato Grosso, para assim, tentar perceber em quais circunstâncias a discussão da memória, ou de forma mais geral, de uma determinada concepção de história esteve ou não, funcionando dentro da mesma lógica de enunciação destas respectivas práticas discursivas e não discursivas do turismo. Entretanto, é importante ressaltar, que não estamos aqui buscando construir uma história da longa duração46 , em que um conceito, ou uma palavra – o turismo – seja pensada sem se levar em consideração sua própria historicidade, buscando, assim, se estabelecer uma continuidade sem rupturas, dentro de uma lógica de enunciação que oblitera todas as descontinuidades e rupturas que permearam sua existência. O interessante neste II fluxo é percebermos que esta prática discursiva e não discursiva do turismo, em muitos momentos, esteve correlacionada, interligada, afetada e afetando a construção e definição de uma determinada forma de ver e escrever a história sobre Mato Grosso47 , em que o discurso das identidades mistura-se ao interesse de cartografar os principais contornos de uma região geográfica, onde a natureza constitui-se como importante tema e elemento deste discurso identitário. Inclusive, ser-nos-á importante salientar que o principal motivo que nos instigou a fazer a pesquisa necessária para a elaboração desta dissertação, foi suscitado pela percepção 43 HARLAN, David, op, cit, p. 16. 44 Política teórica que suspeita do discurso solene e homogeneizante das origens. 45 FOUCAULT. Michel. Nietzsche, a genealogia e a história, In: Microfísica do poder. Organização e Tradução de Roberto Machado. Rio de Janeiro: Edições Graal. 1979. 46 BRAUDEL, Fernand. A longa duração, In: Escritos sobre História. Trad. J. Ginsburg e Tereza C. S. da Mota. São Paulo: Perspectiva, 1978, p. 44-46. 47 CORREA FILHO, Virgilio. “Pantanais mato-grossenses”. Cuiabá: IHGB/MT, p. 66-70. CORRÊA FILHO, Virgilio. Entraves ao turismo. Mensário do Jornal do Comércio. Rio de Janeiro, Abril/1941.
  • 26. 16 de que os discursos presentes desde a primeira legislação municipal48 , preocupada com a temática do patrimônio histórico, até as falas mais atuais, relacionadas à definição do que deve ou não ser considerado como patrimônio histórico de Cáceres, estão, afetadas por uma concepção de história impregnada pelas idéias do discurso identitário. Neste sentido, buscamos pesquisar, compreender e problematizar quando e como, a partir de determinadas práticas sociais49 , algumas práticas discursivas ou não-discursivas, ganharam respaldo dentro de determinadas relações de poder e saber, que as possibilitaram engendrar a invenção de uma determinada memória para Cáceres; tentar, também, perceber a emergência de um objeto de saber e um espaço de poder; estudar como se formou um arquivo de imagens50 e enunciados, um estoque de “verdades”, uma determinada visibilidade e dizisibilidade desta memória que pretendeu e pretende direcionar comportamentos e atitudes e, dirigir inclusive, o olhar e a fala da mídia; como e a partir de quais ressonâncias discursivas, a própria idéia de “identidade cacerense” impõe uma dada forma de abordagem imagética e discursiva, para falar e mostrar a “verdadeira” “história” da cidade. Ao fazermos a pesquisa/escritura do momento de emergência desta memória, percebemos a importância do traço identitário para construção/invenção de uma determinada história de Cáceres. Buscamos então – a partir do mesmo método genealógico já adotado no II fluxo, como também, afetados pela idéia de ressonância –, realizar um estudo do momento no qual este discurso das identidades ganhou maior dizibilidade na cidade. A feitura deste estudo nos levou a pesquisar/escrever o IV fluxo – Os artesões da memória nas tramas e retramas da história –, em que efetuamos a narração de alguns acontecimentos ocorridos no dia 6 de Outubro de 1978 – ano das comemorações do bicentenário de Cáceres –, e, em certos momentos, também tentamos conjecturar uma específica intriga textual para estes acontecimentos, com o objetivo de perceber/destacar que, estas solenidades e comemorações, ocorridas tanto neste dia específico como também no transcorrer de todo deste ano, estavam articuladas e interligadas a uma determinada prática discursiva, emitida nos escritos e falas das autoridades civis, militares e eclesiásticas. A principal constante lexicológica desta prática discursiva era o traço histórico. É como se todas estas autoridades, independente de sua formação/função profissional, estivessem em um determinado fluxo enunciativo, onde as palavras correlacionadas à história 48 Decreto lei n.165 de 19 de Abril de 1994. 49 CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: artes de fazer. (Trad.) Ephrain F. Alves. Vol. I. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994. 50 Catedral de São Luiz de Cáceres, marco do Jauru, os casarões do centro, a bicicleta, a ponte branca, as fazendas históricas...
  • 27. 17 de Cáceres ficavam reverberando e produzindo eco de discurso em discurso, e, assim, constituindo toda uma coerência argumentativa interessada em engendrar uma fala competente/autorizada, constantemente preocupada em definir e delimitar os contornos mais importantes da história, ou mesmo da identidade do povo cacerense. Um bom exemplo das ressonâncias51 – tanto destes discursos, quanto da literatura52 que os contaminou – que ainda reverberam na história escrita e vivida atualmente na cidade de Cáceres, pode ser encontrado no fragmento/sintetizador presente no texto do cardápio do Knôas. O texto deste cardápio não é único, pois muitos são os breves históricos construídos a partir desta mesma forma/conteúdo. Quando ocorrem mudanças, geralmente elas estão mais relacionadas às informações utilizadas no breve histórico, do que propriamente na alteração desta forma/conteúdo de se pensar e escrever a história, assim, podemos encontrar textos muito semelhantes nos cardápios de outros restaurantes53 , em sites de agências de turismo54 , no site da Sematur55 , em folders de pousadas,56 em blog57 ... Quando destacamos que este texto, constitui-se como um bom exemplo das ressonâncias das práticas discursivas contemporâneas ao ano de 1978 que ainda reverberam atualmente, não é simplesmente pelo fato de a maioria destes textos estarem utilizando, e em algumas circunstâncias até plagiando, as informações contidas em um artigo58 de Natalino Ferreira Mendes, produzido para um caderno especial do Correio Cacerense, publicado no dia do bicentenário. Falamos em ressonância neste caso, sobretudo, porque percebemos a permanência de uma visão da história que ainda se auspicia na condição e competência de definir a história de um povo, de um país, de um estado, de uma cidade..., em poucas palavras – em um breve histórico. Os postulados desta prática discursiva que ainda ecoam na cidade de Cáceres ou em diversas escolas deste país, assemelham-se bastante ao discurso da estereotipia, pois: 51 Na cidade de Cáceres existe na fala e na escrita do discurso interessado em exibir uma suposta identidade da cidade, ou os exemplos da cultura material e imaterial que devem ser considerados como patrimônio histórico, ainda as ressonâncias de todas as práticas discursivas elaboradas e emitidas naquele ano do bicentenário. 52 LEITE, Luis-Phelippe Pereira. Vila Maria dos Meus Maiores. Ed. Mato Grosso: IHGMT, 1978. Ainda deste mesmo autor, as obras: “O Médico de Jacobina, Dr. Pedro Nolasco Pereira Leite” e “O Engenho da Estrada Real”. CORREA FILHO, Virgilio. Pantanais mato-grossenses. Cuiabá: IHGB/MT, p. 66-70. 53 Restaurante Corimba – localizado às margens da baia do Malheiros, Rio Paraguai – 2006, ou ainda, o restaurante Etrúria, situado no calçadão da Praça Barão do Rio Branco, ano 2009. 54 ? 55 Secretaria Municipal de Turismo de Cáceres. 56 Folders da Pousada Fordinho. 57 D:fontes de sites de pesquisa- Cáceres - MT.mht, visitado em 18.02.2008 58 MENDES, Natalino Ferreira. Cáceres – Duzentos Anos. Caderno especial do Correio Cacerense. 06/10/1978, ano II, n. 353.
  • 28. 18 O discurso da estereotipia é um discurso assertivo, repetitivo, é uma fala arrogante, uma fala que leva à estabilidade acrítica, é fruto de uma voz segura e auto-suficiente que se arroga no direito de dizer o que o outro é em poucas palavras. O estereótipo nasce de uma caracterização grosseira e indiscriminada no grupo estranho, em que as multiplicidades e as diferenças individuais são apagadas em nome de semelhanças superficiais do grupo. 59 Em Cáceres, ou no velho/novo Mato Grosso, durante o ano de 1978 – velho porque permaneceu com a mesma capital e também conservara o mesmo nome, novo porque após a divisão, ocorrida um ano antes, teria que ser escrita uma nova história para o estado, com novos heróis –, existia uma preocupação de se escrever a história do estado e da cidade. Esta história, entretanto, não se justifica apenas pela divisão do estado, também temos que levar em conta a importante questão da presença do outro, do imigrante que afluiu para o estado com grande intensidade durante estes anos setenta60 . Do outro que representa a ameaçadora diferença visível na culinária, no sotaque, no vocabulário, nas formas de sociabilidade, na concepção de tempo, enfim, nos traços culturais. É a partir deste contato com o outro que o discurso da identidade ganha maior importância, e emerge todo um interesse em construir uma história que tenha uma memória disciplinada em comum; disciplinada, porque, quem se arvora a esta condição de memorialista, varia muito pouco o seu repertório. Na cidade, sobretudo após o bicentenário, não faltaram discursos que ressaltavam a importância de se escrever e preservar a história local, em decorrência da iminente destruição do passado, provocada pelo processo modernizador em que o estado estava ingressando. Voltando aos comentários e, ao mesmo tempo continuando, pelo menos em parte, esta discussão relacionada às ressonâncias desta determinada prática discursiva que ainda reverberam atualmente, no IV fluxo, além do estudo destas práticas discursivas, também foram analisadas certas práticas não discursivas como, por exemplo, o desfile do bicentenário, com toda sua conotação imagética e linguagem corporal/gestual. Especificamente sobre o desfile do bicentenário, podemos observar que essa prática não possui mais tanta influência sobre o cotidiano da cidade. Primeiro porque o desfile não é realmente algo que faça parte da vida cotidiana, pois apresentam uma característica mais solene e excepcional; segundo, porque atualmente não temos uma cultura dos desfiles61 bem arraigada na mentalidade da população, bem ao contrário do que ocorria naqueles últimos anos da década de setenta, com 59 ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. A invenção do nordeste e outras artes – 2. ed – Recife: FJN, Ed. Massangana; São Paulo: Cortez, 2001, p.20. 60 Um importante trabalho sobre a vinda de grande quantidade de migrante para região da grande Cáceres, ou mais especificamente, para localidade que futuramente iria se tornar um novo município é o trabalho de: HEISNT, Andréa de Cássia. Bandeirantes do século vinte. Memória e ocupação da terra em Mirassol D`Oeste, Mato Grosso. Dissertação de Mestrado em História. Cuiabá: Universidade Federal de Mato Grosso, 2003. 61 FAUSTO, Boris, História do Brasil. São Paulo, Edusp, 1995; SKIDMORE, Thomas E. Brasil de Castelo a Tancredo. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1988.
  • 29. 19 um regime militar que tinha total interesse em construir/conservar, a partir da atmosfera de festividade existente nos desfiles, um comportamento coesivo e ordenado baseado na comunhão identitária de uma história ufanista e homogeneizante. Todo o debate relacionado à identidade, a história e a memória nos levaram a refletir/escrever a respeito dos efeitos de verdade produzidos pela fala competente/autorizada, sobre a importância e contribuições da fala competente/autorizada para as construções identitárias, como também, procuramos desenvolver um debate relacionado às interfaces e interstícios existentes entre o discurso de uma elite política e o interesse de se constituir uma dada identidade para a população de Cáceres. Tudo isto, viabilizado por uma concepção de história pautada no paradigma da representação, no qual a linguagem é pensada como reflexo da realidade. Para entendermos melhor a lógica enunciativa da postura e preservacionista adotada na cidade de Cáceres, se fez necessário e importante, estudarmos as principais características dos enunciados emitidos por integrantes do IHGMT, como Luís-Fillippe Pereira Leite, que, influenciam e/ou funcionam na mesma lógica de toda uma prática discursiva presente nos enunciados elaborados por memorialistas62 , autoridades63 , livros64 , monografias65 , sites66 , blogs67 ... Atualmente, a lógica enunciativa relacionada à intenção de se preservar a memória de cidades, estados, países, ou em uma visão mais abrangente, da humanidade, mesmo que bem intencionada, pois está suscetível ao diálogo interdisciplinar, estabelecido entre profissionais de várias áreas do conhecimento como: arquitetos, historiadores, urbanistas, paisagistas, antropólogos, sociólogos..., em que a questão do patrimônio histórico, normalmente é vislumbrada como fundamental para preservações e manutenção de uma determinada identidade cultural, porque, segundo esta lógica: 62 MENDES, Natalino Ferreira. Efeméride cacerense. Volume I, Brasília, 1992. Deste mesmo autor as obras: “Marco do Jauru”, 1983; “Memória Cacerense”, 1982; BAPTISTA, Martha: Estela de uma vida inteira: a história de Cáceres contada através das lembranças da vó Estela, 1998. 63 Fala do governador do Estado de Mato Grosso Blairo Maggi, quando veio a Cáceres durante o circuito nacional de Vôlei de Areia no ano de 2008. 64 PITALUGA, Carlos e Vicente, João Carlos. Breve História de Mato Grosso e de seus municípios. Cuiabá, 1994; COSTA, Antônio Ferreira da. Pantanal em versos e rimas. Cuiabá: KCM, 2007. 65 SANTANA, Eliane da Silva. Museu histórico de Cáceres no período de 1978 à 1979. Monografia. Cáceres: UNEMAT, 2002; CATELAN, Leonildes Maria. Ponte branca na memória cacerense. Monografia. Cáceres: UNEMAT, 2001. 66 http://www.caceres.mt.gov.br/index2.php?cod_sec=4, visitado em 21.12.2008; http://pt.wikipedia.org/wiki/C%C3%A1ceres_(Mato_Grosso), visitado em 21.12.2008; http://www.citybrazil.com.br/mt/caceres/historia.php, visitado em 21.12.2008; http://www.apontador.com.br/guia_cidades/mapas/MT/caceres.html, visitado em 21.12.2008 67 D:fontes de sites de pesquisa- Cáceres - MT.mht, visitado em 18.02.2008
  • 30. 20 A cidade guarda em si as cicatrizes de vários momentos diferentes de luta: as teimosas marcas de uma memória inscritas nas pedras do calçamento, os monumentos aos sucessivos vencedores, os rastros de um passado que permanentemente se tenta ocultar ou maquiar. 68 Curiosamente e paradoxalmente, esta lógica, urde sua argumentação a partir de discussões e textos delineados em encontros internacionais como, por exemplo, as recomendações de preservação e restauração de monumentos, existentes nos 16 artigos da Carta de Veneza69 de 1964, consagrada como a mais importante referência/doutrina urbanística do Ocidente. Assim, busca-se preservar uma determinada e local identidade cultural, recorrendo-se a paradigmas e premissas teóricas universalizantes; os centros históricos de diferentes cidades do mundo, cada vez mais se parecem participando de uma mesma prática discursiva consciente e/ou inconsciente que busca controlar a própria noção e compreensão do que deve ou não ser considerado patrimônio histórico, e, ainda, disciplinar as práticas sociais70 dos transeuntes destes lugares. Guattari, a partir de sua arguta sensibilidade, e preocupado em refletir sobre algumas características da paisagem urbana desta sociedade que ele denomina de pós-moderma, descreveu este paradoxo com as seguintes palavras: Vamos, então, desmascarar o paradoxo de uma vez. Tudo circula: música, slogans de propaganda, turistas, bits de informação, filiais de indústrias; e, ao mesmo tempo, tudo parece estar coagulado, parado no mesmo lugar, as diferenças entre o estado das coisas atenuando-se cada vez mais. Os espaços tornaram-se estandardizados, tudo passou a ser intercambiável equivalente. Turistas, por exemplo, viajam cada vez mais sem sair do lugar, utilizando o mesmo tipo de avião, ônibus de excursão, quarto de hotel e simplesmente contemplando o cenário que já viram antes uma centena de vezes na tela da televisão ou em algum guia de viagem. 71 Quando nos propomos a problematizar este discurso das identidades, não estamos querendo construir simplesmente um discurso niilista e inconseqüente; problematizar neste caso significa ter a preocupação de não perceber estas identidades como óbvias e naturais, ou naturais porque óbvias; percebê-las, aliás, como tudo que é próprio do acontecer humano, como tendo uma historicidade, repleta de coerências e incoerências, em que os jogos de poder e saber, interagem de forma direta e indireta na constituição destas identidades, onde as heterogeneidades e heterotopias, são obliteradas em detrimento da maior visibilidade oportunizada ao discurso do mesmo, do igual, do semelhante. 68 PEREIRA CUNHA. Maria Clementina (org.). O Direito à Memória: Patrimônio Histórico e cidadania. São Paulo: DPH/SP, 1992, p.10. 69 CADERNO de documentos n 3. Cartas Patrimoniais. Brasília: Ministério da Cultura/Instituto do Patrimônio Histórico e artístico nacional – IPHAN, 1995. 70 CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: artes de fazer. (Trad.) Ephrain F. Alves. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994. 71 GUATARRI, Felix. A restauração da paisagem urbana. In: Revista do Patrimônio Histórico Artístico e Cultural – Cidadania, n°24, 1996.
  • 31. 21 É justamente por estarmos posicionados, e nos posicionando, a favor de uma dada postura historiográfica – epistemologia da diferença –, que se pretende mais polissêmico e interessado em fazer emergir as diferenças, as dessemelhanças, a pluralidade, que, consideramos esta fala competente/autorizada respaldada no álibi72 da preservação, insuficiente para se pensar a memória, e, sobretudo a história de Cáceres, pois a mesma, não raro, nem se preocupa em distinguir as diferenças existentes entre memória e história, afinal, Reconhecê-las – as tensões entre memória e história – é tarefa fundamental para a historicização da prática de nosso ofício. Enquanto a primeira – a memória – situa-se no campo dos afetos e dos sentimentos, procurando sacralizar os objetos que reverencia, a segunda – a história – pretende uma operação intelectual, um exercício crítico capaz de investigar as construções da memória, retirando dos altares e trazendo para o mundo dos homens, aqueles objetos sacralizados, sejam eles os autores do passado, os eventos fundadores ou as formas narrativas elaboradas a partir das experiências do passado Refazer essa gênese e este percurso impõe-se como condição para devolvermos ao homem sua historicidade e á história como disciplina sua capacidade crítica como conhecimento. 73 Fala competente/autorizada que, em muitas circunstâncias, por não perceber esta distinção, acaba querendo sedimentar uma memória que na prática reside em poucos lugares, como se esta fosse a única, ou, ainda pior, a memória de todos. Esta epistemologia da diferença instiga-nos a ampliar a discussão, a dar dizibilidade e visibilidade a outras falas, a outros fragmentos de memória, a outras concepções de história; incita-nos, inclusive, a problematizar nossa própria condição de sujeitos de conhecimento, com fala também competente/autorizada, ou seja, termos a coragem de colocar sobre suspeição nosso próprio discurso, assumir e externar qual é o efeito de verdade que pretendemos instaurar, a partir de nossas relações específicas de saber/poder. Para assim, tentarmos evitar, pelo menos em parte, aquela mesma negligência percebida e denunciada por Valéry. 72 MONNET, Jérôme. O Álibi do Patrimônio: Crise da cidadania, gestão urbana e nostalgia do passado, In: Revista do Patrimônio Histórico Artístico e Cultural – Cidadania, n°24, 1996. 73 GUIMARAES, Manuel Luiz. A cultura histórica oitocentista: a constituição de uma memória disciplinar. In: PESAVENTO, Sandra Jatahy. (org.) História Cultural: experiências de pesquisa. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2003, p.10.
  • 32. 22 II FLUXO A História foi salva pelo Turismo? Uma cultura está bem morta quando a defendem em vez de inventá-la Paul Veyne Estaria o velho – orgânico74 – historiador mato-grossense Virgilio Correa Filho, em um artigo intitulado: Entraves ao turismo75 , publicado no Mensário do Jornal do Comércio, já no ano de 1941, prenunciando aquilo que se tornaria um dos elementos fundamentais do discurso preservacionista, tanto no Brasil como no mundo? Ou apenas, sua fala está situada dentro de uma prática discursiva bem própria do seu tempo? Ou ainda – e, reiterando a idéia da última pergunta –, pensando-se numa expressão bem própria do historiador Lucien Febvre, a história é filha de seu tempo, logo, o autor Virgilio Correia, também seria Filho do seu tempo? Neste artigo, Virgílio vai comentar sobre a importância de se programar a atividade do turismo em Mato Grosso, a qual considera como uma tendência mundial de incentivo a economia. Assim, em virtude da exuberância da fauna e da flora do país, deveriam existir mais iniciativas e planejamento nesta área, para oportunizar o melhor aproveitamento econômico do turismo. O fato é que não podemos nem menosprezar, muito menos, supervalorizar a produção intelectual/política de um autor como Virgilio Correia Filho. Não devemos menosprezar, porque, suas contribuições de pesquisa em arquivo, coligindo e sistematizando dados em acervos, são significativas, afinal, podemos destacar sua preocupação com a importância e o estado de conservação da documentação destes arquivos. Um bom exemplo desta preocupação pode ser observado num artigo que publica em 1942 no Mensário do Jornal do Comércio76 , no qual, Virgilio busca alertar para a precariedade do estado de preservação destes arquivos tão importantes, segundo ele, para o estudo da ocupação e desenvolvimento da fronteira oeste do Brasil. Chegando mesmo a sugerir a transferência de alguns documentos para o Arquivo Nacional do Rio de Janeiro. Também não devemos supervalorizar suas falas e ações, apenas construindo um discurso empolgado pela sua consciência intelectual, porque em casos como este, sempre é 74 GRAMSCI, Antonio. Os intelectuais e a organização da cultura. Trad. Carlos N. Coutinho. 4 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1982. 75 CORRÊA FILHO, Virgilio. Entraves ao turismo. Mensário do Jornal do Comércio. Rio de Janeiro, Abri/1941. 76 CORRÊA FILHO, Virgílio. “Documento destinado às chamadas devoradoras” (Delegacia Fiscal) Jornal do Comércio. Rio de Janeiro, 8/3/1942.
  • 33. 23 pertinente adotar uma postura mais interpretativa, que busque perceber em qual lógica de funcionamento discursivo está situada a fala de um intelectual como Virgilio Correa Filho, vinculado e articulado a uma elite local. Neste sentido, tentarmos observar as intenções e a postura apresentada nos enunciados de intelectuais refestelados em instituições como o IHGMT, quando se arvoram na condição de se constituir como fala competente/autorizada, para discutir e emitir opiniões sobre variados temas, relacionados à vida política, social, econômica e cultural..., ou seja, buscar perceber/problematizar certa vontade de poder/saber. Uma década antes destes artigos de Virgílio Corrêa Filho, numa revista de circulação nacional – O Cruzeiro –, um caçador de origem russa, relativamente extravagante, com o nome de Sasha Siemel, em um ambiente interpretado pela revista como exótico e selvagem – o Pantanal –, ganha certa vizibilidade nacional, chegando até a adquirir uma relativa dizibilidade internacional. Pois, o mesmo, em 1935, guiou o filho do presidente norte- americano Theodor Roosevelt em incursão aventureira por esse pantanal. Os historiadores Cezar Benevides e Nonci Leonzo, na obra Miranda Estância, estudaram esta revista, e num fragmento desta obra, vão observar que: Frederico Chateaubriand, irmão de Assis Chateaubriand, traçou na revista o cruzeiro, o perfil de um russo que se tornou um mito no pantanal. Ajudou a popularizar essa figura enigmática que, chegou a viver com sua família norte-americana na Miranda Estância: Ali descobriu o caminho da aventura em Mato Grosso: Mergulhou pelos pantanais da província ainda meio selvagem atrás de onças, tem um livro escrito: Tigrero biografia de sua luta com tigres, está claro. Nesta luta o importante é que Sasha não segue as técnicas usuais das caçadas a tiro. Usa um método pessoal, a lança. Metesse nos carrascais com um cão. A fera, descoberta pelo rafeiro, começa a ser acuada, até o momento em que investe contra Sacha. Esta é então a ora que ele certeiro, a fere com a lança77 . Além da originalidade do método de caça utilizado por Sasha, tão bem descrito pelos historiadores a partir da análise do enunciado supracitado, também devemos nos atentar para a intenção de se construir uma coerência enunciativa sobre o pantanal. Um conjunto de palavras, como exótico, selvagem, distante..., vão dar e, ao mesmo tempo, construir sentidos para se pensar esta região do Brasil. Não devemos nos esquecer que, homens de imprensa como os irmãos Chateaubriand, têm bem a noção dos efeitos que a linguagem é capaz de produzir, no sentido de construir o mundo, de influenciar a percepção deste mundo constituidor e constituído pela, e na linguagem. 77 BENEVIDES, César; LEONSO, Nanci. Miranda Estância: Ingleses, peões e caçadores no pantanal mato- grossense. Rio de Janeiro: FGV, 1999, p.86.
  • 34. 24 De certa maneira, talvez já esteja presente neste enunciado da revista O Cruzeiro, uma prática discursiva que busca simultaneamente: definir as principais características desta região do país – o Pantanal –; e delimitar uma possível atividade de exploração econômica para esta região correlacionada ao turismo. Pois, se é anacrônico pensarmos na expressão “indústria do turismo” 78 para esse período, em virtude da não existência, ainda, do pleno agenciamento imagético/discursivo, vinculado à indústria cultura relacionada ao turismo; contudo, nós, já podemos perceber, mesmo que de maneira incipiente – porém, com alguma coerência –, a preocupação de se publicizar uma determinada imagem deste Pantanal apropriada à atividade do turismo. Claro que de um turismo mais predatório, bem aos moldes das aventuras de Sasha que, em um ambiente exótico e selvagem, vai adentrar esta perigosa “região inóspita”, com feras tão selvagens quanto um tigre nas florestas Asiáticas, ou um leão nas savanas Africanas, ou mesmo um Urso nas florestas Canadenses. Parece que as palavras: “exótico”, “selvagen”, “distante”, “pantanal”..., já trazem no ato de sua enunciação, a imagem e a necessidade de outras palavras, como: “caçada”, “arriscar-se”, “aventurar-se”, “mito” e, ainda, a metáfora “mergulhar nas águas desconhecidas e distantes do Pantanal”, para assim, dar maior sentido e coerência a todo o enunciado; porque, só uma figura mítica como Sasha, com uma técnica de caça totalmente irreverente, e, com a deliberada índole aventureira, disposta a literalmente mergulhar neste pantanal exótico e selvagem, poderia estar interessada em adentrar esta região cheia de feras. Por esta razão, podemos observar que o perfil do possível turista que se direciona para estes locais, neste período, vai estar mais correlacionado a figura do caçador em busca de aventuras. Entretanto, não estamos preocupados nesta dissertação, em elaborar uma narrativa linear da origem e das práticas discursivas correlacionadas ao turismo em Mato Grosso – com seu desenvolvimento em diferentes períodos, a partir de uma coerência que, não raro, transforma estes distintos períodos na mesma coisa, pois normalmente oblitera suas diferenças e contradições –, assim, nós, no desenvolvimento da trama desta dissertação, temos antes, o interesse de dar vizibilidade também e/ou, sobretudo, às diferenças; buscamos perceber as próprias contradições e mudanças existentes nestas práticas discursivas relacionadas ao turismo, ou seja, estamos motivados em – a partir de uma preocupação foucaultiana, inspirada em grande parte, no método genealógico de pesquisa – construir uma narrativa da diferença, 78 Termo que, aliás, é mais apropriado para ser empregado na segunda metade do século XX, a partir da constituição efetiva de uma cultura de massas, muito bem teorizada por: ADORNO, Theodor W. Indústria Cultural e Sociedade. São Paulo: Paz e terra, 2002, p. 107.
  • 35. 25 da dispersão, da própria contradição e incoerência daquilo que aparenta ser uno e totalmente coerente, pois, (...) Nietzsche genealogista recusa, (...) a pesquisa da origem (Usprung) (...) Por que, principalmente, a pesquisa neste sentido, se esforça para recolher nela a essência exata da coisa, sua mais pura possibilidade, sua identidade cuidadosamente recolhida em si mesma, sua forma imóvel e anterior a tudo que é externo, acidental, sucessivo. Procurar uma tal origem é procurar reencontrar “o que era imediatamente”o “aquilo mesmo” de uma imagem exatamente adequada a si; é tomar por acidente todas as peripécias que puderam ter acontecido, todas as astúcias, todos os disfarces; é querer tirar todas as mascaras para em fim revelar uma identidade primeira.79 Por este motivo buscarmos entender que, em muitos momentos, este enunciado do turismo, esteve correlacionado, misturado e contaminado por outros fluxos – para usarmos uma expressão deleuziana – da vida; fluxos econômicos, fluxos sociais, fluxos políticos, fluxos culturais... Assim, a grande preocupação que temos como historiadores, é justamente de historicizar a própria palavra turismo, observar suas mudanças. Não pretendemos estabelecer uma continuidade a-históricas para esta palavra, não queremos definir, de forma categórica e conceitual, o significado da expressão turismo, mas, sim, procurar compreender como ela vai funcionar, em diferentes períodos, dentro, no meio e fora, da lógica mais ampla de enunciação e definição desta região (o Pantanal), ou, ainda, na elaboração da identidade que constantemente procura definir e delimita tanto o pantanal enquanto região geográfica, como também a própria história passada, pressente e, em alguns momentos, em projeções futuras. Um bom exemplo de descontinuidade, sobre a conotação da palavra turismo, pode ser observado na mudança que a mesma ganha naquele artigo elaborado por Virgilio Correa filho, em que o turismo, de atividade econômica predatória ao estilo Sasha, passa a funcionar dentro de outro fluxo econômico permeado por fluxos sociais e políticos perpassados pelas discussões relacionadas à importância da história. Afinal, no mesmo ano deste artigo, o IHGMT – Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso –, em virtude da vinda do representante do SPHAN – Serviço do Patrimônio histórico e Artístico Nacional – Dr. Luiz de Castro Faria, vai segundo a historiadora Elizabeth Madureira80 , nomeia comissão para fazer o levantamento do patrimônio histórico e artístico de Mato Grosso. Resultando desta visita, um estudo oficial dos possíveis bens patrimoniais existentes em Mato Grosso, sobretudo, 79 FOUCAULT, Michel. “Nietzsche, genealogia e a história”. In Microfísikca do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979, p.17. 80 SIQUEIRA, Elizabethe M. “Resumo informativo das atas das reuniões do IHMT, 1919-1971” Revista do IHGMT, 1994, p. 114.
  • 36. 26 buscando dar maior ênfase a grade importância de se entender a historia deste país, a partir do estudo e compreensão da ocupação desta parte da colônia. Neste levantamento, vai ser o patrimônio histórico relacionado à cultura material que vai ganhar visibilidade. Como no destaque dado à construção militar efetuada pela monarquia portuguesa, do Forte Príncipe da Beira. Desta forma, podemos observar que, entre as décadas de 40 e 50, as primeiras políticas e iniciativas preservacionistas do SPHAN, em Mato Grosso, apresentam certa consonância com as diretrizes já adotadas até então pelo órgão em outras partes do país. Ou seja, a predominância em se preocupar com bens de pedra e cal, no caso de Mato Grosso, pedra e cal vinculada a um passado bandeirantizado, representado em edificações da elite católica, governamental e/ou militar. Esta nova lógica de funcionamento do discurso do turismo, articulada com a intenção de se dar destaque também para a importância histórica de Mato Gross, pode ser entendida como uma maneira encontra pelos intelectuais do IHGMT e da elite local, em conjuminar esforços para reiterar a importância de Mato Grosso no cenário mais amplo da história nacional, tanto a partir de sua natureza, como também de sua própria história. Parece que um intelectual/político como Virgilio Correia Filho, vinculado e articulado a uma elite política local, preocupada em consolidar uma identidade para Mato Grosso, já na primeira metade do século XX, tem a noção das possíveis vantagens que os enunciados relacionados ao turismo podem contribuir para as práticas discursivas preocupadas em definir uma identidade para o Estado. Não devemos nos esquecer que, pelo menos desde 1919, ano das comemorações do bi- centenário da cidade de Cuiabá, ou ainda em 1922, quando vão se preocupar em comemorar o primeiro centenário da independência, o IHMT futuro IHGMT, vai ser criado, sob a influência de um sócio itinerante do IHGB – Instituto Histórico e Geográfico do Brasil –, Dr. Eurico de Góes, o qual chega a Cuiabá em 1918. O interessante é percebermos que todas estas iniciativas vão, de certa maneira, coadunar-se aos interesses políticos desta elite local, que constantemente tem sempre o interesse de dominar os sentidos da história, a partir da instauração de uma memória mais sedimentada e cristalizada nos exemplos de seus antepassados, tidos como verdadeiros produtores desta história. Afinal, é muito perigoso para quem exerce o poder, permitir que a história possa vir a ter múltiplos sentidos, oriundos de diferentes exemplos de memória que, em muitas circunstâncias e situações, pode ser totalmente diferente daquela memória evocada e propalada como sendo de todos, pela elite que exerce o poder institucionalizado de Estado.
  • 37. 27 Talvez, sejam por estas razões, que sempre existem estes rituais simbólicos, como as comemorações do bi-centenário, ou da independência, justamente para teatralizar esta memória que interessa a elite governamental, pois as instituições que operacionalizam este poder precisam exercê-lo constantemente, para tornar coerente e articulada a lógica de funcionamento desse poder que, para Foucault, esta pulverizado, permeado, e, ao mesmo tempo, perpassando todos os espaços e saberes dessa sociedade que o autor denomina de disciplinar81 . Esta sociedade disciplinar, pensada e teorizada por Foucault, funciona a partir de uma microfísica do poder que está presente nas: instituições de repressão mais direta, como a polícia e o exército; nos discursos de higienização e organização, emitidos pelos sanitaristas e, futuramente, pelos urbanistas; nos discursos de medicalização da sociedade presentes nas práticas sociais e enunciados dos hospitais e asilos; ou ainda, de toda uma multiplicidade de saberes científico/pedagógicos, dos quais a história enquanto disciplina e a escola enquanto instituição, também estão inseridas. Só para pontuarmos a discussão, nos exemplos da história e da escola, são geralmente a partir das práticas sociais exercidas constantemente nas escolas, e dos enunciados discursivos emitidos pelos professores de história, seja nas series mais elementar, ou até nas universidades, e, principalmente, nestes momentos de comemoração como: do bi-sentenario ou da independência, que podemos compreender certa tentativa de buscar disciplinarizar a memória e construir uma determinada visão da história. Se em 1919, ou 1922, Cuiabá ainda não tinha um sistema escolar quantitativamente suficiente para exercer essa função de disciplinarizar a memória, mas, seguramente, as instituições que existiam procuraram exercer este papel, participando destes rituais simbólicos do bicentenário e das comemorações da independência do país, tão importantes para a teatralização e construção de uma determinada visão da história normalmente ufanista, baseada nos exemplos e biografias de grandes personalidades da elite mato-grossense e do país. Outro aspecto importante para salientarmos sobre estas iniciativas correlacionadas a estes eventos, como: comemorações, criação de instituições, constituição de comissão de pesquisa e levantamentos relacionados à construção de uma determinada história para Cuiabá..., é esta constante vinculação da figura de uma pessoa vinda de outras partes do país, 81 FOUCAUT, M. Microfísica do poder. Organização e Tradução de Roberto Machado. Rio de Janeiro: Edições Graal. 1979;
  • 38. 28 representando outras instituições que já existem nestes outros locais da federação, para ajudar e incentivar a implantação das mesmas em Cuiabá. Parece que existe um esforço no sentido – mesmo em assuntos próprios do passado, como esta construção de uma história e de uma identidade de Cuiabá – de participar, e, também, constituir na cidade estas instituições e todos os aspectos analítico/políticos que as mesmas possibilitam/incentivam, como os textos produzidos pelos intelectuais do IHMT/IHGMT nos seus próprios periódicos e materiais; em livros; jornais da cidade, ou mesmo, de outros locais do país, como os artigos elaborados por Virgilio. Neste sentido, o IHGMT representa a preocupação de se demonstrar que Cuiabá tem a percepção das inovações trazidas pela modernidade, ou, pelo menos, está articulado e atento às transformações já existentes no presente. Simbolizadas não apenas nas novas tecnologias, mas também em novas formas de sociabilidade e organização do tecido social. Ter uma instituição como o IHGMT, significa não apenas estar preocupado em respeitar e dar a devida importância ao passado, como pensa e descreve Paulo Pitaluga: Em 1918 historiadores e homens de letras de Mato Grosso, preocupados em não deixar passar sem qualquer lembrança a data referente aos dois séculos de Cuiabá reuniram pequeno grupo e fizeram comissão, com o objetivo de implementar e desenvolver, junto à sociedade cuiabana e às autoridades constituídas a idéia da comemoração do bi-centenário da Capital do Estado. (...)82 Significa, sobretudo, constituir um novo espaço de poder/saber relacionado à intenção de se inventar/construir, a partir de uma fala competente/autorizada, uma determinada leitura da história de Mato Grosso, que normalmente privilegia as memórias de um passado bandeirantizado e repleto de exemplos heróicos. Não custa lembrarmos que ainda hoje existe certa ressonância desta interpretação da historia nas publicações do IHGMT, pois o próprio Paulo Pitaluga, ao se reportar a esta movimentação de historiadores e homens de letras, para convencerem a sociedade e as autoridades constituídas a respeito da importância do bi- centenario, considera que, (...) Seria uma justa homenagem aos bandeirantes pioneiros que comandados por Pascoal Moreira Cabral, se instalaram as margens do coxipó em princípios do século XVIII. 83 82 COSTA e “SILVA, Paulo Pitaluga.” Fundação “do Instituto Histórico de Mato Grosso”. Revista do IHGMT, p. 205 83 Idem, p. 205.
  • 39. 29 O marco que ainda demarca Esta história bandeirantizada, vivida durante as disputas e negociações territoriais de dois impérios ultramarinos84 , vai adquirir grande visibilidade na construção de todo um arcabouço de memória, sobretudo, em cidades como Cáceres, Corumbá, Cuiabá... Nestas cidades, ao observarmos os nomes de ruas, avenidas, praças, prédios públicos..., podemos perceber os diferentes momentos da invenção de um Estado/Nação – Brasil –, com heróis da monarquia, da república, e inclusive do próprio período colonial, de um tempo “em que Brasil ainda não era Brasil, sendo melhor chamá-lo de América portuguesa, pois como portugueses da América, mais do que brasileiros – designativo dos comerciantes de pau- brasil –, se viam os próprios habitantes do território” 85 ·. Na cidade de Cáceres, por exemplo, no limiar do século XX, e inicio do século XXI, entre os vários ícones/palavras/símbolos86 que constantemente são agenciados pelo discurso identitário, para se definir uma identidade comum ao povo cacerense, seguramente o marco do Jauru, inscreve-se como elemento constante deste arcabouço de memória. Podemos encontrar a sua imagem nos mais diferentes momentos e lugares da cidade: nos folders de divulgação das pousadas; no layout dos programas televisivos da cidade; em banires de publicidade; nas imagens, afixadas em diferentes tipos de estabelecimentos comerciais; na logomarca de diferentes administrações publicas; na mochila e na camisa, doadas aos alunos da rede pública municipal; nos slogans de propaganda política...; enfim, sem qualquer preocupação em exagerar, podemos perceber que o marco do Jauru ainda demarca os contornos de uma história de Cáceres. É como se este elemento da cultura material, proveniente da negociação metropolitana de dois impérios, mesmo após sua superação diplomática, continuasse a marcar e delimitar um território, agora balizado por uma nova catografia. Uma cartografia dos sentidos, uma cartografia da memória, uma cartografia das identidades. Talvez uma cartografia dos sentimentos, da noção de pertencimento, da sensação de memória em comum. O marco acaba se constituindo como uma espécie de curinga, neste baralho de cartas memoráveis, porque serve para qualquer tipo de configuração no jogo do discurso identitário. Sua imagem é agenciada não apenas pelo poder político, mas também pelo capital: 84 Portugal e Espanha em suas constates disputas territoriais no novo mundo. 85 SOUZA. Laura de Mello e. Aspectos da Historiografia da Cultura sobre Brasil Colônia, In: FREITAS, Marco Cezar. Historiografia Brasileira em Perspectiva. São Paulo: Editora Contexto, 2003, p. 39 86 Casa Dulce, Catedral, Viola de cocho, Casa Rosada, Tuiuiú, vitória regia, jacaré, bicicleta...
  • 40. 30 Imagem existente na parte interna da loja de eletrodomésticos: City Lar 2008 Pintura feita no muro da Câmara Municipal de Cáceres 2009 O jogo/discurso do turismo, mesmo partindo de um quite de imagens/cartas mais relacionado à natureza, como o tuiuiú, a onça pintada, o jacaré, o Rio Paraguai, ou de forma mais ampla, do conjunto de imagens atribuídas normalmente ao pantanal, acaba, porém, também fazendo uso do curinga – marco do Jauru –, na organização de seu jogo discursivo, ou seja, mesmo nos enunciados da fala ecológica, correlacionada ao interesse de evidenciar a fauna e a flora local, podemos encontrar a presença ou, mais propriamente, a mistura dos traços da memória identitária concernentes ao marco. Ao percebermos essa constante simbólica, com toda a preocupação em utilizar as imagens do marco do Jauru, em tão diferentes locais e circunstâncias, duas perguntas ou, melhor, duas problemáticas, acabaram se constituindo como importantes questões desta dissertação. Primeiro, por que essa amplitude de possibilidades de uso? Segundo, e talvez principal, quando e, sobretudo, como essa imagem do marco passa a adquirir essa nova conotação simbólica? Ou seja, como de um simples elemento/resquício da cultura material de uma cartografia antiga87 , metamorfoseia-se em símbolo cultural, quase mesmo, num elemento da cultura imaterial, transformando-se assim em um sofisticado curinga simbólico. A primeira pergunta pode ser respondida ao observarmos que o marco está articulado, misturado e impregnado pela lógica de funcionamento do discurso das identidades, dentro de uma relação de poder e saber que busca disciplinar uma determinada memória para cidade. Memória interessada em construir uma historia eivada pelo discurso grandiloqüente de um passado bandeirantizado. 87 Geografia de general, ou melhor, de Capitão General e Governador do século XVIII, que busca esquadrinhar e ocupara as terras do novo mundo, dentro da lógica bem própria do UTI POSSIDETIS.
  • 41. 31 Ao fazermos um estudo genealógico de quando e como o marco se tornou um importante elemento deste discurso identitário, chegamos a conclusão que a gênese desta transformação está situada no final da década de 70, mais propriamente, entre os anos de 77 e 78, quando vai surgir, também em Cáceres, todo um interesse de se construir uma história da cidade baseada em fragmentos de memória pertencentes a um segmento social – elite econômica e política – da população cacerense. Em 1977 podemos ver já estampada – no cabeçário do recente jornal criado na cidade88 – a figura do marco do Jauru, mas talvez mais importante ainda, seja percebermos que a figura que ganhou o concurso para o Distintivo Do Bicentenário, tenha também a presença do marco do Jauru, inclusive, o vencedor deste concurso, Wandyonon Vanini Filho teve toda uma preocupação em explicar os sentidos da imagem: 88 Correio Cacerense, jornal criado no ano de 1977.