SlideShare uma empresa Scribd logo
1 de 11
1




        Errorragia


Contos, Crônica e Inseguranças
2
3




     Roberto Muniz Dias




        Errorragia


Contos, Crônica e Inseguranças




              1ª
            Edição




      Edições do Autor
4

2011
5




Give a man a mask, and he’ll tell you the truth.
                                 (Oscar Wilde)
6
7




                                     Sumário



O botão interno ................................................. 9
Amor a primeira vista .......................................13
A vida de um homem quando artista.................17
Joana de Clarice ...............................................36
O perfume do ramalhete de flores
secas...................................................................50
Solidão ..............................................................53
O desgaste .........................................................59
O livro peregrino .............................................. 62
Deitado na sarjeta,mas olhando para as
estrelas...............................................................73
A música que foi feita ........................................79
O travesseiro da rua ..........................................81
Qual seu pecado?...............................................85
Como pode ser a saudade...................................88
Amor mortal......................................................90
Vidas passadas, vidas futuras.............................94
Quem tem medo de ficar sozinho? .....................96
Os pés unidos pelo sol.........................................99
O novo Pinóquio...............................................103
O passado é uma selva de horrores...................105
8



O botão interno

Ele acionou o botão do lado esquerdo. O vidro baixou e o
som poderia ser ouvido pelas paredes externas da
natureza ao redor. Mas o que ele queria era que os outros
carros o ouvissemele cantar a música. Falava sobre um
velho romântico. Coisa que não existia mais; coisa que
ele pensava intimamente, uma vez que ninguém prestava
atenção em seu entusiasmo. Cantava com a perfeita
dicção, com a perfeita entonação, tanto que sua voz se
confundia com a da música original. Mas era apenas
gozo dele ouvir sobre si mesmo. Aquele último beijo que
deu, dizendo que seria a derradeira tentativa para a
reconciliação, ainda teve tempo para pensar nessa
alternativa sem, contudo, jogar tudo para o alto. Se
pensasse assim não seria mais o romântico, pois deveria
dar tempo ao relacionamento de muitos anos. E seria
difícil começar a raciocinar assim, perdendo tudo que
tinha; e tudo o que havia sobrado era sua alcunha de
último romântico. Por essa razão não poderia deixar de
lado essa esperança. Sabia longinquamente que não
sobreviveria sem a última noção de si como homem em
extinção. Preferia repetir seu ritmo normal, já conhecido-
mesmo que os outros não ouvissem-, mas deveria seguir
a canção até o final. Era tudo o que sabia. Não importava
a audiência lá fora ou os vidros fechados; cabia-lhe o
momento de sua convicção.
A música continuava a respeito daquele seu jeito. “Se eu
soubesse do resultado, você teria certamente ganhado.”
Continuava sua canção tentando entender a letra criada
para ele. O resultado seria provavelmente alterado se ele
9

soubesse que de nada valeria sua inclinação para esta
moda retrógrada: guardar cartas de amor terminado; criar
expectativas depois de sonhos; esperar ao invés de agir;
deixar a lágrima sair sem esforço apropriado. Este estado
de agora, de total indefinição do seu rumo; com as mãos
na direção sem saber de seu destino, cantar por saber que
se reafirma sua condição de velho, de inexistência real.
Se os vidros se abriam, se a música ecoou para fora de
seu mundo, se cantava em harmonia com a melodia, por
que parecia um carro em controle remoto? Por que sentia
um pouco sozinho em meio a multidão de carros? E por
que se sentia invisível? Pensou por algum momento que
o carro poderia muito bem se controlar. Ele não estava
ali. Talvez se inventasse outro dele, uma outra cópia ao
revés; colocando pra fora seu interior como se a feiúra se
tornasse algo visivelmente bonito, real. Pensava que seus
intestinos chamariam mais a atenção se entoassem aquela
música em ironia pura, inaugurando uma percepção de si
que nunca conhecera. E num instante, começou a se
imaginar um grande intestino cheio de gases e fezes. Não
se preocupou com a abertura dos vidros ou com a falta de
beleza em si, estava em sessão com outro dele. Sentia-se
visto por todos os olhares e já não se preocupava com a
música solitária. Esquecera a letra e se dispôs a dar um
rumo diferente. Rumava ao cume da ponte levadiça;
rumava em direção ao término de alguma coisa, talvez
fosse ele mesmo. Então mudou o curso, mas agora não
necessariamente aquele grande intestino e sim um
homem mais altivo, mais reflexivo; como se pudesse
correr o mundo em qualquer sentido.
Passou a primeira, a segunda...alçou voo em direção ao
céu como se pudesse alcançar as estrelas adormecidas.
10

Passou por nuvens claras. Não havia tribulação da alma.
Parecia jato em direção tranqüila em sua missão, sem a
preocupação da guerra e dos alvos. Ele seguia sua função
apenas admirando a pequenez da humanidade lá de
baixo. Olhando a grandeza da natureza não julgadora;
sentindo ares mais rarefeitos, a pressão sanguinea
alterada, um momento mágico de gozo insólito. E sendo
jato, atingia seu destino mais rapidamente e não se
preocupava agora com os outros. Lá debaixo, ele era
visto como grande pássaro, talvez algo inimaginável,
longe, inalcançável e não mais se sentia aquele cantor
anônimo, imperceptível. E nesse impulso para o alto,
sentiu que podia voar com turbinas próprias. Ele acionou
o botão direito. O assento lançou-se ao ar, deixando pra
trás a grande máquina imaginária. Agora as mãos não
tinham forma para agarrar; elas se amoldavam- como seu
corpo- ao ar que novamente o rodeava. Seu corpo se
lançou diante da imensidão. O momento era de pura
interação com a grandeza da natureza. Podia ser agora
um cometa, uma estrela ou um grande planeta de
encontro a terra. Uma pedra pesada, o fardo de outrora
tomou de conta de seu pensamento; como se pudesse
voltar aquele estágio de antes. Ele não queria perder as
asas do infinito. Seu corpo desejava ver mais estrelas;
queria sentir-se planeta grande. Mas seu coração se
apequenava na condição de homem simples novamente.
Aquele que estava com as mãos na direção de tudo,
porém sem sentido de si. Então o seu peso se
transformava em planeta, júpiter- o maior e mais pesado
dos planetas conhecidos. E seu corpo naturalmente se
ampliava do tamanho de seu desejo. Afastava-se ainda
mais da máquina voadora deixada atrás. Seu corpo se
11

alinhava no centro das coisas. Ele se avolumava com
terra, poeira, história cósmica. E de repente se imaginava
um planeta. As estrelas pequenas se alinhavam em torno
dele. Parecia uma grande flor envolta das abelhas
polinizadoras. E os grandes astros menores a lhe bajular
como abelhas sedentas. Arrodeavam-no com seu
zumzumzum esperando que seu capricho fosse
desorientado e que deixasse de lado seu poder de atrair os
menores. Nada o tirava do poder que alcançara. Logo
estavam lá, todos aos seus pés como se fossem carros
desordenados a prestar atenção na sua canção mais nova.
Nova música foi criada para ele. Mudou o CD do
aparelho e começou a cantarolar músicas altivas. “Vou
deletar seus arquivos, e recomeçar a vida.” E de repente,
abre mais uma vez o vidro e lentamente ele desce abrindo
o espaço para o novo contato com a natureza. Sua
experiência agora era de um homem renovado. O ar vem
com vida e os olhares não mais se importunam com sua
ausência. Ele sabe para onde seguir de agora em diante.
Ele não precisa de indulgência da plateia de motoristas.
Toda vez que sentisse meio destoante consigo e com os
outros, ele apenas apertava o botão da sua imaginação e
acionava um novo espaço no seu cotidiano, podia ser um
cantor anônimo, um planeta gigante, um flor carnívora,
um grande intestino descoberto ou o último romântico.

Mais conteúdo relacionado

Mais procurados (20)

Luis de camões 1
Luis de camões 1Luis de camões 1
Luis de camões 1
 
Eternizadas setembro__10
Eternizadas  setembro__10Eternizadas  setembro__10
Eternizadas setembro__10
 
Luisdecames1
Luisdecames1 Luisdecames1
Luisdecames1
 
Eternizadas julho__25
Eternizadas  julho__25Eternizadas  julho__25
Eternizadas julho__25
 
Os pobres raul brandao
Os pobres   raul brandaoOs pobres   raul brandao
Os pobres raul brandao
 
Camoes Lirica
Camoes LiricaCamoes Lirica
Camoes Lirica
 
A lírica de camões medida nova
A lírica de camões   medida novaA lírica de camões   medida nova
A lírica de camões medida nova
 
A formosura desta fresca serra
A formosura desta fresca serraA formosura desta fresca serra
A formosura desta fresca serra
 
Lírica camoniana
Lírica camonianaLírica camoniana
Lírica camoniana
 
Folhas caidas
Folhas caidasFolhas caidas
Folhas caidas
 
"Não sei se é sonhe, se realidade"
"Não sei se é sonhe, se realidade""Não sei se é sonhe, se realidade"
"Não sei se é sonhe, se realidade"
 
Duas cidades
Duas cidadesDuas cidades
Duas cidades
 
Meio terno, meio demolidor
Meio terno, meio demolidorMeio terno, meio demolidor
Meio terno, meio demolidor
 
Aquela triste e leda madrugada
Aquela triste e leda madrugadaAquela triste e leda madrugada
Aquela triste e leda madrugada
 
Poemas de Bocage
Poemas de Bocage Poemas de Bocage
Poemas de Bocage
 
Camões sonetos
Camões sonetosCamões sonetos
Camões sonetos
 
Poemas de vários autores
Poemas de vários autoresPoemas de vários autores
Poemas de vários autores
 
Eternizadas dez__16
Eternizadas  dez__16Eternizadas  dez__16
Eternizadas dez__16
 
Quando o Sol encoberto vai Mostrando - Sonetos de Camões
Quando o Sol encoberto vai Mostrando - Sonetos de CamõesQuando o Sol encoberto vai Mostrando - Sonetos de Camões
Quando o Sol encoberto vai Mostrando - Sonetos de Camões
 
Camões
CamõesCamões
Camões
 

Destaque

ANÉCDOTA DEL HIJO DE MAHATMA GANDHI
ANÉCDOTA DEL HIJO DE MAHATMA GANDHIANÉCDOTA DEL HIJO DE MAHATMA GANDHI
ANÉCDOTA DEL HIJO DE MAHATMA GANDHID Jennifer Castillo
 
Pesquisa Ipespe Para Presidente
Pesquisa Ipespe Para PresidentePesquisa Ipespe Para Presidente
Pesquisa Ipespe Para PresidentePierre Lucena
 
Coluna do Senador Aécio Neves da Folha - Energia
Coluna do Senador Aécio Neves da Folha - EnergiaColuna do Senador Aécio Neves da Folha - Energia
Coluna do Senador Aécio Neves da Folha - EnergiaJúlia Dutra
 
Volta Ao Mundo Em Fotografia
Volta Ao Mundo Em FotografiaVolta Ao Mundo Em Fotografia
Volta Ao Mundo Em Fotografiaverdevila
 
Coluna do Senador Aécio Neves da Folha - Eleições e economia
Coluna do Senador Aécio Neves da Folha - Eleições e economiaColuna do Senador Aécio Neves da Folha - Eleições e economia
Coluna do Senador Aécio Neves da Folha - Eleições e economiaJúlia Dutra
 
Coluna do Senador Aécio Neves da Folha - Ladeira abaixo
Coluna do Senador Aécio Neves da Folha - Ladeira abaixoColuna do Senador Aécio Neves da Folha - Ladeira abaixo
Coluna do Senador Aécio Neves da Folha - Ladeira abaixoJúlia Dutra
 
Novo Regime de Contratações Militares
Novo Regime de Contratações MilitaresNovo Regime de Contratações Militares
Novo Regime de Contratações MilitaresDenis Gamell
 
O PAPEL DAS ESCOLAS.
O PAPEL DAS ESCOLAS.O PAPEL DAS ESCOLAS.
O PAPEL DAS ESCOLAS.Wilma Barbosa
 

Destaque (20)

Nota Oficial
Nota OficialNota Oficial
Nota Oficial
 
Jkesley
JkesleyJkesley
Jkesley
 
ANÉCDOTA DEL HIJO DE MAHATMA GANDHI
ANÉCDOTA DEL HIJO DE MAHATMA GANDHIANÉCDOTA DEL HIJO DE MAHATMA GANDHI
ANÉCDOTA DEL HIJO DE MAHATMA GANDHI
 
Egito antigo
Egito antigoEgito antigo
Egito antigo
 
Pesquisa Ipespe Para Presidente
Pesquisa Ipespe Para PresidentePesquisa Ipespe Para Presidente
Pesquisa Ipespe Para Presidente
 
O desembestado pronto
O desembestado prontoO desembestado pronto
O desembestado pronto
 
Governo sarney
Governo sarney Governo sarney
Governo sarney
 
Coluna do Senador Aécio Neves da Folha - Energia
Coluna do Senador Aécio Neves da Folha - EnergiaColuna do Senador Aécio Neves da Folha - Energia
Coluna do Senador Aécio Neves da Folha - Energia
 
Culto de posse
Culto de posseCulto de posse
Culto de posse
 
Plano de aula 8 prova
Plano de aula 8  provaPlano de aula 8  prova
Plano de aula 8 prova
 
Volta Ao Mundo Em Fotografia
Volta Ao Mundo Em FotografiaVolta Ao Mundo Em Fotografia
Volta Ao Mundo Em Fotografia
 
Coluna do Senador Aécio Neves da Folha - Eleições e economia
Coluna do Senador Aécio Neves da Folha - Eleições e economiaColuna do Senador Aécio Neves da Folha - Eleições e economia
Coluna do Senador Aécio Neves da Folha - Eleições e economia
 
Follarasca ux
Follarasca uxFollarasca ux
Follarasca ux
 
éTica
éTicaéTica
éTica
 
Coluna do Senador Aécio Neves da Folha - Ladeira abaixo
Coluna do Senador Aécio Neves da Folha - Ladeira abaixoColuna do Senador Aécio Neves da Folha - Ladeira abaixo
Coluna do Senador Aécio Neves da Folha - Ladeira abaixo
 
Novo Regime de Contratações Militares
Novo Regime de Contratações MilitaresNovo Regime de Contratações Militares
Novo Regime de Contratações Militares
 
Smm Gazeta 13 8pg
Smm Gazeta 13  8pgSmm Gazeta 13  8pg
Smm Gazeta 13 8pg
 
O PAPEL DAS ESCOLAS.
O PAPEL DAS ESCOLAS.O PAPEL DAS ESCOLAS.
O PAPEL DAS ESCOLAS.
 
Leis de atração
Leis de atraçãoLeis de atração
Leis de atração
 
Deus
DeusDeus
Deus
 

Semelhante a Errorragia

E-book O Mosaico dos Raros
E-book O Mosaico dos Raros E-book O Mosaico dos Raros
E-book O Mosaico dos Raros Lara Utzig
 
Acre 4ª edição (agosto, outubro 2014)
Acre 4ª edição (agosto,  outubro 2014)Acre 4ª edição (agosto,  outubro 2014)
Acre 4ª edição (agosto, outubro 2014)AMEOPOEMA Editora
 
Revista subversa 6ª ed.
Revista subversa 6ª ed.Revista subversa 6ª ed.
Revista subversa 6ª ed.Canal Subversa
 
Semear, Resistir, Colher.
Semear, Resistir, Colher.Semear, Resistir, Colher.
Semear, Resistir, Colher.Sílvio Mendes
 
Folhetim Literário Desiderata n 2 - O Amanhã
Folhetim Literário Desiderata n 2 - O AmanhãFolhetim Literário Desiderata n 2 - O Amanhã
Folhetim Literário Desiderata n 2 - O AmanhãJosé Feldman
 
Revista Outras Farpas [terceira edição]
Revista Outras Farpas [terceira edição]Revista Outras Farpas [terceira edição]
Revista Outras Farpas [terceira edição]Acton Lobo
 
Visita de um Amigo
Visita de um AmigoVisita de um Amigo
Visita de um AmigoEditora EME
 
Unic 01 - camoes sonetos-2018-pr wsf
Unic 01 - camoes sonetos-2018-pr wsfUnic 01 - camoes sonetos-2018-pr wsf
Unic 01 - camoes sonetos-2018-pr wsfWelington Fernandes
 
Pés no chão e sonhos no ar - Marcos Samuel Costa
Pés no chão e sonhos no ar - Marcos Samuel Costa Pés no chão e sonhos no ar - Marcos Samuel Costa
Pés no chão e sonhos no ar - Marcos Samuel Costa Marcos Costa
 
Modernismo poesia - 2.a fase - Ose
Modernismo   poesia - 2.a fase - OseModernismo   poesia - 2.a fase - Ose
Modernismo poesia - 2.a fase - OseAndré Damázio
 
Acre004ago set-outde2014e-book-140924131458-phpapp01(1)
Acre004ago set-outde2014e-book-140924131458-phpapp01(1)Acre004ago set-outde2014e-book-140924131458-phpapp01(1)
Acre004ago set-outde2014e-book-140924131458-phpapp01(1)Ana Fonseca
 
Acre 004 (ago set-out de 2014) e-book revista de arte e poesia em geral circ...
Acre 004 (ago set-out de 2014)  e-book revista de arte e poesia em geral circ...Acre 004 (ago set-out de 2014)  e-book revista de arte e poesia em geral circ...
Acre 004 (ago set-out de 2014) e-book revista de arte e poesia em geral circ...AMEOPOEMA Editora
 

Semelhante a Errorragia (20)

E-book O Mosaico dos Raros
E-book O Mosaico dos Raros E-book O Mosaico dos Raros
E-book O Mosaico dos Raros
 
Acre 4ª edição (agosto, outubro 2014)
Acre 4ª edição (agosto,  outubro 2014)Acre 4ª edição (agosto,  outubro 2014)
Acre 4ª edição (agosto, outubro 2014)
 
Cortazar
CortazarCortazar
Cortazar
 
Uma lua de urano
Uma lua de uranoUma lua de urano
Uma lua de urano
 
Claro enigma
Claro enigmaClaro enigma
Claro enigma
 
Revista subversa 6ª ed.
Revista subversa 6ª ed.Revista subversa 6ª ed.
Revista subversa 6ª ed.
 
Semear, Resistir, Colher.
Semear, Resistir, Colher.Semear, Resistir, Colher.
Semear, Resistir, Colher.
 
Folhetim Literário Desiderata n 2 - O Amanhã
Folhetim Literário Desiderata n 2 - O AmanhãFolhetim Literário Desiderata n 2 - O Amanhã
Folhetim Literário Desiderata n 2 - O Amanhã
 
Revista Outras Farpas [terceira edição]
Revista Outras Farpas [terceira edição]Revista Outras Farpas [terceira edição]
Revista Outras Farpas [terceira edição]
 
Poemas - astronomia
Poemas - astronomiaPoemas - astronomia
Poemas - astronomia
 
Ameopoema 45
Ameopoema 45Ameopoema 45
Ameopoema 45
 
Visita de um Amigo
Visita de um AmigoVisita de um Amigo
Visita de um Amigo
 
Unic 01 - camoes sonetos-2018-pr wsf
Unic 01 - camoes sonetos-2018-pr wsfUnic 01 - camoes sonetos-2018-pr wsf
Unic 01 - camoes sonetos-2018-pr wsf
 
Conto
ContoConto
Conto
 
Pés no chão e sonhos no ar - Marcos Samuel Costa
Pés no chão e sonhos no ar - Marcos Samuel Costa Pés no chão e sonhos no ar - Marcos Samuel Costa
Pés no chão e sonhos no ar - Marcos Samuel Costa
 
Projeto rosa e lilás 2º d
Projeto rosa e lilás   2º dProjeto rosa e lilás   2º d
Projeto rosa e lilás 2º d
 
Modernismo poesia - 2.a fase - Ose
Modernismo   poesia - 2.a fase - OseModernismo   poesia - 2.a fase - Ose
Modernismo poesia - 2.a fase - Ose
 
Acre004ago set-outde2014e-book-140924131458-phpapp01(1)
Acre004ago set-outde2014e-book-140924131458-phpapp01(1)Acre004ago set-outde2014e-book-140924131458-phpapp01(1)
Acre004ago set-outde2014e-book-140924131458-phpapp01(1)
 
Acre 004 (ago set-out de 2014) e-book revista de arte e poesia em geral circ...
Acre 004 (ago set-out de 2014)  e-book revista de arte e poesia em geral circ...Acre 004 (ago set-out de 2014)  e-book revista de arte e poesia em geral circ...
Acre 004 (ago set-out de 2014) e-book revista de arte e poesia em geral circ...
 
Sonetos (Camões) UNICAMP
Sonetos (Camões) UNICAMPSonetos (Camões) UNICAMP
Sonetos (Camões) UNICAMP
 

Último

Boas práticas de programação com Object Calisthenics
Boas práticas de programação com Object CalisthenicsBoas práticas de programação com Object Calisthenics
Boas práticas de programação com Object CalisthenicsDanilo Pinotti
 
ATIVIDADE 1 - GCOM - GESTÃO DA INFORMAÇÃO - 54_2024.docx
ATIVIDADE 1 - GCOM - GESTÃO DA INFORMAÇÃO - 54_2024.docxATIVIDADE 1 - GCOM - GESTÃO DA INFORMAÇÃO - 54_2024.docx
ATIVIDADE 1 - GCOM - GESTÃO DA INFORMAÇÃO - 54_2024.docx2m Assessoria
 
ATIVIDADE 1 - LOGÍSTICA EMPRESARIAL - 52_2024.docx
ATIVIDADE 1 - LOGÍSTICA EMPRESARIAL - 52_2024.docxATIVIDADE 1 - LOGÍSTICA EMPRESARIAL - 52_2024.docx
ATIVIDADE 1 - LOGÍSTICA EMPRESARIAL - 52_2024.docx2m Assessoria
 
ATIVIDADE 1 - ESTRUTURA DE DADOS II - 52_2024.docx
ATIVIDADE 1 - ESTRUTURA DE DADOS II - 52_2024.docxATIVIDADE 1 - ESTRUTURA DE DADOS II - 52_2024.docx
ATIVIDADE 1 - ESTRUTURA DE DADOS II - 52_2024.docx2m Assessoria
 
ATIVIDADE 1 - CUSTOS DE PRODUÇÃO - 52_2024.docx
ATIVIDADE 1 - CUSTOS DE PRODUÇÃO - 52_2024.docxATIVIDADE 1 - CUSTOS DE PRODUÇÃO - 52_2024.docx
ATIVIDADE 1 - CUSTOS DE PRODUÇÃO - 52_2024.docx2m Assessoria
 
Luís Kitota AWS Discovery Day Ka Solution.pdf
Luís Kitota AWS Discovery Day Ka Solution.pdfLuís Kitota AWS Discovery Day Ka Solution.pdf
Luís Kitota AWS Discovery Day Ka Solution.pdfLuisKitota
 
Padrões de Projeto: Proxy e Command com exemplo
Padrões de Projeto: Proxy e Command com exemploPadrões de Projeto: Proxy e Command com exemplo
Padrões de Projeto: Proxy e Command com exemploDanilo Pinotti
 
Programação Orientada a Objetos - 4 Pilares.pdf
Programação Orientada a Objetos - 4 Pilares.pdfProgramação Orientada a Objetos - 4 Pilares.pdf
Programação Orientada a Objetos - 4 Pilares.pdfSamaraLunas
 
ATIVIDADE 1 - SISTEMAS DISTRIBUÍDOS E REDES - 52_2024.docx
ATIVIDADE 1 - SISTEMAS DISTRIBUÍDOS E REDES - 52_2024.docxATIVIDADE 1 - SISTEMAS DISTRIBUÍDOS E REDES - 52_2024.docx
ATIVIDADE 1 - SISTEMAS DISTRIBUÍDOS E REDES - 52_2024.docx2m Assessoria
 

Último (9)

Boas práticas de programação com Object Calisthenics
Boas práticas de programação com Object CalisthenicsBoas práticas de programação com Object Calisthenics
Boas práticas de programação com Object Calisthenics
 
ATIVIDADE 1 - GCOM - GESTÃO DA INFORMAÇÃO - 54_2024.docx
ATIVIDADE 1 - GCOM - GESTÃO DA INFORMAÇÃO - 54_2024.docxATIVIDADE 1 - GCOM - GESTÃO DA INFORMAÇÃO - 54_2024.docx
ATIVIDADE 1 - GCOM - GESTÃO DA INFORMAÇÃO - 54_2024.docx
 
ATIVIDADE 1 - LOGÍSTICA EMPRESARIAL - 52_2024.docx
ATIVIDADE 1 - LOGÍSTICA EMPRESARIAL - 52_2024.docxATIVIDADE 1 - LOGÍSTICA EMPRESARIAL - 52_2024.docx
ATIVIDADE 1 - LOGÍSTICA EMPRESARIAL - 52_2024.docx
 
ATIVIDADE 1 - ESTRUTURA DE DADOS II - 52_2024.docx
ATIVIDADE 1 - ESTRUTURA DE DADOS II - 52_2024.docxATIVIDADE 1 - ESTRUTURA DE DADOS II - 52_2024.docx
ATIVIDADE 1 - ESTRUTURA DE DADOS II - 52_2024.docx
 
ATIVIDADE 1 - CUSTOS DE PRODUÇÃO - 52_2024.docx
ATIVIDADE 1 - CUSTOS DE PRODUÇÃO - 52_2024.docxATIVIDADE 1 - CUSTOS DE PRODUÇÃO - 52_2024.docx
ATIVIDADE 1 - CUSTOS DE PRODUÇÃO - 52_2024.docx
 
Luís Kitota AWS Discovery Day Ka Solution.pdf
Luís Kitota AWS Discovery Day Ka Solution.pdfLuís Kitota AWS Discovery Day Ka Solution.pdf
Luís Kitota AWS Discovery Day Ka Solution.pdf
 
Padrões de Projeto: Proxy e Command com exemplo
Padrões de Projeto: Proxy e Command com exemploPadrões de Projeto: Proxy e Command com exemplo
Padrões de Projeto: Proxy e Command com exemplo
 
Programação Orientada a Objetos - 4 Pilares.pdf
Programação Orientada a Objetos - 4 Pilares.pdfProgramação Orientada a Objetos - 4 Pilares.pdf
Programação Orientada a Objetos - 4 Pilares.pdf
 
ATIVIDADE 1 - SISTEMAS DISTRIBUÍDOS E REDES - 52_2024.docx
ATIVIDADE 1 - SISTEMAS DISTRIBUÍDOS E REDES - 52_2024.docxATIVIDADE 1 - SISTEMAS DISTRIBUÍDOS E REDES - 52_2024.docx
ATIVIDADE 1 - SISTEMAS DISTRIBUÍDOS E REDES - 52_2024.docx
 

Errorragia

  • 1. 1 Errorragia Contos, Crônica e Inseguranças
  • 2. 2
  • 3. 3 Roberto Muniz Dias Errorragia Contos, Crônica e Inseguranças 1ª Edição Edições do Autor
  • 5. 5 Give a man a mask, and he’ll tell you the truth. (Oscar Wilde)
  • 6. 6
  • 7. 7 Sumário O botão interno ................................................. 9 Amor a primeira vista .......................................13 A vida de um homem quando artista.................17 Joana de Clarice ...............................................36 O perfume do ramalhete de flores secas...................................................................50 Solidão ..............................................................53 O desgaste .........................................................59 O livro peregrino .............................................. 62 Deitado na sarjeta,mas olhando para as estrelas...............................................................73 A música que foi feita ........................................79 O travesseiro da rua ..........................................81 Qual seu pecado?...............................................85 Como pode ser a saudade...................................88 Amor mortal......................................................90 Vidas passadas, vidas futuras.............................94 Quem tem medo de ficar sozinho? .....................96 Os pés unidos pelo sol.........................................99 O novo Pinóquio...............................................103 O passado é uma selva de horrores...................105
  • 8. 8 O botão interno Ele acionou o botão do lado esquerdo. O vidro baixou e o som poderia ser ouvido pelas paredes externas da natureza ao redor. Mas o que ele queria era que os outros carros o ouvissemele cantar a música. Falava sobre um velho romântico. Coisa que não existia mais; coisa que ele pensava intimamente, uma vez que ninguém prestava atenção em seu entusiasmo. Cantava com a perfeita dicção, com a perfeita entonação, tanto que sua voz se confundia com a da música original. Mas era apenas gozo dele ouvir sobre si mesmo. Aquele último beijo que deu, dizendo que seria a derradeira tentativa para a reconciliação, ainda teve tempo para pensar nessa alternativa sem, contudo, jogar tudo para o alto. Se pensasse assim não seria mais o romântico, pois deveria dar tempo ao relacionamento de muitos anos. E seria difícil começar a raciocinar assim, perdendo tudo que tinha; e tudo o que havia sobrado era sua alcunha de último romântico. Por essa razão não poderia deixar de lado essa esperança. Sabia longinquamente que não sobreviveria sem a última noção de si como homem em extinção. Preferia repetir seu ritmo normal, já conhecido- mesmo que os outros não ouvissem-, mas deveria seguir a canção até o final. Era tudo o que sabia. Não importava a audiência lá fora ou os vidros fechados; cabia-lhe o momento de sua convicção. A música continuava a respeito daquele seu jeito. “Se eu soubesse do resultado, você teria certamente ganhado.” Continuava sua canção tentando entender a letra criada para ele. O resultado seria provavelmente alterado se ele
  • 9. 9 soubesse que de nada valeria sua inclinação para esta moda retrógrada: guardar cartas de amor terminado; criar expectativas depois de sonhos; esperar ao invés de agir; deixar a lágrima sair sem esforço apropriado. Este estado de agora, de total indefinição do seu rumo; com as mãos na direção sem saber de seu destino, cantar por saber que se reafirma sua condição de velho, de inexistência real. Se os vidros se abriam, se a música ecoou para fora de seu mundo, se cantava em harmonia com a melodia, por que parecia um carro em controle remoto? Por que sentia um pouco sozinho em meio a multidão de carros? E por que se sentia invisível? Pensou por algum momento que o carro poderia muito bem se controlar. Ele não estava ali. Talvez se inventasse outro dele, uma outra cópia ao revés; colocando pra fora seu interior como se a feiúra se tornasse algo visivelmente bonito, real. Pensava que seus intestinos chamariam mais a atenção se entoassem aquela música em ironia pura, inaugurando uma percepção de si que nunca conhecera. E num instante, começou a se imaginar um grande intestino cheio de gases e fezes. Não se preocupou com a abertura dos vidros ou com a falta de beleza em si, estava em sessão com outro dele. Sentia-se visto por todos os olhares e já não se preocupava com a música solitária. Esquecera a letra e se dispôs a dar um rumo diferente. Rumava ao cume da ponte levadiça; rumava em direção ao término de alguma coisa, talvez fosse ele mesmo. Então mudou o curso, mas agora não necessariamente aquele grande intestino e sim um homem mais altivo, mais reflexivo; como se pudesse correr o mundo em qualquer sentido. Passou a primeira, a segunda...alçou voo em direção ao céu como se pudesse alcançar as estrelas adormecidas.
  • 10. 10 Passou por nuvens claras. Não havia tribulação da alma. Parecia jato em direção tranqüila em sua missão, sem a preocupação da guerra e dos alvos. Ele seguia sua função apenas admirando a pequenez da humanidade lá de baixo. Olhando a grandeza da natureza não julgadora; sentindo ares mais rarefeitos, a pressão sanguinea alterada, um momento mágico de gozo insólito. E sendo jato, atingia seu destino mais rapidamente e não se preocupava agora com os outros. Lá debaixo, ele era visto como grande pássaro, talvez algo inimaginável, longe, inalcançável e não mais se sentia aquele cantor anônimo, imperceptível. E nesse impulso para o alto, sentiu que podia voar com turbinas próprias. Ele acionou o botão direito. O assento lançou-se ao ar, deixando pra trás a grande máquina imaginária. Agora as mãos não tinham forma para agarrar; elas se amoldavam- como seu corpo- ao ar que novamente o rodeava. Seu corpo se lançou diante da imensidão. O momento era de pura interação com a grandeza da natureza. Podia ser agora um cometa, uma estrela ou um grande planeta de encontro a terra. Uma pedra pesada, o fardo de outrora tomou de conta de seu pensamento; como se pudesse voltar aquele estágio de antes. Ele não queria perder as asas do infinito. Seu corpo desejava ver mais estrelas; queria sentir-se planeta grande. Mas seu coração se apequenava na condição de homem simples novamente. Aquele que estava com as mãos na direção de tudo, porém sem sentido de si. Então o seu peso se transformava em planeta, júpiter- o maior e mais pesado dos planetas conhecidos. E seu corpo naturalmente se ampliava do tamanho de seu desejo. Afastava-se ainda mais da máquina voadora deixada atrás. Seu corpo se
  • 11. 11 alinhava no centro das coisas. Ele se avolumava com terra, poeira, história cósmica. E de repente se imaginava um planeta. As estrelas pequenas se alinhavam em torno dele. Parecia uma grande flor envolta das abelhas polinizadoras. E os grandes astros menores a lhe bajular como abelhas sedentas. Arrodeavam-no com seu zumzumzum esperando que seu capricho fosse desorientado e que deixasse de lado seu poder de atrair os menores. Nada o tirava do poder que alcançara. Logo estavam lá, todos aos seus pés como se fossem carros desordenados a prestar atenção na sua canção mais nova. Nova música foi criada para ele. Mudou o CD do aparelho e começou a cantarolar músicas altivas. “Vou deletar seus arquivos, e recomeçar a vida.” E de repente, abre mais uma vez o vidro e lentamente ele desce abrindo o espaço para o novo contato com a natureza. Sua experiência agora era de um homem renovado. O ar vem com vida e os olhares não mais se importunam com sua ausência. Ele sabe para onde seguir de agora em diante. Ele não precisa de indulgência da plateia de motoristas. Toda vez que sentisse meio destoante consigo e com os outros, ele apenas apertava o botão da sua imaginação e acionava um novo espaço no seu cotidiano, podia ser um cantor anônimo, um planeta gigante, um flor carnívora, um grande intestino descoberto ou o último romântico.