1) O personagem principal aciona um botão em seu carro que abre a janela, permitindo que ele cante uma música sobre um velho romântico.
2) Ele imagina ser um jato voando alto e admirando a natureza de cima.
3) Sua imaginação o leva a se ver como um planeta gigante cercado por estrelas menores.
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Sumário
O botão interno ................................................. 9
Amor a primeira vista .......................................13
A vida de um homem quando artista.................17
Joana de Clarice ...............................................36
O perfume do ramalhete de flores
secas...................................................................50
Solidão ..............................................................53
O desgaste .........................................................59
O livro peregrino .............................................. 62
Deitado na sarjeta,mas olhando para as
estrelas...............................................................73
A música que foi feita ........................................79
O travesseiro da rua ..........................................81
Qual seu pecado?...............................................85
Como pode ser a saudade...................................88
Amor mortal......................................................90
Vidas passadas, vidas futuras.............................94
Quem tem medo de ficar sozinho? .....................96
Os pés unidos pelo sol.........................................99
O novo Pinóquio...............................................103
O passado é uma selva de horrores...................105
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O botão interno
Ele acionou o botão do lado esquerdo. O vidro baixou e o
som poderia ser ouvido pelas paredes externas da
natureza ao redor. Mas o que ele queria era que os outros
carros o ouvissemele cantar a música. Falava sobre um
velho romântico. Coisa que não existia mais; coisa que
ele pensava intimamente, uma vez que ninguém prestava
atenção em seu entusiasmo. Cantava com a perfeita
dicção, com a perfeita entonação, tanto que sua voz se
confundia com a da música original. Mas era apenas
gozo dele ouvir sobre si mesmo. Aquele último beijo que
deu, dizendo que seria a derradeira tentativa para a
reconciliação, ainda teve tempo para pensar nessa
alternativa sem, contudo, jogar tudo para o alto. Se
pensasse assim não seria mais o romântico, pois deveria
dar tempo ao relacionamento de muitos anos. E seria
difícil começar a raciocinar assim, perdendo tudo que
tinha; e tudo o que havia sobrado era sua alcunha de
último romântico. Por essa razão não poderia deixar de
lado essa esperança. Sabia longinquamente que não
sobreviveria sem a última noção de si como homem em
extinção. Preferia repetir seu ritmo normal, já conhecido-
mesmo que os outros não ouvissem-, mas deveria seguir
a canção até o final. Era tudo o que sabia. Não importava
a audiência lá fora ou os vidros fechados; cabia-lhe o
momento de sua convicção.
A música continuava a respeito daquele seu jeito. “Se eu
soubesse do resultado, você teria certamente ganhado.”
Continuava sua canção tentando entender a letra criada
para ele. O resultado seria provavelmente alterado se ele
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soubesse que de nada valeria sua inclinação para esta
moda retrógrada: guardar cartas de amor terminado; criar
expectativas depois de sonhos; esperar ao invés de agir;
deixar a lágrima sair sem esforço apropriado. Este estado
de agora, de total indefinição do seu rumo; com as mãos
na direção sem saber de seu destino, cantar por saber que
se reafirma sua condição de velho, de inexistência real.
Se os vidros se abriam, se a música ecoou para fora de
seu mundo, se cantava em harmonia com a melodia, por
que parecia um carro em controle remoto? Por que sentia
um pouco sozinho em meio a multidão de carros? E por
que se sentia invisível? Pensou por algum momento que
o carro poderia muito bem se controlar. Ele não estava
ali. Talvez se inventasse outro dele, uma outra cópia ao
revés; colocando pra fora seu interior como se a feiúra se
tornasse algo visivelmente bonito, real. Pensava que seus
intestinos chamariam mais a atenção se entoassem aquela
música em ironia pura, inaugurando uma percepção de si
que nunca conhecera. E num instante, começou a se
imaginar um grande intestino cheio de gases e fezes. Não
se preocupou com a abertura dos vidros ou com a falta de
beleza em si, estava em sessão com outro dele. Sentia-se
visto por todos os olhares e já não se preocupava com a
música solitária. Esquecera a letra e se dispôs a dar um
rumo diferente. Rumava ao cume da ponte levadiça;
rumava em direção ao término de alguma coisa, talvez
fosse ele mesmo. Então mudou o curso, mas agora não
necessariamente aquele grande intestino e sim um
homem mais altivo, mais reflexivo; como se pudesse
correr o mundo em qualquer sentido.
Passou a primeira, a segunda...alçou voo em direção ao
céu como se pudesse alcançar as estrelas adormecidas.
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Passou por nuvens claras. Não havia tribulação da alma.
Parecia jato em direção tranqüila em sua missão, sem a
preocupação da guerra e dos alvos. Ele seguia sua função
apenas admirando a pequenez da humanidade lá de
baixo. Olhando a grandeza da natureza não julgadora;
sentindo ares mais rarefeitos, a pressão sanguinea
alterada, um momento mágico de gozo insólito. E sendo
jato, atingia seu destino mais rapidamente e não se
preocupava agora com os outros. Lá debaixo, ele era
visto como grande pássaro, talvez algo inimaginável,
longe, inalcançável e não mais se sentia aquele cantor
anônimo, imperceptível. E nesse impulso para o alto,
sentiu que podia voar com turbinas próprias. Ele acionou
o botão direito. O assento lançou-se ao ar, deixando pra
trás a grande máquina imaginária. Agora as mãos não
tinham forma para agarrar; elas se amoldavam- como seu
corpo- ao ar que novamente o rodeava. Seu corpo se
lançou diante da imensidão. O momento era de pura
interação com a grandeza da natureza. Podia ser agora
um cometa, uma estrela ou um grande planeta de
encontro a terra. Uma pedra pesada, o fardo de outrora
tomou de conta de seu pensamento; como se pudesse
voltar aquele estágio de antes. Ele não queria perder as
asas do infinito. Seu corpo desejava ver mais estrelas;
queria sentir-se planeta grande. Mas seu coração se
apequenava na condição de homem simples novamente.
Aquele que estava com as mãos na direção de tudo,
porém sem sentido de si. Então o seu peso se
transformava em planeta, júpiter- o maior e mais pesado
dos planetas conhecidos. E seu corpo naturalmente se
ampliava do tamanho de seu desejo. Afastava-se ainda
mais da máquina voadora deixada atrás. Seu corpo se
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alinhava no centro das coisas. Ele se avolumava com
terra, poeira, história cósmica. E de repente se imaginava
um planeta. As estrelas pequenas se alinhavam em torno
dele. Parecia uma grande flor envolta das abelhas
polinizadoras. E os grandes astros menores a lhe bajular
como abelhas sedentas. Arrodeavam-no com seu
zumzumzum esperando que seu capricho fosse
desorientado e que deixasse de lado seu poder de atrair os
menores. Nada o tirava do poder que alcançara. Logo
estavam lá, todos aos seus pés como se fossem carros
desordenados a prestar atenção na sua canção mais nova.
Nova música foi criada para ele. Mudou o CD do
aparelho e começou a cantarolar músicas altivas. “Vou
deletar seus arquivos, e recomeçar a vida.” E de repente,
abre mais uma vez o vidro e lentamente ele desce abrindo
o espaço para o novo contato com a natureza. Sua
experiência agora era de um homem renovado. O ar vem
com vida e os olhares não mais se importunam com sua
ausência. Ele sabe para onde seguir de agora em diante.
Ele não precisa de indulgência da plateia de motoristas.
Toda vez que sentisse meio destoante consigo e com os
outros, ele apenas apertava o botão da sua imaginação e
acionava um novo espaço no seu cotidiano, podia ser um
cantor anônimo, um planeta gigante, um flor carnívora,
um grande intestino descoberto ou o último romântico.