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GASTRONOMIA
00 outubro de 2010
GASTRONOMIA
00outubro de 2010
omo no primeiro volume de Em
Busca doTempo Perdido,do francês Marcel Proust,em que conhecemos a ci-
dadezinha de Combray, apresentada ao leitor após seu autor degustar um
bolinho mergulhado numa xícara de chá, a educadora pernambucana Ana
Rita Dantas Suassuna voltou a seu passado para investigar as raízes de sua
terra natal. Ela, porém, não ficou em apenas um único bolinho. Provou cen-
tenas de pratos locais, na longínqua região de São José do Egito, um lugar
árido e discriminado, como a própria define.
Ana Rita percebeu, então, que a culinária moldou a vida do povo sim-
ples, crédulo, forte e obstinado do lugar. O resultado do projeto memorialís-
tico pode ser visto agora no livro“Gastronomia Sertaneja”(Editora Melhora-
mentos, 203 págs.), no qual a autora estuda as raízes da culinária do sertão
e suas relações com os modos de vida da região, que passa quase imper-
ceptível no mapa do estado de Pernambuco.
De volta ao passado
“O projeto nasceu em 2007, durante um encontro com um grupo de
chefs, como Ana Luiza Trajano, do restaurante Brasil a Gosto [localizado em
São Paulo], em que nos dedicávamos a resgatar práticas da gastronomia do
sertão pernambucano. Fiquei incumbida de definir e preparar um cardápio
com esses pratos, que acabaram aparecendo nas mesas nacionais de forma
descaracterizada, pelo uso inadequado de ingredientes e preparações
improvisadas”, conta a autora, que vive em Brasília desde 1972.
Dado o desafio de buscar a culinária perdida do sertão,Ana Rita,aos três
quartos de século, como ela se refere à sua idade, partiu então para sua terra
e fez uma imersão no cenário de sua infância.“Senti-me como se estivesse ao
lado dos meus pais, dos vizinhos, dos pequenos proprietários de terras locais.
Reencontrei-me com a casa que era escola, a oficina de bordado. Lembrei-me
das pessoas locais, como Dedé, cabeça plural, inteligência viva, abraçado a
Chuí e Jacuípe, seus cães de estimação; Berta, aos cinco anos jogando gamão
em igualdade de condições com os adultos;Lula,poeta e repentista astucioso,
sempre baleeira na mão e mexendo com animais;Vera, a mais meiga, dedica-
da vinte e quatro horas a ajudar alguém...”
C
Em busca do
sertão perdido
Livro resgata as tradições culinárias sertanejas e revela
hábitos, costumes, receitas e ingredientes quase esquecidos
Texto ALEXANDRE STAUT
GASTRONOMIA
Acima, mugunzá com mão de vaca, prato típico do
Nordeste, que leva milho e linguiça. Abaixo, coentro,
erva que dá tempero a muitas receitas sertanejas. Na
página ao lado, o tradicional caldo de cabeça de galo
GASTRONOMIA
Este é o tom do livro, que exala cores, perfumes, aromas. Assim, a auto-
ra recompõe e registra o que considera mais representativo para entender
como as pessoas se alimentavam no sertão até os anos 1950, como eram os
produtos no passado, em que condições eram preparados, quais eram os
equipamentos e utensílios na cozinha.“Nesta viagem, compreendi melhor o
quanto as condições socioambientais do sertão, por serem muito fortes,
interferem diretamente no tipo e no modo de preparar os alimentos”,diz Ana
Rita, que ainda ressalta que a seca define a comida do dia a dia do sertanejo.
Ingredientes essenciais
Em 26 capítulos, a autora discorre sobre os alimentos básicos da dieta
local e suas formas de preparo, tudo contextualizado com a cultura e os cos-
tumes do sertão. Literatura de cordel, bibliografia, memórias de família e
até cantigas ajudam a fazer uma importante leitura histórica e antropoló-
gica dos hábitos do semiárido brasileiro.
O feijão, segundo Ana Rita indispensável na alimentação cotidiana do
sertanejo, ganhou um capítulo inteiro. O feijão-de-corda, variedade mais
comum na mesa do sertão, tem entre suas virtudes poder ser armazenado
por um longo período e pode, portanto, ser aproveitado durante os tempos
de seca. Ao relembrar os pratos de sua infância, Ana Rita destaca no livro
versos de repentistas locais.
Quando fala do milho, por exemplo, ela ressalta que este é o alimento
mais versátil da culinária local. “Seus derivados compõem receitas doces e
salgadas apropriadas a qualquer tipo de refeição: café, almoço, jantar, lan-
ches, cuscuz, farinha de milho, fuba [assim mesmo sem acento, uma varia-
ção do conhecido fubá], mugunzá, pipoca...”, comenta a autora. E a galinha,
por exemplo, em tempos de chuva, é comida do cotidiano. Já em tempos de
seca, é para festa. “Isso porque a ave não tem grama e pequenos insetos
para comer durante a seca. Precisa, então, ser alimentada com milho, que é
um alimento primordial na dieta do homem do lugar”, explica Ana Rita.
Centenas de pratos
As receitas do sertão e as histórias a elas ligadas demonstram o quan-
to o binômio seca/inverno está impregnado na alma sertaneja e como isso
interfere nas manifestações culturais e religiosas, na permanência das pes-
soas na terra, nos encontros sociais e na alimentação do povo.“Há no lugar
uma comida saborosa, simples, variada, abundante, democrática. Mas há
também a comida da seca, que é precária, monótona, discriminadora, que
decorre da escassez ou da ausência de chuvas”, explica a autora.
Acima, cuscuz de goma, prato à base de milho, um dos
ingredientes mais presentes na alimentação do sertanejo
GASTRONOMIA
00 outubro de 2010
Prefaciado pelo escritor Ariano Suassuna, primo de Ana Rita, o livro
apresenta mais de 100 receitas que compõem a mesa de famílias,pobres ou
abastadas, embora a autora tenha observado em suas pesquisas que nunca
houve muita diferença entre classes, pois o sertão nunca teve homens ver-
dadeiramente ricos.
Os pratos tradicionais de festas e os do cotidiano são basicamente os
mesmos das diversas camadas sociais do lugar,assim como os hábitos e con-
textos que eles carregam.Atenta à fé cristã no Nordeste,Ana Rita ainda apre-
senta as tradições e os cardápios típicos de festividades como a Semana
Santa,o Natal,a Festa de São João,a Festa de São Pedro e a Festa de Sant’Ana,
em que reinam o cururu, um bolinho de milho; a orelha-de-pau, bolo muito
comum na região; o pé de moleque e a canjica ou curau. Assim, por meio de
festas, de pratos simbólicos, de ingredientes simples, o livro faz um registro
precioso de uma região muitas vezes esquecida pelos brasileiros.
Mesa sertaneja pelo Brasil
Com o uso de ingredientes típicos da região ou com receitas clássicas,
chefs buscam resgatar as tradições da culinária sertaneja, Veja a seguir
alguns bons lugares para provar sabores do sertão.
• Na Cozinha: o chef Carlos Ribeiro se inspira na comida sertaneja para criar
pratos à base de carne de sol, bode, caldo de mocotó, bolo de milho, arroz
de leite de gado salgado, cozido com carne, cuscuz e jerimum com nata,
entre outros que variam no cardápio. Rua Haddock Lobo, 955, Jardins, São
Paulo/SP. Tel. 11 3063-5377.
• Oficina do Sabor: no restaurante comandado por Cesar Santos, há vários
pratos que remetem ao sertão. O chef criou pratos como o jerimum rechea-
do com charque ao coco, carne de sol pernambucana com purê de macaxei-
ra, farofa de jerimum e cheiro-verde e muitos outros. Rua do Amparo, 335,
Cidade Alta, Olinda/PE. Tel. 81 3429-3331.
• Varanda: o chef Auricélio Romão fez um cardápio com ingredientes per-
nambucanos que inclui carne de sol com queijo coalho, manteiga da terra e
banana; e pirão de queijo coalho. Vila do Trinta, Fernando de Noronha/PE.
Tel. 81 3619-1546.
Acima, pirão de cuscuz, acompanhamento feito com
milho e caldo de galinha. Abaixo, abóbora (ou jerimum),
ingrediente usado na culinária do sertão do Nordeste

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  • 1. GASTRONOMIA 00 outubro de 2010 GASTRONOMIA 00outubro de 2010 omo no primeiro volume de Em Busca doTempo Perdido,do francês Marcel Proust,em que conhecemos a ci- dadezinha de Combray, apresentada ao leitor após seu autor degustar um bolinho mergulhado numa xícara de chá, a educadora pernambucana Ana Rita Dantas Suassuna voltou a seu passado para investigar as raízes de sua terra natal. Ela, porém, não ficou em apenas um único bolinho. Provou cen- tenas de pratos locais, na longínqua região de São José do Egito, um lugar árido e discriminado, como a própria define. Ana Rita percebeu, então, que a culinária moldou a vida do povo sim- ples, crédulo, forte e obstinado do lugar. O resultado do projeto memorialís- tico pode ser visto agora no livro“Gastronomia Sertaneja”(Editora Melhora- mentos, 203 págs.), no qual a autora estuda as raízes da culinária do sertão e suas relações com os modos de vida da região, que passa quase imper- ceptível no mapa do estado de Pernambuco. De volta ao passado “O projeto nasceu em 2007, durante um encontro com um grupo de chefs, como Ana Luiza Trajano, do restaurante Brasil a Gosto [localizado em São Paulo], em que nos dedicávamos a resgatar práticas da gastronomia do sertão pernambucano. Fiquei incumbida de definir e preparar um cardápio com esses pratos, que acabaram aparecendo nas mesas nacionais de forma descaracterizada, pelo uso inadequado de ingredientes e preparações improvisadas”, conta a autora, que vive em Brasília desde 1972. Dado o desafio de buscar a culinária perdida do sertão,Ana Rita,aos três quartos de século, como ela se refere à sua idade, partiu então para sua terra e fez uma imersão no cenário de sua infância.“Senti-me como se estivesse ao lado dos meus pais, dos vizinhos, dos pequenos proprietários de terras locais. Reencontrei-me com a casa que era escola, a oficina de bordado. Lembrei-me das pessoas locais, como Dedé, cabeça plural, inteligência viva, abraçado a Chuí e Jacuípe, seus cães de estimação; Berta, aos cinco anos jogando gamão em igualdade de condições com os adultos;Lula,poeta e repentista astucioso, sempre baleeira na mão e mexendo com animais;Vera, a mais meiga, dedica- da vinte e quatro horas a ajudar alguém...” C Em busca do sertão perdido Livro resgata as tradições culinárias sertanejas e revela hábitos, costumes, receitas e ingredientes quase esquecidos Texto ALEXANDRE STAUT GASTRONOMIA Acima, mugunzá com mão de vaca, prato típico do Nordeste, que leva milho e linguiça. Abaixo, coentro, erva que dá tempero a muitas receitas sertanejas. Na página ao lado, o tradicional caldo de cabeça de galo
  • 2. GASTRONOMIA Este é o tom do livro, que exala cores, perfumes, aromas. Assim, a auto- ra recompõe e registra o que considera mais representativo para entender como as pessoas se alimentavam no sertão até os anos 1950, como eram os produtos no passado, em que condições eram preparados, quais eram os equipamentos e utensílios na cozinha.“Nesta viagem, compreendi melhor o quanto as condições socioambientais do sertão, por serem muito fortes, interferem diretamente no tipo e no modo de preparar os alimentos”,diz Ana Rita, que ainda ressalta que a seca define a comida do dia a dia do sertanejo. Ingredientes essenciais Em 26 capítulos, a autora discorre sobre os alimentos básicos da dieta local e suas formas de preparo, tudo contextualizado com a cultura e os cos- tumes do sertão. Literatura de cordel, bibliografia, memórias de família e até cantigas ajudam a fazer uma importante leitura histórica e antropoló- gica dos hábitos do semiárido brasileiro. O feijão, segundo Ana Rita indispensável na alimentação cotidiana do sertanejo, ganhou um capítulo inteiro. O feijão-de-corda, variedade mais comum na mesa do sertão, tem entre suas virtudes poder ser armazenado por um longo período e pode, portanto, ser aproveitado durante os tempos de seca. Ao relembrar os pratos de sua infância, Ana Rita destaca no livro versos de repentistas locais. Quando fala do milho, por exemplo, ela ressalta que este é o alimento mais versátil da culinária local. “Seus derivados compõem receitas doces e salgadas apropriadas a qualquer tipo de refeição: café, almoço, jantar, lan- ches, cuscuz, farinha de milho, fuba [assim mesmo sem acento, uma varia- ção do conhecido fubá], mugunzá, pipoca...”, comenta a autora. E a galinha, por exemplo, em tempos de chuva, é comida do cotidiano. Já em tempos de seca, é para festa. “Isso porque a ave não tem grama e pequenos insetos para comer durante a seca. Precisa, então, ser alimentada com milho, que é um alimento primordial na dieta do homem do lugar”, explica Ana Rita. Centenas de pratos As receitas do sertão e as histórias a elas ligadas demonstram o quan- to o binômio seca/inverno está impregnado na alma sertaneja e como isso interfere nas manifestações culturais e religiosas, na permanência das pes- soas na terra, nos encontros sociais e na alimentação do povo.“Há no lugar uma comida saborosa, simples, variada, abundante, democrática. Mas há também a comida da seca, que é precária, monótona, discriminadora, que decorre da escassez ou da ausência de chuvas”, explica a autora. Acima, cuscuz de goma, prato à base de milho, um dos ingredientes mais presentes na alimentação do sertanejo
  • 3. GASTRONOMIA 00 outubro de 2010 Prefaciado pelo escritor Ariano Suassuna, primo de Ana Rita, o livro apresenta mais de 100 receitas que compõem a mesa de famílias,pobres ou abastadas, embora a autora tenha observado em suas pesquisas que nunca houve muita diferença entre classes, pois o sertão nunca teve homens ver- dadeiramente ricos. Os pratos tradicionais de festas e os do cotidiano são basicamente os mesmos das diversas camadas sociais do lugar,assim como os hábitos e con- textos que eles carregam.Atenta à fé cristã no Nordeste,Ana Rita ainda apre- senta as tradições e os cardápios típicos de festividades como a Semana Santa,o Natal,a Festa de São João,a Festa de São Pedro e a Festa de Sant’Ana, em que reinam o cururu, um bolinho de milho; a orelha-de-pau, bolo muito comum na região; o pé de moleque e a canjica ou curau. Assim, por meio de festas, de pratos simbólicos, de ingredientes simples, o livro faz um registro precioso de uma região muitas vezes esquecida pelos brasileiros. Mesa sertaneja pelo Brasil Com o uso de ingredientes típicos da região ou com receitas clássicas, chefs buscam resgatar as tradições da culinária sertaneja, Veja a seguir alguns bons lugares para provar sabores do sertão. • Na Cozinha: o chef Carlos Ribeiro se inspira na comida sertaneja para criar pratos à base de carne de sol, bode, caldo de mocotó, bolo de milho, arroz de leite de gado salgado, cozido com carne, cuscuz e jerimum com nata, entre outros que variam no cardápio. Rua Haddock Lobo, 955, Jardins, São Paulo/SP. Tel. 11 3063-5377. • Oficina do Sabor: no restaurante comandado por Cesar Santos, há vários pratos que remetem ao sertão. O chef criou pratos como o jerimum rechea- do com charque ao coco, carne de sol pernambucana com purê de macaxei- ra, farofa de jerimum e cheiro-verde e muitos outros. Rua do Amparo, 335, Cidade Alta, Olinda/PE. Tel. 81 3429-3331. • Varanda: o chef Auricélio Romão fez um cardápio com ingredientes per- nambucanos que inclui carne de sol com queijo coalho, manteiga da terra e banana; e pirão de queijo coalho. Vila do Trinta, Fernando de Noronha/PE. Tel. 81 3619-1546. Acima, pirão de cuscuz, acompanhamento feito com milho e caldo de galinha. Abaixo, abóbora (ou jerimum), ingrediente usado na culinária do sertão do Nordeste