Este documento discute a analogia entre "gholas sociais" e "Borgs". Gholas são clones criados pelos Tleilaxu em Duna que precisam de aprendizado para despertar suas habilidades originais, assim como pessoas precisam de interação social para se desenvolverem. Já os Borgs de Star Trek são ciborgues coletivizados sob um único controle central. Embora pessoas sejam influenciadas por redes, elas não são replicáveis como Borgs e mantêm agência individual.
1. Em pílulas
Edição em 92 tópicos da versão preliminar integral do livro de Augusto de
Franco (2011), FLUZZ: Vida humana e convivência social nos novos mundos
altamente conectados do terceiro milênio
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(Corresponde ao primeiro tópico do Capítulo 3,
intitulado Pessoa já é rede)
Gholas sociais
Um ghola não é um borg
No universo ficcional de Duna, obra monumental de Frank Herbert (1965-
1985), os tanques axlotl são mulheres tleilaxu que sofreram um coma
cerebral químico induzido, a par de outras intervenções genéticas, para
servir como usinas de gholas (espécies de clones de uma pessoa morta a
partir de seu material genético). Os Tleilaxu (ou Bene Tleilax) são uma
sociedade fechada de religiosos muito avançados tecnologicamente.
No entanto, os gholas são réplicas que não manifestam automaticamente as
qualidades dos originais. Para tanto eles devem passar por um processo
2. longo de aprendizagem e devem viver certas experiências (sobretudo de
relacionamento íntimo com seus treinadores) para despertar suas
habilidades.
A leitura das diversas camadas da escritura de Herbert (literal, alegórica ou
metafórica, simbólica etc.) permite um paralelo (meramente evocativo e
para efeitos heurísticos) entre o processo biológico-cultural de clonagem e
aprendizagem de um ghola e o processo social de geração de uma pessoa
(que seria, então, uma espécie de “ghola social”).
Os “tanques axlotl” onde somos gerados como seres propriamente humanos
seriam os clusters onde convivemos com outras pessoas (seres que já
foram humanizados pelo mesmo processo) a partir do nascimento. De sorte
que não somos humanos apenas por força da genética, da reprodução ou da
hereditariedade biológica (que replicamos como indivíduos da espécie
homo) e sim em virtude da rede social em que com-vivemos, cuja
configuração particular replicamos como pessoas, ou seja, “gholas sociais”.
Aquele que é geneticamente humanizável só consuma tal condição a partir
do relacionamento com seres humanizados. Somos (enquanto entes
culturais) filhos da rede social. E não podemos ser humanos sem esse tipo
de relacionamento. Como reza a máxima Zulu, “uma pessoa é uma pessoa
através de outras pessoas”.
Tudo isso é para dizer que um ghola (social) não é um borg. Mas por que é
tão importante dizer isso?
No universo ficcional de Star Trek os Borgs são uma “raça” alienígena de
ciborgues, humanóides de várias espécies assimilados e melhorados com a
injeção de nanossondas e a aplicação de implantes cibernéticos que alteram
sua anatomia e seu funcionamento bioquímico, ampliando suas habilidades
mentais e físicas.
Quando encontram suas presas - quaisquer membros de outras civilizações,
aos quais andam a cata – os Borg recitam, com algumas variações, a
seguinte litania:
“Nós somos os Borg. A existência como vocês conhecem acabou.
Adicionaremos suas qualidades biológicas e tecnológicas à nossa.
Resistir é inútil”.
Não existe uma rede social Borg, com algum grau significativo de
distribuição, porque não existe pessoa-Borg. Transformados em indivíduos
substituíveis, os borgs são replicados em série por uma estrutura
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3. fortemente centralizada em sua rainha (sim, o regime é monárquico
absoluto), a única que pode pensar livremente (se é que isso é possível sem
o conversar). Seus cérebros são conectados a uma mente coletiva (a
Coletividade Borg) controlada por um hub central (Unimatrix Um). O
objetivo declarado do povo Borg (que só é um povo naquele particular
sentido original da palavra latina ‘populus’: “contingente de tropas”) é
“aperfeiçoar todas as espécies trazendo ordem ao caos”.
Uma interpretação possível para a metáfora é a seguinte: de certo modo
qualquer pessoa, transformada em peça substituível por uma organização
centralizada (hierárquica), é – em alguma medida – um borg.
Sim, o paralelo é mais fértil do que parece. Dizer que um ghola (social) não
é um borg (biotecnológico), seria como colocar na boca do primeiro – no
dealbar de uma época-fluzz – uma paródia da “saudação” borg como a
seguinte:
Nós somos gholas sociais. Novas possibilidades de existência, até
agora desconhecidas de todos nós, estão sendo abertas. Nossas
qualidades biológico-culturais estão se combinando em novos padrões
sociais. É só preciso deixar-ir.
A rigor, como uma configuração de pessoas está sempre ligada a outras
configurações, todas as pessoas estão de algum modo emaranhadas no
espaço-tempo dos fluxos (quem sabe não era isso que chamávamos de
humanidade, uma prefiguração). Assim, no limite, todas as pessoas são
feitas de todas as outras pessoas.
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