Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Departamento de Comunicação Social da Universidade Estadual de Londrina, como requisito à obtenção do título de Bacharel em Comunicação Social – Habilitação em Jornalismo
Autora: Bruna Diniz de Carvalho
Orientadora: Profª. Drª. Márcia Neme Buzalaf
Considerando as pesquisas de Gallahue, Ozmun e Goodway (2013) os bebês até an...
TCC Breves Histórias da Maior Tragédia do Rio Grande do Sul: crônicas sobre o incêndio da boate Kiss
1.
2. BRUNA DINIZ DE CARVALHO
BREVES HISTÓRIAS DA MAIOR TRAGÉDIA DO RIO
GRANDE DO SUL:
crônicas sobre o incêndio da Boate Kiss
Londrina
2016
3. BRUNA DINIZ DE CARVALHO
BREVES HISTÓRIAS DA MAIOR TRAGÉDIA DO RIO
GRANDE DO SUL:
crônicas sobre o incêndio da Boate Kiss
Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao
Departamento de Comunicação Social da
Universidade Estadual de Londrina, como requisito à
obtenção do título de Bacharel em Comunicação
Social – Habilitação em Jornalismo
Orientadora: Profª. Drª. Márcia Neme Buzalaf
Londrina
2016
4. BRUNA DINIZ DE CARVALHO
O DIA EM QUE SANTA MARIA NÃO AMANHECEU:
O CASO DO INCENDIO DA BOATE KISS
Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao
Departamento de Comunicação Social da
Universidade Estadual de Londrina, como requisito à
obtenção do título de Bacharel em Comunicação
Social – Habilitação em Jornalismo
BANCA EXAMINADORA
Orientadora: Profª. Drª. Márcia Neme Buzalaf
Universidade Estadual de Londrina
Prof. Dr. Silvio Ricardo Demetrio
Universidade Estadual de Londrina
Profª. Drª. Angela Maria Pelizer de Arruda
Universidade Estadual de Londrina
Londrina, de de __.
5. AGRADECIMENTOS
Sou grata a Deus por ter me sustentado em todos os dias da minha
vida.
“Nunca sei o que levo do outro, nunca sei o que deixo de mim. O
sentido de uma vivência pode só vir tempo depois”. (Carpinejar).
De tanto carregar trejeitos e essências alheias, hoje não sou mais
singular. Sou as muitas pessoas que trago no peito. Seres especiais que jamais
poderiam deixar de ser citados. Aqueles que de alguma forma me ajudaram durante
a produção deste trabalho. Meu muito obrigada a todos eles:
Aos meus pais, Sérgio e Valquíria, aos meus irmãos, Leandro e
André, pelo amor incondicional. À toda minha família – Céu para minha necessidade
de voar, chão para minha vontade de ficar. Se não fossem vocês, eu nunca saberia a
principal lição da vida: o sentido do amor que é amar sem pré-condições. Esse amor
que me faz viver e buscar meus objetivos todos os dias. O amor que aumenta minha
fé!
À minha orientadora, Márcia Buzalaf, pela paciência e pela
preocupação atemporal. Por sempre ter aceitado minhas propostas de modo tão
entusiasmado. E por ter ajudado grandemente a dar forma a este trabalho. Ao
professor Silvio e à professora Angela que contribuíram para meu amadurecimento
profissional.
Aos meus amigos: Agnes, Anderson, Bruna, Christian, Julio e Marco.
Por terem sido minha família londrinense ao longo desses quatro anos. Sou grata a
tudo aquilo que vivemos e que, como sabemos, foram muitas situações e momentos.
Infinidade que faz com que hoje sejamos tão próximos, a ponto de chorar diante da
possibilidade dos nossos caminhos serem opostos. Levo vocês para sempre na minha
experiência, no meu jeito, no meu sorriso, na minha vida.
Às minhas amigas Ana Maria e Brenda. Vocês que me ampliaram o
sentido da amizade, estiveram presentes em todos os momentos. Ora pegaram no
meu pé, ora me conduziram pelas mãos. Obrigada por serem sempre minhas palavras
e conclusões de conforto, maturidade e sensatez. Vocês foram compreensíveis
comigo mesmo quando o momento fugia de qualquer entendimento. Amo vocês de
todo meu coração!
6. À Ariela que tanto foi minha companhia feliz e divertida enquanto as
páginas que seguem foram escritas. Ari, que a vida possa sempre te receber de
braços abertos como você me recebeu e me acolheu.
A todos meus amigos. A todos meus professores que me lecionaram
durante toda a graduação. À minha turma – 2012 Jornalismo noturno.
Ao Fabricio Carpinejar por ser quem é – alegria e inspiração. Muito
obrigada pela receptividade, pela disponibilidade e por dedicar a vida a escrever as
palavras que em mim e em tantas pessoas se fazem eternas. Tudo o que escrever
aqui talvez seja inútil demais para explicar o que Carpinejar representa para mim. Fica
registrado, então, apenas um pedacinho dessa admiração infinita.
Aos sobreviventes do incêndio da Boate Kiss: Rafaela Cruz e Maike
dos Santos.
Aos familiares das vítimas fatais: Carina Corrêa, Camilly Corrêa,
Sandra Corrêa, Sérgio Silva, Vanda Dacorso, Marta Beuren, Fanny Torres, Maria
Aparecida Neves, Flávio Silva, Ligiane Silva, Jacqueline Malezan e Medianeira Costa.
À Associação de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria, a (AVSTSM).
Hoje eu sei muito da história de cada um de vocês, conheço seus filhos sem nunca
tê-los visto pessoalmente. Considero a tragédia também como parte da minha história.
É como se eu tivesse vivido de alguma forma o 27 de janeiro de 2013.
Sobrevivntes e familiares, espero de todo o meu coração e de toda a
minha alma que este trabalho possa servir como forma de evitar o esquecimento. Que
por meio dessas páginas, as pessoas possam conhecer a vida dos que se foram e a
vida de vocês que ficaram – o luto transformado em luta todos os dias.
Carina e Sandra, obrigada especialmente por terem me recebido tão
bem e me ajudado no processo de conhecer as pessoas de Santa Maria.
À Melissa Couto, ao Dartanhan Baldez, ao Fritz Rivail e ao Claudemir
Pereira que também me ajudaram a ter dimensão das histórias do incêndio, e assim,
contá-las.
Não sei se o tanto de vezes que consigo agradecer é suficiente para
retribuir toda ajuda, carinho e dedicação. Muito, muito obrigada por terem sido partes
tão importantes do melhor trabalho, da melhor coisa que já fiz em toda minha vida.
Gostaria ainda de ter feito muito mais. Já dizia a canção: “Se eu tivesse mais alma
para dar, eu daria. Isso pra mim é viver”. (Djavan)
8. O cronista é um indivíduo encharcado de seu tempo.
Enfim, um escritor crônico.
(Affonso Romano de Sant’Anna)
9. CARVALHO, Bruna Diniz. Breves Histórias da Maior Tragédia do Rio Grande do
Sul: Crônicas sobre o incêndio da Boate Kiss. 2016. 116. Trabalho de Conclusão de
Curso (Graduação em Comunicação Social – Habilitação em Jornalismo) –
Universidade Estadual de Londrina, Londrina, 2016.
RESUMO
Desde o princípio, a crônica sempre esteve relacionada ao Jornalismo. Seja por conta
da efemeridade ou pelo fato de ambos contarem o cotidiano das pessoas e das coisas.
Esta pesquisa tem por objetivo produzir crônicas sobre o incêndio da Boate Kiss
ocorrido em 27 de janeiro de 2013, em Santa Maria – Rio Grande do Sul. Para a
construção dos textos foram ouvidos em entrevistas: sobreviventes, familiares e
amigos de vítimas fatais. As crônicas também contam sobre alguns pontos e locais da
cidade. A partir disso, o que se pretende é mostrar, com outra forma de se fazer
Jornalismo, a dimensão dessa tragédia.
Palavras-chave: Crônica, Boate Kiss, Santa Maria.
10. CARVALHO, Bruna Diniz. Brief Major Stories of Rio Grande do Sul Tragedy:
Chronicles of the burning of Disco Kiss. 2016. 116. Work Completion of course
(Diploma in Social Communication - Qualification in Journalism ) - State University of
Londrina, Londrina, 2016.
ABSTRACT
From the beginning, chronicles always been related to journalism. Is due to the
transience or because both telling the daily lives of people and things. This research
aims to produce chronics format about the fire occurred at the Boate Kiss, on January
27, 2013, in Santa Maria - Rio Grande do Sul. For the construction of the texts were
heard in interviews:. survivors, family and friends of the victims. The chronicles also
speak about the city. From this, the idea is to show, with another way of doing
journalism, the scale of this tragedy. How the lives of those involved has changed since
that date until now.
Key-words: Chonicle, Boate Kiss, Santa Maria
11. LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Figura 1: ZERO HORA, 28 de janeiro de 2013, p.1 ................................................. 27
Figura 2: ZERO HORA, 28 de janeiro de 2013, p.20................................................ 29
Figura 3: ZERO HORA, 27 de fevereiro de 2014, p.1 ...............................................32
Figura 4: ZERO HORA, 27 de janeiro de 2014, p.1 ................................................. 36
Figura 5: ZERO HORA, 27 de janeiro de 2014, p.60................................................ 37
12. SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO ...............................................................................................12
2. O DIA EM QUE SANTA MARIA NÃO AMANHECEU: O CASO DO
INCÊNDIO DA BOATE KISS....................................................................................16
2.1. O PROTAGONISMO DO JORNAL ZERO HORA.......................................... 25
2.1.2 Edição de capa preta......................................................................................26
2.1.3 Memória da tragédia: outras edições.............................................................31
2.2 TRAGÉDIAS EM PAUTA: COMO SÃO AS NOTÍCIAS.................................. 39
2.2.1 Tragédias .........................................................................................................40
2.2.2 Notícias ............................................................................................................40
3. EMOÇÕES SEM FILTRO: AS CRÔNICAS DE FABRÍCIO CARPINEJAR
....................................................................................................................................45
3.1 BIOGRAFIA................................................................................................... 54
3.2 ENTREVISTA................................................................................................ 55
4. BREVES HISTÓRIAS DA MAIOR TRAGÉDIA DO RIO GRANDE DO SUL:
CRÔNICAS .............................................................................................................. 57
4.1. PERDAS SINGULARES................................................................................ 57
4.2 AS PESSOAS .................................................................................................64
4.3. OS LUGARES FALAM....................................................................................73
5. TEORIA DE CRÔNICA.................................................................................. 78
5.1 PROCESSO DE PRODUÇÃO ....................................................................... 82
13. 6. CONSIDERAÇÕES FINAIS .......................................................................... 84
REFERÊNCIAS..............................................................................................86
ANEXOS.........................................................................................................89
ANEXO A - Matérias publicadas no dia do incêndio ......................................89
ANEXO B - Matérias sobre o acidente do avião da TAM............................... 94
ANEXO C - Matérias publicadas sobre a tragédia de Mariana – MG .............96
ANEXO D - Parte da Edição de 28 de janeiro de 2013 do Zero Hora.............99
ANEXO E - CD-ROM com coletânea de entrevistas e fotos........................ 116
14. 12
1 INTRODUÇÃO
“Morri em Santa Maria hoje. Quem não morreu? Morri na Rua dos
Andradas, 1925. Numa ladeira encrespada de fumaça”. Fabricio Carpinejar assim
escreve em uma das crônicas sobre o incêndio da Boate Kiss.
Palavras que ecoaram e ainda ecoam na minha existência. A
lembrança constante é fruto da mistura de sentimentos diante do fato e daquelas
próprias frases que o narram. Emoções que tento, de alguma forma, organizar – se é
que sentimentos foram feitos para serem organizados – ao longo dessas páginas.
Assim nasceu o intuito de tratar sobre o tema, caminho traçado por
meio de uma crônica – o que já prova de antemão a importância desse gênero textual.
A capacidade de dialogar com o leitor, de causar serenidade ou inquietude. A relação
da crônica com o cotidiano e a capacidade de reflexão que ela provoca são explicadas
por Antônio Cândido assim: “O fato de ficar tão perto do dia a dia age como quebra do
monumental e da ênfase. (...) A crônica está sempre ajudando a estabelecer ou
restabelecer a dimensão das coisas e das pessoas”.
Este trabalho conta histórias de sobreviventes, familiares e amigos de
vítimas. De pessoas e locais envolvidos no incêndio da Boate Kiss, localizada na
cidade de Santa Maria – Rio Grande do Sul. A abordagem aqui proposta é uma forma
de trabalhar outro modo de se fazer Jornalismo para expor como a vida das pessoas
envolvidas no incêndio mudou nos dois anos e meio posteriores à tragédia, e de
consequente e principalmente contribuir, ainda que de forma pequena, para que esse
caso não seja esquecido.
A proposta é fazer crônicas a partir das entrevistas realizadas
entre 10 e 17 de julho de 2015 em Santa Maria. A escolha desse gênero textual se
adequa à fragmentação das histórias das fontes, uma vez que se entende que cada
pessoa viveu uma história única e singular, sem a necessidade de seguir uma linha
contínua de acontecimentos. As crônicas também abordam os locais de diversas
partes da cidade, afinal, tudo foi modificado após aquele dia do incêndio.
15. 13
É importante ressaltar a dificuldade do contexto de produção das
entrevistas, de falar do que ainda dói em tanta gente, mas só assim as histórias podem
não cair no esquecimento.
Sobre essa dicotomia, um texto do editorial do Jornal Zero Hora, de
27 de janeiro de 2014 – data que marca um ano do incêndio – discorre:
Jornalistas precisam investigar. Não somos policiais, donos da verdade,
justiceiros. Cruzamos dados, ouvimos pessoas, mergulhamos em histórias,
revelamos, duvidamos. Nem sempre isso é simpático, muitas vezes requer
uma insistência que incomoda, faz-nos um tanto obsessivos. Mas é nosso
compromisso com o público. Jornalistas são, também, zeladores da memória
de uma comunidade, de uma época. Com seus escritos, imagens e falas,
cuidam de uma espécie de rascunho, depois lapidado e perenizado por
historiadores e outros especialistas. Um rascunho com o máximo de precisão
para dar suporte a quem acessa nossos conteúdos hoje ou daqui a décadas”.
(ZERO HORA, 28 de janeiro de 2014, p. 4).
Foi então que eu finalmente entendi o meu papel.
Ainda há o que contar, o que apontar desse incêndio que tirou a vida
de 242 jovens e feriu cerca de 700, e que até hoje não houve condenados, fato que
faz com que o luto de todos atingidos pela tragédia seja muito mais difícil e duradouro.
Nas entrevistas, fatos do dia do incêndio foram contados minuciosamente por
familiares e sobreviventes. Esses relataram também como vivem ou tentam sobreviver
após a tragédia.
O primeiro capítulo traz a história do incêndio. Para recontá-lo é
imprescindível utilizar as publicações do jornal Zero Hora. A escolha desse meio de
comunicação se justifica pelo fato de ele ser o maior e principal jornal do Rio Grande
do Sul, o que fez extensa cobertura da tragédia de Santa Maria. Entretanto, o que foi
publicado em outros jornais, seja do Brasil ou do mundo, também é importante para
contextualizar o assunto. Além disso, este capítulo traz informações e impressões que
tive ao assistir a documentários sobre o incêndio e ao ficar sete dias na cidade. É por
meio dessa parte do trabalho que é possível ter a dimensão do ocorrido, desde as
primeiras horas até dias e os dois anos seguintes.
O capítulo seguinte aborda a importância do jornal Zero Hora, como
ele foi protagonista entre tantos outros jornais ao contar as histórias envolvidas no
incêndio. Também está a análise da edição do dia 28 de janeiro de 2013, dia seguinte
à tragédia. Como foi feita a cobertura jornalística a respeito do fato, como se deram
as reportagens, os relatos dos envolvidos no caso? A observação dessa
16. 14
edição é de extrema importância, não só pelo ocorrido em si, mas também pela
verificação do tipo de narrativa e da forma como o Jornalismo noticia tragédias. É
possível fazer um comparativo de como o assunto deixa de ser destaque ao passar
do tempo.
A discussão também abrange outras edições de dias seguintes ao do
incêndio, como a de quando se completou um mês e um ano da tragédia.
O terceiro capítulo aborda o que é notícia e como o Jornalismo se
posiciona em grandes acontecimentos, como na cobertura de uma tragédia. O objetivo
é mostrar a heterogeneidade das narrativas jornalísticas ao recontar um fato.
Na sequência, está a interpretação das crônicas do escritor e
jornalista Fabrício Carpinejar. São quatro textos: “A maior tragédia de nossas vidas”,
“Não desistam de viver”, “O sapato da filha” e “Me tire daqui”. Essas foram as crônicas
que o escritor fez até o presente momento sobre o caso da Boate Kiss.
Cada crônica foi feita numa dada circunstância. No mesmo capítulo,
há a biografia de Carpinejar, gaúcho, natural de Caxias do Sul. A entrevista concedida
pelo jornalista também é reproduzida nesse tópico.
É no quinto capítulo que o objetivo principal deste trabalho se
concretiza. Nele estão as 14 crônicas que fiz sobre os relatos ouvidos de quem esteve,
de alguma forma, envolvido com o incêndio, além de textos sobre a cidade em si:
locais e demais detalhes. Nada em Santa Maria deixou de sofrer com a dor e com as
modificações inevitáveis de uma tragédia.
A escolha das personagens tem como justificativa abordar
principalmente os mais afetados pelo incêndio, ou seja: mães, pais, irmãos e amigos
de vítimas fatais. Além, é claro, dos sobreviventes, entretanto, o relato desses ainda
não era o suficiente – era preciso ouvir outras pessoas que também foram
testemunhas do ocorrido, como: jornalistas, assessor de imprensa, profissional de
psicologia, entre outros. Foram feitas 18 entrevistas.
Como justificado anteriormente, a escolha da crônica se adequa à
fragmentação das histórias ouvidas em Santa Maria. Além, obviamente, do fato da
crônica ser filha do jornal, de achar nesse tipo de publicação um habitat.
Sobre o início da crônica e sua relação com o jornal, Antônio Cândido
explica: “Ela não nasceu propriamente com o jornal, mas só quando este se
17. 15
tornou cotidiano, de tiragem relativamente grande e teor acessível, isto é, há uns
150 anos mais ou menos”. (CÂNDIDO, 1992, p. 15)
Por meio desse gênero, também é viável fugir do mínimo de
imparcialidade que é possível ao ser humano, uma vez que a crônica não faz sentido
se não tiver a visão de quem a escreve. Massaud Moisés aborda essa relação tão
próxima entre cronista e o assunto da crônica:
A subjetividade é a mais relevante de todas. Na crônica, o foco narrativo situa-
se na primeira pessoa do singular, mesmo quando o “não-eu” avulta por
encerrar um acontecimento de monta, o “eu” está presente de forma direta ou
na transmissão do acontecimento segundo sua visão pessoal. A
impessoalidade é não só desconhecida como rejeitada pelos cronistas: é sua
visão das coisas que lhes importa ao leitor; a veracidade positiva dos
acontecimentos cede lugar à veracidade emotiva com que os cronistas
divisam o mundo. (MOISÉS,1964, p. 116).
O conjunto de crônicas está separado em temas: “Perdas singulares”;
“As pessoas”; e “Os lugares que falam”. Os textos não trazem a entrevista na íntegra
com cada personagem – uma vez que o objetivo da crônica é ser breve – os escritos
têm fatos grandes ou até muito pequenos que dão conhecimento sobre algum ponto
da tragédia. O objetivo é também dar voz e vez a locais, como, por exemplo, à Rua
dos Andradas, onde está localizada a Boate Kiss, além de outros locais, pedaços e
cantos da cidade.
Por fim, o último capítulo apresenta uma discussão conceitual sobre
a crônica. O que é esse gênero textual, as origens, características, suas modificações
ao longo do tempo, sem deixar de falar da liberdade que esse formato de texto permite:
possibilidade de criação e angulação em um mesmo espaço. Enfim, todas as
características são apontadas de acordo com a produção das crônicas sobre o
incêndio. E como este tipo de narrativa contribui para o registro da memória dos
envolvidos na tragédia.
18. 16
2 O DIA EM QUE SANTA MARIA NÃO AMANHECEU: O CASO DO INCÊNDIO
DA BOATE KISS
Santa Maria – Rio Grande do Sul, 26 de janeiro de 2013. Localizada
no centro histórico da cidade, a Boate Kiss esperava naquela noite cerca de mil
pessoas para a festa intitulada “Agromerados”, evento organizado por estudantes dos
cursos de Agronomia, Medicina Veterinária, Zootecnia, Tecnologia de Alimentos,
Tecnologia em Agronegócio e Pedagogia da Universidade Federal de Santa Maria.
O público esperado era grande, pois, naquele dia, essa era a única
festa realizada na cidade. Muito antes das 23h, horário em que a boate foi aberta, a
fila para entrar já passava da esquina da Rua dos Andradas, aproximadamente 300
metros da porta da Kiss. Os frequentadores eram, em maioria, universitários, da faixa
etária de 18 a 30 anos.
A noite tinha duas atrações: as bandas “Pimenta e seus comparsas”
e a “Gurizada Fandangueira” (a principal). Esta subiu ao palco por volta das 2h da
madrugada. Durante o refrão da quinta música, o vocalista da banda, Marcelo de
Jesus dos Santos, acendeu um artefato de pirotecnia. As chamas alcançaram o teto.
Um dos seguranças da boate ainda tentou sem sucesso apagar o fogo com um extintor
de incêndio que estava com defeito.
Por volta das 2h30min da madrugada, a Kiss começou a pegar fogo.
Quem estava perto do palco logo percebeu o incêndio: pedaços da espuma que
19. 17
revestiam o teto caíram e queimaram a pele de algumas pessoas. Já quem estava
longe do palco, demorou a notar o que estava acontecendo.
Quando, enfim, a maioria dos jovens notou o incêndio, já havia pouco
tempo e possibilidades para tentar escapar. As chamas do artefato queimaram a
espuma que em combustão liberou as substancias de monóxido de carbono e cianeto
(altamente tóxicas).
A fumaça preta e densa logo chegou ao chão, tomando conta de todo
o espaço. As luzes foram desligadas. 1.500 pessoas precisavam chegar à porta da
Kiss, em meio a uma fumaça que ardia as vias aéreas e os olhos. Escuridão absoluta.
Não fosse o bastante, ainda existiam outros obstáculos para a sobrevivência: as
pessoas desmaiadas e o espaço inadequado para evacuação em casos de
emergência.
A área da Kiss corresponde a 615 metros quadrados. O projeto físico
interno foi muito questionado durante a apuração do caso, isso porque o espaço
parecia um labirinto, o que dificultou muito a saída das pessoas na hora do incêndio.
Além das barras fixas da entrada, outras foram colocadas horas antes da festa na
calçada para organizar as filas. Barras que no momento do desespero serviram como
obstáculos.
Os seguranças nos primeiros minutos impediram a saída das
pessoas, porque não sabiam ainda que o local estava pegando fogo e exigiam que
houvesse o pagamento da comanda. Os corredores e as outras portas internas eram
extremamente estreitos, impedindo que várias pessoas pudessem sair ao mesmo
tempo.
No momento do incêndio, havia 500 pessoas a mais do que a
capacidade suportava. Tantas pessoas em um local onde não havia plano de
contenção de incêndio e com vários obstáculos para escapar, ocasionava a cada
minuto um grande número de vítimas fatais. As equipes do Corpo de Bombeiros e do
SAMU (Serviço de Atendimento Móvel de Emergência) não davam conta da demanda
de pessoas que precisavam ser levadas às pressas aos hospitais da cidade. Quem
passava por perto, além dos taxistas, ajudava no socorro às vítimas,
Enquanto isso, uma das equipes dos bombeiros tentava apagar as
chamas. Aqueles que tiveram a sorte de conseguir escapar ajudavam a retirar as
vítimas do interior da boate: alguns rapazes quebravam as paredes com ferramentas
para aumentarem o espaço da saída.
20. 18
A Rua dos Andradas, uma ladeira estreita, não tinha espaço o
suficiente para tantas vítimas que precisavam receber massagens cardíacas e outros
tipos de cuidados ali mesmo, no asfalto. O estacionamento do supermercado
Carrefour localizado em frente à danceteria foi usado para levar as vítimas que
esperavam transporte para os hospitais. Ao estacionamento também eram levados os
mortos.
As horas foram passando e Santa Maria não amanhecia. A cidade não
acordou do pesadelo. As primeiras horas até o fim da tarde do dia 28 de janeiro de
2013 foram marcadas pela romaria dos familiares que não sabiam ao certo onde
procurar seus parentes. Era muito difícil saber quem era quem em meio a tanta
confusão – muitas pessoas perderam seus documentos de identificação na boate. As
mulheres saíram sem bolsas e sem pertences. Os corpos eram levados até o CDM
(Centro Desportivo Municipal).
Os rapazes foram colocados na primeira metade da quadra do
ginásio, e as meninas na segunda. Em meio à cena de horror, apenas um som se
fazia presente: o dos aparelhos celulares dos mortos ainda tocando.
104 chamadas não atendidas. Carlos Walau, 36 anos, foi um dos socorristas
voluntários que ajudaram a tirar mais de 200 vítimas de dentro dos caminhões
para o ginásio do Centro Desportivo Municipal.
- Tirei o corpo de uma menina que estava com um celular que não parava de
tocar. Em seguida, deu barulho de mensagem, li e era a mãe dela
perguntando onde ela estava – relata, com voz embargada.
Na tentativa de auxiliar na identificação dos mortos, integrantes do Grupo de
Gerenciamento da Crise colocavam documentos de identificação – como
identidade e carteira de habilitação – e celulares no peito das vítimas. Um dos
bombeiros apanhou um daqueles telefones que tremiam no chão. O aparelho
registrava 104 chamadas não atendidas. Na tela: MÃE.”(ZERO HORA, 28 de
janeiro de 2013, p. 30).
Nos hospitais e no ginásio só os familiares tinham autorização para
entrar. Nesses locais foram disponibilizadas listas com os nomes dos sobreviventes e
dos mortos. Muitas vezes, entretanto, acontecia do nome da pessoa estar na lista,
mas ainda assim a família não encontrar seu parente. As listas não eram muito
precisas, por causa da dificuldade de identificar um grande número de pessoas.
No CDM os parentes foram encaminhados até a arquibancada e de lá
esperavam o sistema de som anunciar os nomes dos seus filhos, sobrinhos, netos,
primos. Depois da chamada pelo nome, era preciso fazer o reconhecimento
21. 19
do corpo. Algumas famílias levaram doze horas para conseguirem descobrir que
seus filhos estavam mortos.
Algumas vítimas que ainda precisavam de atendimento médico eram
levadas a hospitais da região e também de helicóptero até à capital Porto Alegre. As
autoridades da cidade e do estado pediam voluntários: médicos, enfermeiros,
psicólogos, militares do Brasil inteiro.
A Presidente Dilma Rouseff cancelou os compromissos no Chile,
onde estava quando recebeu a notícia da tragédia. Ela e o governador do estado,
Tarso Genro, foram até Santa Maria.
No CDM, foi montada uma força-tarefa para atender os familiares.
Psicólogos organizados em uma grande equipe davam auxílio o tempo inteiro. Muitos
velórios foram realizados no próprio ginásio, já que a cidade não tinha locais mais
apropriados para atender a demanda.
A causa da morte dos 242 jovens foi a asfixia, causada pelas
substâncias de monóxido de carbono (CO2) e cianeto. O CO2 reduz a capacidade de
transporte de oxigênio, a fumaça danifica as vias aéreas (áreas nasais, faringe e
pulmão) e provoca tosse. As pessoas não morreram carbonizadas como muitos
imaginam.
A sensação de falta de ar faz com que a respiração fique mais rápida
aumentando a concentração de CO2 e de outros gases tóxicos nos pulmões. O
cérebro, então, passa a sofrer com a falta de oxigênio, o que causa tontura e
sonolência. Em até três minutos a pessoa desmaia e poucos minutos depois, a morte
cerebral causa parada cardíaca.
Pelo o que foi reportado, o incêndio da Kiss foi causado por uma série
de irresponsabilidades. Segundo o Corpo de Bombeiros do estado do Rio Grande do
Sul, efeitos pirotécnicos são proibidos em ambientes fechados. O Plano de Prevenção
e Controle de Incêndio da boate estava vencido desde agosto de 2012.
Havia apenas uma saída. Segundo normas da ABNT (Associação
Brasileira de Normas Técnicas), usadas como parâmetro para a lei estadual de
prevenção de incêndio, boates e clubes noturnos devem ter, no mínimo, duas saídas.
O número de pessoas na Kiss ultrapassava a capacidade máxima. Segundo
investigações da polícia, o público na noite era de 1.500 pessoas, enquanto a
22. 20
capacidade permitia apenas mil. A casa também não tinha iluminação de
emergência para casos de incêndio.
Os funcionários da boate não tinham treinamento específico de
brigada de incêndio. Segundo a lei, um estabelecimento do tamanho da Kiss deveria
ter, no mínimo, quatro pessoas habilitadas para lidar com incêndio. As janelas dos
banheiros, de onde vinha a pouquíssima luz no interior da boate, estavam bloqueadas
com pedaços de madeira. As vítimas seguiam as luzes em busca da saída para a rua,
mas não conseguiram escapar pelas janelas.
Segundo as perícias, a espuma branca usada para isolamento
acústico do teto era inadequada, totalmente sensível ao fogo. O material correto seria
um tipo de espuma especial que não alastra chamas e derrete rapidamente.
Não havia extintores de incêndio suficientes, o que estava mais
próximo do palco tinha defeito e não serviu para conter o fogo. A legislação diz que a
cada 150 metros deve ter um extintor de incêndio.
Toda essa situação não obedecia à legislação estadual
regulamentada em 1997 que estipula regras para a prevenção de incêndios.
Na época, a Polícia Civil prendeu temporariamente o vocalista da
Gurizada Fandangueira, Marcelo de Jesus dos Santos, o montador de palco, Luciano
Augusto Bonilha Leão e os empresários e sócios da boate, Mauro Hoffmann e
Elissandro Spohr. Atualmente todos estão em liberdade e respondem ao processo
criminal que os acusa de homicídios qualificados com dolo eventuais.
O Corpo de Bombeiros foi julgado e inocentado no ano de 2013. Na
justiça estadual, o Major Gerson da Rosa Pereira, foi o primeiro condenado por fraude
processual. Segundo o Ministério Público, nos dois dias seguintes ao incêndio, o
militar entregou à polícia documentos que não faziam parte do Plano de Prevenção
de Incêndio da Kiss. Ou seja, documentos que afirmavam que a boate tinha condições
de segurança para funcionar.
O major foi condenado a seis meses de reclusão, mas a pena foi
convertida na prestação de serviços à comunidade. Enquanto isso, a Prefeitura de
Santa Maria se quer foi indiciada. O MP não considera como crime os alvarás
irregulares concedidos pela prefeitura, responsabilidade do prefeito César Schirmer e
de mais seis funcionários. O próprio Ministério Público também é citado como omisso
à fiscalização do funcionamento e dos documentos da danceteria.
23. 21
O caso de Santa Maria é o segundo maior do mundo inteiro se
tratando de incêndios em casas noturnas e em número de vítimas. O maior deles
ocorreu em Boston, nos Estados Unidos, em 28 de novembro de 1942. Na ocasião,
492 pessoas morreram na boate Cocoanut Grove.
Mais próximo: capital da Argentina, Buenos Aires – Efeitos
pirotécnicos durante um show na boate República Cromañón matou 194 pessoas em
30 de dezembro de 2004. A tragédia na Argentina fez com que a legislação sobre
prevenção de incêndio em casas noturnas fosse alterada, a fim de garantir mais
segurança às pessoas.
O mundo inteiro viu de alguma forma, por meio dos meios de
comunicação, o incêndio da Boate Kiss. Nos Estados Unidos, o The New York Times
comparou a tragédia a uma local, ocorrida em 2003. Nessa, cem pessoas morreram
num incêndio numa boate de Rhode Island.
No El País, jornal principal da Espanha, teve extensa cobertura sobre
a tragédia gaúcha. A rede mundial de televisão CNN cobriu o caso como um grande
assunto internacional. “Inferno mortal no Brasil” foi uma das chamadas do breaking
news (notícias urgentes).
Já o The Guardian, um dos jornais mais influentes da Europa, publicou
relatos de amigos das vítimas e de militares que ajudaram no resgate das pessoas. O
site da revista alemã Spiegel divulgou um vídeo sobre o caso, onde uma testemunha
aparecia dizendo: “parecia um filme de terror”. Já no site do Clarín, o jornal mais
vendido da Argentina, cobriu a tragédia como se fosse um assunto local.
No Brasil, todos os jornais, emissoras de rádio e TV e sites da internet
cobriram o caso do incêndio exaustivamente. A tragédia estampou a capa dos
principais jornais do país. Na edição do dia 28 de janeiro de 2013, a Folha de São
Paulo trazia uma foto do lado de fora da boate na noite do incêndio. Na manchete:
“Pior incêndio do país em 50 anos mata 233 pessoas em casa noturna no RS”.
O O Globo, jornal carioca também trouxe na capa do dia 28 de janeiro
de 2013 o assunto, e de forma bem atípica no Jornalismo. A crônica “A maior tragédia
de nossas vidas” do escritor Fabrício Carpinejar foi publicada acima da manchete. A
chamada era: “Descaso mata 231 jovens no Sul”. As reportagens dessa edição
destacaram principalmente a falta de responsabilidades que ocasionou
24. 22
o incêndio, além de contar os testemunhos dos bombeiros, dos sobreviventes e a
história de vida dos mortos.
O incêndio da Kiss também virou tema de documentário e de
programas especiais. Intitulado “Janeiro 27”, dos diretores, Luiz Alberto Cassol e
Paulo Nascimento, o documentário mostra depoimentos dos familiares de vítimas
fatais, sobreviventes e ainda relaciona a tragédia ocorrida na boate Cromañón na
Argentina. Os depoimentos das mães argentinas também são mostrados nesse
documentário.
A TV Discovery também produziu documentário sobre a Kiss. 13
milhões de lares, segundo o jornal Zero Hora, assistiram à história da tragédia que foi
ao ar na data em que o incêndio completava três meses.
O documentário utiliza uma narrativa com tempo cronológico:
simulação das pessoas chegando à boate e depois o momento do incêndio. Isso
intercalado aos depoimentos de quem esteve na Kiss na noite da tragédia e de
bombeiros que resgataram as vítimas.
Uma das partes mais comoventes é quando um bombeiro descreve a
situação que ele classifica como a pior e mais difícil da vida dele: os militares achavam
que não tinha mais tanta gente nas áreas de circulação da boate, mas quando
entraram nos banheiros se depararam com pilhas de corpos. Os mortos que
confundiram a porta do banheiro com a de saída.
Outro momento marcante é quando uma das sobreviventes,
funcionária da Kiss, conta como o próprio instinto ajudou a se salvar. A jovem ao sentir
as vertigens causadas pela inalação da fumaça abriu o freezer do bar e aspirou o
único ar puro que poderia ter na hora do incêndio. Depois disso, teve mais fôlego e
conseguiu chegar à porta de saída.
Nunca me faltou a consciência de que a cidade com certeza vivesse
num luto eterno, que transparecesse claramente a dor. Ainda assim, me surpreendi
durante todos os sete dias no coração do estado. Cheguei à Santa Maria durante a
noite de uma sexta-feira fria. Na Estação Rodoviária, logo que desembarquei do
ônibus, avistei uma mulher jovem de estatura baixa segurando uma folha de papel nas
mãos escrito “Bruna”. Me aproximei e ela perguntou sorridente:
– Tu que é Bruna?
25. 23
A mulher era a Carina Corrêa, 36 anos, auxiliar de nutrição, mãe da
Thanise, 18 anos (vítima fatal da Kiss) e da Camily, 16 anos. Vi a Carina pela primeira
vez no trailer do documentário “Janeiro 27”, entrei em contato e passamos a conversar
pelo facebook. Ela me hospedou na própria casa durante a semana. No caminho até
lá, dentro do táxi, Carina me explicou que a casa dela está sempre cheia. No mesmo
quintal mora: a mãe, a filha, o irmão, a cunhada e os sobrinhos.
Carina está afastada do trabalho por licença médica desde a tragédia
que levou a filha. Com o tempo livre, me ajudava a chegar até os locais da entrevista
nos meus primeiros dias na cidade.
Durante a semana, fui até o centro, no prédio da Universidade Federal
de Santa Maria, onde está instalada a Associação de Vítimas e Sobreviventes da
Tragédia de Santa Maria, a (AVSTSM). Os associados são pais e mães que desde a
tragédia e até o presente momento buscam realizar os protestos, manifestações, além
de fazer serviços de caridade a associados que perderam entes que sustentavam a
família.
A ajuda também se estende às pessoas carentes da cidade que
recebem roupas, alimentos, produtos de higiene e dinheiro. A associação não tem fins
lucrativos.
No calçadão de Santa Maria, a associação montou uma tenda com
fotos e mensagens de carinho aos filhos que se foram. Uma vez por semana os
familiares se reúnem lá e realizam uma vigília. É o momento em que todos se lembram
dos filhos, conversam e dividem a mesma dificuldade.
Um fato surpreendente é que a própria sociedade de Santa Maria hoje
tenta apagar da história e da memória o incêndio da Kiss. Os familiares me contaram
que frequentemente recebem insultos por se manifestarem. Algumas pessoas
acreditam que se lembrar da tragédia é manchar a imagem da cidade.
Os familiares resistem e tentam explicar à população que as
atividades que fazem são para principalmente lembrar que até hoje não houve justiça.
Na terça-feira, dia de vigília, passei uma tarde inteira na tenda, mas não cheguei a
presenciar esses casos de abordagem da população.
Na quinta-feira, as mães fazem artesanato na associação. Elas
dedicam o tempo para fazer caixas, enfeites, bordar panos, entre outras atividades.
26. 24
Outro exemplo de luta é a ONG “Para sempre cinderelas”, criada in
memorian das vítimas: Andrielle Righi Silva, Flavia Maria Torres Lemos, Gilmara
Quintanilha Oliveira, Mirela Rosa Cruz e Vitória Dacorso Saccol, as quatro melhores
amigas que morreram juntas no incêndio. A Organização não governamental foi
fundada pelas mães: Vanda Dacorso, Ligiane Righi da Silva e Fanny Torres. A ONG
arrecada roupas, brinquedos, mantimentos, produtos de limpeza e dinheiro.
Minha busca não se restringiu aos familiares. No último dia em Santa
Maria, consegui finalmente conversar com dois sobreviventes. É muito difícil encontrar
vítimas que aceitem falar sobre o dia do incêndio; a maioria ou nunca se sentiu à
vontade para falar ou falou muito em algum momento e hoje tenta tirar o foco desse
assunto.
Os sobreviventes são a Rafaela Cruz (22 anos) e o Maike Santos (23
anos). Ambos são estudantes da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).
Conversar com os membros do sindicato dos professores da UFSM
também foi de extrema importância para entender melhor como é a militância dos
familiares, como com Fritz Rivail, assessor de imprensa do sindicato. Os parentes das
vítimas fatais se aproximaram ao sindicato e aos movimentos sociais da universidade.
Outras pessoas também me ajudaram a conhecer e a contar essa história. Claudemir
Pereira, assessor de imprensa do Hospital de Caridade, foi quem precisou atender os
meios de comunicação e ao mesmo tempo as famílias. E divulgar as listas com os
nomes das vítimas.
Melissa Couto, psicóloga e membro da Cruz Vermelha, coordenou a
força-tarefa de profissionais que atendiam os familiares no ginásio.
O hospital da UFSM também dá assistência gratuita a todos que
ficaram com algum tipo de sequela da tragédia, mas alguns familiares relataram a falta
de medicamentos no Sistema Único de Saúde (SUS).
No quarto capítulo deste trabalho, nas crônicas, estão reunidas as
demais informações e detalhes dessas e de outras personagens envolvidas no
incêndio da Boate Kiss.
27. 25
2.1 O PROTAGONISMO DO JORNAL ZERO HORA
A edição do dia seguinte à tragédia – 28 de janeiro de 2013 – tem ao
todo 72 páginas; dessas, 52 trazem informações sobre o incêndio. O caso da boate
Kiss é tratado em reportagens grandes, pequenas, crônicas e infográficos.
Zero Hora, também conhecido apenas como ZH, é o maior jornal do
estado do Rio Grande do Sul. Pertence ao grupo RBS (grande rede de comunicação
que abrange Santa Catarina e o estado gaúcho) produzindo conteúdos para TV, rádio,
jornal e internet. Sua fundação data em 4 de maio de 1964.
É editado em Porto Alegre e circula em todo o estado do Rio Grande
do Sul, além de outros estados do Brasil. De formato tablóide, tem 17 cadernos, mais
de 200 jornalistas e de 100 colunistas. Em 2014, completou 50 anos, já passou por
diversas alterações gráficas a fim de modernizar a aparência. Também é publicado
em versão online na internet.
A divisão do jornal é feita em dois cadernos. As editorias que
compõem o primeiro são: Notícias (assuntos locais), Política, Economia, Mundo e
Social. Já o segundo caderno traz assuntos sobre: Esporte, Entretenimento, Saúde,
Educação, Cultura, Viagem, Casa e Campo, Bem estar e Classificados. Os assuntos
do segundo caderno dividem-se conforme os sete dias da semana.
A escolha desse meio de comunicação é imprescindível, uma vez que,
por meio dele é possível expor aqui informações precisas do incêndio da Kiss e assim
contextualizar o leitor ao tema. Além disso, a análise da forma de abordagem do jornal
a respeito da tragédia também contribui para o processo deste trabalho. A pesquisa
de todo o conteúdo foi feita pela versão digital publicada para assinantes no site do
jornal.
Por ser o principal periódico do Rio Grande do Sul, o destaque na
cobertura do incêndio da Kiss não poderia ser diferente. O jornal enviou repórteres a
Santa Maria poucas horas após a tragédia e divulgou inúmeras reportagens. Dezoito
vezes o assunto foi publicado com chamadas em destaque na capa em 2013. As
publicações não cessaram até o presente momento; o Zero Hora ainda traz dados
sobre o andamento do processo e como as vitimas e familiares dos que morreram
levam a vida depois de tamanha tragédia.
28. 26
Nos oito dias consecutivos posteriores ao incêndio, o assunto foi
publicado com evidência nas capas e com extensas reportagens. Depois a tragédia
foi pautada com menos frequência, voltando às páginas só quando havia novidades
sobre o caso, assim como é natural no dia a dia do Jornalismo. O caso, entretanto,
não deixou de ser lembrado em datas marcantes. Como, por exemplo, um mês após
o ocorrido, na edição de retrospectiva de 2013 e no primeiro ano da tragédia.
É claro o protagonismo do jornal gaúcho. Outro periódico
acompanhado foi o O Globo do Rio de Janeiro, a escolha dele se justifica pela capa
do dia após a tragédia – totalmente atípica no Jornalismo – Com a crônica “A maior
tragédia de nossas vidas” de Fabricio Carpinejar posta acima da manchete.
Entretanto, a mesma evidencia não permaneceu no decorrer do ano, o assunto
apareceu com chamada de capa apenas cinco vezes. E nas edições de um mês e um
ano posteriores ao incêndio, não teve tanto destaque comparado ao Zero Hora.
Algumas das edições do ZH serão esmiuçadas a seguir, com foco
naquelas que dedicaram maior espaço à tragédia.
2.1.2 Edição de capa preta
“O horror, o horror.”
28/01/2013 – O dia em que a capa do jornal Zero Hora ficou quase
que inteiramente preta.
O fundo é todo escuro, na parte superior está apenas o nome do
jornal, a data do dia e o nome da cidade: Santa Maria. A foto que estampa a capa tem
a jovem Yasmin Muller, de 19 anos, com o rosto tampado por um chapéu, e debruçada
sob o caixão do namorado. A gaúcha estava na Kiss com o parceiro e, enquanto ele
se afastou para ir ao banheiro, a boate começou a pegar fogo. Yasmin e Lucas nunca
mais voltaram a se encontrar.
A capa não tem mais chamadas e informações. É tão impactante que,
mesmo depois de dois anos, muitos familiares de vitimas fatais lembram exatamente
como ela é. E até a citaram durante as entrevistas que realizei em Santa Maria. Sobre
capas que fizeram história, José Hamilton Ribeiro considera:
Uma capa-poster, para chegar a ponto de ser considerada “uma peça de
arte”, dependente de variáveis aleatórias como a circunstância do dia, a
29. 27
ocorrência de um fato síntese, a existência da imagem forte. Não é toda
hora que isso acontece. (RIBEIRO, 2003, p. 10).
Figura 1: ZERO HORA, 28 de janeiro de 2013, p.1.
A circunstância: um incêndio que dizimou a vida de 242 jovens e a
imagem de uma moça chorando a morte do namorado sobre o caixão fizeram dessa
página algo atípico e marcante. A capa fala por si só, mas infelizmente ainda tinha
muito que contar nas 52 páginas sobre o caso.
Dezoito reportagens: algumas mais aprofundadas outras mais
concisas. O que os repórteres narraram nesse primeiro dia após a tragédia da boate
Kiss foi o pânico que os mortos e sobreviventes passaram dentro e fora da danceteria,
além da romaria dos parentes na tentativa de achar seus familiares. O
30. 28
jornal mostrou também mapas e infográficos com desenhos da parte interna da Kiss
e listas muito detalhadas das possíveis causas da tragédia. Pouco foi falado sobre
prováveis culpados pelo incêndio. Resumidamente, o que essa edição trata é da dor.
“A dor que jamais apagará” é assim que se intitula a primeira
reportagem: “O horror, o horror”. Estas são as palavras que o repórter David
Coimbra usa para abrir e fechar o texto.
A citação é de um clássico da literatura, “O coração das Trevas” de
Joseph Conrad. O autor narra uma viagem a navio cheia de percalços causados pela
instabilidade do tempo e do mar. Mas, no fim da história, consegue desembarcar em
terra firme junto aos seus companheiros. Situação totalmente diferente de 242 jovens
- que se perderam para sempre em meio a uma fumaça preta e tóxica -, mas as
palavras que narram o horror e o pânico a bordo também serviram para contextualizar
a tragédia gaúcha.
A reportagem segue contando o ocorrido em tempo cronológico,
desde as horas em que as pessoas chegavam à boate até a busca incessante dos
familiares. O texto se estende a quatro páginas, ocupa uma ou duas colunas e o
restante das páginas é preenchido por fotos de familiares chorando e da boate no
momento do incêndio. Coimbra termina com as seguintes palavras:
Muitas meninas lindas, muitos meninos de tênis e camiseta, todos tão
jovens, tão jovens, tão jovens.
O horror, o horror.
(COIMBRA, ZERO HORA, 28 de janeiro de 2013, p. 2)
É evidente a escolha dos repórteres por fontes como pais, mães,
irmãos, tios, amigos. O Zero Hora, entretanto, não limita as narrativas a essas
personagens.
Algumas reportagens mostraram a tragédia sob a ótica e a
experiência de outras pessoas. Como por exemplo, os bombeiros que trabalharam no
resgate de vítimas. A reportagem “A salvação no caos” é ilustrada pela foto em que
os militares aparecem, encostados no carro de bombeiros consternados.
A legenda: “Bombeiros conseguiram tirar em torno de 150 pessoas
vivas de dentro da boate, onde também encontraram muita dificuldade para entrar e
um cenário de morte”.
31. 29
Figura 2: ZERO HORA, 28 de janeiro de 2013, p.20.
A solidariedade também foi destacada, como a dos jovens que
voltaram a entrar na boate para ajudar amigos e outras vítimas. A comoção da
presidente Dilma Roussef que foi até Santa Maria, foi também notícia no jornal.
As páginas vão passando e as informações sobre o incêndio não
acabam; algumas tão minuciosas que, quem as lê, se sente no dia e na hora da
tragédia dentro da Kiss. Houve reações diversas, uma das reportagens mostrou a
página do facebook de uma jovem. Na mensagem em seu perfil ela colocou: “Kiss
pegando fogo. Socorro”. Mas não conseguiu sair com vida.
O grande número de mortes não caberia na página do jornal destinada
aos obituários. O Zero Hora publicou uma lista de 232 vítimas fatais que, até aquele
momento, estavam confirmadas pela secretaria de segurança pública do estado do
Rio Grande do Sul. Os nomes ocuparam quatro páginas: alguns apareceram em
destaque com foto, informações sobre idade, curso, profissão, cidade natal e a
respeito da própria família dessas vítimas. Outras pessoas não aparecem com mais
informações por conta da dificuldade e da falta de tempo naquele momento de
apuração do jornal.
32. 30
Sobre a linguagem, nos textos que tratam do momento em si do
incêndio e das buscas dos parentes, o jornal utilizou palavras e termos comovidos e
totalmente subjetivos. Enquanto nas outras matérias que trouxeram assuntos sobre
legislação e causas do incêndio, a linguagem é mais objetiva.
Essas reportagens foram intercaladas entre crônicas e infográficos. A
edição não tem editorial, mas a parte opinativa foi expressa e reforçada com dez
crônicas de jornalistas e escritores. A autora Martha Medeiros fala como mãe e
representa a situação de milhares de mães que perderam seus filhos na crônica “Nós
que temos filhos”. Assim escreve:
Quem não tem filhos sofre. Quem tem se arrebenta.
Não é algo que se explique. Nenhum racionalismo conforta.
É um soco que nos tira o ar e nos faz lembrar o que tanto buscamos
esquecer: que somos todos vulneráveis diante da fragilidade da vida.
(MEDEIROS, ZERO HORA, 28 de janeiro de 2014, p. 15).
O escritor Luis Fernando Veríssimo vai além da comoção e lembra
que é necessário apurar as causas, buscar os culpados e a justiça. Assim diz em
“Providências” de maneira sucinta:
A revolta pede providências para que tragédias assim não se repitam.
Pede responsabilização clara e exemplar.
Pede, enfim, o que raramente se vê no Brasil.
(VERÍSSIMO, ZERO HORA, 28 de janeiro de 2014, p. 14).
Fabrício Carpinejar expõe seus sentimentos em “A maior tragédia de
nossas vidas”. No texto que, será tratado detalhadamente no quinto capítulo deste
trabalho, o cronista se põe no lugar das vítimas e diversas vezes repete que morreu
pelas mesmas circunstancias que mataram 242 jovens.
Morri em Santa Maria hoje. Quem não morreu?
Morri na Rua dos Andradas, 1925. Numa ladeira encrespada de fumaça.
A fumaça nunca foi tão negra no Rio Grande do Sul. Nunca uma nuvem foi
tão nefasta.
Nem as tempestades mais mórbidas e elétricas desejam sua companhia.
Seguirá sozinha, avulsa, página arrancada de um mapa.
(CARPINEJAR, ZERO HORA, 28 de janeiro de 2014, p. 14).
33. 31
Das 72 páginas dessa edição, o assunto segue sem interrupção de
demais temas até a página 49. Depois o jornal entra em outras editorias, como a de
Esporte, por exemplo, mas que ocupa poucas páginas. Logo voltam as reportagens
sobre a tragédia. Outras editorias, como a de entretenimento encerram a edição.
Todas essas informações estruturam a extensa cobertura do Zero
Hora, a que nenhum outro jornal do país fez. A dor que extrapolou as divisas, fronteiras
e as páginas do jornal e que foram sentidas por um país inteiro.
2.1.3 Memória da tragédia: outras edições
Santa Maria, 27/02/2013
Um mês depois do incêndio que tirou a vida de 239 pessoas, a maioria jovens
universitários, numa boate em Santa Maria, Zero Hora revisita a cidade, as
pessoas, as lembranças dos que morreram, a luta pela vida dos
sobreviventes e as investigações sobre a maior tragédia da história do Rio
Grande o Sul. (ZERO HORA, 27 De fevereiro de 2013, p. 1)
A chamada dessa edição de um mês após o incêndio – 27 de
fevereiro de 2013 – ocupa metade da capa. Dessa vez a cor da página é branca, como
se o preto do luto fosse passando dia após dia para dar lugar ao branco que representa
a luta pela justiça, o que trará mais sensação de paz.
34. 32
Figura 3: ZERO HORA, 27 de fevereiro de 2014, p.1.
Doze reportagens contam ainda mais detalhes do dia da tragédia,
informações que antes não tiveram tempo de serem apuradas. Quem continua
protagonizando as narrativas são os sobreviventes, familiares, amigos e socorristas.
As reportagens não começam logo nas primeiras páginas – o Zero
Hora manteve suas páginas de opinião normalmente. Mais à frente, o editorial traz
duas páginas com artigos lembrando que o caso jamais pode ser esquecido, que é
necessário buscar a justiça, além disso, há entrevista com brasileiros que moram no
exterior e se mostram solidários à tragédia. As reportagens do primeiro caderno são
dispostas bem espaçadas umas das outras.
A seguinte, oito páginas posteriores às do editorial, informa sobre a
programação do dia que foi marcado por uma série de homenagens aos mortos em
toda Santa Maria. Sinos de todos os templos religiosos badalaram acompanhados
35. 33
de salva de palmas durante um minuto nas praças, nas ruas, nos hospitais. Na mesma
página, o jornal explica com detalhamento os atuais e próximos passos do processo
judicial que busca os culpados pelo incêndio.
Passadas muitas páginas, parece que o assunto acabou e não terá
mais espaço nessa edição, mas o Zero Hora surpreende ao publicar extensas
reportagens em um caderno dedicado só às informações sobre o incêndio. A primeira
página do caderno tem as seguintes palavras:
A lembrança das vitimas ainda comove, os exemplos de abnegação e
heroísmo seguem colhendo aplausos, os atos de negligencia que levaram à
tragédia chocam cada vez mais. Neste caderno, Zero Hora revisita essas
experiências por meio de histórias, personagens e detalhes inéditos. (ZERO
HORA, 27 de fevereiro de 2013).
Abaixo dessa apresentação, há imagens e informações de
personagens marcantes da tragédia: a jovem que perdeu o namorado, dois
socorristas, e dois delegados e de pais que perderam a filha. As reportagens contam
muito sobre a experiência deles e se assemelham bastante ao formato perfil.
Reportagem perfil é definida por Felipe Pena da seguinte maneira:
“Procura apresentar a imagem psicológica de alguém, a partir de depoimentos do
próprio, assim como de familiares, amigos, subordinados e superiores dessa pessoa.”
Em “Um chapéu de todos os gaúchos”, da repórter Bruna Scirea, a
história de Yasmin Muller – a jovem da foto de capa da dição do dia seguinte ao
incêndio – é contada. Mas impossível naquele momento falar de Yasmin sem citar
Lucas, o namorado. A reportagem conta em detalhes como o casal se conheceu, os
momentos marcantes da relação, as últimas horas antes da separação que o descaso
armaria. A linguagem do texto é subjetiva, cheia de metáforas e palavras do dialeto
gaúcho. A repórter descreve uma das situações com as seguintes e tocantes palavras:
Quando o ataúde foi depositado no ponto onde ocorreria o velório, a garota
debruçou-se sobre ele e chorou, separada do corpo do namorado, Lucas Dias
de Oliveira, pela folha de madeira. Nesse abraço de despedida, o largo
chapéu negro, no modelo típico dos campeiros do pampa, coroou a superfície
do caixão, escondendo atrás de si as feições de Yasmin. Naquele momento,
não se tratava mais apenas de uma jovem em choque pela perda do amado
de 20 anos. Era o Rio Grane do Sul inteiro que estava ali, debaixo
36. 34
daquele chapéu, em pranto por mais de 230 de seus filhos. (ZERO HORA,
27 de fevereiro de 2013).
Em mais uma reportagem de tom subjetivo e comovente, Letícia
Costa narra a incansável e sofrida busca de uma família pela filha de 22 anos, vítima
fatal da Kiss. Neste caso até detalhes sobre a fé da família são contados.
Outro fato marcante é a explicação das 122 chamadas não atendidas
– o que já foi mencionado nas primeiras páginas deste trabalho. Os telefones não
paravam de tocar no peito das vitimas estendidas na Rua dos Andradas ou no Ginásio
de Esporte (local para onde os corpos eram levados). O celular de Jennefer Ferreira
também tocou incessantemente durante toda aquela noite que parecia não ter fim. 52
chamadas do pai, 16 da mãe, 54 de duas amigas e de um ex-namorado: 122 ligações
que os socorristas ouviam a todo tempo, mas ninguém podia atender.
Quem também ouviu os toques dos celulares foi o coronel da Brigada
Militar, Adilomar Silva. O repórter Marcelo Gonzatto conta a história do militar, desde
a madrugada quando foi acordado com a pergunta de umasoldada:
- O senhor tem lona preta disponível, coronel?
Esse era só o primeiro de inúmeros toques de celular naquela noite.
A dificuldade que o militar enfrentou na organização do transporte dos corpos e dos
velórios no Centro Desportivo Municipal (CDM) também foi relatada.
A reportagem “A luta pela vida no Front” de Larissa Roso também
expõe de forma muito sentimental o trabalho do socorrista Carlos Dornelles, contando
até mesmo detalhes, como as poucas horas de sono que o socorrista teve naqueles
dias de terror.
O sentimento de comoção não deixa de ser o foco na última
reportagem do caso nessa edição. Os repórteres Francisco Amorim e Juliana Bublitz
contam de modo sensível a história dos delegados, Sandro Meinerz e Marcelo
Arigony, colegas dos tempos de faculdade.
A última página sobre a Kiss nessa edição trouxe alguns nomes de
vitimas fatais e algumas poucas palavras ditas por familiares e amigos que
descreveram os jovens mortos.
37. 35
HELENA POLETTO DAMBRÓS
Era uma criança calminha, meiga, brincava com as amiguinhas da escola,
tinha um orfanato de bonecas e todas com os nomes registrados num
caderninho. Ela viveu intensamente cada momento de sua vida e foi muito
feliz. (ZERO HORA, 27 de fevereiro de 2013).
38. 36
Figura 4: ZERO HORA, 27 de janeiro de 2014, p.1.
Na data que completou um ano da tragédia, o Zero Hora retornou mais
uma vez a Santa Maria para conversar com quem esteve direta ou indiretamente
ligado ao incêndio da Kiss. Relatos e detalhes que foram publicados
39. 37
num caderno especial intitulado “Kiss um ano”, seguinte ao primeiro e principal
caderno do jornal.
Antes ainda, na primeira página do periódico, o editorial do Zero Hora
reafirma o compromisso com a memória e com a cobrança da justiça para o caso.
Colunistas seguiram a mesma corrente de indignação nos artigos de opinião.
No caderno destinado às histórias da tragédia, o ZH dedicou duas ou
até três páginas para cada personagem. Como sempre, familiares e amigos ganharam
destaque. Mas 356 dias foram mais que suficientes para trazer à tona tudo o que
aconteceu na vida do prefeito de Santa Maria, Cesar Shirmer, além de um dos
acusados e sócios da Kiss, Mauro Londero Hoffmann, de agentes da polícia civil, entre
outros.
Figura 5: ZERO HORA, 27 de janeiro de 2014, p.60.
O histórico e vida de cada um e como eles agiram ou não agiram antes
e depois do incêndio é contado no caderno especial. O Zero Hora, como sempre,
utiliza linguagem mais subjetiva e comovente quando fala das horas de pânico dentro
da boate e da vida dos familiares de vitimas fatais e de sobreviventes.
40. 38
Muitos destes últimos voltaram ao interior da danceteria a fim de
salvar a vida das pessoas. Outros que tiveram a mesma atitude acabaram não
resistindo e morrendo horas ou dias depois nos hospitais. Histórias de sorte e azar
misturados ao heroísmo estão reunidas na reportagem “Os sete amigos”. O texto que
abre e fecha o caderno conta a relação entre grandes jovens amigos. O jornal intercala
as reportagens sobre a individualidade de cada um dos rapazes com reportagens de
outras personagens.
Todos os textos são extensos. Ao contrário da primeira edição após a
tragédia, em 2013, que trazia muitas imagens de familiares consternados, essa de um
ano se fundamentou nas palavras, nas narrativas textuais. As imagens apareceram
muito pouco.
O conteúdo desta edição não difere muito das edições de poucos
meses depois da tragédia. O diferencial é composto pelos detalhes sobre algumas
personagens e o destaque do caderno especial.
O jornal Zero Hora – como afirmado no início deste capítulo –, além
do serviço de grande fonte de informação sobre o caso da Kiss, mostra de que forma
o Jornalismo pode se posicionar numa grande tragédia. Neste caso especificamente,
a comoção foi o grande fio condutor dos editoriais, artigos de opinião, charges,
imagens, reportagens. Além do destaque e da repetição do mesmo assunto ao longo
desses dois anos após o incêndio. O que fica evidente é que esse jornal foi o veículo
de comunicação protagonista entre tantos outros do país. Talvez porque a
proximidade com o fato possa tornar o jornalismo mais engajado e sensível a uma
causa.
Apesar da grande cobertura, vale ressaltar aquilo que faltou em quase
todas as edições observadas: mais informações a respeito dos acusados pelo
incêndio. O periódico não deixou de falar sobre essas pessoas, mas no ano de 2013,
por exemplo, não publicou muitos detalhes sobre elas. Somente em 2014, quando a
tragédia fez um ano, é que o jornal mostrou várias e importantes informações sobre a
responsabilidade dos acusados no incêndio, além de fatos sobre a própria vida deles.
Entrevistas extensas com os empresários da Kiss também foram vinculadas em 2014.
Esse processo de como pautar e abordar os assuntos de uma tragédia
– com destaque na dor e não na culpa – não é exclusividade do Zero Hora. É possível
citar muitos outros casos dramáticos em que distintos veículos de
41. 39
comunicação se comportaram da mesma maneira. Assunto que será apresentado no
próximo capítulo.
2.2 TRAGÉDIAS EM PAUTA: COMO SÃO AS NOTÍCIAS?
Depois dos estudos de filósofos e de teóricos da literatura, o trágico
transforma-se em essência e deve ser compreendido como alçado à
categoria de substantivo. Desta maneira, designa tanto uma espécie literária
como o caráter terrível de certas situações, de certos acontecimentos, de
certas condições humanas no seu conjunto ou das experiências vividas pelo
indivíduo em sua singularidade. (SANTOS, 2002, p. 10)
Ao longo do tempo, nós como sociedade vivemos inúmeras situações
de tragédia – Incêndios, enchentes, chacinas, desastres naturais ou aéreos. Em todos
esses casos, o Jornalismo esteve e sempre estará presente produzindo notícias. Mas,
afinal, o que é notícia? E de que forma os media tratam as tragédias?
De acordo com Luiz Amaral, no livro Jornalismo: matéria de primeira
página: “A notícia é tudo o que o público necessita saber, tudo o que o público deseja
falar”. “É a inteligência exata e oportuna dos acontecimentos, descobertas, opiniões e
assuntos de todas as categorias que interessam aos leitores”.
O interesse do público pode ser muito abrangente, por isso, ainda é
preciso categorizar as informações de acordo com o grau de importância. Isso ajuda
a filtrar a grande quantidade de fatos que chegam todos os dias às redações de
Jornalismo. Os critérios definem o que será noticiado primeiro com o devido destaque.
Segundo Mauro Wolf, no livro Teorias da comunicação, são muitos
os critérios dos chamados valores-notícias. Eles são dispostos em subdivisões. O
primeiro traz os seguintes critérios: valores substantivos: importância dos envolvidos,
quantidade de pessoas envolvidas, interesse nacional, interesse humano, feitos
excepcionais.
A seguir estão alguns casos que respondem a esses critérios e foram
considerados como trágicos. A discussão sobre a cobertura da mídia sobre eles foi
realizada com base nas reportagens dos jornais O Globo, Folha de São Paulo e Zero
Hora. É evidente que, os apontamentos sobre parte da cobertura da tragédia da Boate
Kiss, contidas no segundo capítulo, também ajudam a responder como são as notícias
em catástrofes.
42. 40
2.2.1 Tragédias
TAM JJ 3054 – No dia 17 de julho de 2007, um avião da TAM Airlines
saiu por volta das 18h do aeroporto Salgado Filho em Porto Alegre – RS com destino
a São Paulo. Uma hora depois, os pilotos não conseguiram pousar na pista do
aeroporto de Congonhas. O avião derrapou, atravessou a avenida do aeroporto, bateu
no próprio prédio da TAM Express e explodiu. 199 pessoas morreram: 187
passageiros e 11 funcionários que estavam em solo. Segundo investigações, as
causas do acidente foram a má condição da pista e a falha nos freios da aeronave.
Mariana: No dia 5 de novembro de 2015, duas barragens da
mineradora Samarco romperam na cidade de Mariana – MG. O rompimento causou a
contaminação do Rio Doce, muita lama e rejeitos sólidos tomaram conta das águas.
35 cidades de Minas Gerais e do Espírito Santo foram atingidas. 15 pessoas morreram
e 4 desapareceram. Cerca de 1.200 pescadores foram prejudicados e 80 espécies de
animais faziam parte do Rio.
2.2.2 Notícias
O Globo – Edição de 18 de Julho de 2007 – um dia depois do acidente.
A foto do prédio em chamas estampa a capa inteira. Na chamada: “Nova tragédia põe
em xeque a segurança aérea do Brasil”. Os problemas da aviação e as possíveis
causas são os assuntos principais. Ao todo são 11 reportagens com as manchetes:
“Tragédia anunciada”; “As pessoas se jogavam do prédio e gritavam
de desespero no fogo”; “Piloto pousou além do ponto e tentou arremeter”; “Pista
estava lisa como sabão”; “Problema pode ter causado acidente”; “Lula convoca
reunião de emergência no planalto”; “Deputado tucano estava no voo”; Lula convoca
ministros e decreta luto de três dias”; “Acidente sobrecarrega Galeão e Guarulhos”;
“Tragédia gol”; ”Saiba como foi o acidente”.
Folha de São Paulo – Edição de 22 de julho de 2007 – quatro dias
após a tragédia – o jornal paulista mostra o acidente aéreo em 15 reportagens. O
destaque é para as vítimas e sobreviventes, como se pode ver nos títulos:
“Avião da TAM com 176 bate em prédio e explode”; “Não sabemos a
extensão dos danos, diz TAM”; “Minutos depois do acidente, Orkut já registrava
43. 41
relatos de parentes e amigos”; “Para Infraero, reabertura de Congonhas deve ocorrer”;
“Deputado estava no voo diz Senador”; “‘É difícil ter forças para enfrentar’, diz tio de
vítima”; “TAM isenta Airbus A320 e defende tripulação a bordo”; “Engenheiro
antecipou hora do voo e embarcou no Airbus A320”; “Tragédia em Congonhas/vítimas:
Avião trazia três famílias inteiras das férias no sul”; “Brincalhão, piloto tinha sido
promovido havia apenas um mês”; “Bombeiros usam mãos para resgatar mortos”;
“Jovem piloto faria último teste para entrar na TAM”; “Para ficar mais tempo com os
filhos, executivo adiantou voo”; “Toque e arremetida”.
Zero Hora – A tragédia de Mariana é capa de quatro edições do mês
de novembro. As fotos que estampam essas capas mostram muita lama no Rio e nas
casas. Edição de 7 de novembro de 2015 – Capa: “Terra arrasada”.
13 de novembro de 2015 – Capa: “R$ 250 milhões, a multa pela lama”
– A reportagem “Mineradora será multada em pelo menos R$ 250 milhões” fala
novamente dos estragos causados pelo rompimento, mas o destaque fica para a
responsabilidade e as possíveis consequências que a Samarco deve ter futuramente.
18 de novembro de 2015 – Capa: “Mariana: recomeço no caos”. As
reportagens: “Recomeço após Tsunami” e “Morador fica e cuida de bichos” conta por
meio dos relatos dos moradores da região, a destruição do meio ambiente, do sustento
de pescadores e das casas das pessoas que moram próximas ao rio.
22 de novembro de 2015 – Capa: “Dizimados na própria casa”. Na
reportagem “Biodiversidade dizimada”, o jornal conta detalhadamente de novo o que
as pessoas, os lugares e os animais sofreram com a lama. Vale ressaltar que nessa
edição fica evidente a repetitiva colocação dos animais como vítimas, assim como em
outras notícias de tragédias em que pessoas aparecem constantemente em estado
de vitimização.
De acordo com as notícias descritas acima, o que se pode notar da
cobertura jornalística em tragédias é que no primeiro momento os jornais dão as
informações principais. Eles respondem as seis perguntas do lead: O quê? Quem?
Onde? Quando? Por quê? e Como? O destaque, entretanto, geralmente fica no O
quê? e no Quem?
44. 42
Para responder à primeira pergunta os repórteres utilizam os relatos
dramáticos de testemunhas ou sobreviventes – e constroem as narrativas em tempo
cronológico – desde horas ou dias antes até o momento crucial que se deu a
catástrofe. O “quem” é explorado por meio das falas dos sobreviventes, ou quando há
mortos, familiares e amigos ganham espaço nos jornais.
O O Globo, por exemplo, publicou as falas de testemunhas que
estavam no local do acidente da TAM: vizinhos e trabalhadores da região do aeroporto
de Congonhas. Já, o Zero Hora, publicou também os relatos dos que conseguiram
sobreviver do incêndio da Kiss.
Mais tarde, passados alguns dias e com a possibilidade de mais
apuração, começam a ser publicadas reportagens aprofundadas das histórias de vida
das personagens. Assim, como exemplo, “Casal que iria se casar morreu no voo”, “A
dor dos familiares”, entre outras reportagens com o mesmo viés ocupam muitas
páginas.
A Folha de São Paulo contou em umas de suas reportagens, do dia
22 de julho de 2007, as histórias de vida de uma família inteira que voltava das férias,
mas que morreu no voo da TAM. O Zero Hora, seguiu a mesma linha, publicando
reportagens aprofundadas sobre os detalhes das vidas dos sobreviventes de Mariana
antes e depois da chegada da lama.
Nas tragédias em que há possíveis culpados, a imprensa acompanha
o andamento dos processos passo a passo e incessantemente nos primeiros meses
posteriores ao acontecimento. Depois as notícias vão perdendo espaço e só
aparecem quando há alguma novidade do caso. Os sobreviventes ou familiares dos
mortos geralmente voltam a ter suas vidas expostas nas datas em que as tragédias
completam um ano ou mais.
Outro ponto importante é que os jornais não dão destaque às causas.
O Zero Hora publicou reportagens aprofundadas sobre a vida pessoal e profissional
dos sócios da Boate Kiss somente um ano após o incêndio. Informações que
poderiam ter sido apuradas e mostradas antes e que com certeza são de interesse de
toda sociedade, uma vez que explicam a facilidade que aqueles empresários de Santa
Maria sempre tiveram para abrir casas noturnas sem fiscalização – Um dos fatos que
contribuiu grandemente para a tragédia.
A cobertura do O Globo sobre o avião da TAM, um dia após o
acidente, fugiu de certo modo do padrão. No calor do momento, não optou por
45. 43
reportagens que exploraram a história das vítimas. O jornal publicou quase que
somente informações a respeito das causas do acidente e da má condição da aviação
brasileira. Essa escolha deve-se à hipótese de que como há dez meses outra grande
tragédia aérea (avião da GOL 1907 – 157 mortos) havia acontecido, o o Globo então,
se preocupou em pautar mais as causas do acidente. Para que assim colocasse em
pauta os problemas da aviação.
A escolha dos media quase sempre por notícias que prezam o drama
vivido pelas vítimas de tragédias pode ser justificada a partir de dois vieses: o público
se interessa pela dor alheia, por isso compra. Enquanto a imprensa que necessita de
lucro, explora a dor e assim vende a notícia.
Sobre nossas reações diante de imagens de dor e sofrimento, Susan
Sontag faz considerações importantes: as pessoas não reagem indiferentemente às
catástrofes, sempre há sentimentos totalmente intensos.
De fato, há muitos usos para as inúmeras oportunidades oferecidas pela vida
moderna de ver – à distância, por meio da fotografia – a dor de outras
pessoas. Fotos de uma atrocidade podem suscitar reações opostas. Um
apelo em favor da paz. Um clamor de vingança. Ou apenas a atordoada
consciência, continuamente reabastecida por informações fotográficas, de
que coisas terríveis acontecem (SONTAG, 2003, p. 16).
Do outro lado, os jornais precisam vender. Esse lucro nem sempre foi
almejado. O Jornalismo teve grande influência da Revolução Francesa, o saber e a
razão fundamentados no Iluminismo fizeram com que os jornalistas fossem capazes
de explorar, vasculhar para trazer à tona a transparência que o movimento francês
pedia. O acesso às notícias, à informação em geral, representava a desconstrução do
poder instituído à Igreja Católica e à Universidade. O saber passava a se difundir e o
Jornalismo era peça fundamental dessa difusão. Assim, Ciro Marcondes Filho explica:
O primeiro jornalismo, de 1789 à metade do século 19, foi, assim, o da
“iluminação”, tanto no sentido de exposição o obscurantismo à luz quanto de
esclarecimento político e ideológico. O controle do saber e da informação
funcionava como forma de dominação, de manutenção da autoridade e do
poder, assim como facilitava a submissão e a servidão. Enquanto eu não sei
que o poder é algo dos homens, associado a seus interesses de domínio e
exploração de outros homens, eu acredito que ele é “natural”, que deus e a
natureza criam homens para mandar e outros para servir. (MARCONDES,
2000, p. 11).
46. 44
Só que os tempos e a realidade mudaram. No final do século 18, os
jornais começaram a perder um pouco essa essência do saber para dar espaço à
atividade financeira.
O segundo jornalismo, o do jornal como grande empresa capitalista, surge a
partir da inovação tecnológica da metade do século 19 nos processos de
produção do jornal. A transformação tecnológica irá exigir da empresa
jornalística a capacidade financeira de auto-sustentação, pesados
pagamentos periódicos para amortizar a modernização de suas máquinas; irá
transformar uma atividade praticamente livre de pensar e de fazer política
em uma operação que precisará vender muito para se autofinanciar
(MARCONDES, 2000, p. 13).
Depois dessa discussão sobre o que é notícia e de que forma ela é
apresentada em tragédias, fica evidente que as informações veiculadas nos jornais
dependem também de critérios subjetivos. As notícias são pautadas, apuradas,
produzidas e divulgadas com base em fatores muito distintos. Jorge Pedro Sousa cita
alguns pontos que interferem nas notícias. Elucidando, assim, que a essência delas
têm muitas explicações e razões de serem como são: todas são movidas por uma
gama de interesses; estes nem sempre relevantes para a sociedade como um todo.
Sousa descreve os interesses:
Acção pessoal – as notícias resultam parcialmente das pessoas e das suas
intenções;
Acção social – as notícias são fruto das dinâmicas e dos constrangimentos
do sistema social, particularmente do meio organizacional, em que foram
construídas e fabricadas;
Acção ideológica – as notícias são originadas por forças de interesse que
dão coesão aos grupos, seja esse interesse consciente e assumido ou não;
Acção do meio físico e tecnológico – as notícias dependem dos dispositivos
tecnológicos que são usados no seu processo de fabrico e do meio físico
em que são produzidas;
Acção histórica - as notícias são um produto da história, durante a qual
interagiram as restantes cinco forças que enformam as notícias que temos
(acções pessoal, social, ideológica, cultural e tecnológica) (SOUSA, 1999).
47. 45
3 EMOÇÕES SEM FILTRO: AS CRÔNICAS DE CARPINEJAR
A maior tragédia de nossas vidas
Morri em Santa Maria hoje. Quem não morreu? Morri na Rua dos Andradas, 1925. Numa ladeira
encrespada de fumaça.
A fumaça nunca foi tão negra no Rio Grande do Sul. Nunca uma nuvem foi tão nefasta.
Nem as tempestades mais mórbidas e elétricas desejam sua companhia. Seguirá sozinha, avulsa,
página arrancada de um mapa.
A fumaça corrompeu o céu para sempre. O azul é cinza, anoitecemos em 27 de janeiro de 2013.
As chamas se acalmaram às 5h30, mas a morte nunca mais será controlada.
Morri porque tenho uma filha adolescente que demora a voltar para casa.
Morri porque já entrei em uma boate pensando como sairia dali em caso de incêndio.
Morri porque prefiro ficar perto do palco para ouvir melhor a banda.
Morri porque já confundi a porta de banheiro com a de emergência.
Morri porque jamais o fogo pede desculpas quando passa.
Morri porque já fui de algum jeito todos que morreram.
Morri sufocado de excesso de morte; como acordar de novo?
O prédio não aterrissou da manhã, como um avião desgovernado na pista.
A saída era uma só e o medo vinha de todos os lados.
Os adolescentes não vão acordar na hora do almoço. Não vão se lembrar de nada. Ou entender
como se distanciaram de repente do futuro.
Mais de duzentos e quarenta jovens sem o último beijo da mãe, do pai, dos irmãos.
Os telefones ainda tocam no peito das vítimas estendidas no Ginásio Municipal.
As famílias ainda procuram suas crianças. As crianças universitárias estão eternamente no silencioso.
Ninguém tem coragem de atender e avisar o que aconteceu.
As palavras perderam o sentido.
(CARPINEJAR, ZERO HORA, 27 de janeiro de 2013 p. 14.)
48. 46
“A maior tragédia de nossas vidas” deixa claros os sentimentos vividos
no momento crucial de uma tragédia. A tristeza e o inconformismo são relatados a
todo o momento. Carpinejar utiliza da subjetividade da crônica e da possibilidade de
atrelar o eu-cronista com a vida das personagens para expressar o que ele mesmo
sentiu, e o que tantas pessoas no mundo inteiro também viveram. O escritor se coloca
no lugar das vítimas e em muitas vezes afirma que morreu. A realidade – a tragédia –
é contada com traços de lirismo e metáforas, como quando dito: “O fogo jamais pede
desculpa quando passa”, além da própria repetição, recurso da retórica que ajuda a
dar mais caráter sentimental e ritmo ao texto.
Carpinejar aponta detalhes do ocorrido que ajudam o leitor a ter bom
entendimento do fato – o que é importante principalmente porque essa crônica foi
escrita poucas horas após o incêndio e publicada na página oficial do escritor no
facebook logo pela manhã. É possível que muita gente que segue Carpinejar tenha
tomado conhecimento da tragédia a partir dessa crônica. Detalhes que ao mesmo
tempo são as informações básicas, como a hora em que acabou o incêndio e a
localização exata da Boate Kiss – Respostas que lembram o quanto a crônica pode
ser informativa – e o porquê dela combinar tão bem com o jornalismo.
Carpinejar, que tantas vezes fala de maneira sensível e profunda de
sentimentos tão comuns ao ser humano, como o amor, por exemplo; dessa vez fez
uso da sua facilidade com as palavras para desabafar o que talvez na hora da
catástrofe tanta gente não conseguiu dizer. Embora ele tenha falado e se lamentado
muito na crônica, termina dizendo: “As palavras perderam o sentido”. A sensação que
diante de um incêndio que matou de uma só vez centenas de jovens, nada mais tenha
importância ou mesmo que seja um significado.
A grande expressividade dessa crônica fez com que ela fosse
compartilhada muitas vezes nas redes sociais, estampasse e fosse posta acima da
manchete da capa do jornal O Globo. É também por esses motivos que ela aparece
em destaque neste trabalho, a leitura dela conduziu à proposta aqui mostrada: se
aprofundar no caso do incêndio e relatar histórias de vida com o gênero textual simples
e muito expressivo. A crônica evidenciou o poder que esse tipo de texto pode ter.
49. 47
Não desistam de viver
A vontade é de abandonar o trabalho, não acordar mais, definhar abraçado ao travesseiro, encolher-
se no canto e não erguer nem mais o braço para atender a porta e pedir ajuda.
Nada tem mais sentido, e ordem.
A vontade é de não ter mais vontade.
Os filhos morreram, os irmãos morreram, os colegas morreram.
Eu entendo.
Entendo que vocês levantarão, sobressaltados, às duas horas de todas as madrugadas de suas
existências, que haverá sempre uma sirene abrindo as ruas do sangue, que será insuportável
raciocinar diante de um alarme dos bombeiros ou de ambulância lá fora.
Entendo que a casa está vazia, como a cidade está vazia, como o corpo está vazio.
Mas não podemos chorar a morte dos familiares se não valorizarmos nossa vida.
Entendo que não será mais a vida idealizada, não será mais a vida planejada, não será mais a vida
que merecíamos.
Mas ainda que seja uma vida desesperada, uma vida atormentada, uma vida traumatizada, ainda é a
nossa vida.
Ainda é a vida que ficou.
Ainda a vida que temos que cuidar.
Ainda é a vida que temos que salvar.
Afinal, nossa vida era tudo o que a gente pretendia assegurar para eles que se foram na boate Kiss.
Gostaríamos que os duzentos e trinta e sete jovens estivessem com a gente, então não podemos
nos jogar fora. Não podemos esnobar a chance de estar aqui.
Continuar a viver é preservá-los.
Continuar a viver é sabedoria.
Continuar a viver é fé.
Continuar a viver é humildade.
Continuar a viver é respeito: é não ser mais vítima do que as vítimas, por mais que doa doer o dia
inteiro.
50. 48
É imperioso cortar o cordão umbilical da Rua dos Andradas, abolir as hipóteses: se eu tivesse
proibido meu filho de sair, se eu tivesse viajado com a família, se eu tivesse telefonado antes, se eu
tivesse sido mais rigoroso...
O “se” não devolve o que perdemos, nem diminui o sofrimento.
A culpa não deve abafar a justiça, o medo não deve sufocar a esperança.
Não há como controlar o destino. A tragédia não aconteceu porque vocês falharam. Vocês,
familiares, não teriam como evitá-la.
O que sobra é amar a si para explicar o que é amor, para explicar o que é saudade.
O que nos resta é a responsabilidade de lembrá-los com garra. De lavar as escadarias das igrejas
com flores. De ir adiante para que esse incêndio criminoso nunca mais se repita em nenhum lugar do
mundo deste Brasil.
Que nossos filhos de Santa Maria jamais morram para a História.
(CARPINEJAR, ZERO HORA, 5 de fevereiro de 2013)
51. 49
Diferente da primeira crônica, Carpinejar mostra mais capacidade de
entendimento e conformismo em “Não desistam de viver”. O tempo que passou e que
deu a possibilidade de perceber inteiramente a realidade. O momento é diferente ao
imediatismo do da tragédia. Dessa vez não só a condição das vítimas é narrada, mas
a dos familiares e amigos que naquele momento começavam a luta do luto. O cronista
empresta voz e espaço para expressar a dor da ausência e do começo da injustiça
em Santa Maria. As frases são diretamente destinadas aos pais, mães, irmãos,
amigos e tantos outros. Assim, Carpinejar dialoga facilmente com essas personagens
que são também leitores de suas crônicas. Por vezes, chega a se colocar novamente
no lugar dessas pessoas.
A crônica inicia com a descrição de tudo o que os familiares estão
pensando e sentindo dias após a vida de seus amados ter sido tirada. Carpinejar
assim diz: “A vontade é de não ter mais vontade. Os filhos morreram, os irmãos
morreram, os colegas morreram. Eu entendo”. Segue a narração do cotidiano de
quem não tem mais a presença de uma pessoa. Carpinejar mostra por meio de
exemplos banais do dia a dia a sensação de vazio. “Entendo que a casa está vazia,
como a cidade está vazia, como o corpo está vazio.”
Na segunda parte do texto, o cronista lembra que após as mortes, é
preciso a luta para não se acomodar diante do descuidado, do desânimo e da injustiça.
Fala também, além de tudo, do sentimento de culpa e de impotência tão naturais
diante da morte, ele tenta convencer os familiares de que esse sentimento de
culpabilidade não tem porque existir. As famílias não tiveram culpa. E é preciso
continuar a vida e lutar contra a injustiça. Mostrar que a morte não foi à toa, lembrar
do que nunca mais pode acontecer: a negligência que matou 242 jovens. “Continuar
a viver é respeito: é não ser mais vítima do que as vítimas, por mais que doa doer o
dia inteiro”.
52. 50
O sapato da filha
Só agora, depois de dois anos da tragédia de Santa Maria, após a perícia e a investigação policial, os
familiares podem reaver os pertences de seus anjos da noite infernal de 27 de janeiro de 2013 na
boate Kiss.
Não resisti em chorar – eu que tenho uma filha de 20 anos –, quando vi na televisão que um dos pais
dos 242 mortos estava procurando o sapato que faltava de sua adolescente.
– Preciso achar!
Sua filha foi puxada dos escombros e do incêndio com o pé direito descalço. Aquele pai desesperado
e angustiado com a perda irreparável está obcecado em vestir pela última vez sua menina.
Aquele pai sabe o que significa o sapato para uma mulher. Sabe o quanto a filha escolheu o sapato
para a balada. Sabe o quanto brigou pelo sapato, dizendo que era caro mas iria durar. Sabe o quanto
ela não tiraria o sapato por nenhum motivo, para não sacrificar o charme e a elegância durante a
festa.
Aquele pai encarna o conto de Cinderela ao avesso. Pretende calçar a filha para reaver a paz em si.
É o mesmo sapato de crochê que botou em seu bebê assim que nasceu. É o mesmo sapato que
ensinou a amarrar quando ela tinha sete anos. É o mesmo sapato que ele pisou, desajeitado, quando
dançava a valsa de debutante de sua jovem. É o mesmo sapato com que comemoraram a entrada na
faculdade.
O sapato é, neste momento, todos os sapatos da vida de sua filha. O sapato que restou. O sapato
sobrevivente. O sapato do qual ele nunca esquecerá o número. O sapato último, definitivo, que não
poderá ser substituído por mais nenhum aniversário.
O sapato que vai equilibrá-lo no pesadelo, na oração, na dor. O sapato para colocar lembranças na
lareira no Natal.
O sapato viúvo dos amores que ela não teve, órfão dos pais que ficaram.
O sapato que é uma forma enlouquecida do pai de continuar caminhando com sua filha.
O sapato sem estrada, sem futuro, andando de volta ao passado.
O sapato envernizado, de couro, ainda novo, arrancado precocemente de sua dona.
O sapato que daria para muitos verões, milhares de sóis, infinitas ladeiras.
O sapato que não se gastou, mais longevo que o destino de uma adolescente.
O sapato que é a possibilidade de segurar o chão de sua filha por mais um instante, de oferecer chão
para sua filha.
O par não terminará incompleto, apesar da enorme injustiça no coração.
Entre uma montanha de bonés, colares, alianças, celulares e identidades, o pai tentará reconhecer o
sapato de sua filha. E levar para casa algo salvo daquela noite.
(CARPINEJAR, ZERO HORA, 9 de dezembro de 2014)
53. 51
As crônicas de Carpinejar também ajudam a contar o percurso da
tragédia da Boate Kiss, não só no calor do acontecimento, mas o que acontece dias
e anos depois.
Em “O sapato da filha”, o autor logo no início conta um novo fato: a
possibilidade dos parentes recuperarem os pertences daqueles que morreram, pois a
Kiss seria aberta para que especialistas fizessem a limpeza do local. Esse fato
acontecido em dezembro de 2014 foi divulgado em muitos veículos de comunicação,
inclusive no jornal Zero Hora, meio de comunicação para o qual Carpinejar escreve
crônicas semanalmente.
Aliás, essa crônica foi publicada no periódico gaúcho na mesma
época da notícia da limpeza. Exemplo clássico de cumplicidade entre jornalismo e
crônica: enquanto os repórteres relatavam como a boate seria limpa, Carpinejar em
seu papel como cronista comentava o fato. O uso da figura de um sapato é o fio
condutor da crônica (o fato miúdo) ganha proporções nas palavras do escritor que fala
da tristeza de um pai que só queria o calçado da filha morta. O escritor mais uma vez
se coloca em primeiro lugar quando cita que também tem uma filha e se sente no lugar
e na dor daquele pai. Toda uma metáfora é construída por meio do sapato que significa
o tudo para quem perdeu uma filha. A repetição é novamente presente no texto de
Carpinejar expressando a todo o momento o sapato.
Na primeira parte da crônica há a descrição de como o corpo da jovem
universitária foi encontrado. “Sua filha foi puxada dos escombros e do incêndio com o
pé direito descalço”. O pé sem o sapato, o calçado que significa tanto para o pai, pois
representa muitas lembranças narradas por Carpinejar. O sapato que foi o primeiro de
crochê qundo a jovem nasceu, o sapato que que o pai ensinou a filha a amarrar ainda
Durant a infância dela, o sapato que também foi calçado na comemoração da aprovação
do vestibular. Tantas lembranças em format de um sapato faz com que o pai procure-o
desesperadamente. Carpinejar utiliza metáforas para expresser essa busca incessante:
“Aquele pai encarna o conto de Cinderela ao avesso. Pretende calçar a filha para reaver
a paz em si”.
A segunda parte do texto fala das ocasiões em que aquele sapato não
estará mais representando o future roubado da filha. O sapato que não conhcerá os
amores da jovem. O calçado que agora significa tudo para um pai, significa todos os
sapatos da vida da filha, a última lembrança da sua menina. O pai só quer o par do
calçado para conseguir a sensação de paz. “(…) o pai tentará reconhecer o sapato de
sua filha. E levar para casa algo salvo daquela noite”.
54. 52
Me tire daqui
Nunca mais tinha dormido em Santa Maria depois da matança da boate Kiss, incêndio que sacrificou
242 pessoas há dois anos, a maior parte jovens e adolescentes, que terminaram presas numa cilada
maquiavélica, impossível de fugir.
Nem sei se deveria escrever algo tão pessoal, que expõe minhas crenças espíritas. Passei a noite
num hotel, satisfeito com a recepção do público e a palestra lotada na Feira do Livro na última quinta.
Só que não dormi. A princípio, jurei que estava preocupado com quem eu amo e já ultrapassava a
meia-noite para telefonar. Mandei mensagens aos familiares e não obtive retorno. Não pretendia ser
histérico – pressentimentos jamais são levados a sério – e aguentei a ansiedade.
Mas, quanto mais a noite avançava, não aquietava o meu espírito, não achava uma posição para
relaxar, liguei e desliguei a televisão, liguei e desliguei a caixinha de música, iniciei e interrompi leitura
de livros. Desceu em mim uma angústia implacável. Não é que dei para chorar copiosamente do
nada, irrefreável, logo eu que não choro com facilidade? Chorei infinito. Cochilava e chorava.
Suspirava e chorava. Como se estivesse com Bluetooth emocional emparelhado em uma data
remota.
No quarto absolutamente confortável, me enxergava emparedado, preso, encaixotado. Tossia
convulsivamente. Cuspia o ar que não vinha. A sensação de sufoco e queimação se agravava, com
um calor anormal no corpo para uma madrugada fria de inverno lá fora. Abri a janela e não
refrescava. Tirei as roupas e não encontrava alívio.
Não ardia em febre. Não sofria de asma. Não apresentava nenhum quadro gripal. Estava bem de
saúde. Porém me arrastava na cama, um cansaço indigente, próximo do desmaio. A pele reagia a um
sobrepeso invisível, suava absurdos e cheirava forte.
Ao fechar os olhos e tentar sonhar, várias vozes conversavam comigo, chat multiplicando borbotões
de janelas na tela do inconsciente. Não entendia nenhuma delas, pela sobreposição dos timbres.
Centenas de recados, gritos e uivos ilegíveis – procurava ajudar e responder. Eu me esforçava para
ouvir e sofria do pânico de não alcançar a velocidade das falas: frenéticas, constantes, passionais.
Sem resultado, ajustava a atenção para aquele vendaval de apelos, o equivalente a sintonizar uma
estação de rádio fora de frequência. Peguei papel e caneta com o propósito de anotar frases soltas e
desconexas, pena que, tamanho o desespero, não lembrava sequer de meu nome.
O que qualquer um pode concluir é que experimentei um sofrimento paranormal. Não se engane:
sobrenatural é a impunidade até hoje da boate Kiss. Se não desfrutei de um minuto de serenidade na
vigência de uma lua, de uma simples lua em Santa Maria, apesar de não ter perdido nenhum parente
ou amigo próximo na tragédia, como os pais das vítimas vão conseguir dormir?
(CARPINEJAR, ZERO HORA, 12 de maio de 2015)
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Seguindo o tempo posterior à tragédia, a experiência pessoal do
cronista aparece agora no lugar das novidades sobre o caso (que neste momento são
mais escassas). “Me tire daqui” fica em torno apenas de uma personagem que é o
próprio Carpinejar. Ele primeiramente lembra do caso, do número de mortos, e em
seguida, descreve sua vivência de apenas uma noite dormida em Santa Maria desde
a tragédia, mas tão significativa e conturbada.
Depois que Santa Maria viveu a tragédia da Boate Kiss, Carpinejar
nunca mais havia voltado à cidade. Na noite após o lançamento de um livro, o autor
tenta repousar no hotel, mas as lembranças daqule dia atormentam e impedem o sono
tranquilo. Nenhuma posição na cama adiantava, tentar se acalmar, nada resolvia. “No
quarto absolutamente confortável, me enxergava emparedado, preso, encaixotado”.
O problema não estava no conforto, nem com a saúde do autor, nem com a situação
de algum familiar ou amigo que ele deixou na capital.
O problema era o ar e o jeito de uma cidade que também mal dorme
depois do 27 de janeiro de 2013. No fim do texto ele volta a mencionar os pais das
vítimas fatais, o sofrimento que esses vivem por causa da injustiça. “(…) como os pais
das vítimas vão conseguir dormir?”
A crônica que também tem muita importância para o processo de
produção das crônicas contidas no quarto capítulo, pois o mal estar vivido por
Carpinejar também foi vivido e lembrado enquanto estive em Santa Maria. O texto do
escritor me ressaltou que era necessário estar perceptível a cada detalhe da cidade
gaúcha, ao ar, ao clima, à energia. Ou seja, a crônica traz muita verdade e
sensibilidade tão comuns a todos textos de Carpinejar.
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3.1 BIOGRAFIA
Fabricio Carpi Nejar nasceu em 23 de outubro de 1972, em Caxias do
Sul, Rio Grande do Sul. É jornalista, escritor, poeta e cronista. As influências para a
escrita começaram ainda muito cedo. Os pais, Maria Carpi e Carlos Nejar, também
são poetas, separaram-se quando Carpinejar ainda era criança. A aglutinação dos
sobrenomes foi uma forma de manter os pais eternamente juntos em Carpinejar.
Apesar do dom genético e da motivação desde o primeiro sopro de
vida, Fabrício enfrentou desafios para alcançar as palavras. Tinha dificuldades de
aprendizagem e de fala. Se comunicar era quase impossível, tanto que alguns
colégios não encontraram pedagogia que se adequasse a ele e desistiram. Ele acabou
sendo alfabetizado em casa pela própria mãe por meio de jogos que ela mesma
propunha.
A partir daquele momento, ele alçaria voo alto para o mundo das
palavras. Em 1998 publicou seu primeiro livro “As solas do sol”, que reúne poemas.
Nos anos 2000 migrou para o campo das crônicas, sua maior marca na literatura
nacional. A maioria das crônicas é oriunda do próprio blog do autor, além dos jornais
para os quais escreve atualmente, o Zero Hora e o O Globo. Ao todo são 28 obras
publicadas, entre poesias, crônicas e contos infanto-juvenis.
Na minha vida, o Fabricio começou a existir e fazer história em 2009
por meio da rede social Twitter. Um dos 17 mil seguidores dele era uma pessoa que
eu seguia e que “retuitou” uma publicação do autor. Qual era a frase já não me lembro
mais, mas os 140 caracteres (limite por cada publicação do site) foram mais que
suficientes para me despertarem o interesse de buscar e conhecer mais do autor.
Comecei a ler as obras dele, como a “O amor esquece de começar” e “Canalha”,
ambas de crônicas e acompanhá-lo nas redes sociais.
A seguir, reproduzo a entrevista completa, que também foi filmada.
Optei por deixar as afirmações de Carpinejar na ordem direta, pois as palavras que
carregam tanto significado e emoção merecem ser expostas da maneira mais original
possível.
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3.2 ENTREVISTA
Como foi organizar a emoção e escrever “A maior tragédia de
nossas vidas”?
- Eu acho que o impacto foi muito forte, eu mal me acordei e vi a
notícia, e aquilo me despertou todos os medos possíveis, que é o medo de quem tem
filho, filha. De quem está esperando eles voltarem pra casa, de quem já foi em várias
baladas e sempre ficou preocupado com: Bah, como eu vou sair daqui?
Foi uma tremenda injustiça, foi um assassinato. Colocar as pessoas
dentro de um lugar sem prever a sua saída, ou seja, foi uma tragédia anunciada. Se
você tá assumindo o risco, com certeza, é uma consequência absolutamente
previsível.
Eu nem filtrei meu sentimento. Foi uma reação sanguínea, cardíaca.
Me tocou profundamente em dois aspectos: o Fabricio que já foi adolescente e o
Fabricio pai. Cruzou a minha adolescência com a minha paternidade. E dificilmente
meu texto vai se recuperar desse tombo, porque foi muito forte mesmo. Foi forte a
sensação de orfandade, de impunidade, de absurdo, de pesadelo, de infertilidade.
Você não acreditar que isso poderia acontecer, mas aconteceu com dezenas,
centenas de pessoas. Acho que matou uma cidade, matou o coração de uma cidade,
matou o futuro de uma cidade.
Matou a leveza de Santa Maria. Já estive lá várias vezes. Fui pra
Santa Maria há pouco tempo, e ela é um purgatório, você sente que tem alguma coisa
irresoluta na cidade. E enquanto não houver justiça, com certeza é uma cidade meio
fantasma, uma cidade zumbi e triste, uma cidade carregada. Eu não consigo dormir
bem em Santa Maria, meu sono é atormentado, eu me sinto preso ainda àquela data,
àquele dia.
Teve esse desamparo, essa desolação. Mas o texto foi muito rápido,
eu só coloquei na fanpage do meu facebook. Foi até pra capa de um jornal e não foi
um texto preparado para aquela edição, foi só publicado na web. Então, foi realmente
muito forte. Outros jornais reproduziram o texto, mas dentro dos cadernos e em
diferentes editorias.
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Como é escrever as outras crônicas sobre o caso? Qual a sua
ligação com a cidade? Como você fica sabendo das coisas que acontecem lá?
- Eu sou muito ligado à cidade, as noticias chegam até mim mesmo
antes de chegarem aos jornais. Nada foi resolvido, ninguém foi condenado a nada.
Ou seja, depois de tanto tempo, continua no mesmo patamar. É matar os pais todos
os dias, eles não se sentem nem um pouco amparados pela justiça. Não têm nem
como levar a vida.
Eu escrevi uma crônica sobre o pai que queria voltar ao local para
pegar os pertences da filha. Ele queria pegar o sapato dela, ele queria qualquer coisa
dela, nem que fosse um sapato. Isso mexe muito com a nossa emoção, um ano depois
de uma tragédia, ele tenta achar o sapato. Ele não vai usar o sapato, não sei o que
ele vai fazer com o sapato, ele não tem o corpo, só o sapato. Mostra a esperança dele,
sem uso. Ele queria os pés dela, queria o chão. O sapato é uma metáfora de terra
firme.
O que é a crônica?
- É uma conversa com o leitor, é o gênero que mais se aproxima ao
leitor. Totalmente biográfico, ou seja, o leitor vai amar ou odiar um cronista. Nunca vai
ter meio termo, não tem como ser indiferente. O cronista vai falar de algo que ele
participou e, a crônica faz uma refrescagem, ela traz à tona o que você não viu o
suficiente. Ela dá uma segunda chance a nossa vida. Uma segunda chance ao perdão,
ao amor, àquilo que tava imerso na rotina e você nunca valorizou.
Até que ponto você acredita que a dor é publicável?
- Até o momento que ela corrompa seu silêncio. Na medida em que
você percebe que a dor não é um patrimônio seu, você pode ajudar muitas outras
pessoas pra saída daquela dor. Você talvez não encontre a saída pra dor, mas
escrevendo, você vai dar instrumentos pra outra pessoa definir a porta.
Eu, muitas vezes, não consegui o amor de volta, mas meu texto fez
com que outros leitores conseguissem o seu.