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BARBARA BLANCO POZATTO
O RÁDIO COMO ATOR:
ANÁLISE DA PEÇA O VÔO SOBRE O OCEANO, DE
BERTOLT BRECHT, SOB O OLHAR DE WALTER BENJAMIN
Londrina
2016
BARBARA BLANCO POZATTO
O RÁDIO COMO ATOR:
ANÁLISE DA PEÇA O VÔO SOBRE O OCEANO, DE
BERTOLT BRECHT, SOB O OLHAR DE WALTER BENJAMIN
Trabalho de Conclusão de Curso
apresentado ao Departamento de
Comunicação da Universidade Estadual de
Londrina, como requisito à obtenção do título
de Bacharel em Comunicação Social –
Habilitação em Jornalismo.
Orientador: Prof. Dr. Manoel Dourado Bastos
Londrina
2016
BARBARA BLANCO POZATTO
O RÁDIO COMO ATOR:
ANÁLISE DA PEÇA O VÔO SOBRE O OCEANO, DE
BERTOLT BRECHT, SOB O OLHAR DE WALTER BENJAMIN
Trabalho de Conclusão de Curso
apresentado ao Departamento de
Comunicação da Universidade Estadual de
Londrina, como requisito parcial à obtenção
do título de Bacharel em Comunicação
Social – Habilitação em Jornalismo.
BANCA EXAMINADORA
____________________________________
Orientador: Prof. Dr. Manoel Dourado Bastos
Universidade Estadual de Londrina - UEL
____________________________________
Prof. Dr. Silvio Ricardo Demétrio
Universidade Estadual de Londrina - UEL
______________________________
Prof. Dr. Alberto Carlos Augusto Klein
Universidade Estadual de Londrina -UEL
Londrina, _____de ___________de _____.
Dedico este trabalho à minha mãe, que
sempre foi incansável na luta pela minha
felicidade. Do ventre aos fichamentos
desta pesquisa e às confusões
brechtianas, ela foi sempre convicta de
que no final ―vai dar tudo certo‖. É ela o
meu banco para empréstimo de forças,
principalmente a de vontade.
AGRADECIMENTOS
Para que este trabalho se realizasse, devo agradecer, principalmente,
ao meu orientador, Manoel, que foi, para mim, é e será, para muitos alunos, um
professor ―acima da média‖. Um dos males da educação é avaliarmos somente os
alunos, mas eu, como professora também, reparo sua força de vontade em ser
presente, em se dedicar à leitura dos mais diferentes assuntos e a, simples e
eficazmente, ensinar. Mais que isso: trocar. Não sei o que seria desta pesquisa se
não fosse sua bibliografia impossível de ser contabilizada. Ademais, agradeço pela
sua humanidade. São raros os professores que veem os alunos como pessoas, não
como números, porcentagens ou mais textos para corrigir; que enxergam as
potências, incentivam os gostos, aprimoram as qualidades. Agradeço pela paciência
com as minhas crises e dramas, por explicar cinquenta vezes a mesma teoria. Eu só
não agradeço pela sua objetividade em me responder, mas, em contrapartida,
agradeço por se dispor até pelo celular. Agradeço pela rua que me deu de presente,
que acabou virando mais que rua, virou história, memória, afeto. E agradeço por me
emprestar um tanto de ―coragem, pra seguir viagem‖, que vai virar companheira do
medo e das paixões.
Agradeço também à minha família – meu pai, minha mãe e meu irmão
–, que não poupa esforços para que eu me realize. O amor de família é o mais rico
de todos, porque não deixa de existir nem com o tempo, nem com a distância. À
minha genitora, agradeço por essa fortaleza, por ser raiz firme e me ajudar nos
balanços da vida, por me ensinar a cuidar dos frutos que a vida me deu e me dá, a
amadurecê-los, não me deixar cair; por auxiliar com as flores que eu ainda preciso
regar para crescerem. Ao meu pai, agradeço por me mostrar a saudade, por lembrar
que eu ―não sou fraca, não‖ e por acreditar em mim, mesmo às vezes se perdendo
na noção do quanto eu venho crescendo; por ser para sempre ―a sua lindinha‖. Ao
meu irmão, por ser o exemplo mais foda que eu conheço. Você é simples na sua
complexidade. Agradeço por ter aguentado desde as minhas ―escavações ao fundo
do poço‖ até os meus atuais desabafos e confusões. Eu sei que, pela vida afora,
vou levar o amor fraterno (forte tal qual é), os conselhos de irmão mais velho, as
suas conclusões irreversíveis (quero dizer, racionais), as suas piadas sem graça, o
dinheiro que eu roubei do seu cofrinho, a confiança (que eu espero que tenha
voltado a existir depois do cofrinho) e os aprendizados de como lidar com as
pessoas, em todos os âmbitos. ―Vida que segue, zermãozinho querido‖. Espero que
seus passos (muito maiores e mais rápidos que os meus) continuem me levando
para frente, pelos caminhos que a gente se colocar.
Aos meus colegas de sala, que me ensinaram a trabalhar em equipe.
Mostraram o quanto isso requer respeito e paciência, ao jeito e ao tempo do outro.
Fizeram-me enxergar esse ―outro‖ diferente, afinal, são quatro anos de convivência.
No fim, vejo um saldo positivo de afeto, pois ele vem, para mim, com a tolerância e a
harmonia embutidos. Obrigada por serem tão diferentes entre si, e por isso
acrescentarem de diversas maneiras distintas.
À minha amiga Luiza Bellotto, que foi incansável em sua função de
ombro firme, de abraço apertado, de lenço para lágrimas, de parceria para trabalhos
chatos (raros legais), de pernas para danças, de ouvidos atentos para desabafos
intermináveis, de paciência para crises repetitivas, de ―lugarzinho‖ para aconchego
nas angústias e de companhia para dias felizes, outros tristes, alguns lotados, outros
vazios. Agradeço desde já pelo futuro que nos aguarda, pois sei que vamos em
frente por estradas diferentes, mas sei que não vou perder seu número, nem
esquecer sua voz ou seu jeito de me dar broncas.
Ao meu pseudo marido, irmão, pai e filho, José Henrique: você é
presente. Em todos os sentidos que a palavra dá. Você eu ganhei da vida. Acho que
juntaram tudo que faltava em mim e colocaram em você, meu bichinho bonito.
Somos a contradição em forma de amor. Obrigada por me acompanhar em todas,
inclusive nesta.
À Marina Lainetti, a amiga-surpresa que colocaram para mim num
momento não muito amigável do curso, prestes a reprovarmos em Economia.
Agradeço por encarar comigo um cronograma maluco para terminarmos nossos
trabalhos, por topar as minhas doidices, compactuar com os meus gostos, as minhas
manias e por entender a minha loucura que, afinal, parece um pouco com a sua, né?
Agradeço por confiar em mim, por me permitir roubar um pouco da sua essência, da
sua vulnerabilidade e da sua graça e dividir comigo o doce que é essa vida (rs). Sou
grata pelas madrugadas loucas, pelas ideias bizarras e pelas conversas e trocas
sensatas.
À minha terapeuta, por me ajudar a desvendar minha existência e,
consequentemente, desmembrar todo esse processo que foi participar do curso de
Jornalismo e fazer esta pesquisa.
Ao Mateus Dinali, Jamile Monteiro e Iago Salomon, meus amigos ―de
infância‖, que estão sempre a me incentivar e ajudar nas intempéries ou
acompanhar nas peripécias. Estiveram presentes em minha fase de colégio, de
universitária e espero que estejam em todas as próximas, assiduamente. Em
especial, Mateus, pela parte australiana, quer dizer, inglesa do trabalho.
Agradeço aos professores da graduação, em especial ao Emerson
Dias, Márcia Buzalaf, Flávio Freire, Silvio Demetrio e o já mencionado Manoel D.
Bastos, por serem dedicados ao trabalho de passar conhecimento ao próximo.
Aproveito para agradecer à banca pela disposição e atenção e ao senhor Luiz,
servidor da secretaria, o qual nos recepciona todas as noites com um sorriso inteiro
no rosto.
Também agradeço aos meus professores de teatro, Silvio Ribeiro,
Edna Aguiar, Carol Ribeiro e Guilherme Kirchheim, por acreditarem na arte como
resposta às angústias e prisões dessa realidade tão cruel a que estamos
submetidos. Meu ―muito obrigada‖, com todo o meu coração, por me mostrarem que
eu podia ser mil, estando no corpo de uma só; por transformarem meus pontos de
vista, minha maneira de ―enxergar‖ o mundo e me deixar ser inteira, intensa. E,
claro, por terem me apresentado Bertolt Brecht nos palcos.
Que tempos são estes, em que temos que defender o óbvio?
Bertolt Brecht
POZATTO, Barbara Blanco. O rádio como ator: análise da peça O vôo sobre o
oceano, de Bertolt Brecht, sob o olhar de Walter Benjamin. 2016. 95. Trabalho de
Conclusão de Curso (Graduação em Comunicação Social – Habilitação em
Jornalismo) – Universidade Estadual de Londrina, Londrina, 2016.
RESUMO
O dramaturgo alemão Bertolt Brecht buscava o rompimento com a tradição, ou seja,
a arte sempre deveria cumprir um intuito político e social. Para tanto, de acordo com
o contexto em que estava inserido, revolucionou o teatro do século XX. Este trabalho
pretende analisar O vôo sobre o oceano – peça didática radiofônica para rapazes e
moças, escrita em 1928/29, trazendo à tona a perspectiva histórica do rádio e suas
discussões, as quais perduram na atual comunicação social. Explicita, inclusive, a
Teoria do Rádio do próprio Brecht. Além disso, mostra os moldes e ideais do Teatro
épico, bem como das peças de aprendizagem do autor. Apresenta, também, a
perspectiva de pensadores consagrados como Walter Benjamin, por meio de seu
conceito sobre ―A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica‖ e demais
considerações sobre o teatro dialético proposto em convergência com a
comunicação e as forças de produção.
Palavras-chave: Bertolt Brecht. Teatro épico. Teoria do rádio. O vôo sobre o
oceano. Walter Benjamin.
POZATTO, Barbara Blanco. The radio as an actor: analysis of the theater play The
flight across the Ocean, by Bertolt Brecht, through the perspective of Walter
Benjamin. 2016. 95. Course Final Work (Graduation in Social Communication –
specialized in Journalism) – State University of Londrina, Londrina, 2016.
ABSTRACT
The German playwright Bertolt Brecht sought to break with tradition, meaning that the
art should always serve a political and social purpose. To this end, according to the
context in which it was entered, it revolutionized the theater of the twentieth century.
This work intends to analyze The flight across the Ocean - radio didactic play for men
and women, written in 1928/29, revealing the historical radio perspective and its
discussions, which persists in the current social communication. It also explicit the
Radio Theory by Brecht himself. Moreover it shows forms and ideals of the epic
theater, as well as the author's learning plays. It also presents the perspective of
great thinkers, such as Walter Benjamin, through his concept about "The Work of Art
in the Age of Mechanical Reproduction" and other considerations about the
dialectical theater proposed in convergence with the communication and the
production forces.
Key words: Bertolt Brecht. Epic Theater. Radio Theory. The flight across the Ocean.
Walter Benjamin
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO..........................................................................................11
2 TEATRO MODERNO................................................................................16
3 BERTOLT BRECHT .................................................................................23
3.1 O TEATRO ÉPICO...........................................................................................28
3.1.1 As Peças de Aprendizagem .......................................................................38
4 SOB O OLHAR DE WALTER BENJAMIN ...............................................50
5 O ADVENTO DO RÁDIO NA ALEMANHA...............................................64
5.1 TEORIA DO RÁDIO DE BRECHT .......................................................................66
6 ANÁLISE E APONTAMENTOS SOBRE O VÔO SOBRE O OCEANO ...76
7 CONSIDERAÇÕES FINAIS .......................................................................86
REFERÊNCIAS.........................................................................................90
ANEXO .....................................................................................................94
ANEXO A – CD-ROM com a peça radiofônica O vôo sobre o oceano
digitalizada (PDF)......................................................................................94
11
1 INTRODUÇÃO
Este trabalho é resultado da minha afeição com a parte cultural que
envolve comunicação. Ao longo do curso, diversos foram os temas pensados, mas,
depois de muitas discussões acerca do assunto, optou-se por este, que traz à tona o
universo do teatro participando da comunicação e vice-versa.
Traz também minha inquietação para conseguir aproximar os dois
universos, já que, antes – e durante – o curso de Jornalismo, minha vida foi
dedicada à prática teatral.
Trata-se de entender a fundo o que os comunicadores podem
apreender com o teatro, e o que os atores (ou o teatro em geral) podem apreender
com os comunicadores.
Intenta-se, nesta pesquisa, traçar um paralelo da comunicação social
com o teatro, a partir de um dramaturgo, poeta e encenador alemão muito
consagrado pelos seus ideais e pensamentos no século XX, Bertolt Brecht, o qual
tem artigos e peças bastante influentes e significativos para a atualidade.
Faz-se pertinente ressaltar à contextualização de seus pensamentos
que ele se dedicou ao estudo do marxismo e viveu o intenso período das
mobilizações da República de Weimar.
A série de conflitos que ocorriam em diversas partes do mundo
prenunciava a eclosão de uma grande guerra mundial. A Alemanha
ostentava uma oligarquia financeira compacta, resultado de uma
concentração do capital industrial aliado ao capital bancário,
formando monopólios poderosos. Nesse cenário, a classe operária
passava por momentos difíceis e de uma forma bastante tímida no
início, eclodiam esporadicamente movimentos de revolta contra o
regime burguês. Não é, portanto de se estranhar, que toda a obra de
Brecht virá marcada pela luta contra o capitalismo e contra o
imperialismo. (OLIVEIRA, [2013]).
Assim foi a república estabelecida na Alemanha após a Primeira
Guerra Mundial, em 1919, perdurando até o início do regime nazista, com um
sistema de governo chamado de democracia representativa semi-presidencial. O
nome oficial da Alemanha continuou, sob a República, a ser Deutsches Reich
(literalmente, Império Alemão).
Na eleição de 1919, a primeira em que as mulheres puderam votar, o
resultado foi a democracia parlamentar. Então, a Constituição foi promulgada em
12
agosto daquele ano, acentuando a unidade alemã. É preciso salientar que as
dificuldades econômicas do pós-guerra e as rigorosas condições impostas pelo
Tratado de Versalhes originaram um profundo ceticismo em relação à república.
Este período tem o nome de Weimar, pois foi essa cidade que reuniu,
desde 6 de fevereiro até 11 de agosto de 1919, data da aprovação da nova
Constituição, a Assembleia Nacional constituinte da República. A fragilidade dessa
república, formada pelo socialdemocrata Friedrich Ebert, contribuiu para a expansão
de movimentos radicais e para fortalecer os nazistas.
Nesse ambiente conturbado, Adolf Hitler, então chefe do pequeno
Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães (NSDAP), tentou um golpe
fracassado em Munique. A época também foi marcada por tentativas dos comunistas
de tomar o poder, até que, em 1933, o regime nazista teve início solidamente.
Sabe-se, inclusive por intermédio de Fredric Jameson (1999, p.89), da
sanha genocida de Hitler, principalmente as relativas ao holocausto. Brecht não quis
―pagar para ver‖ e em 28 de fevereiro de 1933, dia seguinte ao incêndio do
Reichstag, fugiu da Alemanha com a família para o exílio.
Ficou restrito ao campo da esquerda as investidas nazistas contra os
partidos dos trabalhadores e todas as suas organizações. Nas palavras de Eve
Rosenhaft (1994, p. 20):
[...] bares, diretórios de partidos, sindicatos, jornais, livrarias, salas de
leitura, clubes, hospitais, escolas, centros de assistência social e
teatros que fizeram o tecido da cultura de Weimar foram os primeiros
objetos da onda de vandalismo oficial realizada em nome da ordem,
da decência pública e da economia.
O trabalho de Brecht como artista concentrou-se na crítica às relações
humanas no sistema capitalista. Além disso, foi assíduo conhecedor do teatro
político de Erwin Piscator. Outros nomes também foram de suma importância ao
trabalho de Brecht, como Vsevolod Emilevitch Meyerhold e Viktor Chklovski.
Também procurou basear-se no teatro experimental da Rússia soviética.
Passando para o campo da comunicação, este trabalho parte do
pressuposto de que o comunicador tenha consciência cultural, social e política,
fatores concernentes à vivência diária.
Considerando tal proposição, é importante lembrar o sistema a que
estamos submetidos, chamado de capitalista, justamente por ter o ―capital‖ como
13
fator crucial e preponderante nas relações humanas. Esse fato, lembrado com
ênfase nos trabalhos artísticos e teóricos de Brecht, faz de suas criações críticas e
atuais, levando em conta que se deve sempre refletir sobre a situação em que
estamos inseridos. Para o autor, o socialismo era a própria promessa do progresso
social, avanço das forças produtivas rebelando-se contra as relações de produção.
Como meio de criticar artisticamente a realidade e, então, o sistema em
que estava inserido, Bertolt Brecht propôs uma maneira diferente de pensar o teatro:
O teatro que conheceu, o teatro burguês, também é – como ele
percebeu – um substituto para o entorpecente. Sua missão como
pensador foi a de arrancar o teatro dessa condição e restituir-lhe um
sentido efetivo. Sua missão como artista, a de fazer uma realidade
dessa ideia. Desde que o teatro, comparado com os outros, é um
entorpecente fraco, cumpre descobrir sua força no exercício de outra
função. (MACIEL, 1967, p.4).
Portanto, a fim de satisfazer suas indignações com o teatro feito em
sua época, que não o satisfazia como possibilidade de diversão, formulou o teatro
épico, uma das grandes teorias de interpretação do século XX, a qual propõe uma
interpretação gestual, em que o público exerce uma operação crítica do
comportamento humano. Não é oferecido ao público que ele se ludibrie com as
encenações, mas sim que consiga examinar as cenas de forma pensante.
Atendo-me a tais preceitos, este trabalho tem como segundo capítulo
uma breve exposição do Teatro Moderno ou conhecido como Pós-dramático, a fim
de contextualizar a época em que Brecht surgiu e tornou-se atuante e significativo.
Tal teatro é organizado por conta das mudanças sociais e políticas da passagem do
século XIX ao século XX, o que faz a forma teatral ser alterada.
Aparece, então, a questão das novas técnicas de produção e
reprodução, o que chamamos hoje de meios de comunicação. Brecht tenta colocar
em suas obras a discussão sobre a inovação técnica, pelo rádio e o avião, por
exemplo, como aparece na peça-objeto deste trabalho.
Em seguida, dar-se-á a apresentação da biografia, trajetória e legado
de Bertolt Brecht, propondo uma assimilação do que se entende por seu teatro épico
e o interligado Efeito do Distanciamento. Como adendo e a fim de explanar melhor o
objeto em estudo, também trataremos dos preceitos que conceituam as peças de
aprendizagem.
14
Para que se solidifique a ponte entre comunicação e teatro, foi
escolhida como objeto de análise e base para as demais considerações, a peça O
vôo sobre o oceano – peça didática radiofônica para rapazes e moças, escrita em
1928/29, a qual conta a história do primeiro voo sobre o oceano Atlântico feito por
um aviador solitário no comando do avião.
Essa peça, como mostra o subtítulo, foi escrita para ser transmitida por
meio do aparelho radiofônico, o qual, segundo Brecht, deveria ter o imperativo da
interatividade, ou seja, deveria ser feito para permitir a interação entre os homens,
não ser apenas um aparelho de emissão controlado pelos monopólios e a serviço da
lógica mercantil. A peça apresenta uma utilização inédita do rádio: foi feita para o
rádio e o rádio é "personagem" da peça, pois conta, de diversos ângulos, as
intempéries pelas quais passa o herói.
A escolha de Brecht por escrever uma peça radiofônica não aparece
sozinha, pelo contrário, tem o respaldo de ser, ainda, considerada didática. A autora
Urânia de Oliveira cita Ingrid Koudela (1991) e expõe que o termo original em
alemão é Lehrstück. Afirma que a tradução mais correta desse termo seria ‗peça de
aprendizagem‘, ―à medida que o termo ‗didático‘ na acepção tradicional, implica
‗doar‘ conteúdos através de uma relação autoritária entre aquele que ‗detém‘ o
conhecimento e aquele que é ‗ignorante‘‖ (KOUDELA apud OLIVEIRA, [2013]). A
função das Lehrstücke – peças didáticas – era fazer que seus participantes fossem
ativos e reflexivos ao mesmo tempo.
Para expandir o pensamento comunicacional sobre a arte, conceitos e
ponderações de autores relevantes se farão presentes, tais como o de Walter
Benjamin, o qual escreveu artigos pertinentes em relação ao nosso objeto: ―Que é o
teatro épico? – Um estudo sobre Brecht‖ e ―O autor como produtor – Conferência
pronunciada no Instituto para o Estudo do Fascismo em Paris, 27 de abril de 1934‖.
Além do mais, Benjamin redigiu importante consideração sobre as
relações entre cultura e os meios de comunicação em ―A obra de arte na era de sua
reprodutibilidade técnica‖, que também será útil à nossa análise comunicacional.
Isso porque Brecht trabalhou duplamente com a questão da
reprodutibilidade técnica, com a comunicação como conteúdo de uma peça de
teatro, mas também como forma. Pensando em explorar esses conceitos, o quarto
capítulo é intitulado ―Sob o olhar de Walter Benjamin‖.
15
Já que Brecht usa o rádio, considerado um meio de comunicação, para
difundir seus pensamentos e aprendizagens em conjunto, escolheu-se abordar, no
quinto capítulo desta pesquisa, a apresentação do rádio no contexto alemão da
época e a Teoria do rádio para o escritor alemão, na qual ele expõe seus ideais de
como deveria funcionar esse meio de comunicação, ou seja, o ouvinte também
poderia promover o ato de comunicar.
A fim de expandir a possibilidade analítica deste trabalho, destrinchar-
se-á o objeto desta pesquisa, que se trata da peça O vôo sobre o oceano – peça
didática radiofônica para rapazes e moças. A intenção, no sexto capítulo, é
contextualizar a época em que foi escrita, contar do que se trata e considerar os
pormenores significativos ao entendimento e interiorização da obra, partindo dos
pressupostos mencionados nos capítulos subsequentes.
Deve-se considerar e lembrar que a posição de Brecht em relação aos
prazeres da cultura de massas atravessa a tão engendrada oposição entre
populismo e elitismo. Isso significa que a sua função não é o prazer, mas pensar
historicamente estética e cultura, perpassando a comunicação.
Lembro, então, que é preciso ler o texto como um todo, um conjunto
que se complementa, já que aos comunicólogos pode parecer que há muito teatro.
Aos amantes do teatro, parecerá que existe demasiada comunicação. O que quero
mostrar com este trabalho é que, depois de Brecht, é preciso buscar entender a
relação entre os dois.
16
2 TEATRO MODERNO
Para elucidarmos melhor a época em que Brecht apareceu no contexto
mundial, é primordial que adentremos no âmbito da transição do teatro dramático,
denominado aristotélico pelo autor, até o Teatro Moderno, de que Brecht é parte.
Este capítulo objetiva abordar essa época expondo as principais características
inerentes às pesquisas e experimentações de artistas e pensadores de destaque,
nesse período considerado conturbado em relação às mudanças na arte.
A fim de atingir uma melhor compreensão sobre o intervalo de tempo
posto, propõe-se uma gama de autores que refletem, com nomeações variadas,
sobre o Teatro Moderno. Como base para a exposição dos conceitos, usaremos
autores como Peter Szondi e a Teoria do drama moderno [1880 – 1950], Iná
Camargo Costa e suas obras Sinta o drama e Nem uma lágrima: teatro épico em
perspectiva dialética, bem como Raymond Williams e seu livro Drama em cena. Tais
obras também farão parte das reflexões sobre o teatro épico exposto mais adiante.
Não é o objetivo deste capítulo suscitar as características marcantes do
teatro épico formulado e teorizado por Brecht, mas apontar as diferenças enfáticas
entre o teatro postulado como dramático e o aqui chamado de Moderno. É com base
na historicização que ressaltaremos as transformações do teatro para o século XX.
De acordo com Iná Camargo Costa (2012, pp.15-16), podemos elucidar
melhor o que é o drama:
Segundo uma definição quase aceitável por qualquer manual do
século XIX, drama é a forma teatral que pressupõe uma ordem social
construída a partir de indivíduos [...] e tem por objeto a configuração
das suas relações, chamadas intersubjetivas, através do diálogo. O
produto dessas relações intersubjetivas é chamado ação dramática,
e esta pressupõe a liberdade individual (o nome filosófico da livre-
iniciativa burguesa), os vínculos que os indivíduos têm ou
estabelecem entre si, os conflitos entre as vontades e a capacidade
de decisão de cada um. (grifo da autora)
E ela completa explanando que, como característica, o enredo do
teatro dito dramático funciona, principalmente, por meio do diálogo, devendo ter, de
modo claro, começo, meio e fim, em uma determinação tipicamente temporal,
chamada de enredo ou entrecho, com a possibilidade da existência do nó dramático,
nó cego, desenlace, entre outras nomenclaturas.
17
Além disso, o drama pressupõe que se tenha suspense, deixando o
público ―preso‖ pela curiosidade em relação ao desfecho da história. A autora
também exprime que, no drama, ―não há lugar para o inexprimível (o que não se
traduz em discurso, incluindo ‗caras e bocas‘), pois ele expõe relações
intersubjetivas‖ (2012, p.16, grifo da autora). Ademais, os temas que interessam ao
drama precisam estar no âmbito dessas relações, ou seja, precisam pertencer à vida
privada.
Essas exigências levam-nos ao princípio formal do drama: a
autonomia. O drama deve ser um todo autônomo, absoluto. Não
pode remeter a um antes, nem a um depois e muito menos ao que
lhe é exterior. [...] A exigência das unidades dramáticas não é, por
isso, mero arbítrio de críticos ranzinzas, mas consequência
necessária do princípio formal. [...] Assim, trocando mais em miúdos,
sobre os personagens do drama pode-se dizer que devem ser
indivíduos bem caracterizados, e é por essa razão que os críticos
exigem profundidade psicológica dos dramaturgos. Esses indivíduos
devem ser capazes de assumir seu próprio destino, bem como as
consequências dos seus atos, sem se submeterem a instâncias
externas ou superiores (fatalidade, deuses, tradições). (COSTA,
1998, pp. 56-57, grifo da autora).
A profundidade psicológica por parte dos indivíduos da peça será
enfatizada pela interpretação do autor, como mostra Szondi (2001, p.31): ―A arte do
ator também está orientada ao drama como um absoluto. A relação ator-papel de
modo algum deve ser visível; ao contrário, o ator e a personagem têm de unir-se,
constituindo o homem dramático‖.
Outra consequência que tange às interpretações dramáticas é a
relação com o espectador, objetivada na quarta parede, que se trata de uma parede
imaginária situada na frente do palco do teatro. Sendo assim, o ―drama exige do
espectador uma passividade total e irracional: separação ou identificação perfeita‖
(COSTA, 2012, pp.16-17). É por esse fator que a cena frontal é a cena própria para
o drama e o autor se identifica absolutamente com o personagem.
Para ratificar tal elucidação, temos a compreensão de Peter Szondi
sobre o drama e a relação estabelecida com o público:
Assim como a fala dramática não é expressão do autor, tampouco é
uma alocução dirigida ao público. Ao contrário, este assiste à
conversão dramática: calado, com os braços cruzados, paralisado
pela impressão de um segundo mundo. Mas sua passividade total
tem (e nisso se baseia a experiência dramática) de converter-se em
18
uma atividade irracional: o espectador era e é arrancado para o jogo
dramático, torna-se o próprio falante (pela boca de todas as
personagens, bem entendido). A relação espectador-drama conhece
somente a separação e a identidade perfeitas, mas não a invasão do
drama pelo espectador ou a interpelação do espectador pelo drama.
No século XX, que dá voz e vez ao Teatro Moderno, os fundamentos
estéticos e racionais vivenciados no século anterior, em que predominava o
Naturalismo cênico, principalmente no que se refere à interação entre plateia e
atores, foram transgredidos e desafiados, trazendo à tona inovações teatrais, por
meio de experimentações no modo de fazer teatro.
Levando em consideração as análises sobre as mudanças na forma
teatral, em que a classe de operários passa a tomar conta do espaço teatral, de Iná
Camargo Costa (1998, p.20), temos:
A experiência social dessas novas realidades é o novo conteúdo que
a forma do drama já não tinha como configurar. O drama naturalista
foi, historicamente, a primeira tentativa de dar conta dele, por isso
sua natural incapacidade de superar as dificuldades que a camisa de
força da antiga forma impunha: [...] a necessidade de dar voz no
teatro à classe operária que começava a conquistar espaço na cena
política fez com que o drama começasse a narrar e o drama deu o
primeiro passo em direção ao teatro épico. (grifo da autora).
Dessa forma, o conhecido ―melodrama‖ burguês, do final do século
XIX, não aceita em seu conteúdo o que ―quer continuar a enunciar formalmente: a
atualidade intersubjetiva. O que vincula as diversas obras da época e remonta à
mudança ocorrida em sua temática é a oposição sujeito-objeto, que determina seus
novos contornos‖ (SZONDI, 2001, p.92).
Rompe-se, portanto, com o idealismo romântico e faz surgir o
Realismo, cujo um dos representantes foi o russo Anton Tchekhov (1860-1904), o
qual retratava o declínio da burguesia russa. Na concepção de José A. Pasta Júnior
(2001, p.13), analisando a obra de Peter Szondi, temos:
Szondi identifica, na tradição, o momento em que se constitui a forma
do drama propriamente dito. Para ele, o drama da época moderna
surgiu no Renascimento – quando a forma dramática, após a
supressão do prólogo, do coro e do epílogo, concentrou-se
exclusivamente na reprodução das relações inter-humanas, ou seja,
encontrou no diálogo, sua mediação universal. O drama que surge
daí é ―absoluto‖, no sentido de que só se representa a si mesmo –
estando fora dele, quanto realidade que não conhece nada além de
19
si, tanto o autor quanto o espectador, o passado enquanto tal ou a
própria convizinhança dos espaços. (grifo do autor)
Estudando, sucessivamente, Ibsen, Tchékhov, Strindberg, Maeterlinck
e Hauptmann, o procedimento de Szondi será o de examinar, nas peças, a
contradição crescente entre a forma do drama, presente nelas como modelo não
diretamente questionado, e os novos conteúdos que elas tratam de assimilar.
Segundo Pasta Júnior (2001, p.14):
O núcleo do confronto, que caracteriza a crise da forma dramática,
encontra-se na crescente separação de sujeito e objeto – cuja
conversão recíproca era a base da absolutez do drama –, separação
que mais e mais se manifesta nas obras, principalmente pela
impossibilidade de diálogo e pela emersão do elemento épico.
Iná Camargo Costa (2012, p.91), por sua vez, faz um resumo
pertinente sobre as estruturas desses autores enfatizados por Szondi:
Com Hauptmann, vimos a forma do drama burguês operando como
um obstáculo real para a exposição da luta ocorrida na Silésia. Ibsen
questionou objetivamente a universalidade do conceito burguês de
indivíduo, mostrando que ele exclui pelo menos a metade feminina
da humanidade. Tchekhov mostrou que a burguesia e sua forma
teatral não tinham futuro. Strindberg descobriu, com o drama de
estações, uma forma de romper com a objetividade do drama,
abrindo o caminho para o aparecimento do foco narrativo e, com ele,
a possibilidade de ultrapassar as limitações da narrativa dramática,
que exige, entre outras determinações, o encadeamento causal dos
acontecimentos. As duas gerações do Expressionismo consolidaram
a forma épica, e a segunda mostrou o seu interesse para os
trabalhadores na exposição de seus próprios assuntos.
Marca-se, então, a eclosão de novos movimentos que começaram a se
instaurar em oposição às ―regras‖ artísticas antes dominantes. De acordo com Pavis
(1999), no Dicionário do Teatro, o Expressionismo teve início por volta de 1910, na
Alemanha, rejeitando a ilusão criada em cena pelo Naturalismo. O expressionismo
inovou o cenário de forma radical, estilizando e distorcendo os elementos da cena.
Tinha como foco chamar a atenção do público para a arte em si mesma e não para a
imitação da vida.
Retomando um teorema de Peter Szondi: a forma do drama tornou-
se um problema para os dramaturgos naturalistas que estavam
interessados em encenar assuntos definidos como épicos pelos
próprios adeptos do drama. Tornou-se mesmo uma camisa de força
20
que começou a se esgarçar nas mãos dos naturalistas e acabou se
rompendo ao tempo do teatro expressionista [...]. Sem muito
exagero, é possível dizer que dramaturgos expressionistas como
Georg Kaiser e Ernst Toller, na trilha dos experimentos de
Strindberg, já tinham encontrado uma nova forma de teatro não-
dramático. Só lhe faltava um nome. A essa tarefa dedicaram-se os
militantes do teatro político na Alemanha. (COSTA, 1998, p.98).
Georg Kaiser (1878-1945) e Ernst Toller (1893-1939), como apontado,
foram precursores do Expressionismo no teatro, e em seus trabalhos mostravam a
expressão do sentimento humano, em vez de apenas retratar a sua realidade
externa. Além disso, mostravam o homem em luta contra a mecanização
desumanizadora da sociedade industrial.
Mesmo com todas as diferenças que apresentam entre si, os
dramaturgos estudados nesse período se caracterizam pela assunção e
enfrentamento da crise da forma dramática, não se limitando a manifestá-la ou fugir
dela. Pode-se afirmar que, ao contrário,
[...] da perspectiva de Szondi, praticamente todos eles procuraram
―solucionar‖ a crise do drama assumindo como elementos temáticos
e formais, tão plenamente quanto possível, os elementos
contraditórios em cuja emersão ela se manifesta e, assim,
procurando recuperar para o teatro uma integridade estética à altura
dos impasses que ele defronta. (PASTA JÚNIOR, 2001, p. 17).
As duas primeiras décadas do século XX, segundo Costa (1998, pp.16-
17) assistem ao vertiginoso desenvolvimento dessas tendências por quase toda a
Europa e Estados Unidos. São muitos os autores que se colocam à disposição de
tais mudanças. Na Rússia, Gorki, Maiakóvski, Stanislaviski, Meyerhold; na
Alemanha, Hauptmann, Kaiser, Toller, Sternheim, Piscator, Max Reinhardt, entre
outros; na França, depois de Antoine e seus dramaturgos naturalistas, aparecem
Jacques Copeau, Romain Rolland, Jacques Prévert, Baty, Dullin, Jouvet e Pitsoëf;
na Itália, Pirandello e Bragaglia; na Inglaterra temos Bernard Shaw, O‘Casey e
Synge; e nos Estados Unidos, Elmer Rice, O‘Neill e Clifford Odets, entre inúmeros
outros.
Com a ascensão do nazismo, especificamente na Alemanha, em 1920,
muitos artistas estavam preocupados em trabalhar temas coletivos, reforçando a
abordagem anti-naturalista. Essa nova estética passa a ser conhecida como teatro
épico, cujo pioneiro foi Erwin Piscator (1893-1966), que teve como discípulo e
21
militante o alemão dramaturgo e poeta Bertolt Brecht (1898-1956), o qual
abordaremos com afinco no decorrer deste trabalho. As experiências de ambos
―principiam ali onde a contradição entre a temática social e a forma dramática vem à
tona: no ‗drama social‘ do naturalismo‖ (SZONDI, 2001, p.133).
Ainda segundo Szondi (2001, p.26),
As contradições entre a forma dramática e os problemas do presente
não devem ser expostas in abstracto, mas aprendidas no interior da
obra como contradições técnicas, isto é, como ―dificuldades‖. Seria
natural querer determinar, com base em um sistema de gêneros
poéticos, as mudanças na dramaturgia moderna que derivam das
problematizações da forma dramática. Mas é preciso renunciar à
poética sistemática, isto é, normativa, não certamente para escapar a
uma avaliação forçosamente negativa das tendências épicas, mas
porque a concepção histórica e dialética de forma e conteúdo retira
os fundamentos da poética sistemática enquanto tal. (grifo do autor).
E ele completa sua colocação levando a cabo a tensão entre forma e
conteúdo, que:
[...] se atribui à contradição entre a unificação dialógica de sujeito e
objeto na forma e sua separação no conteúdo. A ―dramaturgia épica‖
se desenvolveu à medida que a relação sujeito-objeto situada no
plano do conteúdo se consolida em forma. (Id., p. 98).
Como importante conquista advinda desse novo jeito de fazer teatro,
temos a possibilidade de tratar tanto da subjetividade mais íntima quanto dos mais
amplos assuntos da esfera do épico (históricos, políticos, econômicos). ―Ninguém
mais pode dizer, sem incorrer em conservadorismo acadêmico, ou autoritarismo
religioso, que algum assunto não é próprio para o teatro‖ (COSTA, 2012, p.19).
Já apontando para o que se coloca como teatro épico, o qual será
esmiuçado no capítulo seguinte, temos a superação da forma antiga, que se tornou
problemática, pois os conteúdos, desempenhando uma função formal, precipitam-se
completamente em forma, ―explodindo a forma antiga‖, como afirma Szondi (2001,
p.95).
Hans-Thies Lehmann (2007, p.69), em seu livro O teatro pós-
dramático, tende a acrescentar com uma definição de teatro:
Teatro pós-dramático pode ser concedido não como um teatro que
se encontra além do drama, sem relação alguma, mas muito mais
como desdobramento e florescimento de um potencial de
desagregação, de desmontagem, de desconstrução do próprio
22
drama. Surge um fenômeno impensável hegelianamente, já que o
mero ator individual situa-se acima do teor ético. (grifo do autor).
Além disso, complementa (p.402): ―[...] a representabilidade,
movimento da realidade teatral, não se opõe de modo nenhum à noção de que se
pode tratar da realidade humana sob a condição de que ela permaneça não
representável‖ (grifo do autor). À guisa de conclusão:
O conceito de teatro moderno compreende o processo histórico
desencadeado pela crise da forma do drama através da progressiva
adoção de recursos próprios dos gêneros lírico e épico que culminou
com o aparecimento de uma nova forma de dramaturgia – o teatro
épico. (COSTA, 1998, p.14, grifo da autora).
Com base nas apropriações do que se entende pelo Teatro Moderno,
temos a aproximação com o teatro épico próprio de Bertolt Brecht, o qual será mais
bem aprofundado adiante, voltando a alguns pormenores desenvolvidos neste
capítulo. Em seguida, dar-se-á início às reflexões de Benjamin sobre o teatro
brechtiano e os meios de comunicação – e sua utilização –, como modo de dar
sustentação à teoria do dramaturgo.
23
3 BERTOLT BRECHT1
Para elucidarmos melhor o objeto desta pesquisa, faz-se necessário
apresentar o autor da peça, bem como suas raízes, influências e legados. Trata-se
de Eugen Bertholt Friedrich Brecht, mais conhecido como Bertolt Brecht, que nasceu
no Estado Livre da Baviera, em Augsburg, no extremo sul da Alemanha, em 10 de
fevereiro de 1898.
Brecht se destacou, no século XX, como dramaturgo, poeta e
encenador, influenciando profundamente o Teatro Moderno e tornando-se
mundialmente conhecido.
Sobre sua vida acadêmica, estudou medicina e ciências naturais na
Universidade de Munique e trabalhou no serviço militar como enfermeiro durante a
Primeira Guerra Mundial. Era filho de Berthold Brecht, diretor de uma fábrica de
papel, católico, exigente e autoritário, e de Sophie Brezing, protestante, que fez seu
filho ser batizado nessa religião.
Na segunda metade de 1920, Brecht tornou-se marxista, vivenciando o
período das mobilizações da República de Weimar. Adentrando o contexto
culturalmente e considerando o teatro da época, eram conhecidas e renomadas as
atribuições absolutamente dramáticas ao modo de encenar.
O teatro no século XX, reduzido como o resto a uma mercadoria pelo
amadurecimento corruptor da sociedade capitalista. Desceu a uma
cotação extremamente baixa no mercado. No tempo da indústria, da
produção em série e da destruição da venerável instituição do
original artístico único, o teatro só poderia estar irremediavelmente
condenado a ser a diversão de esnobes, homossexuais
esquizofrênicos, nefelibatas intelectualizados e outros neuróticos ou
o desfastio da ordem estabelecida através de seus burgueses bem-
pensantes e metidos a sensíveis. A idade da indústria destruiu a aura
da obra de arte, como explica Walter Benjamim. (MACIEL, 1967, pp.
3-4).
Foi nesse contexto que Brecht desenvolveu o teatro épico. Sua praxis é
uma síntese dos experimentos teatrais de Erwin Piscator – famoso por suas
cenas Piscator, como eram chamadas, cheias de projeções de filmes e cartazes –
e Vsevolod Emilevitch Meyerhold; do conceito de estranhamento do formalista
1
As informações biográficas de Bertolt Brecht aqui utilizadas foram retiradas, principalmente, do livro Teatro
dialético, do próprio Brecht, com introdução de Luiz Maciel, 1997.
24
russo Viktor Chklovski; do teatro chinês e do teatro experimental da Rússia soviética,
entre os anos 1917 e 1926.
Com 20 anos, escreveu sua primeira peça, Baal (1918), história de um
poeta vagabundo e amoral. Em seguida, tornou-se crítico teatral do Der Volkswille,
em sua cidade natal, e uma espécie de consultor literário do teatro Munich
Kammerspiele.
Os primeiros espetáculos de suas peças Tambores na Noite
(Trommeln in der Nacht), Baal e Eduardo II foram encenados em Munique, em 1922,
1923 e 1924, respectivamente. Por meio de sua participação no teatro, Brecht
conheceu o diretor de teatro e cinema Erich Engel, com quem trabalhou até o fim da
sua vida. Depois da Primeira Guerra Mundial, mudou-se para Berlim, onde o
influente crítico Herbert Ihering chamou-lhe a atenção para a propensão do público
pelo Teatro Moderno. Brecht trabalhou inicialmente com Erwin Piscator, citado
anteriormente. Em Berlim, a peça Im Dickicht der Städte, protagonizada por Fritz
Kortner e dirigida por Engel, tornou-se o seu primeiro sucesso.
Brecht, em 1926, estreia sua comédia Um Homem é um Homem, em
que mostra uma sociedade que começa a encarar a máquina como extensão do ser,
quando não o próprio. Trata-se da obra de transição entre o expressionismo das
primeiras peças e o estilo tipicamente brechtiano que começa a desenvolver por
meio do teatro épico.
De acordo com a biografia escrita por Luiz Carlos Maciel, no ano
seguinte (1927), Brecht apresenta no Festival de Baden-Baden a primeira versão de
Mahagonny, com música de Kurt Weill (1900-1950), o compositor que seguirá sendo
seu parceiro em outras montagens. Em 1928, produzido por Piscator, aparece
Schweik, adaptado em colaboração com Gasbarra e Leo Lania.
A Ópera dos Três Vinténs, também de 1928, é o trabalho de maior
destaque na carreira de Brecht, também com parceria do compositor Kurt Weill.
Essa obra apresentou uma nova forma de teatro musical, misturando a estética de
cabaré com a sátira de cunho social. Ele propunha um teatro politizado, cujo objetivo
era/é modificar a sociedade.
Indo mais a fundo, sabe-se que a peça vira um enorme sucesso,
principalmente por causa da música, mas o que se nota é que as pessoas não
entenderam a essência e a crítica que o autor gostaria de ter passado, há um ―erro‖
25
de interpretação por parte do público, o qual se ateve mais às canções, facilmente
incorporáveis pelo sistema radiofônico.
Seguindo a cronologia proposta por Maciel, em 1929, Brecht volta ao
Festival de Baden-Baden com O Vôo de Lindberg, peça radiofônica que
estudaremos com mais detalhes nos próximos capítulos, e As Peças Didáticas de
Baden. Em 1930, estreia a versão definitiva de Ascensão e Queda da Cidade de
Mahagonny. No mesmo ano, estreia Die Massnahme, com traduções diversas, tal
qual A medida ou A decisão.
A peça A Mãe, adaptada de Górki, estreia em 1932, ano em que ocorre
a ascensão no nazismo. Concomitantemente, o filme Kuhle Wampe escrito por
Brecht, com música de Hanns Eisler e dirigido por Stalan Dudow é censurado e
considerado proibido.
Com a eleição de Hitler, em 1933, terminou, definitivamente, a
república. Embora a constituição de 1919 não tenha sido revista até o final da
Segunda Guerra Mundial (1945), as reformas levadas a cabo pelo partido nazista
invalidaram-na muito antes. Então, Brecht exila-se primeiro na Áustria, depois Suíça
e França, onde apresenta Os Sete Pecados Capitais, no Teatro dos Champs-
Elysées, em Paris.
Ainda de acordo com a retrospectiva história e artística de Brecht, ele
torna-se, em 1936, um dos editores da revista Das Wort, publicada por intelectuais
alemães refugiados em Moscou. Estreia sua peça Cabeças Redondas e Cabeças
Pontudas em Copenhague.
Permanentemente na luta contra o nazismo e o fascismo, estreia, em
1937, em Paris, a peça Os Fuzis da Senhora Carrar, a qual considera ―aristotélica‖,
conceito que será mais bem elucidado no tópico sobre o Teatro épico. Em 1938,
estreia sete cenas de Terror e Miséria do III Reich. Viaja, então, à Dinamarca,
Suécia, Finlândia e Suíça.
O ano de 1940 é marcado pela peça Mãe Coragem, estreada em
Zurique. E, finalmente, em 1941, parte para os Estados Unidos, instalando-se na
Califórnia, onde tentou ganhar a vida com argumentos cinematográficos em relação
a Hollywood. Ainda nos EUA, em colaboração com Joseph Losey, dirigiu a
montagem de sua peça A Vida de Galileu, em 1947.
No mesmo ano, segundo Maciel, depõe perante o Comitê de
Atividades Antiamericanas, em Washington. Eram os tempos da Guerra Fria e o
26
macarthismo – prática política que se caracteriza pelo sectarismo, notadamente
anticomunista, inspirada no movimento dirigido pelo senador Joseph Raymond
McCarthy, nos EUA e que geralmente formula acusações e faz insinuações sem
prova – já estava evidente no país.
Então, volta à Europa, estabelecendo-se novamente na Suíça, onde
escreve o Pequeno Organon Para o Teatro, monta uma adaptação de Antígona, de
Sófocles e sua comédia O Sr. Puntila e Seu Criado Matti. Volta à Alemanha, em
1949, a convite do governo da República Democrática Alemã, instalando-se em
Berlim Oriental, onde funda e dirige a companhia Berliner Ensemble, sustentada pelo
Estado.
Daí em diante, partindo do trabalho prático da companhia, Brecht dá
vazão a todo o seu trabalho de cunho teórico. Em seu teatro, Brecht criou o Efeito de
Distanciamento (Verfremdungseffekt), o qual abordaremos minuciosamente no
tópico que se refere ao teatro épico. Esse efeito permitia ao público distanciar-se dos
personagens e da ação dramática, utilizando recursos de diálogos estilizados, no
uso da canção-narrativa, elementos cênicos informativos, entre outros recursos.
Até 1956, junto à Berliner Ensemble, o dramaturgo realiza uma série de
espetáculos com suas peças e adquire reconhecimento mundial apresentando-se no
Festival do Teatro das Nações, em Paris. Além disso, recebe o Prêmio Stalin, em
Moscou, em 1955.
Seus textos, absolutamente ricos por suas ideias e pensamentos,
fizeram-no conhecido em todo o mundo. Brecht é considerado um dos escritores
fundamentais desse século por revolucionar a teoria e a prática da dramaturgia e da
encenação, mudando completamente a função e o sentido social do teatro, usando-
o como arma de conscientização e politização.
Ele procurava estabelecer uma consciência antilúdica em relação a
toda arte contemporânea. Tentou objetivar, então, a pedagogia aliada ao fazer
teatral.
Seu objetivo era superar a aparente inutilidade do teatro: a função, a
utilidade, o resultado prático eram os critérios fundamentais que
orientaram seu espírito. Sabia que, para provar a excelência de um
bolo, é necessário comê-lo. Fazer um teatro que retomasse, na
plenitude, a sua função social, um teatro útil e consequente, era
tarefa de um homem de teatro que arregaçasse as mangas sobre as
tábuas do palco, não de um autor ou teórico de gabinete. Foi o que
ele fez. (MACIEL, 1967, p.5).
27
Ressalta-se, portanto, que ele buscou colocar em prática seus ideais
perante a arte, principalmente relacionando-se com o teatro. Deve-se ter em mente,
entretanto, que Brecht não escreveu peças marxistas nem procurou formular
propriamente a teoria de um teatro marxista, objetivo que parecem ter sido mais
concernentes a Piscator e seu teatro político. Mas, sem dúvida, Brecht estava
convencido, como afirmou aos macarthistas norte-americanos que o interrogaram,
de que ―não se pode escrever peças inteligentes, hoje em dia, sem conhecer as
teorias de Marx‖ (MACIEL, 1967, p.9).
Segundo Maciel, antes mesmo que qualquer conceituação marxista
proposta por Brecht, o racionalismo, a depreciação do sentimento, o afastamento
deliberado das emoções, o esforço pela compreensão e pela crítica e a valorização
do instinto são aspectos práticos e/ou teóricos fundamentais a serem considerados
em seu teatro, em detrimento à mera diversão.
É importante lembrar, nesse contexto, as relações sociais de produção
e as forças produtivas. Nós, como seres humanos, produzimos a nossa existência
coletivamente, sobrevivemos e vivemos por meio delas. Desenvolvemos as forças
produtivas e por elas nos relacionamos socialmente, tal qual explica Marx, em seu
Prefácio à Contribuição à Crítica da Economia Política, de 1859:
[...] na produção social da sua vida, os homens contraem
determinadas relações necessárias e independentes da sua vontade,
relações de produção que correspondem a uma determinada fase de
desenvolvimento das suas forças produtivas materiais. O conjunto
dessas relações de produção forma a estrutura econômica da
sociedade, a base real sobre a qual se levanta a superestrutura
jurídica e política e à qual correspondem determinadas formas de
consciência social. [...] E do mesmo modo que não podemos julgar
um indivíduo pelo que ele pensa de si mesmo, não podemos
tampouco julgar estas épocas de revolução pela sua consciência,
mas, pelo contrário, é necessário explicar esta consciência pelas
contradições da vida material, pelo conflito existente entre as forças
produtivas sociais e as relações de produção. (MARX, 1859, pp.301-
302).
Faz-se crucial lembrar que a época de revolução social, de onde sai a
verdadeira luta de classes, dá-se quando as forças produtivas e as relações sociais
de produção entram em contradição. Nesse caso, com a mudança das forças
produtivas no teatro e a luta de classes aparecendo como assunto, Brecht começa a
28
repensar o teatro e, com ele, a utilização dos meios de comunicação
(desenvolvimento das forças produtivas, também por meio das novas técnicas).
É a partir das problematizações encontradas nas relações de
produção, ocasionadas pelas forças produtivas deficientes, que Brecht vai pensar
seu Teatro épico, mais destrinchado no tópico que segue e a sua Teoria do rádio, a
qual aparecerá neste trabalho, para que se exponha o pensamento do dramaturgo
em decorrência da utilização dos meios de comunicação, inclusive no que concerne
as suas peças.
Voltando a sua biografia, o dramaturgo faleceu em 14 de
agosto de 1956, de trombose coronária, no Estado de Berlim, em Berlim Leste, com
58 anos.
3.1 O TEATRO ÉPICO
O teatro épico é a tentativa mais profunda e mais ampla
no sentido de constituir um teatro moderno, e tem que
superar todas as imensas dificuldades que têm que ser
superadas por todas as forças vivas nos terrenos da
política, da filosofia, da ciência e da arte. (MACIEL,
1967).
Partindo da contextualização sobre o Teatro Moderno e sobre o
dramaturgo Bertolt Brecht, podemos nos aprofundar no teatro épico. Segundo Maciel
(1967), a visão de mundo do dramaturgo o leva, ao mesmo tempo, a determinada
posição ideológica e política, respondendo a uma necessidade de racionalização
das relações humanas.
De acordo com o que escreve Brecht em seu artigo ―Cena de Rua –
Modelo de Uma Cena de Teatro épico‖2
, de 1940 – presente no livro Teatro
Dialético, de 1967, p.141 – durante os quinze anos que se sucedem à Primeira
Guerra Mundial, foi experimentada uma forma bastante nova de interpretação, cujas
características são tipicamente narrativas e descritivas e há a introdução de
comentários em forma de coros e projeções. A essa nova estética dá-se o nome de
épico. Assim sendo, o ator distancia-se do personagem e apresenta as situações de
tal maneira que o espectador seja levado a exercer seu espírito crítico.
2
Os artigos aqui citados estão compilados no livro Teatro dialético, de Bertolt Brecht, de 1967.
29
O demonstrador, que deve ser reconhecido como ator, deve alternar
sua imitação com explicações, o maior número de vezes possível. Os coros e as
projeções de documentos de teatro épico e o apelo direto ao público pelos atores
estão fundamentados no mesmo princípio.
De acordo com o alemão, esse modelo não recorre às justificativas da
apresentação teatral tradicional, ―tais como ‗a necessidade de se exprimir‘, ‗a
capacidade de tornar sua a ‗vida‘ do personagem‘, ‗a aventura psicológica‘, ‗a
necessidade de representar‘, ‗o prazer da invenção‘, etc‖ (BRECHT, 1967, p.149), ao
contrário, procura romper com o tradicionalismo.
Ao serem escritas as obras, o teatro épico não deixa de recorrer a
recursos artísticos, mas corresponde à situação sociológica, destruindo a velha
estética por esta não a satisfazer. O teatro, então, deveria seguir essa inovação,
correspondendo à mesma necessidade, por meio do esclarecimento e da crítica em
detrimento da mera diversão.
Torna-se perceptível que não deve existir um sistema de comunicação
comum enquanto a sociedade estiver dividida em classes antagônicas, pois a arte,
tendo caráter ―apolítico‖, está aliada ao grupo dominante. Fato que não é,
evidentemente, a opção de Brecht.
É no interesse do povo, ou melhor, das amplas massas trabalhadoras,
que a literatura deve fornecer representações verdadeiras da vida, as quais
precisam ser sugestivas e inteligíveis, ou seja, populares.
Entende-se que o escritor deva escrever a verdade no sentido de
que não deve suprimi-la ou silenciá-la, nem escrever inverdades,
nem curvar-se perante os detentores do poder, muito menos enganar
os fracos. Naturalmente, é muito difícil não se curvar diante dos
poderosos e é muito vantajoso enganar os fracos. (BRECHT, 1967,
p. 20).
E Brecht, em seu artigo ―O Popular e o Realista‖, escrito em 1937,
presente no livro Teatro dialético (1967, p.116), ainda completa sua visão sobre o
teatro que atende ao povo:
O povo separou-se claramente de seus superiores: seus opressores
e exploradores romperam com ele e se entregaram a uma guerra
sangrenta contra ele que não pode ser mais ignorada. Ficou mais
fácil escolher um lado. A guerra aberta, de uma certa maneira, foi
deflagrada entre o ―público‖.
30
No mesmo artigo, Brecht (1967) ressalta que passar a verdade ao
espectador parece uma tarefa cada vez mais urgente, pois o sofrimento das massas
aumentou. E há apenas um aliado contra a barbárie: o povo sobre o qual são
impostos esses sofrimentos. Sendo assim, é imprescindível que se recorra a ele,
falando a sua linguagem, a fim de obter melhores perspectivas. Em seu artigo
―Pequeno Organon Para o Teatro‖, de 1948, Brecht coloca que:
Necessitamos de um teatro que não nos proporcione somente as
sensações, as idéias e os impulsos que são permitidos dentro do
respectivo contexto histórico das relações humanas (em que as
ações se realizam), mas também que empregue e suscite
pensamentos e sentimentos que ajudem a transformação desse
mesmo contexto. (BRECHT, 1967, p.197).
Quando o dramaturgo se refere à necessidade de uma arte popular,
quer dizer que se deve fazer arte para as amplas massas populares, aos muitos que
são oprimidos por poucos, à grande massa de verdadeiros produtores que sempre
foram o objeto da política e que agora podem tornar-se o seu sujeito. Bertolt Brecht
também tem essa expectativa em sua Teoria do Rádio, a qual ainda será
apresentada neste trabalho.
Tem-se o conceito de um povo combatente e que está transformando o
mundo e a si próprio. Consequentemente, há um conceito combatente de popular.
Falo de experiência própria quando digo que não se deve ter medo
de colocar coisas novas e não habituais diante do proletariado,
desde que tenham algo a ver com a realidade. Haverá sempre
pessoas educadas, conhecedoras de arte, que virão dizer que ―o
povo não vai entender‖. Mas o povo, com impaciência, se livrará
delas para se entender diretamente com o artista. (BRECHT,1967,
p.121).
O dramaturgo representa o aguçamento da consciência antilúdica, não
só do teatro, mas de toda a arte contemporânea, o que se apresenta como uma
negação da consciência estética.
Como Erwin Piscator, Brecht tende, em seu teatro de agitprop, a um
novo objetivo: compor seu teatro com as qualidades do pedagogo: ―a clareza de
exposição, o rigor de visão, o acesso fácil à compreensão, a lógica justa e, uma
palavra, a verdade sem mistificação‖ (MACIEL, 1997, p.6).
31
E Brecht (1967, p.166) completa: ―A principal qualidade do teatro épico
é exatamente ser natural e terrestre, é o seu humor e a sua desistência de todos os
aspectos místicos que desde épocas passadas até aos dias de hoje prendem o
teatro usual‖.
O ponto essencial do teatro épico é, provavelmente, de acordo com
Brecht (1967, p.41), ―que ele apela menos para os sentimentos do que para a razão
do espectador. Em vez de participar de uma experiência, o expectador deve dominar
as coisas.‖ Simultaneamente, seria equivocado negar emoção a essa espécie de
teatro, pois seria o mesmo que tentar negar emoção à ciência moderna.
Sem dúvida, a ciência e a arte atuam de forma bastante diversa.
Contudo, Brecht afirmou em seu artigo intitulado ―Teatro de Diversão ou Teatro
Pedagógico‖ (Brecht, 1967, p.100) que, sem utilizar algumas ciências, não teria a
menor possibilidade de cumprir sua missão como artista: ―E devo confessar,
inclusive, que torço o nariz para pessoas de quem sei que não estão à altura da
compreensão científica, ou seja, que cantam como os pássaros cantam, ou como
nós acreditamos que os pássaros cantem.‖
Também o moderno teatro épico se liga a determinadas tendências. E
ligar-se à ciência significa usar um meio auxiliar para a sua compreensão. Segundo
Brecht, a maioria das grandes nações não se inclina, atualmente, a manifestar seus
problemas no teatro, mas deveria fazê-lo, denotando um espaço divertido e, ao
mesmo tempo, passível de suscitar reflexões e críticas.
É a sua vontade de esclarecimento e crítica, inclusive no teatro, que o
levou à formulação de um Efeito de Distanciamento (Verfremdungseffekt), o qual não
visa, no fundo, à eliminação da emoção na experiência dramática, mas, ao contrário,
à sua salvação:
Brecht não suportava a orgia de emoções corrompidas,
sentimentalizadas, dominadas pelo irracionalismo, que se vê no
teatro burguês como espelho da sociedade de que é produto. Para
sanear a emoção, era necessário que ela fosse subordinada à razão.
Desde que Aristóteles também emite qualquer referência à dimensão
intelectual da experiência dramática – seja a tomando como um
suposto tácito, seja efetivamente a parcializando na catarsis, na pura
purgação. Das emoções de piedade e terror – a emoção pura,
irracional, desumanizada por sua insubordinação à Razão, também
foi apelidada por Brecht de aristotélica. (MACIEL, 1967, p.14, grifo do
autor).
32
A alienação do homem, para Brecht, não se manifesta como produto
da intuição artística. Pelo contrário, Brecht ocupa-se da desalienação do homem, de
maneira consciente e proposital. Então, ele foi buscar na tradição dramática oriental,
particularmente no teatro chinês, a resposta ao distanciamento.
O distanciamento não deve, segundo Maciel em suas interpretações
sobre Brecht, destruir a emoção, mas simplesmente colocá-la em perspectiva crítica,
pois a razão tem como função ―iluminar‖ os sentimentos dos espectadores. As
emoções devem levar ao esclarecimento e serem elas próprias esclarecidas, tendo
função cognoscitiva. As que não o forem são chamadas aristotélicas e não
ultrapassam o nível da diversão.
Com o Efeito do Distanciamento proposto pelo dramaturgo, sua
pretensão era despertar o espectador para uma reflexão crítica, usando meios
artísticos, mas rompendo com a ilusão através do estranhamento, e deixando claro a
todos que teatro não é vida real, ou seja, não os hipnotizava por meio da arte.
Em seu artigo ―Uma Nova Técnica de Representação‖, escrito em
1940, Brecht explica que não eram feitos esforços para colocar o público em transe
e para lhe dar a ilusão de assistir a um acontecimento normal, que não foi ensaiado.
Para tanto, foi preciso abandonar a concepção de que existe uma
―quarta parede‖ separando ficticiamente o palco do público, a qual é causadora da
ilusão de que o pano de boca realmente existe, de que não há público. Brecht
propõe a possibilidade, inclusive, de que o ator se dirija diretamente ao público.
Segundo Szondi (2001, p.138), ―para causar distanciamento em
relação ao decurso da ação, que já não tem mais [...] a necessidade linear da ação
dramática, vale recorrer a projeções e legendas, coros, canções ou mesmo gritos de
‗jornaleiros‘ pelo auditório‖. Isso porque eles comentam e interrompem a ação.
Também para o distanciamento dos espectadores, Brecht propõe que eles assistam
à peça até na companhia do cigarro.
O dramaturgo explica que, no palco, durante todas as passagens
essenciais, o ator deve encontrar e fazer pressentir alternativas que indiquem o
contrário daquilo que está representando, ou seja, deve interpretar de uma maneira
que mostre que a representação pode se dar em outras possibilidades e que ele
está representando apenas uma das variantes possíveis.
Segundo ele, ―O ator não deve permitir que no palco se dê uma
transformação completa da sua pessoa naquela que está representada.‖.
33
Provavelmente, as próprias recomendações iniciais de Brecht sejam mais úteis do
que qualquer análise meramente interpretativa. Ele (1967, p.163) propõe três
―técnicas‖ para seus atores:
Três recursos podem servir para um distanciamento das falas e das
ações de um personagem a ser representado com uma maneira de
interpretar sem transformação completa:
1. A transposição para a terceira pessoa do singular.
2. A transposição para o passado.
3. Dizer o texto acompanhado pelas instruções e comentários do
autor.
A partir dessa explanação, vê-se possível que existam variações na
forma de haver o distanciamento. Pode ser propiciada, inclusive, pela própria dicção,
tendo em vista a importância maior ou menor que precisa ser conferida às
sentenças. Outra circunstância pensada por Brecht é o fato de os atores passarem
naturalmente da fala para o canto. Para ele, essa mudança de ação na cena deve
ser nitidamente reconhecida. E isso pode ser feito por meio de recursos cênicos,
como mudança de iluminação ou emprego de títulos.
O ator, em sua posição, assume uma ―visão crítica da sociedade‖. Ao
estabelecer a linha dos acontecimentos e da caracterização dos personagens, deve
salientar os traços que pertencem ao âmbito da sociedade. Dessa maneira, o ator dá
a possibilidade de o espectador justificar ou condenar a situação de acordo com a
sua classe social.
Além do mais, o ator/demonstrador se comporta com naturalidade,
deixando ao personagem representado o mesmo estigma do comportamento
natural. A apresentação é primordialmente repetitiva, ou seja, o acontecimento já
ocorreu (está escrito na obra), trata-se agora da repetição. Assim como o ator não
mais deve iludir o público mostrando que se trata de uma personagem fictícia no
palco e não dele, também não deve, de acordo com Brecht, simular que o que está
acontecendo no palco não foi ensaiado e que está acontecendo pela primeira e
única vez.
Segundo Brecht (1967, p.147), o ator não deve ―enfeitiçar‖ ninguém,
não deve arrebatar quem quer que seja da realidade cotidiana com o fim de elevá-lo
a uma ―esfera superior‖. Não se deve esquecer, na demonstração, que o ator não é
o personagem representado, é tão somente um demonstrador: ―Em outras palavras,
34
o que o público vê não é uma fusão de demonstrador com o personagem
representado, nem se trata também de um ―terceiro‖ independente e harmônico‖.
Em seu texto ―Observações sobre a ópera ‗Ascensão e queda da
cidade de Mahagonny’”, publicado em 1931, Brecht enumera, em uma tabela,
mudanças de peso na transição do teatro dramático para o épico (apud SZONDI,
2001, pp. 134-135):
Tabela 1 – Transição e diferenças entre o teatro dramático e o épico
Forma dramática de teatro Forma épica de teatro
 o teatro ―incorpora‖ um processo  ele narra um processo
 envolve o espectador em uma
ação
 faz dele um observador
 consome sua atividade  desperta sua atividade
 possibilita-lhe sentimentos  força-o a tomar decisões
 transmite-lhe vivências  transmite-lhe conhecimentos
 o espectador é deslocado para
dentro de uma ação
 ele é contraposto à ação
 trabalha-se com sugestão  trabalha-se com argumentos
 as sensações são conservadas  são estimuladas para chegar às
descobertas
 o homem é pressuposto como
conhecido
 o homem é objeto de investigação
 o homem imutável  o homem mutável e modificador
 expectativa sobre o desfecho  expectativa sobre o andamento
 uma cena em favor da outra  cada cena para si
 os acontecimentos têm curso
linear
 os acontecimentos têm curso em
curvas
 o mundo tal como ele é  o mundo como vem a ser
 o que o homem deve ser  o que o homem tem de ser
 seus impulsos  seus motivos
 o pensamento determina o ser  o ser social determina o
pensamento
Nota-se que a objetividade científica se torna objetividade épica e
aparece em todas as camadas da peça teatral, sua estrutura e linguagem, bem
como sua encenação. Indo ainda mais a fundo, o que foi posto não significa que, ao
representar um apaixonado, por exemplo, o ator deve se mostrar frio.
Somente os sentimentos pessoais do ator é que não devem ser, em
princípio, os mesmos que os da respectiva personagem, a fim de que os
sentimentos do público não se tornem também os da personagem. Nesse aspecto,
―a audiência deve gozar de completa liberdade‖:
35
A liberdade na relação entre o ator e o seu público também consiste
em que ele não o considera uma massa uniforme. Ele não une as
pessoas como se fossem um bloco sem forma com as mesmas
emoções. Ele não se dirige da mesma maneira a todos; ele mantém
as diversões existentes no público, ele chega a torná-las mais
profundas. Ele tem amigos e inimigos, ele é amigável com os
primeiros e hostil com os segundos. Ele toma um partido, nem
sempre aquele do seu personagem, e quando é o caso, ele toma
partido contra o seu personagem. (BRECHT, 1967, p.172).
Brecht explica que se trata de uma técnica de representação que
permite retratar acontecimentos humanos e sociais, necessitando de explanação,
sem parecerem gratuitos ou meramente naturais. A finalidade do Efeito de
Distanciamento é fornecer ao espectador, situado de um ponto de vista social, a
possibilidade de exercer uma crítica construtiva, principalmente em relação à sua
condição social.
Seguindo um velho hábito a atitude crítica é vista como uma atitude
negativa. Para muitos a atitude crítica é considerada a diferença
entre a atitude científica e a artística. Não conseguem pensar o
prazer da arte com as contradições e distanciamentos. Naturalmente
também existe um grau mais desenvolvido na apreciação comum da
arte, que aprecia criticamente, mas a isto é algo completamente
diferente quando se deve observar criticamente, contraditoriamente,
distanciadamente o próprio mundo e não a representação artística do
mundo. (BRECHT, 1967, p.177).
O teatro, com suas reproduções do convívio humano e das relações
interpessoais, tem que surpreender seu público e chegar a isto por uma técnica que
torne o que lhe é familiar em estranho. Uma representação que cria o
distanciamento permite-nos reconhecer seu objeto, ao mesmo tempo com que faz
que ele pareça alheio.
E ele ainda completa: ―O que aparece agora frente ao espectador é
tudo o que não foi rejeitado e que foi submetido a múltiplas repetições: devem ser
apresentadas com completa lucidez para que possam ser recebidas com igual
lucidez‖ (BRECHT, 1967, p. 218).
Como afirma Fredric Jameson (1999, p.99), em seus ―experimentos‖,
Brecht investiu dinheiro e recursos, inclusive pessoais, não apenas a fim de criar um
outro teatro, mas para satisfazer o desejo de um homem de teatro, que é testar
todas as alternativas possíveis e debatê-las. Aqui vale a pena tecer uma nota
biográfica. Brecht preferia usar a palavra ―experimentos‖ a ―experiências‖ por ter
36
estudado originalmente as ciências naturais. Dessa forma ele podia ―protocolar‖ as
reações das pessoas submetidas ao ―experimento‖ (KOUDELA, 2007, p.21).
Nesse ínterim, de acordo com Jameson, sugere-se, como ver-se-á com
mais detalhes no tópico seguinte, que a passagem dos vários atores por todos os
papéis cria necessariamente uma multidimensionalidade, a qual é a própria essência
do teatro de repertório, ou do teatro enquanto tal. Aparecem e se desvanecem
discussões ampliadas, lutas sobre a interpretação e propostas de todos os tipos de
alternativas gestuais e cenográficas.
O exercício do distanciamento proposto pelo dramaturgo fica
imediatamente esclarecido quando se entende o que é gestus. Segundo Jameson
(1999, p.139), ―é o operador de um efeito de estranhamento no sentido próprio; e em
particular que o estranhamento deriva da superposição de cada um destes
significados sobre os demais‖.
Tal conceito – central na estética brechtiana – quer dizer que por vezes
os movimentos físicos do ator no palco são suficientes, como quando o intérprete
chinês – tão levado em consideração por Brecht – mostrando o seu próprio gesto,
destaca-o também ao público, dotando-o de significação.
Desenvolveu-se uma maneira de falar e de usar a linguagem que era,
simultaneamente, estilizada e natural. As posturas tomadas nas frases eram levadas
a cabo, sendo relevadoras das próprias frases, completando-as. Essa simples
expressão dos gestos humanos, ainda de acordo com Jameson (1999, p.140),
Brecht chamou de gestisch ou linguagem gestual.
Chamamos esfera do gesto aquela a que pertencem as atitudes que
as personagens assumem em relação umas às outras. A posição do
corpo, a entonação e a expressão fisionômica são determinadas por
um gesto social [...]. O ator apodera-se da sua personagem
acompanhando com uma atitude crítica de suas múltiplas
exteriorizações; e é com uma atitude igualmente crítica que
acompanha as exteriorizações das personagens que com ele
contracenam e, ainda, as de todas as demais (BRECHT,1978, pp.61-
62).
Trata-se, então, recorrendo à análise de Vanja Poty (2013), ―de um
procedimento predominantemente físico do trabalho do intérprete, designando suas
atitudes e nuances de expressões faciais bem como corporais, de palavras e
entonações, de ritmo e variações com quebras na fala e nos movimentos‖.
37
Jameson (1999, p.139) exemplifica da seguinte maneira, aliando ao
conceito já visto de estranhamento:
O exercício, entretanto, fica imediatamente esclarecido quando
entendemos que gestus é o operador de um efeito de estranhamento
no sentido próprio; e em particular que o estranhamento deriva da
superposição de cada um destes significados sobre os demais,
mostrando-nos, por exemplo, como um movimento involuntário da
mão poderia, em certas circunstâncias (quando executado por Luís
XIV durante uma entrevista particularmente decisiva, mas também
quando desempenhado por um insignificante lojista durante as
elaboradas e imperdoáveis negociações da vida citadina), contar
como um fatídico ato histórico, com consequência sérias e
irreversíveis.
O gestus tem a intenção de tornar compreensível aquilo que é subjetivo
(comportamento subjetivo, atitude subjetiva) a partir do que é intersubjetivo, social.
Mas, é preciso ressaltar que nem todos os gestos são ―sociais‖. Segundo Brecht
(1978, p.107), ―a atitude de defesa perante uma mosca não é em si própria um gesto
social; atitude de defesa perante um cão pode ser um gesto social, se [...] exprimir,
por exemplo, a luta que um homem andrajoso tem que travar com cães de guarda‖.
Compreende-se, então, que é considerado social o gesto que
evidencia uma realidade social, em que se domina a natureza, ou seja, mostra-se ―o
mundo dos homens‖, como é, por exemplo, o gesto de trabalhar. Segundo Koudela
(2007), os modelos de comportamento formados pelas pessoas são decorrentes de
uma cultura determinada por sua classe social, sexo, língua, articulação, entre
outros fatores. Diante disso, Brecht ressalta que:
Por gestus entenda-se um complexo de gestos, mímica e
enunciados, os quais são dirigidos por uma ou mais pessoas a uma
ou mais pessoas. Um homem que vende peixe mostra, entre outras
coisas, o gestus de vender. Um homem que escreve seu testamento,
uma mulher que atrai um homem, um policial que espanca um
homem, um homem que faz o pagamento a dez homens – em tudo
isso está contido o gestus social. Um homem, invocando seu Deus,
só será gestus, nesta definição, se isso ocorrer com vistas a outros
homens ou em um contexto onde apareçam relações de homens
para homens. (BRECHT apud KOUDELA, 2007, p.101).
Também há de se enfatizar que o gestus é o ―interior‖ se expressando
enquanto a linguagem verbal se exterioriza intelectualmente apenas:
38
[...] ao falar de gestus não nos referimos à gesticulação; não se trata
de movimentos das mãos no intuito de frisar ou explicar a fala, mas
sim de atitudes gerais. Uma linguagem é gestual quando se
fundamenta no gestus, quando revela determinadas atitudes do
indivíduo que fala, assumidas perante outros indivíduos. (BRECHT
apud KOUDELA, 2007, p.101).
A atitude que aparece com o gestus social expressa a relação de
alguém ou de algum grupo com o ambiente e a convivência sociais, esclarecendo,
assim, as relações interobjetivas.
Por meio dessa imitação, dessa expressão do comportamento real, é
que o ―efeito educacional‖, em que o interior é orientado pelo exterior, pode ser
atingido. Decorre daí que o processo de educação da peça didática visa, com a
execução e observação de gestos e atitudes, tornar conscientes posicionamentos
internos, exteriorizando-os. Abordar-se-á essa aprendizagem proporcionada pelo
teatro, com destreza, no tópico seguinte. E vale ressaltar, a fim de retomarmos a
utilização dos métodos teatrais de Brecht para o rádio:
Um gestus pode ser manifestado apenas por meio de palavras (no
rádio); assim será introduzida nas palavras uma determinada
gestualidade e uma determinada mímica, que poderão ser
detectadas (uma reverência humilde, um tapinha nas costas).
(BRECHT apud KOUDELA, 2007, p.101).
3.1.1 As Peças de Aprendizagem
Nas últimas décadas do século XIX, a série de conflitos que ocorriam
em diversas partes do mundo prenunciava a eclosão da Primeira Guerra Mundial. A
Alemanha ostentava uma oligarquia financeira compacta, resultado de uma
concentração do capital industrial aliado ao capital bancário, formando monopólios
poderosos.
Nesse cenário, a classe operária passava por momentos difíceis e,
inicialmente, de uma forma bastante tímida, apareciam movimentos de revolta contra
o regime burguês. Não é de se estranhar, portanto, que toda a obra de Brecht virá
marcada pela luta contra o capitalismo e contra o imperialismo. Todo o tempo há
uma profunda reflexão sobre a situação do homem num mundo dividido em classes
e condicionado a uma divisão econômica e política.
39
A partir das explanações e considerações sobre o teatro épico e o seu
contexto de aparição, levando em conta as insatisfações sociais de Brecht, bem
como seus recursos de estranhamento/distanciamento e gestus, podemos adentrar
no que tange aos elementos pedagógicos a que quer alcançar o autor. É sob esse
espectro que Brecht desenvolve suas obras, no plano épico, em que o público não é
mero espectador, mas participante e julgador crítico da arte, que representa a
realidade política, a desigualdade e o caráter íntimo de cada ser humano.
Nesse caso, Bertolt Brecht não deseja apenas salientar, em suas
peças, que está atuando de forma a haver o distanciamento entre ator e
personagem, e entre personagem e plateia, mas sim de forma a ser, literalmente,
pedagógico. Para o autor, o sistema socioeconômico é tal como é, mas poderia ser
de um outro jeito e, frente a isso, aquele que assiste a uma peça brechtiana tem que
se posicionar de maneira ativa.
Na perspectiva de Ewen (1991, pp. 219-220), elas ―eram compostas
mais com o olho nos seus participantes do que na plateia e marcaram uma fase
altamente interessante, embora controvertida na evolução do autor‖. Segundo
Oliveira (2013), ainda na visão de Ewen, ―a origem das peças didáticas remonta ao
modelo de instrução jesuíta e humanista‖.
É dessa forma que surge a Lehrstücke, ou peças didáticas de Brecht.
Faz-se importante salientar que, quando, em 1935, o autor traduziu o termo para o
inglês, afirmou que não haveria uma expressão equivalente. No português, a
tradução mais correta seria ―peça de aprendizagem‖, já que o termo ―didático‖, na
acepção tradicional, implica ―doar‖ conteúdos por meio de uma relação autoritária e
doutrinária entre o que detém o conhecimento e aquele que é ―ignorante‖
(KOUDELA, 2007, pp.99-100). Segundo Luciano Gatti (2015, p.12), o ―objetivo de
Brecht era transformar a experiência teatral em ocasião para a formulação de novos
conhecimentos. Trata-se assim de aprender coletivamente com o trabalho teatral‖.
As obras comumente atribuídas ao teatro didático brechtiano são
compostas por seis peças: O vôo sobre o oceano, originalmente intitulada O vôo de
Lindbergh (escrita em 1928/1929); A peça didática de Baden-Baden sobre o acordo
ou Baden-Baden sobre o acordo (escrita em 1929); Aquele que diz sim; Aquele que
diz não (encenadas sempre em conjunto, escritas em 1929/1930); A decisão (escrita
em 1929/1930) e A exceção e a regra (escrita em 1929/1930). Vê-se que é uma
época em que ele se dedica à criação de tais peças. Elas encontram-se compiladas
40
na coleção Teatro Completo (Brecht, 1992), nos volumes três (as cinco primeiras) e
quatro (a última).
É por meio da peça didática que Brecht rompe com a organização
teatral estabelecida. ―Existem outros meios de produção e difusão do trabalho
teatral, além do público habitual dos teatros. Por exemplo, as crianças nas escolas,
as associações de jovens, os coros operários, muito numerosos na Alemanha‖
(KOUDELA, 2007, p.50). Nesse contexto, o rádio vai aparecer como algo importante
e significativo à época.
Segundo Ingrid Koudela (2007, p.100), o ―aluno‖ deve aprender por si
próprio, sem se confrontar com uma determinação já concluída ou pré-estabelecida,
por isso mesmo não deve existir a figura do diretor, que pode ser somente um
coordenador do processo. Este coloca questões como ―como é introduzido o
processo/para onde se dirige/ como é estruturado‖. A contribuição se dá por meio de
perguntas, dúvidas, multiplicidade de pontos de vista, comparações, lembranças,
experiências, trazendo à tona a realidade vivida ou compreendida pelos atores.
Recorrendo à Gatti (2015, p.51), ele complementa que conferir função
pedagógica ao experimento em cena exige crítica durante o processo de
aprendizado de todo ensinamento preconcebido. De outro modo, o coordenador,
―responsável‖ pelos aprendizes, ou o próprio autor, ver-se-iam reduzidos a
transmissores de doutrinas, sejam elas de teor revolucionário ou não.
A fim de localizar temporalmente a peça didática na obra de Brecht, é
preciso lembrar o conflito legal que se deu após a versão filmada da Ópera dos Três
Vinténs, dirigida por Pabst, em 1930. Brecht, com o ocorrido, sente a necessidade
de produzir arte distante das ideias já engendradas de teatro.
Contextualizando, a fim de compreender melhor os rumos do autor,
houve um mal-entendido nos termos do contrato assinado por Brecht com a Nero
Filmes. A companhia cinematográfica estava interessada apenas em enlatar uma
peça que fora um sucesso de bilheteria do teatro alemão e não fazia questão
nenhuma da intervenção de Brecht (que, de fato, não participou da reestruturação
do roteiro), nem de atender as perspectivas políticas.
O dramaturgo não tinha recursos financeiros suficientes para ―abrir as
portas‖ da Justiça, como conta Iná Camargo, mas foi indenizado por algumas pernas
e danos. Aprendendo com as novas formas de estruturação da arte e a readequação
41
das forças produtivas, só cabia a ele desenvolver, na prática, ―uma crítica de maior
alcance às ideias liberais sobre arte no capitalismo‖ (COSTA, 2012, p. 142).
Resumindo, deu-se, segundo Iná Camargo, a industrialização das artes
do espetáculo, ou seja, as forças produtivas ficaram submissas às determinações do
capital: ―[...] quando venderam os direitos autorais da Ópera dos três vinténs ao
estúdio que produziu o filme, Brecht e Weill caíram na rede do filme musical
enlatado‖ (COSTA, 2012, pp. 138-139).
Brecht aprendeu com sua ingenuidade ao assinar o contrato e vender o
roteiro e passou a entender como funcionam as novas relações de produção que
estavam se estabelecendo. Então, distancia-se da mídia enquanto relações de
produção – ainda submetidas à dinâmica burguesa –, não enquanto forças
produtivas – que apontava para a superação da arte burguesa.
Ou seja, o dramaturgo tenta reestabelecer essas forças produtivas. O
rádio, por exemplo, não estava (nem está) a serviço de novas relações de produção.
As pessoas que detêm o poder econômico não usufruíam o meio como poderiam,
forçando-o a manter relações que estão aquém do que ele podia (e ainda pode)
fazer. Isso significa dizer que, com essa experiência, Brecht aponta para um debate
ainda muito importante no campo da comunicação. Aqueles que afirmam que os
meios técnicos de comunicação que se desenvolveram entre o fim do século XIX e o
início do século XX são imediatamente incapazes de algo que não seja alienador
perdem de vista justamente essa formulação brechtiana.
É então por meio das peças de aprendizagem que, como afirma
Koudela (1966, p.13): ―Brecht propõe a superação da separação entre atores e
espectadores, através do Funktionswechsel (mudança de função) do teatro‖.
Entretanto, a peça didática (Lehrstück), durante um longo período, foi esquecida ou
talvez considerada como parte menos importante da obra do alemão.
O consenso de especialistas era de que as peças didáticas pertenciam
a uma fase de transição no pensamento do dramaturgo, à qual se seguiu, no final da
década de 30, a fase madura do ―teatro épico/dialético‖. Essas peças, então, foram
inicialmente desprezadas por conta de sua rigidez da ação dramática.
De acordo com Oliveira (2013), alguns autores, sobretudo alemães,
iniciaram pesquisas sobre tais peças e destacaram sua importância como proposta
pedagógica inovadora. Dentre esses autores, destaca-se Reiner Steinweg, que em
42
1972 publicou ―A peça didática – a teoria de Brecht para uma educação político-
estética‖.
Aceitava-se, geralmente, o conceito de que as peças épicas faziam
parte do período de transição marxista no pensamento de Brecht, mas Steinweg
contrapõe essa tese. Ele afirma, segundo Koudela (2007, p.4), que a peça didática,
e não a peça épica de espetáculo (episches Schaustück), conduz a um modelo de
ensino e aprendizagem que aponta para um ―teatro do futuro‖.
De acordo com Steinweg (apud Koudela, 2007, p.5), há uma ―regra
básica‖ que diferencia a peça didática e a peça épica de espetáculo e indica que ―a
determinação de atuar para si mesmo é o pressuposto para a realização da peça
didática como ato artístico‖ (grifo do autor). Seguindo tal raciocínio, constata-se que
a peça de aprendizagem serve muito mais aos atuantes que aos observadores.
Diante da ―regra básica‖, inferimos que as apresentações públicas das
peças de aprendizagem não são, portanto, o objetivo único nem o mais importante,
pelo contrário, elas não necessitam de público. Se ele existir, diante de uma atuação
natural, livre e própria ao atuante – o princípio da improvisação –, como é proposto,
pode haver troca de diálogo entre os coros e os espectadores.
Outro pressuposto para o efeito pedagógico da peça didática é a
imitação, a qual aparece na primeira fase da infância e contribui para a formação do
caráter de uma pessoa. A imitação pressupõe sempre uma modificação do modelo,
não podendo se restringir ao modelo fornecido pelo texto. Há de se experimentar
alternativas de atuação, com invenção própria e atual. Para tanto, a realidade de
cada participante e o vínculo que eles possuem com sua própria experiência fazem
toda a diferença no processo.
Ele vai imitar outro ser humano, mas não é como se fosse esse
homem, não com o intuito de esquecer-se de si mesmo. Sua
individualidade é preservada como a de uma pessoa qualquer,
diferente das outras, com seus traços próprios, semelhante assim a
todas as outras que observa. (BRECHT apud KOUDELA, 2007,
p.111).
Outro fator intrínseco para a peça didática é o estudo do efeito de
estranhamento, o qual liberta o ator-aluno ―da obrigação de provocar hipnose‖
(KOUDELA, 2007, p.19). Mas, Brecht (apud Koudela, 2007, p.105, grifo da autora)
explica:
43
No entanto, ele não necessita, nos seus esforços por retratar
determinadas pessoas e mostrar seu comportamento, renunciar
totalmente ao meio da identificação. Utiliza esse meio até o ponto
que qualquer pessoa sem talento ou ambição de interpretação o
utilizaria para representar outra pessoa, isto é, para mostrar seu
comportamento.
Nota-se, portanto, que esse trabalho teatral não pede atores
profissionais. Ao contrário, a premissa é poder trabalhar com amadores, sejam eles
crianças, jovens ou trabalhadores das fábricas, dispostos a representar uma
metáfora da realidade social, um recorte. Assim, o teatro torna-se capaz,
culturalmente, de lidar com problemas que repousam sobre fatos concretos, pois
elaboram experiências individuais e históricas que determinam o comportamento
devido ao valor de aprendizagem (KOUDELA, 2007, p.98).
Aos atuantes, não se faz necessária a reprodução de ações e posturas
apenas consideradas positivas na sociedade. Brecht afirma que posturas e ações
associais podem gerar efeito educacional, já que geram observação, reflexão,
julgamento e discussão sobre a conduta (KOUDELA, 2007, p.68).
O grau de abstração embutido nessas peças existe para que se
entenda que elas não estão acabadas, ou seja, para que novas possibilidades
possam ser realizadas. Na verdade, precisam que os jogadores se sintam forçados a
tomar uma decisão, sendo, então, empreendedores políticos.
No programa da noite de estreia das peças de aprendizagem, Brecht
afirmou que o objetivo delas era evidenciar o comportamento político incorreto,
dessa forma se aprenderia o comportamento correto (GATTI, 2015, p.70).
―Mostrando‖ o personagem ao grupo, pode-se supor que há o aprendizado.
Nesse aspecto, há sempre um indivíduo que se distancia do coletivo, a
partir de experiências negativas, mas úteis para o processo de aprendizagem. Com
esse ―jogo‖ teatral, o coletivo entende que a ―revolução‖ precisa de todos, mesmo
daquele que se distancia temporariamente, portanto é um processo de investigação
em conjunto (GATTI, 2015, p.76).
Sobre a experiência coletiva, Gatti (2015, p.74) afirma que o ator não
vivencia o personagem, mas o compartilha com os demais presentes em cena. Para
isso, deve estudá-lo, compreendê-lo por si mesmo e pelo efeito que produz, depois
deve apresentá-lo aos demais, de modo que sua postura perante o personagem seja
discutida e compartilhada numa experiência coletiva.
44
Tais peças possuem a preocupação genuína de Brecht enquanto
educador. No texto ―Teoria da Pedagogia‖, escrito em 1930, o dramaturgo esclarece
que reúne teatro, política e aprendizagem:
Os filósofos burgueses estabelecem uma grande diferença entre o
atuante e o observador. Essa diferença não é feita pelo pensador. Se
mantivermos essa diferença, então deixaremos a política para o
atuante e a filosofia para o observador, quando na realidade os
políticos deveriam ser filósofos e os filósofos, políticos. Entre a
verdadeira filosofia e a verdadeira política não existe diferença. A
partir desse reconhecimento, aparece a proposta do pensador para
educar os jovens através do jogo teatral, isto é, fazer com que sejam
ao mesmo tempo atuantes e espectadores, como é sugerido nas
prescrições da pedagogia. (BRECHT apud KOUDELA, 2007, p.15,
grifo do autor).
Há, dessa forma, uma quebra de padrões. No teatro, em que a
comunicação era apenas unilateral, Brecht procura empreender uma comunicação
bilateral, em que o fazer artístico é relevante também em seu próprio ato, no
ensinamento embutido no processo da construção da peça. Temos, portanto, uma
ressignificação do ―meio‖, ou seja, o produto é menos importante que o aprendizado.
De acordo com Oliveira (2013), ―Brecht procura um público novo, para
além dos muros da instituição teatral tradicional. Participantes em escolas e cantores
em corais passam a fazer parte desse universo novo de espectadores‖.
A dialética é caracterizada como método de comportamento e
pensamento. Sendo assim, a peça didática é concebida como modelo para uma
relação dialética entre teoria e prática, como demonstra Gatti (2015, pp.35-36), que
cita uma fala do próprio Brecht:
Pouco antes de morrer, em uma entrevista de 1956, ao responder
quem era o ―público‖ de sua peça, ele reafirma que a peça havia sido
escrita ―para o jogo em grupo. Ela foi escrita não para um público de
leitores, nem para o público de espectadores, mas exclusivamente
para alguns jovens que queriam se dar ao trabalho de estudá-la.
Cada um deles deve passar de um papel ao outro e assumir,
sucessivamente, o lugar do acusado, dos acusadores, das
testemunhas, dos juízes. Nestas condições, cada um deles irá
submeter-se aos exercícios da discussão e terminará por adquirir a
noção – a noção prática – do que é a dialética‖.
Podemos complementar a tese dialética com essa alternância de
papéis realizada durante os experimentos. Essa ação objetivava realçar o caráter
45
teatral do processo, combatendo a empatia ilusionista. Com a apresentação do
personagem de um ponto de vista distanciado, todos podem avaliar o
comportamento apresentado. Para Gatti (2015, p.54), certamente aparecerão
dificuldades na formação coletiva, porém elas também serão discutidas, apenas
assim há um trabalho revolucionário.
Cabia à peça de aprendizagem, então, conferir caráter cênico à prova
de que se aprende melhor pelo experimento prático do que pela observação teórica.
Além disso, novos elementos são incorporados à sua estética teatral, tais como:
descontinuidade, intertextualidade, pluralidade, descontextualização, fragmentação e
valorização do receptor.
Em seu artigo ―Teatro de Diversão ou Teatro Pedagógico‖, escrito em
1936 e publicado somente em 1957, Brecht (1967, p.97) explicita:
O teatro se transformou em assunto para os filósofos, filósofos, diga-
se de passagem, que não pretendiam apenas explicar o mundo,
mas, também, transformá-lo. Começamos também a filosofar;
começamos também a ensinar. E onde foi parar a diversão?
Brecht problematiza o teatro como local para se pensar e, em seguida,
questiona onde está a diversão. Tal pergunta se dá pelo fato de, em um consenso
geral, apenas o aprendizado é útil e somente a diversão é agradável.
O dramaturgo busca, então, que seu teatro épico não seja
extremamente desagradável e cansativo. Para tanto, intenta diferenciar o
aprendizado que se pode ter com o teatro e aquele oriundo da escola:
Sem dúvida, o aprendizado que conhecemos na escola, na
preparação para as profissões, etc., é algo que exige esforço. Mas é
preciso considerar igualmente em que circunstância ele decorre e a
que objetivos serve. Trata-se, propriamente, de uma compra. O
conhecimento é simplesmente uma mercadoria. Ela é adquirida para
ser revendida. (BRECHT, 1967, p. 98).
Paralelamente a essa análise crítica da educação como produto
vendável, Brecht reflete sobre a limitação do aprender, que se dá por fatores que
estão ―fora do alcance da vontade daquele que aprende‖. A partir disso, ele afirma
que existe o desemprego, instância que nenhum conhecimento pode defender. Além
do mais, existe a divisão do trabalho, que ―torna inútil e impossível o conhecimento
46
universal‖. Seguindo tal raciocínio, ele afirma que não há conhecimento que gere
poder, entretanto há conhecimento que só é proporcionado por meio do poder.
Situando-se no campo do aprendizado, o dramaturgo, no mesmo
artigo, situa os melhores alunos, aqueles que estão descontentes com suas
respectivas condições de vida e têm grande interesse em aprender e se orientar. E
completa: ―O desejo de aprender depende, assim, de várias coisas e, portanto,
existe a possibilidade de aprender com gosto, alegria e luta‖ (BRECHT, 1967, p.99).
O teatro possui, então, condições de ensinar e ser, ao mesmo tempo, pedagógico e
divertido.
De acordo com Oliveira (2013), ―tanto o seu teatro épico quanto o
didático são narrativos e descritivos, onde por meio de um processo dialético Brecht
apresentava duas funções: fazer as pessoas se divertirem e pensarem‖.
A função das peças didáticas, ainda segundo Oliveira (2013), era fazer
com que seus participantes fossem ativos e reflexivos ao mesmo tempo. O que
subjaz a essas tentativas era a prática coletiva da arte, que teria também uma
função instrutiva no tocante a certas ideias morais e políticas relativas à época.
Em meio à proletarização dos produtores, ou seja, ao processo em que
os produtores (autores, atores, técnicos) são expropriados dos seus meios de
produção e transformados em proletários, os trabalhadores do teatro e do cinema,
caso queiram fazer arte e não mercadoria, encontrariam na ―peça didática um
método decisivo para alcançar seu objetivo. Mas isto depende de compreenderem
que a peça didática põe na ordem do dia a transferência dos meios de produção aos
verdadeiros produtores‖ (COSTA, 2012, p.143).
Sendo assim, com a peça didática, os meios de produção estão sob o
controle dos envolvidos, não apenas presos ―nas garras‖ do capital. A libertação da
força produtiva depende da apropriação dos meios de produção pelos verdadeiros
produtores, representados aqui pelos artistas e técnicos.
Sob a consideração de Koudela (2007, p.4), o ato artístico pensado e
realizado coletivamente acontece em definitivo por conta da imitação e crítica de
modelos de atitudes, comportamentos e discursos. ―Ensinar/aprender tem por
objetivo gerar atitude crítica e comportamento político, [...] fornecendo um método
para a intervenção do pensamento e da ação no plano social‖.
Com tais peças, intenta-se não apelar para o sentimento do
espectador, o que lhe permitiria reagir apenas esteticamente, mas sim para a sua
47
racionalidade. Os atores devem chamar a atenção de seus espectadores causando
o estranhamento, e o espectador, por sua vez, precisa ―tomar partido‖ em vez de se
identificar.
Brecht passou por uma fase de experimentos e tentativas, a fim de
traduzir os conhecimentos da dialética materialista em formas dramáticas. O autor
intencionava promover a troca da função do teatro, para que ele deixasse de ser
simplesmente uma mercadoria estética vendida aos espectadores e pudesse ser um
espaço/momento de construção participativa da consciência político-estética.
Tanto o público quanto os atuantes passaram a ocupar a posição de
observadores, como defende Gatti (2015, p.37). Ambas as posições se transformam
reciprocamente, e o espetáculo adquire nova função, que é a organização do
público-atuante. Essa estratégia Brecht nomeou de Umfunktionierung, termo que
poderia ser traduzido por ―inverter o funcionamento‖, conferir uma nova função‖ ou
simplesmente ―refuncionalizar‖ as instituições artísticas.
O objetivo de Brecht com as peças de aprendizagem era interferir na
organização social do trabalho (infraestrutura). Ela é concebida para uma ordem
socialista do futuro, portanto carrega um realismo político e busca dissolver a
organização fundamentada na diferença de classes, democratizando o teatro e o
fazer artístico.
E foi no rádio que Brecht encontrou espaço para realizar seus
experimentos pedagógicos teatrais. É como afirma (Brecht, 2007): ―Ao encontro
desse empenho do rádio em configurar artisticamente aquilo que se ensina, viriam
então os esforços da arte moderna, os quais almejam emprestar um caráter
educativo à arte‖.
Além disso, Brecht (2007) complementa com relevantes apontamentos
sobre o uso de novas tecnologias por um teatro que se pretende didático e dialético:
Se a instituição teatral se dedicasse ao teatro épico, à representação
pedagogicamente documentária, então o rádio poderia desenvolver
uma forma absolutamente nova de propaganda para o teatro, isto é,
poderia desenvolver informação real – uma informação
imprescindível.
Suas causas para adentrar esse meio de comunicação serão mais bem
explicitadas no capítulo cinco, o qual propõe um breve relato sobre a História do
rádio na Alemanha e a Teoria do rádio, do próprio Brecht. Como afirma Koudela
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  • 2. BARBARA BLANCO POZATTO O RÁDIO COMO ATOR: ANÁLISE DA PEÇA O VÔO SOBRE O OCEANO, DE BERTOLT BRECHT, SOB O OLHAR DE WALTER BENJAMIN Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Departamento de Comunicação da Universidade Estadual de Londrina, como requisito à obtenção do título de Bacharel em Comunicação Social – Habilitação em Jornalismo. Orientador: Prof. Dr. Manoel Dourado Bastos Londrina 2016
  • 3. BARBARA BLANCO POZATTO O RÁDIO COMO ATOR: ANÁLISE DA PEÇA O VÔO SOBRE O OCEANO, DE BERTOLT BRECHT, SOB O OLHAR DE WALTER BENJAMIN Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Departamento de Comunicação da Universidade Estadual de Londrina, como requisito parcial à obtenção do título de Bacharel em Comunicação Social – Habilitação em Jornalismo. BANCA EXAMINADORA ____________________________________ Orientador: Prof. Dr. Manoel Dourado Bastos Universidade Estadual de Londrina - UEL ____________________________________ Prof. Dr. Silvio Ricardo Demétrio Universidade Estadual de Londrina - UEL ______________________________ Prof. Dr. Alberto Carlos Augusto Klein Universidade Estadual de Londrina -UEL Londrina, _____de ___________de _____.
  • 4. Dedico este trabalho à minha mãe, que sempre foi incansável na luta pela minha felicidade. Do ventre aos fichamentos desta pesquisa e às confusões brechtianas, ela foi sempre convicta de que no final ―vai dar tudo certo‖. É ela o meu banco para empréstimo de forças, principalmente a de vontade.
  • 5. AGRADECIMENTOS Para que este trabalho se realizasse, devo agradecer, principalmente, ao meu orientador, Manoel, que foi, para mim, é e será, para muitos alunos, um professor ―acima da média‖. Um dos males da educação é avaliarmos somente os alunos, mas eu, como professora também, reparo sua força de vontade em ser presente, em se dedicar à leitura dos mais diferentes assuntos e a, simples e eficazmente, ensinar. Mais que isso: trocar. Não sei o que seria desta pesquisa se não fosse sua bibliografia impossível de ser contabilizada. Ademais, agradeço pela sua humanidade. São raros os professores que veem os alunos como pessoas, não como números, porcentagens ou mais textos para corrigir; que enxergam as potências, incentivam os gostos, aprimoram as qualidades. Agradeço pela paciência com as minhas crises e dramas, por explicar cinquenta vezes a mesma teoria. Eu só não agradeço pela sua objetividade em me responder, mas, em contrapartida, agradeço por se dispor até pelo celular. Agradeço pela rua que me deu de presente, que acabou virando mais que rua, virou história, memória, afeto. E agradeço por me emprestar um tanto de ―coragem, pra seguir viagem‖, que vai virar companheira do medo e das paixões. Agradeço também à minha família – meu pai, minha mãe e meu irmão –, que não poupa esforços para que eu me realize. O amor de família é o mais rico de todos, porque não deixa de existir nem com o tempo, nem com a distância. À minha genitora, agradeço por essa fortaleza, por ser raiz firme e me ajudar nos balanços da vida, por me ensinar a cuidar dos frutos que a vida me deu e me dá, a amadurecê-los, não me deixar cair; por auxiliar com as flores que eu ainda preciso regar para crescerem. Ao meu pai, agradeço por me mostrar a saudade, por lembrar que eu ―não sou fraca, não‖ e por acreditar em mim, mesmo às vezes se perdendo na noção do quanto eu venho crescendo; por ser para sempre ―a sua lindinha‖. Ao meu irmão, por ser o exemplo mais foda que eu conheço. Você é simples na sua complexidade. Agradeço por ter aguentado desde as minhas ―escavações ao fundo do poço‖ até os meus atuais desabafos e confusões. Eu sei que, pela vida afora, vou levar o amor fraterno (forte tal qual é), os conselhos de irmão mais velho, as suas conclusões irreversíveis (quero dizer, racionais), as suas piadas sem graça, o dinheiro que eu roubei do seu cofrinho, a confiança (que eu espero que tenha voltado a existir depois do cofrinho) e os aprendizados de como lidar com as
  • 6. pessoas, em todos os âmbitos. ―Vida que segue, zermãozinho querido‖. Espero que seus passos (muito maiores e mais rápidos que os meus) continuem me levando para frente, pelos caminhos que a gente se colocar. Aos meus colegas de sala, que me ensinaram a trabalhar em equipe. Mostraram o quanto isso requer respeito e paciência, ao jeito e ao tempo do outro. Fizeram-me enxergar esse ―outro‖ diferente, afinal, são quatro anos de convivência. No fim, vejo um saldo positivo de afeto, pois ele vem, para mim, com a tolerância e a harmonia embutidos. Obrigada por serem tão diferentes entre si, e por isso acrescentarem de diversas maneiras distintas. À minha amiga Luiza Bellotto, que foi incansável em sua função de ombro firme, de abraço apertado, de lenço para lágrimas, de parceria para trabalhos chatos (raros legais), de pernas para danças, de ouvidos atentos para desabafos intermináveis, de paciência para crises repetitivas, de ―lugarzinho‖ para aconchego nas angústias e de companhia para dias felizes, outros tristes, alguns lotados, outros vazios. Agradeço desde já pelo futuro que nos aguarda, pois sei que vamos em frente por estradas diferentes, mas sei que não vou perder seu número, nem esquecer sua voz ou seu jeito de me dar broncas. Ao meu pseudo marido, irmão, pai e filho, José Henrique: você é presente. Em todos os sentidos que a palavra dá. Você eu ganhei da vida. Acho que juntaram tudo que faltava em mim e colocaram em você, meu bichinho bonito. Somos a contradição em forma de amor. Obrigada por me acompanhar em todas, inclusive nesta. À Marina Lainetti, a amiga-surpresa que colocaram para mim num momento não muito amigável do curso, prestes a reprovarmos em Economia. Agradeço por encarar comigo um cronograma maluco para terminarmos nossos trabalhos, por topar as minhas doidices, compactuar com os meus gostos, as minhas manias e por entender a minha loucura que, afinal, parece um pouco com a sua, né? Agradeço por confiar em mim, por me permitir roubar um pouco da sua essência, da sua vulnerabilidade e da sua graça e dividir comigo o doce que é essa vida (rs). Sou grata pelas madrugadas loucas, pelas ideias bizarras e pelas conversas e trocas sensatas. À minha terapeuta, por me ajudar a desvendar minha existência e, consequentemente, desmembrar todo esse processo que foi participar do curso de Jornalismo e fazer esta pesquisa.
  • 7. Ao Mateus Dinali, Jamile Monteiro e Iago Salomon, meus amigos ―de infância‖, que estão sempre a me incentivar e ajudar nas intempéries ou acompanhar nas peripécias. Estiveram presentes em minha fase de colégio, de universitária e espero que estejam em todas as próximas, assiduamente. Em especial, Mateus, pela parte australiana, quer dizer, inglesa do trabalho. Agradeço aos professores da graduação, em especial ao Emerson Dias, Márcia Buzalaf, Flávio Freire, Silvio Demetrio e o já mencionado Manoel D. Bastos, por serem dedicados ao trabalho de passar conhecimento ao próximo. Aproveito para agradecer à banca pela disposição e atenção e ao senhor Luiz, servidor da secretaria, o qual nos recepciona todas as noites com um sorriso inteiro no rosto. Também agradeço aos meus professores de teatro, Silvio Ribeiro, Edna Aguiar, Carol Ribeiro e Guilherme Kirchheim, por acreditarem na arte como resposta às angústias e prisões dessa realidade tão cruel a que estamos submetidos. Meu ―muito obrigada‖, com todo o meu coração, por me mostrarem que eu podia ser mil, estando no corpo de uma só; por transformarem meus pontos de vista, minha maneira de ―enxergar‖ o mundo e me deixar ser inteira, intensa. E, claro, por terem me apresentado Bertolt Brecht nos palcos.
  • 8. Que tempos são estes, em que temos que defender o óbvio? Bertolt Brecht
  • 9. POZATTO, Barbara Blanco. O rádio como ator: análise da peça O vôo sobre o oceano, de Bertolt Brecht, sob o olhar de Walter Benjamin. 2016. 95. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Comunicação Social – Habilitação em Jornalismo) – Universidade Estadual de Londrina, Londrina, 2016. RESUMO O dramaturgo alemão Bertolt Brecht buscava o rompimento com a tradição, ou seja, a arte sempre deveria cumprir um intuito político e social. Para tanto, de acordo com o contexto em que estava inserido, revolucionou o teatro do século XX. Este trabalho pretende analisar O vôo sobre o oceano – peça didática radiofônica para rapazes e moças, escrita em 1928/29, trazendo à tona a perspectiva histórica do rádio e suas discussões, as quais perduram na atual comunicação social. Explicita, inclusive, a Teoria do Rádio do próprio Brecht. Além disso, mostra os moldes e ideais do Teatro épico, bem como das peças de aprendizagem do autor. Apresenta, também, a perspectiva de pensadores consagrados como Walter Benjamin, por meio de seu conceito sobre ―A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica‖ e demais considerações sobre o teatro dialético proposto em convergência com a comunicação e as forças de produção. Palavras-chave: Bertolt Brecht. Teatro épico. Teoria do rádio. O vôo sobre o oceano. Walter Benjamin.
  • 10. POZATTO, Barbara Blanco. The radio as an actor: analysis of the theater play The flight across the Ocean, by Bertolt Brecht, through the perspective of Walter Benjamin. 2016. 95. Course Final Work (Graduation in Social Communication – specialized in Journalism) – State University of Londrina, Londrina, 2016. ABSTRACT The German playwright Bertolt Brecht sought to break with tradition, meaning that the art should always serve a political and social purpose. To this end, according to the context in which it was entered, it revolutionized the theater of the twentieth century. This work intends to analyze The flight across the Ocean - radio didactic play for men and women, written in 1928/29, revealing the historical radio perspective and its discussions, which persists in the current social communication. It also explicit the Radio Theory by Brecht himself. Moreover it shows forms and ideals of the epic theater, as well as the author's learning plays. It also presents the perspective of great thinkers, such as Walter Benjamin, through his concept about "The Work of Art in the Age of Mechanical Reproduction" and other considerations about the dialectical theater proposed in convergence with the communication and the production forces. Key words: Bertolt Brecht. Epic Theater. Radio Theory. The flight across the Ocean. Walter Benjamin
  • 11. SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO..........................................................................................11 2 TEATRO MODERNO................................................................................16 3 BERTOLT BRECHT .................................................................................23 3.1 O TEATRO ÉPICO...........................................................................................28 3.1.1 As Peças de Aprendizagem .......................................................................38 4 SOB O OLHAR DE WALTER BENJAMIN ...............................................50 5 O ADVENTO DO RÁDIO NA ALEMANHA...............................................64 5.1 TEORIA DO RÁDIO DE BRECHT .......................................................................66 6 ANÁLISE E APONTAMENTOS SOBRE O VÔO SOBRE O OCEANO ...76 7 CONSIDERAÇÕES FINAIS .......................................................................86 REFERÊNCIAS.........................................................................................90 ANEXO .....................................................................................................94 ANEXO A – CD-ROM com a peça radiofônica O vôo sobre o oceano digitalizada (PDF)......................................................................................94
  • 12. 11 1 INTRODUÇÃO Este trabalho é resultado da minha afeição com a parte cultural que envolve comunicação. Ao longo do curso, diversos foram os temas pensados, mas, depois de muitas discussões acerca do assunto, optou-se por este, que traz à tona o universo do teatro participando da comunicação e vice-versa. Traz também minha inquietação para conseguir aproximar os dois universos, já que, antes – e durante – o curso de Jornalismo, minha vida foi dedicada à prática teatral. Trata-se de entender a fundo o que os comunicadores podem apreender com o teatro, e o que os atores (ou o teatro em geral) podem apreender com os comunicadores. Intenta-se, nesta pesquisa, traçar um paralelo da comunicação social com o teatro, a partir de um dramaturgo, poeta e encenador alemão muito consagrado pelos seus ideais e pensamentos no século XX, Bertolt Brecht, o qual tem artigos e peças bastante influentes e significativos para a atualidade. Faz-se pertinente ressaltar à contextualização de seus pensamentos que ele se dedicou ao estudo do marxismo e viveu o intenso período das mobilizações da República de Weimar. A série de conflitos que ocorriam em diversas partes do mundo prenunciava a eclosão de uma grande guerra mundial. A Alemanha ostentava uma oligarquia financeira compacta, resultado de uma concentração do capital industrial aliado ao capital bancário, formando monopólios poderosos. Nesse cenário, a classe operária passava por momentos difíceis e de uma forma bastante tímida no início, eclodiam esporadicamente movimentos de revolta contra o regime burguês. Não é, portanto de se estranhar, que toda a obra de Brecht virá marcada pela luta contra o capitalismo e contra o imperialismo. (OLIVEIRA, [2013]). Assim foi a república estabelecida na Alemanha após a Primeira Guerra Mundial, em 1919, perdurando até o início do regime nazista, com um sistema de governo chamado de democracia representativa semi-presidencial. O nome oficial da Alemanha continuou, sob a República, a ser Deutsches Reich (literalmente, Império Alemão). Na eleição de 1919, a primeira em que as mulheres puderam votar, o resultado foi a democracia parlamentar. Então, a Constituição foi promulgada em
  • 13. 12 agosto daquele ano, acentuando a unidade alemã. É preciso salientar que as dificuldades econômicas do pós-guerra e as rigorosas condições impostas pelo Tratado de Versalhes originaram um profundo ceticismo em relação à república. Este período tem o nome de Weimar, pois foi essa cidade que reuniu, desde 6 de fevereiro até 11 de agosto de 1919, data da aprovação da nova Constituição, a Assembleia Nacional constituinte da República. A fragilidade dessa república, formada pelo socialdemocrata Friedrich Ebert, contribuiu para a expansão de movimentos radicais e para fortalecer os nazistas. Nesse ambiente conturbado, Adolf Hitler, então chefe do pequeno Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães (NSDAP), tentou um golpe fracassado em Munique. A época também foi marcada por tentativas dos comunistas de tomar o poder, até que, em 1933, o regime nazista teve início solidamente. Sabe-se, inclusive por intermédio de Fredric Jameson (1999, p.89), da sanha genocida de Hitler, principalmente as relativas ao holocausto. Brecht não quis ―pagar para ver‖ e em 28 de fevereiro de 1933, dia seguinte ao incêndio do Reichstag, fugiu da Alemanha com a família para o exílio. Ficou restrito ao campo da esquerda as investidas nazistas contra os partidos dos trabalhadores e todas as suas organizações. Nas palavras de Eve Rosenhaft (1994, p. 20): [...] bares, diretórios de partidos, sindicatos, jornais, livrarias, salas de leitura, clubes, hospitais, escolas, centros de assistência social e teatros que fizeram o tecido da cultura de Weimar foram os primeiros objetos da onda de vandalismo oficial realizada em nome da ordem, da decência pública e da economia. O trabalho de Brecht como artista concentrou-se na crítica às relações humanas no sistema capitalista. Além disso, foi assíduo conhecedor do teatro político de Erwin Piscator. Outros nomes também foram de suma importância ao trabalho de Brecht, como Vsevolod Emilevitch Meyerhold e Viktor Chklovski. Também procurou basear-se no teatro experimental da Rússia soviética. Passando para o campo da comunicação, este trabalho parte do pressuposto de que o comunicador tenha consciência cultural, social e política, fatores concernentes à vivência diária. Considerando tal proposição, é importante lembrar o sistema a que estamos submetidos, chamado de capitalista, justamente por ter o ―capital‖ como
  • 14. 13 fator crucial e preponderante nas relações humanas. Esse fato, lembrado com ênfase nos trabalhos artísticos e teóricos de Brecht, faz de suas criações críticas e atuais, levando em conta que se deve sempre refletir sobre a situação em que estamos inseridos. Para o autor, o socialismo era a própria promessa do progresso social, avanço das forças produtivas rebelando-se contra as relações de produção. Como meio de criticar artisticamente a realidade e, então, o sistema em que estava inserido, Bertolt Brecht propôs uma maneira diferente de pensar o teatro: O teatro que conheceu, o teatro burguês, também é – como ele percebeu – um substituto para o entorpecente. Sua missão como pensador foi a de arrancar o teatro dessa condição e restituir-lhe um sentido efetivo. Sua missão como artista, a de fazer uma realidade dessa ideia. Desde que o teatro, comparado com os outros, é um entorpecente fraco, cumpre descobrir sua força no exercício de outra função. (MACIEL, 1967, p.4). Portanto, a fim de satisfazer suas indignações com o teatro feito em sua época, que não o satisfazia como possibilidade de diversão, formulou o teatro épico, uma das grandes teorias de interpretação do século XX, a qual propõe uma interpretação gestual, em que o público exerce uma operação crítica do comportamento humano. Não é oferecido ao público que ele se ludibrie com as encenações, mas sim que consiga examinar as cenas de forma pensante. Atendo-me a tais preceitos, este trabalho tem como segundo capítulo uma breve exposição do Teatro Moderno ou conhecido como Pós-dramático, a fim de contextualizar a época em que Brecht surgiu e tornou-se atuante e significativo. Tal teatro é organizado por conta das mudanças sociais e políticas da passagem do século XIX ao século XX, o que faz a forma teatral ser alterada. Aparece, então, a questão das novas técnicas de produção e reprodução, o que chamamos hoje de meios de comunicação. Brecht tenta colocar em suas obras a discussão sobre a inovação técnica, pelo rádio e o avião, por exemplo, como aparece na peça-objeto deste trabalho. Em seguida, dar-se-á a apresentação da biografia, trajetória e legado de Bertolt Brecht, propondo uma assimilação do que se entende por seu teatro épico e o interligado Efeito do Distanciamento. Como adendo e a fim de explanar melhor o objeto em estudo, também trataremos dos preceitos que conceituam as peças de aprendizagem.
  • 15. 14 Para que se solidifique a ponte entre comunicação e teatro, foi escolhida como objeto de análise e base para as demais considerações, a peça O vôo sobre o oceano – peça didática radiofônica para rapazes e moças, escrita em 1928/29, a qual conta a história do primeiro voo sobre o oceano Atlântico feito por um aviador solitário no comando do avião. Essa peça, como mostra o subtítulo, foi escrita para ser transmitida por meio do aparelho radiofônico, o qual, segundo Brecht, deveria ter o imperativo da interatividade, ou seja, deveria ser feito para permitir a interação entre os homens, não ser apenas um aparelho de emissão controlado pelos monopólios e a serviço da lógica mercantil. A peça apresenta uma utilização inédita do rádio: foi feita para o rádio e o rádio é "personagem" da peça, pois conta, de diversos ângulos, as intempéries pelas quais passa o herói. A escolha de Brecht por escrever uma peça radiofônica não aparece sozinha, pelo contrário, tem o respaldo de ser, ainda, considerada didática. A autora Urânia de Oliveira cita Ingrid Koudela (1991) e expõe que o termo original em alemão é Lehrstück. Afirma que a tradução mais correta desse termo seria ‗peça de aprendizagem‘, ―à medida que o termo ‗didático‘ na acepção tradicional, implica ‗doar‘ conteúdos através de uma relação autoritária entre aquele que ‗detém‘ o conhecimento e aquele que é ‗ignorante‘‖ (KOUDELA apud OLIVEIRA, [2013]). A função das Lehrstücke – peças didáticas – era fazer que seus participantes fossem ativos e reflexivos ao mesmo tempo. Para expandir o pensamento comunicacional sobre a arte, conceitos e ponderações de autores relevantes se farão presentes, tais como o de Walter Benjamin, o qual escreveu artigos pertinentes em relação ao nosso objeto: ―Que é o teatro épico? – Um estudo sobre Brecht‖ e ―O autor como produtor – Conferência pronunciada no Instituto para o Estudo do Fascismo em Paris, 27 de abril de 1934‖. Além do mais, Benjamin redigiu importante consideração sobre as relações entre cultura e os meios de comunicação em ―A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica‖, que também será útil à nossa análise comunicacional. Isso porque Brecht trabalhou duplamente com a questão da reprodutibilidade técnica, com a comunicação como conteúdo de uma peça de teatro, mas também como forma. Pensando em explorar esses conceitos, o quarto capítulo é intitulado ―Sob o olhar de Walter Benjamin‖.
  • 16. 15 Já que Brecht usa o rádio, considerado um meio de comunicação, para difundir seus pensamentos e aprendizagens em conjunto, escolheu-se abordar, no quinto capítulo desta pesquisa, a apresentação do rádio no contexto alemão da época e a Teoria do rádio para o escritor alemão, na qual ele expõe seus ideais de como deveria funcionar esse meio de comunicação, ou seja, o ouvinte também poderia promover o ato de comunicar. A fim de expandir a possibilidade analítica deste trabalho, destrinchar- se-á o objeto desta pesquisa, que se trata da peça O vôo sobre o oceano – peça didática radiofônica para rapazes e moças. A intenção, no sexto capítulo, é contextualizar a época em que foi escrita, contar do que se trata e considerar os pormenores significativos ao entendimento e interiorização da obra, partindo dos pressupostos mencionados nos capítulos subsequentes. Deve-se considerar e lembrar que a posição de Brecht em relação aos prazeres da cultura de massas atravessa a tão engendrada oposição entre populismo e elitismo. Isso significa que a sua função não é o prazer, mas pensar historicamente estética e cultura, perpassando a comunicação. Lembro, então, que é preciso ler o texto como um todo, um conjunto que se complementa, já que aos comunicólogos pode parecer que há muito teatro. Aos amantes do teatro, parecerá que existe demasiada comunicação. O que quero mostrar com este trabalho é que, depois de Brecht, é preciso buscar entender a relação entre os dois.
  • 17. 16 2 TEATRO MODERNO Para elucidarmos melhor a época em que Brecht apareceu no contexto mundial, é primordial que adentremos no âmbito da transição do teatro dramático, denominado aristotélico pelo autor, até o Teatro Moderno, de que Brecht é parte. Este capítulo objetiva abordar essa época expondo as principais características inerentes às pesquisas e experimentações de artistas e pensadores de destaque, nesse período considerado conturbado em relação às mudanças na arte. A fim de atingir uma melhor compreensão sobre o intervalo de tempo posto, propõe-se uma gama de autores que refletem, com nomeações variadas, sobre o Teatro Moderno. Como base para a exposição dos conceitos, usaremos autores como Peter Szondi e a Teoria do drama moderno [1880 – 1950], Iná Camargo Costa e suas obras Sinta o drama e Nem uma lágrima: teatro épico em perspectiva dialética, bem como Raymond Williams e seu livro Drama em cena. Tais obras também farão parte das reflexões sobre o teatro épico exposto mais adiante. Não é o objetivo deste capítulo suscitar as características marcantes do teatro épico formulado e teorizado por Brecht, mas apontar as diferenças enfáticas entre o teatro postulado como dramático e o aqui chamado de Moderno. É com base na historicização que ressaltaremos as transformações do teatro para o século XX. De acordo com Iná Camargo Costa (2012, pp.15-16), podemos elucidar melhor o que é o drama: Segundo uma definição quase aceitável por qualquer manual do século XIX, drama é a forma teatral que pressupõe uma ordem social construída a partir de indivíduos [...] e tem por objeto a configuração das suas relações, chamadas intersubjetivas, através do diálogo. O produto dessas relações intersubjetivas é chamado ação dramática, e esta pressupõe a liberdade individual (o nome filosófico da livre- iniciativa burguesa), os vínculos que os indivíduos têm ou estabelecem entre si, os conflitos entre as vontades e a capacidade de decisão de cada um. (grifo da autora) E ela completa explanando que, como característica, o enredo do teatro dito dramático funciona, principalmente, por meio do diálogo, devendo ter, de modo claro, começo, meio e fim, em uma determinação tipicamente temporal, chamada de enredo ou entrecho, com a possibilidade da existência do nó dramático, nó cego, desenlace, entre outras nomenclaturas.
  • 18. 17 Além disso, o drama pressupõe que se tenha suspense, deixando o público ―preso‖ pela curiosidade em relação ao desfecho da história. A autora também exprime que, no drama, ―não há lugar para o inexprimível (o que não se traduz em discurso, incluindo ‗caras e bocas‘), pois ele expõe relações intersubjetivas‖ (2012, p.16, grifo da autora). Ademais, os temas que interessam ao drama precisam estar no âmbito dessas relações, ou seja, precisam pertencer à vida privada. Essas exigências levam-nos ao princípio formal do drama: a autonomia. O drama deve ser um todo autônomo, absoluto. Não pode remeter a um antes, nem a um depois e muito menos ao que lhe é exterior. [...] A exigência das unidades dramáticas não é, por isso, mero arbítrio de críticos ranzinzas, mas consequência necessária do princípio formal. [...] Assim, trocando mais em miúdos, sobre os personagens do drama pode-se dizer que devem ser indivíduos bem caracterizados, e é por essa razão que os críticos exigem profundidade psicológica dos dramaturgos. Esses indivíduos devem ser capazes de assumir seu próprio destino, bem como as consequências dos seus atos, sem se submeterem a instâncias externas ou superiores (fatalidade, deuses, tradições). (COSTA, 1998, pp. 56-57, grifo da autora). A profundidade psicológica por parte dos indivíduos da peça será enfatizada pela interpretação do autor, como mostra Szondi (2001, p.31): ―A arte do ator também está orientada ao drama como um absoluto. A relação ator-papel de modo algum deve ser visível; ao contrário, o ator e a personagem têm de unir-se, constituindo o homem dramático‖. Outra consequência que tange às interpretações dramáticas é a relação com o espectador, objetivada na quarta parede, que se trata de uma parede imaginária situada na frente do palco do teatro. Sendo assim, o ―drama exige do espectador uma passividade total e irracional: separação ou identificação perfeita‖ (COSTA, 2012, pp.16-17). É por esse fator que a cena frontal é a cena própria para o drama e o autor se identifica absolutamente com o personagem. Para ratificar tal elucidação, temos a compreensão de Peter Szondi sobre o drama e a relação estabelecida com o público: Assim como a fala dramática não é expressão do autor, tampouco é uma alocução dirigida ao público. Ao contrário, este assiste à conversão dramática: calado, com os braços cruzados, paralisado pela impressão de um segundo mundo. Mas sua passividade total tem (e nisso se baseia a experiência dramática) de converter-se em
  • 19. 18 uma atividade irracional: o espectador era e é arrancado para o jogo dramático, torna-se o próprio falante (pela boca de todas as personagens, bem entendido). A relação espectador-drama conhece somente a separação e a identidade perfeitas, mas não a invasão do drama pelo espectador ou a interpelação do espectador pelo drama. No século XX, que dá voz e vez ao Teatro Moderno, os fundamentos estéticos e racionais vivenciados no século anterior, em que predominava o Naturalismo cênico, principalmente no que se refere à interação entre plateia e atores, foram transgredidos e desafiados, trazendo à tona inovações teatrais, por meio de experimentações no modo de fazer teatro. Levando em consideração as análises sobre as mudanças na forma teatral, em que a classe de operários passa a tomar conta do espaço teatral, de Iná Camargo Costa (1998, p.20), temos: A experiência social dessas novas realidades é o novo conteúdo que a forma do drama já não tinha como configurar. O drama naturalista foi, historicamente, a primeira tentativa de dar conta dele, por isso sua natural incapacidade de superar as dificuldades que a camisa de força da antiga forma impunha: [...] a necessidade de dar voz no teatro à classe operária que começava a conquistar espaço na cena política fez com que o drama começasse a narrar e o drama deu o primeiro passo em direção ao teatro épico. (grifo da autora). Dessa forma, o conhecido ―melodrama‖ burguês, do final do século XIX, não aceita em seu conteúdo o que ―quer continuar a enunciar formalmente: a atualidade intersubjetiva. O que vincula as diversas obras da época e remonta à mudança ocorrida em sua temática é a oposição sujeito-objeto, que determina seus novos contornos‖ (SZONDI, 2001, p.92). Rompe-se, portanto, com o idealismo romântico e faz surgir o Realismo, cujo um dos representantes foi o russo Anton Tchekhov (1860-1904), o qual retratava o declínio da burguesia russa. Na concepção de José A. Pasta Júnior (2001, p.13), analisando a obra de Peter Szondi, temos: Szondi identifica, na tradição, o momento em que se constitui a forma do drama propriamente dito. Para ele, o drama da época moderna surgiu no Renascimento – quando a forma dramática, após a supressão do prólogo, do coro e do epílogo, concentrou-se exclusivamente na reprodução das relações inter-humanas, ou seja, encontrou no diálogo, sua mediação universal. O drama que surge daí é ―absoluto‖, no sentido de que só se representa a si mesmo – estando fora dele, quanto realidade que não conhece nada além de
  • 20. 19 si, tanto o autor quanto o espectador, o passado enquanto tal ou a própria convizinhança dos espaços. (grifo do autor) Estudando, sucessivamente, Ibsen, Tchékhov, Strindberg, Maeterlinck e Hauptmann, o procedimento de Szondi será o de examinar, nas peças, a contradição crescente entre a forma do drama, presente nelas como modelo não diretamente questionado, e os novos conteúdos que elas tratam de assimilar. Segundo Pasta Júnior (2001, p.14): O núcleo do confronto, que caracteriza a crise da forma dramática, encontra-se na crescente separação de sujeito e objeto – cuja conversão recíproca era a base da absolutez do drama –, separação que mais e mais se manifesta nas obras, principalmente pela impossibilidade de diálogo e pela emersão do elemento épico. Iná Camargo Costa (2012, p.91), por sua vez, faz um resumo pertinente sobre as estruturas desses autores enfatizados por Szondi: Com Hauptmann, vimos a forma do drama burguês operando como um obstáculo real para a exposição da luta ocorrida na Silésia. Ibsen questionou objetivamente a universalidade do conceito burguês de indivíduo, mostrando que ele exclui pelo menos a metade feminina da humanidade. Tchekhov mostrou que a burguesia e sua forma teatral não tinham futuro. Strindberg descobriu, com o drama de estações, uma forma de romper com a objetividade do drama, abrindo o caminho para o aparecimento do foco narrativo e, com ele, a possibilidade de ultrapassar as limitações da narrativa dramática, que exige, entre outras determinações, o encadeamento causal dos acontecimentos. As duas gerações do Expressionismo consolidaram a forma épica, e a segunda mostrou o seu interesse para os trabalhadores na exposição de seus próprios assuntos. Marca-se, então, a eclosão de novos movimentos que começaram a se instaurar em oposição às ―regras‖ artísticas antes dominantes. De acordo com Pavis (1999), no Dicionário do Teatro, o Expressionismo teve início por volta de 1910, na Alemanha, rejeitando a ilusão criada em cena pelo Naturalismo. O expressionismo inovou o cenário de forma radical, estilizando e distorcendo os elementos da cena. Tinha como foco chamar a atenção do público para a arte em si mesma e não para a imitação da vida. Retomando um teorema de Peter Szondi: a forma do drama tornou- se um problema para os dramaturgos naturalistas que estavam interessados em encenar assuntos definidos como épicos pelos próprios adeptos do drama. Tornou-se mesmo uma camisa de força
  • 21. 20 que começou a se esgarçar nas mãos dos naturalistas e acabou se rompendo ao tempo do teatro expressionista [...]. Sem muito exagero, é possível dizer que dramaturgos expressionistas como Georg Kaiser e Ernst Toller, na trilha dos experimentos de Strindberg, já tinham encontrado uma nova forma de teatro não- dramático. Só lhe faltava um nome. A essa tarefa dedicaram-se os militantes do teatro político na Alemanha. (COSTA, 1998, p.98). Georg Kaiser (1878-1945) e Ernst Toller (1893-1939), como apontado, foram precursores do Expressionismo no teatro, e em seus trabalhos mostravam a expressão do sentimento humano, em vez de apenas retratar a sua realidade externa. Além disso, mostravam o homem em luta contra a mecanização desumanizadora da sociedade industrial. Mesmo com todas as diferenças que apresentam entre si, os dramaturgos estudados nesse período se caracterizam pela assunção e enfrentamento da crise da forma dramática, não se limitando a manifestá-la ou fugir dela. Pode-se afirmar que, ao contrário, [...] da perspectiva de Szondi, praticamente todos eles procuraram ―solucionar‖ a crise do drama assumindo como elementos temáticos e formais, tão plenamente quanto possível, os elementos contraditórios em cuja emersão ela se manifesta e, assim, procurando recuperar para o teatro uma integridade estética à altura dos impasses que ele defronta. (PASTA JÚNIOR, 2001, p. 17). As duas primeiras décadas do século XX, segundo Costa (1998, pp.16- 17) assistem ao vertiginoso desenvolvimento dessas tendências por quase toda a Europa e Estados Unidos. São muitos os autores que se colocam à disposição de tais mudanças. Na Rússia, Gorki, Maiakóvski, Stanislaviski, Meyerhold; na Alemanha, Hauptmann, Kaiser, Toller, Sternheim, Piscator, Max Reinhardt, entre outros; na França, depois de Antoine e seus dramaturgos naturalistas, aparecem Jacques Copeau, Romain Rolland, Jacques Prévert, Baty, Dullin, Jouvet e Pitsoëf; na Itália, Pirandello e Bragaglia; na Inglaterra temos Bernard Shaw, O‘Casey e Synge; e nos Estados Unidos, Elmer Rice, O‘Neill e Clifford Odets, entre inúmeros outros. Com a ascensão do nazismo, especificamente na Alemanha, em 1920, muitos artistas estavam preocupados em trabalhar temas coletivos, reforçando a abordagem anti-naturalista. Essa nova estética passa a ser conhecida como teatro épico, cujo pioneiro foi Erwin Piscator (1893-1966), que teve como discípulo e
  • 22. 21 militante o alemão dramaturgo e poeta Bertolt Brecht (1898-1956), o qual abordaremos com afinco no decorrer deste trabalho. As experiências de ambos ―principiam ali onde a contradição entre a temática social e a forma dramática vem à tona: no ‗drama social‘ do naturalismo‖ (SZONDI, 2001, p.133). Ainda segundo Szondi (2001, p.26), As contradições entre a forma dramática e os problemas do presente não devem ser expostas in abstracto, mas aprendidas no interior da obra como contradições técnicas, isto é, como ―dificuldades‖. Seria natural querer determinar, com base em um sistema de gêneros poéticos, as mudanças na dramaturgia moderna que derivam das problematizações da forma dramática. Mas é preciso renunciar à poética sistemática, isto é, normativa, não certamente para escapar a uma avaliação forçosamente negativa das tendências épicas, mas porque a concepção histórica e dialética de forma e conteúdo retira os fundamentos da poética sistemática enquanto tal. (grifo do autor). E ele completa sua colocação levando a cabo a tensão entre forma e conteúdo, que: [...] se atribui à contradição entre a unificação dialógica de sujeito e objeto na forma e sua separação no conteúdo. A ―dramaturgia épica‖ se desenvolveu à medida que a relação sujeito-objeto situada no plano do conteúdo se consolida em forma. (Id., p. 98). Como importante conquista advinda desse novo jeito de fazer teatro, temos a possibilidade de tratar tanto da subjetividade mais íntima quanto dos mais amplos assuntos da esfera do épico (históricos, políticos, econômicos). ―Ninguém mais pode dizer, sem incorrer em conservadorismo acadêmico, ou autoritarismo religioso, que algum assunto não é próprio para o teatro‖ (COSTA, 2012, p.19). Já apontando para o que se coloca como teatro épico, o qual será esmiuçado no capítulo seguinte, temos a superação da forma antiga, que se tornou problemática, pois os conteúdos, desempenhando uma função formal, precipitam-se completamente em forma, ―explodindo a forma antiga‖, como afirma Szondi (2001, p.95). Hans-Thies Lehmann (2007, p.69), em seu livro O teatro pós- dramático, tende a acrescentar com uma definição de teatro: Teatro pós-dramático pode ser concedido não como um teatro que se encontra além do drama, sem relação alguma, mas muito mais como desdobramento e florescimento de um potencial de desagregação, de desmontagem, de desconstrução do próprio
  • 23. 22 drama. Surge um fenômeno impensável hegelianamente, já que o mero ator individual situa-se acima do teor ético. (grifo do autor). Além disso, complementa (p.402): ―[...] a representabilidade, movimento da realidade teatral, não se opõe de modo nenhum à noção de que se pode tratar da realidade humana sob a condição de que ela permaneça não representável‖ (grifo do autor). À guisa de conclusão: O conceito de teatro moderno compreende o processo histórico desencadeado pela crise da forma do drama através da progressiva adoção de recursos próprios dos gêneros lírico e épico que culminou com o aparecimento de uma nova forma de dramaturgia – o teatro épico. (COSTA, 1998, p.14, grifo da autora). Com base nas apropriações do que se entende pelo Teatro Moderno, temos a aproximação com o teatro épico próprio de Bertolt Brecht, o qual será mais bem aprofundado adiante, voltando a alguns pormenores desenvolvidos neste capítulo. Em seguida, dar-se-á início às reflexões de Benjamin sobre o teatro brechtiano e os meios de comunicação – e sua utilização –, como modo de dar sustentação à teoria do dramaturgo.
  • 24. 23 3 BERTOLT BRECHT1 Para elucidarmos melhor o objeto desta pesquisa, faz-se necessário apresentar o autor da peça, bem como suas raízes, influências e legados. Trata-se de Eugen Bertholt Friedrich Brecht, mais conhecido como Bertolt Brecht, que nasceu no Estado Livre da Baviera, em Augsburg, no extremo sul da Alemanha, em 10 de fevereiro de 1898. Brecht se destacou, no século XX, como dramaturgo, poeta e encenador, influenciando profundamente o Teatro Moderno e tornando-se mundialmente conhecido. Sobre sua vida acadêmica, estudou medicina e ciências naturais na Universidade de Munique e trabalhou no serviço militar como enfermeiro durante a Primeira Guerra Mundial. Era filho de Berthold Brecht, diretor de uma fábrica de papel, católico, exigente e autoritário, e de Sophie Brezing, protestante, que fez seu filho ser batizado nessa religião. Na segunda metade de 1920, Brecht tornou-se marxista, vivenciando o período das mobilizações da República de Weimar. Adentrando o contexto culturalmente e considerando o teatro da época, eram conhecidas e renomadas as atribuições absolutamente dramáticas ao modo de encenar. O teatro no século XX, reduzido como o resto a uma mercadoria pelo amadurecimento corruptor da sociedade capitalista. Desceu a uma cotação extremamente baixa no mercado. No tempo da indústria, da produção em série e da destruição da venerável instituição do original artístico único, o teatro só poderia estar irremediavelmente condenado a ser a diversão de esnobes, homossexuais esquizofrênicos, nefelibatas intelectualizados e outros neuróticos ou o desfastio da ordem estabelecida através de seus burgueses bem- pensantes e metidos a sensíveis. A idade da indústria destruiu a aura da obra de arte, como explica Walter Benjamim. (MACIEL, 1967, pp. 3-4). Foi nesse contexto que Brecht desenvolveu o teatro épico. Sua praxis é uma síntese dos experimentos teatrais de Erwin Piscator – famoso por suas cenas Piscator, como eram chamadas, cheias de projeções de filmes e cartazes – e Vsevolod Emilevitch Meyerhold; do conceito de estranhamento do formalista 1 As informações biográficas de Bertolt Brecht aqui utilizadas foram retiradas, principalmente, do livro Teatro dialético, do próprio Brecht, com introdução de Luiz Maciel, 1997.
  • 25. 24 russo Viktor Chklovski; do teatro chinês e do teatro experimental da Rússia soviética, entre os anos 1917 e 1926. Com 20 anos, escreveu sua primeira peça, Baal (1918), história de um poeta vagabundo e amoral. Em seguida, tornou-se crítico teatral do Der Volkswille, em sua cidade natal, e uma espécie de consultor literário do teatro Munich Kammerspiele. Os primeiros espetáculos de suas peças Tambores na Noite (Trommeln in der Nacht), Baal e Eduardo II foram encenados em Munique, em 1922, 1923 e 1924, respectivamente. Por meio de sua participação no teatro, Brecht conheceu o diretor de teatro e cinema Erich Engel, com quem trabalhou até o fim da sua vida. Depois da Primeira Guerra Mundial, mudou-se para Berlim, onde o influente crítico Herbert Ihering chamou-lhe a atenção para a propensão do público pelo Teatro Moderno. Brecht trabalhou inicialmente com Erwin Piscator, citado anteriormente. Em Berlim, a peça Im Dickicht der Städte, protagonizada por Fritz Kortner e dirigida por Engel, tornou-se o seu primeiro sucesso. Brecht, em 1926, estreia sua comédia Um Homem é um Homem, em que mostra uma sociedade que começa a encarar a máquina como extensão do ser, quando não o próprio. Trata-se da obra de transição entre o expressionismo das primeiras peças e o estilo tipicamente brechtiano que começa a desenvolver por meio do teatro épico. De acordo com a biografia escrita por Luiz Carlos Maciel, no ano seguinte (1927), Brecht apresenta no Festival de Baden-Baden a primeira versão de Mahagonny, com música de Kurt Weill (1900-1950), o compositor que seguirá sendo seu parceiro em outras montagens. Em 1928, produzido por Piscator, aparece Schweik, adaptado em colaboração com Gasbarra e Leo Lania. A Ópera dos Três Vinténs, também de 1928, é o trabalho de maior destaque na carreira de Brecht, também com parceria do compositor Kurt Weill. Essa obra apresentou uma nova forma de teatro musical, misturando a estética de cabaré com a sátira de cunho social. Ele propunha um teatro politizado, cujo objetivo era/é modificar a sociedade. Indo mais a fundo, sabe-se que a peça vira um enorme sucesso, principalmente por causa da música, mas o que se nota é que as pessoas não entenderam a essência e a crítica que o autor gostaria de ter passado, há um ―erro‖
  • 26. 25 de interpretação por parte do público, o qual se ateve mais às canções, facilmente incorporáveis pelo sistema radiofônico. Seguindo a cronologia proposta por Maciel, em 1929, Brecht volta ao Festival de Baden-Baden com O Vôo de Lindberg, peça radiofônica que estudaremos com mais detalhes nos próximos capítulos, e As Peças Didáticas de Baden. Em 1930, estreia a versão definitiva de Ascensão e Queda da Cidade de Mahagonny. No mesmo ano, estreia Die Massnahme, com traduções diversas, tal qual A medida ou A decisão. A peça A Mãe, adaptada de Górki, estreia em 1932, ano em que ocorre a ascensão no nazismo. Concomitantemente, o filme Kuhle Wampe escrito por Brecht, com música de Hanns Eisler e dirigido por Stalan Dudow é censurado e considerado proibido. Com a eleição de Hitler, em 1933, terminou, definitivamente, a república. Embora a constituição de 1919 não tenha sido revista até o final da Segunda Guerra Mundial (1945), as reformas levadas a cabo pelo partido nazista invalidaram-na muito antes. Então, Brecht exila-se primeiro na Áustria, depois Suíça e França, onde apresenta Os Sete Pecados Capitais, no Teatro dos Champs- Elysées, em Paris. Ainda de acordo com a retrospectiva história e artística de Brecht, ele torna-se, em 1936, um dos editores da revista Das Wort, publicada por intelectuais alemães refugiados em Moscou. Estreia sua peça Cabeças Redondas e Cabeças Pontudas em Copenhague. Permanentemente na luta contra o nazismo e o fascismo, estreia, em 1937, em Paris, a peça Os Fuzis da Senhora Carrar, a qual considera ―aristotélica‖, conceito que será mais bem elucidado no tópico sobre o Teatro épico. Em 1938, estreia sete cenas de Terror e Miséria do III Reich. Viaja, então, à Dinamarca, Suécia, Finlândia e Suíça. O ano de 1940 é marcado pela peça Mãe Coragem, estreada em Zurique. E, finalmente, em 1941, parte para os Estados Unidos, instalando-se na Califórnia, onde tentou ganhar a vida com argumentos cinematográficos em relação a Hollywood. Ainda nos EUA, em colaboração com Joseph Losey, dirigiu a montagem de sua peça A Vida de Galileu, em 1947. No mesmo ano, segundo Maciel, depõe perante o Comitê de Atividades Antiamericanas, em Washington. Eram os tempos da Guerra Fria e o
  • 27. 26 macarthismo – prática política que se caracteriza pelo sectarismo, notadamente anticomunista, inspirada no movimento dirigido pelo senador Joseph Raymond McCarthy, nos EUA e que geralmente formula acusações e faz insinuações sem prova – já estava evidente no país. Então, volta à Europa, estabelecendo-se novamente na Suíça, onde escreve o Pequeno Organon Para o Teatro, monta uma adaptação de Antígona, de Sófocles e sua comédia O Sr. Puntila e Seu Criado Matti. Volta à Alemanha, em 1949, a convite do governo da República Democrática Alemã, instalando-se em Berlim Oriental, onde funda e dirige a companhia Berliner Ensemble, sustentada pelo Estado. Daí em diante, partindo do trabalho prático da companhia, Brecht dá vazão a todo o seu trabalho de cunho teórico. Em seu teatro, Brecht criou o Efeito de Distanciamento (Verfremdungseffekt), o qual abordaremos minuciosamente no tópico que se refere ao teatro épico. Esse efeito permitia ao público distanciar-se dos personagens e da ação dramática, utilizando recursos de diálogos estilizados, no uso da canção-narrativa, elementos cênicos informativos, entre outros recursos. Até 1956, junto à Berliner Ensemble, o dramaturgo realiza uma série de espetáculos com suas peças e adquire reconhecimento mundial apresentando-se no Festival do Teatro das Nações, em Paris. Além disso, recebe o Prêmio Stalin, em Moscou, em 1955. Seus textos, absolutamente ricos por suas ideias e pensamentos, fizeram-no conhecido em todo o mundo. Brecht é considerado um dos escritores fundamentais desse século por revolucionar a teoria e a prática da dramaturgia e da encenação, mudando completamente a função e o sentido social do teatro, usando- o como arma de conscientização e politização. Ele procurava estabelecer uma consciência antilúdica em relação a toda arte contemporânea. Tentou objetivar, então, a pedagogia aliada ao fazer teatral. Seu objetivo era superar a aparente inutilidade do teatro: a função, a utilidade, o resultado prático eram os critérios fundamentais que orientaram seu espírito. Sabia que, para provar a excelência de um bolo, é necessário comê-lo. Fazer um teatro que retomasse, na plenitude, a sua função social, um teatro útil e consequente, era tarefa de um homem de teatro que arregaçasse as mangas sobre as tábuas do palco, não de um autor ou teórico de gabinete. Foi o que ele fez. (MACIEL, 1967, p.5).
  • 28. 27 Ressalta-se, portanto, que ele buscou colocar em prática seus ideais perante a arte, principalmente relacionando-se com o teatro. Deve-se ter em mente, entretanto, que Brecht não escreveu peças marxistas nem procurou formular propriamente a teoria de um teatro marxista, objetivo que parecem ter sido mais concernentes a Piscator e seu teatro político. Mas, sem dúvida, Brecht estava convencido, como afirmou aos macarthistas norte-americanos que o interrogaram, de que ―não se pode escrever peças inteligentes, hoje em dia, sem conhecer as teorias de Marx‖ (MACIEL, 1967, p.9). Segundo Maciel, antes mesmo que qualquer conceituação marxista proposta por Brecht, o racionalismo, a depreciação do sentimento, o afastamento deliberado das emoções, o esforço pela compreensão e pela crítica e a valorização do instinto são aspectos práticos e/ou teóricos fundamentais a serem considerados em seu teatro, em detrimento à mera diversão. É importante lembrar, nesse contexto, as relações sociais de produção e as forças produtivas. Nós, como seres humanos, produzimos a nossa existência coletivamente, sobrevivemos e vivemos por meio delas. Desenvolvemos as forças produtivas e por elas nos relacionamos socialmente, tal qual explica Marx, em seu Prefácio à Contribuição à Crítica da Economia Política, de 1859: [...] na produção social da sua vida, os homens contraem determinadas relações necessárias e independentes da sua vontade, relações de produção que correspondem a uma determinada fase de desenvolvimento das suas forças produtivas materiais. O conjunto dessas relações de produção forma a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual se levanta a superestrutura jurídica e política e à qual correspondem determinadas formas de consciência social. [...] E do mesmo modo que não podemos julgar um indivíduo pelo que ele pensa de si mesmo, não podemos tampouco julgar estas épocas de revolução pela sua consciência, mas, pelo contrário, é necessário explicar esta consciência pelas contradições da vida material, pelo conflito existente entre as forças produtivas sociais e as relações de produção. (MARX, 1859, pp.301- 302). Faz-se crucial lembrar que a época de revolução social, de onde sai a verdadeira luta de classes, dá-se quando as forças produtivas e as relações sociais de produção entram em contradição. Nesse caso, com a mudança das forças produtivas no teatro e a luta de classes aparecendo como assunto, Brecht começa a
  • 29. 28 repensar o teatro e, com ele, a utilização dos meios de comunicação (desenvolvimento das forças produtivas, também por meio das novas técnicas). É a partir das problematizações encontradas nas relações de produção, ocasionadas pelas forças produtivas deficientes, que Brecht vai pensar seu Teatro épico, mais destrinchado no tópico que segue e a sua Teoria do rádio, a qual aparecerá neste trabalho, para que se exponha o pensamento do dramaturgo em decorrência da utilização dos meios de comunicação, inclusive no que concerne as suas peças. Voltando a sua biografia, o dramaturgo faleceu em 14 de agosto de 1956, de trombose coronária, no Estado de Berlim, em Berlim Leste, com 58 anos. 3.1 O TEATRO ÉPICO O teatro épico é a tentativa mais profunda e mais ampla no sentido de constituir um teatro moderno, e tem que superar todas as imensas dificuldades que têm que ser superadas por todas as forças vivas nos terrenos da política, da filosofia, da ciência e da arte. (MACIEL, 1967). Partindo da contextualização sobre o Teatro Moderno e sobre o dramaturgo Bertolt Brecht, podemos nos aprofundar no teatro épico. Segundo Maciel (1967), a visão de mundo do dramaturgo o leva, ao mesmo tempo, a determinada posição ideológica e política, respondendo a uma necessidade de racionalização das relações humanas. De acordo com o que escreve Brecht em seu artigo ―Cena de Rua – Modelo de Uma Cena de Teatro épico‖2 , de 1940 – presente no livro Teatro Dialético, de 1967, p.141 – durante os quinze anos que se sucedem à Primeira Guerra Mundial, foi experimentada uma forma bastante nova de interpretação, cujas características são tipicamente narrativas e descritivas e há a introdução de comentários em forma de coros e projeções. A essa nova estética dá-se o nome de épico. Assim sendo, o ator distancia-se do personagem e apresenta as situações de tal maneira que o espectador seja levado a exercer seu espírito crítico. 2 Os artigos aqui citados estão compilados no livro Teatro dialético, de Bertolt Brecht, de 1967.
  • 30. 29 O demonstrador, que deve ser reconhecido como ator, deve alternar sua imitação com explicações, o maior número de vezes possível. Os coros e as projeções de documentos de teatro épico e o apelo direto ao público pelos atores estão fundamentados no mesmo princípio. De acordo com o alemão, esse modelo não recorre às justificativas da apresentação teatral tradicional, ―tais como ‗a necessidade de se exprimir‘, ‗a capacidade de tornar sua a ‗vida‘ do personagem‘, ‗a aventura psicológica‘, ‗a necessidade de representar‘, ‗o prazer da invenção‘, etc‖ (BRECHT, 1967, p.149), ao contrário, procura romper com o tradicionalismo. Ao serem escritas as obras, o teatro épico não deixa de recorrer a recursos artísticos, mas corresponde à situação sociológica, destruindo a velha estética por esta não a satisfazer. O teatro, então, deveria seguir essa inovação, correspondendo à mesma necessidade, por meio do esclarecimento e da crítica em detrimento da mera diversão. Torna-se perceptível que não deve existir um sistema de comunicação comum enquanto a sociedade estiver dividida em classes antagônicas, pois a arte, tendo caráter ―apolítico‖, está aliada ao grupo dominante. Fato que não é, evidentemente, a opção de Brecht. É no interesse do povo, ou melhor, das amplas massas trabalhadoras, que a literatura deve fornecer representações verdadeiras da vida, as quais precisam ser sugestivas e inteligíveis, ou seja, populares. Entende-se que o escritor deva escrever a verdade no sentido de que não deve suprimi-la ou silenciá-la, nem escrever inverdades, nem curvar-se perante os detentores do poder, muito menos enganar os fracos. Naturalmente, é muito difícil não se curvar diante dos poderosos e é muito vantajoso enganar os fracos. (BRECHT, 1967, p. 20). E Brecht, em seu artigo ―O Popular e o Realista‖, escrito em 1937, presente no livro Teatro dialético (1967, p.116), ainda completa sua visão sobre o teatro que atende ao povo: O povo separou-se claramente de seus superiores: seus opressores e exploradores romperam com ele e se entregaram a uma guerra sangrenta contra ele que não pode ser mais ignorada. Ficou mais fácil escolher um lado. A guerra aberta, de uma certa maneira, foi deflagrada entre o ―público‖.
  • 31. 30 No mesmo artigo, Brecht (1967) ressalta que passar a verdade ao espectador parece uma tarefa cada vez mais urgente, pois o sofrimento das massas aumentou. E há apenas um aliado contra a barbárie: o povo sobre o qual são impostos esses sofrimentos. Sendo assim, é imprescindível que se recorra a ele, falando a sua linguagem, a fim de obter melhores perspectivas. Em seu artigo ―Pequeno Organon Para o Teatro‖, de 1948, Brecht coloca que: Necessitamos de um teatro que não nos proporcione somente as sensações, as idéias e os impulsos que são permitidos dentro do respectivo contexto histórico das relações humanas (em que as ações se realizam), mas também que empregue e suscite pensamentos e sentimentos que ajudem a transformação desse mesmo contexto. (BRECHT, 1967, p.197). Quando o dramaturgo se refere à necessidade de uma arte popular, quer dizer que se deve fazer arte para as amplas massas populares, aos muitos que são oprimidos por poucos, à grande massa de verdadeiros produtores que sempre foram o objeto da política e que agora podem tornar-se o seu sujeito. Bertolt Brecht também tem essa expectativa em sua Teoria do Rádio, a qual ainda será apresentada neste trabalho. Tem-se o conceito de um povo combatente e que está transformando o mundo e a si próprio. Consequentemente, há um conceito combatente de popular. Falo de experiência própria quando digo que não se deve ter medo de colocar coisas novas e não habituais diante do proletariado, desde que tenham algo a ver com a realidade. Haverá sempre pessoas educadas, conhecedoras de arte, que virão dizer que ―o povo não vai entender‖. Mas o povo, com impaciência, se livrará delas para se entender diretamente com o artista. (BRECHT,1967, p.121). O dramaturgo representa o aguçamento da consciência antilúdica, não só do teatro, mas de toda a arte contemporânea, o que se apresenta como uma negação da consciência estética. Como Erwin Piscator, Brecht tende, em seu teatro de agitprop, a um novo objetivo: compor seu teatro com as qualidades do pedagogo: ―a clareza de exposição, o rigor de visão, o acesso fácil à compreensão, a lógica justa e, uma palavra, a verdade sem mistificação‖ (MACIEL, 1997, p.6).
  • 32. 31 E Brecht (1967, p.166) completa: ―A principal qualidade do teatro épico é exatamente ser natural e terrestre, é o seu humor e a sua desistência de todos os aspectos místicos que desde épocas passadas até aos dias de hoje prendem o teatro usual‖. O ponto essencial do teatro épico é, provavelmente, de acordo com Brecht (1967, p.41), ―que ele apela menos para os sentimentos do que para a razão do espectador. Em vez de participar de uma experiência, o expectador deve dominar as coisas.‖ Simultaneamente, seria equivocado negar emoção a essa espécie de teatro, pois seria o mesmo que tentar negar emoção à ciência moderna. Sem dúvida, a ciência e a arte atuam de forma bastante diversa. Contudo, Brecht afirmou em seu artigo intitulado ―Teatro de Diversão ou Teatro Pedagógico‖ (Brecht, 1967, p.100) que, sem utilizar algumas ciências, não teria a menor possibilidade de cumprir sua missão como artista: ―E devo confessar, inclusive, que torço o nariz para pessoas de quem sei que não estão à altura da compreensão científica, ou seja, que cantam como os pássaros cantam, ou como nós acreditamos que os pássaros cantem.‖ Também o moderno teatro épico se liga a determinadas tendências. E ligar-se à ciência significa usar um meio auxiliar para a sua compreensão. Segundo Brecht, a maioria das grandes nações não se inclina, atualmente, a manifestar seus problemas no teatro, mas deveria fazê-lo, denotando um espaço divertido e, ao mesmo tempo, passível de suscitar reflexões e críticas. É a sua vontade de esclarecimento e crítica, inclusive no teatro, que o levou à formulação de um Efeito de Distanciamento (Verfremdungseffekt), o qual não visa, no fundo, à eliminação da emoção na experiência dramática, mas, ao contrário, à sua salvação: Brecht não suportava a orgia de emoções corrompidas, sentimentalizadas, dominadas pelo irracionalismo, que se vê no teatro burguês como espelho da sociedade de que é produto. Para sanear a emoção, era necessário que ela fosse subordinada à razão. Desde que Aristóteles também emite qualquer referência à dimensão intelectual da experiência dramática – seja a tomando como um suposto tácito, seja efetivamente a parcializando na catarsis, na pura purgação. Das emoções de piedade e terror – a emoção pura, irracional, desumanizada por sua insubordinação à Razão, também foi apelidada por Brecht de aristotélica. (MACIEL, 1967, p.14, grifo do autor).
  • 33. 32 A alienação do homem, para Brecht, não se manifesta como produto da intuição artística. Pelo contrário, Brecht ocupa-se da desalienação do homem, de maneira consciente e proposital. Então, ele foi buscar na tradição dramática oriental, particularmente no teatro chinês, a resposta ao distanciamento. O distanciamento não deve, segundo Maciel em suas interpretações sobre Brecht, destruir a emoção, mas simplesmente colocá-la em perspectiva crítica, pois a razão tem como função ―iluminar‖ os sentimentos dos espectadores. As emoções devem levar ao esclarecimento e serem elas próprias esclarecidas, tendo função cognoscitiva. As que não o forem são chamadas aristotélicas e não ultrapassam o nível da diversão. Com o Efeito do Distanciamento proposto pelo dramaturgo, sua pretensão era despertar o espectador para uma reflexão crítica, usando meios artísticos, mas rompendo com a ilusão através do estranhamento, e deixando claro a todos que teatro não é vida real, ou seja, não os hipnotizava por meio da arte. Em seu artigo ―Uma Nova Técnica de Representação‖, escrito em 1940, Brecht explica que não eram feitos esforços para colocar o público em transe e para lhe dar a ilusão de assistir a um acontecimento normal, que não foi ensaiado. Para tanto, foi preciso abandonar a concepção de que existe uma ―quarta parede‖ separando ficticiamente o palco do público, a qual é causadora da ilusão de que o pano de boca realmente existe, de que não há público. Brecht propõe a possibilidade, inclusive, de que o ator se dirija diretamente ao público. Segundo Szondi (2001, p.138), ―para causar distanciamento em relação ao decurso da ação, que já não tem mais [...] a necessidade linear da ação dramática, vale recorrer a projeções e legendas, coros, canções ou mesmo gritos de ‗jornaleiros‘ pelo auditório‖. Isso porque eles comentam e interrompem a ação. Também para o distanciamento dos espectadores, Brecht propõe que eles assistam à peça até na companhia do cigarro. O dramaturgo explica que, no palco, durante todas as passagens essenciais, o ator deve encontrar e fazer pressentir alternativas que indiquem o contrário daquilo que está representando, ou seja, deve interpretar de uma maneira que mostre que a representação pode se dar em outras possibilidades e que ele está representando apenas uma das variantes possíveis. Segundo ele, ―O ator não deve permitir que no palco se dê uma transformação completa da sua pessoa naquela que está representada.‖.
  • 34. 33 Provavelmente, as próprias recomendações iniciais de Brecht sejam mais úteis do que qualquer análise meramente interpretativa. Ele (1967, p.163) propõe três ―técnicas‖ para seus atores: Três recursos podem servir para um distanciamento das falas e das ações de um personagem a ser representado com uma maneira de interpretar sem transformação completa: 1. A transposição para a terceira pessoa do singular. 2. A transposição para o passado. 3. Dizer o texto acompanhado pelas instruções e comentários do autor. A partir dessa explanação, vê-se possível que existam variações na forma de haver o distanciamento. Pode ser propiciada, inclusive, pela própria dicção, tendo em vista a importância maior ou menor que precisa ser conferida às sentenças. Outra circunstância pensada por Brecht é o fato de os atores passarem naturalmente da fala para o canto. Para ele, essa mudança de ação na cena deve ser nitidamente reconhecida. E isso pode ser feito por meio de recursos cênicos, como mudança de iluminação ou emprego de títulos. O ator, em sua posição, assume uma ―visão crítica da sociedade‖. Ao estabelecer a linha dos acontecimentos e da caracterização dos personagens, deve salientar os traços que pertencem ao âmbito da sociedade. Dessa maneira, o ator dá a possibilidade de o espectador justificar ou condenar a situação de acordo com a sua classe social. Além do mais, o ator/demonstrador se comporta com naturalidade, deixando ao personagem representado o mesmo estigma do comportamento natural. A apresentação é primordialmente repetitiva, ou seja, o acontecimento já ocorreu (está escrito na obra), trata-se agora da repetição. Assim como o ator não mais deve iludir o público mostrando que se trata de uma personagem fictícia no palco e não dele, também não deve, de acordo com Brecht, simular que o que está acontecendo no palco não foi ensaiado e que está acontecendo pela primeira e única vez. Segundo Brecht (1967, p.147), o ator não deve ―enfeitiçar‖ ninguém, não deve arrebatar quem quer que seja da realidade cotidiana com o fim de elevá-lo a uma ―esfera superior‖. Não se deve esquecer, na demonstração, que o ator não é o personagem representado, é tão somente um demonstrador: ―Em outras palavras,
  • 35. 34 o que o público vê não é uma fusão de demonstrador com o personagem representado, nem se trata também de um ―terceiro‖ independente e harmônico‖. Em seu texto ―Observações sobre a ópera ‗Ascensão e queda da cidade de Mahagonny’”, publicado em 1931, Brecht enumera, em uma tabela, mudanças de peso na transição do teatro dramático para o épico (apud SZONDI, 2001, pp. 134-135): Tabela 1 – Transição e diferenças entre o teatro dramático e o épico Forma dramática de teatro Forma épica de teatro  o teatro ―incorpora‖ um processo  ele narra um processo  envolve o espectador em uma ação  faz dele um observador  consome sua atividade  desperta sua atividade  possibilita-lhe sentimentos  força-o a tomar decisões  transmite-lhe vivências  transmite-lhe conhecimentos  o espectador é deslocado para dentro de uma ação  ele é contraposto à ação  trabalha-se com sugestão  trabalha-se com argumentos  as sensações são conservadas  são estimuladas para chegar às descobertas  o homem é pressuposto como conhecido  o homem é objeto de investigação  o homem imutável  o homem mutável e modificador  expectativa sobre o desfecho  expectativa sobre o andamento  uma cena em favor da outra  cada cena para si  os acontecimentos têm curso linear  os acontecimentos têm curso em curvas  o mundo tal como ele é  o mundo como vem a ser  o que o homem deve ser  o que o homem tem de ser  seus impulsos  seus motivos  o pensamento determina o ser  o ser social determina o pensamento Nota-se que a objetividade científica se torna objetividade épica e aparece em todas as camadas da peça teatral, sua estrutura e linguagem, bem como sua encenação. Indo ainda mais a fundo, o que foi posto não significa que, ao representar um apaixonado, por exemplo, o ator deve se mostrar frio. Somente os sentimentos pessoais do ator é que não devem ser, em princípio, os mesmos que os da respectiva personagem, a fim de que os sentimentos do público não se tornem também os da personagem. Nesse aspecto, ―a audiência deve gozar de completa liberdade‖:
  • 36. 35 A liberdade na relação entre o ator e o seu público também consiste em que ele não o considera uma massa uniforme. Ele não une as pessoas como se fossem um bloco sem forma com as mesmas emoções. Ele não se dirige da mesma maneira a todos; ele mantém as diversões existentes no público, ele chega a torná-las mais profundas. Ele tem amigos e inimigos, ele é amigável com os primeiros e hostil com os segundos. Ele toma um partido, nem sempre aquele do seu personagem, e quando é o caso, ele toma partido contra o seu personagem. (BRECHT, 1967, p.172). Brecht explica que se trata de uma técnica de representação que permite retratar acontecimentos humanos e sociais, necessitando de explanação, sem parecerem gratuitos ou meramente naturais. A finalidade do Efeito de Distanciamento é fornecer ao espectador, situado de um ponto de vista social, a possibilidade de exercer uma crítica construtiva, principalmente em relação à sua condição social. Seguindo um velho hábito a atitude crítica é vista como uma atitude negativa. Para muitos a atitude crítica é considerada a diferença entre a atitude científica e a artística. Não conseguem pensar o prazer da arte com as contradições e distanciamentos. Naturalmente também existe um grau mais desenvolvido na apreciação comum da arte, que aprecia criticamente, mas a isto é algo completamente diferente quando se deve observar criticamente, contraditoriamente, distanciadamente o próprio mundo e não a representação artística do mundo. (BRECHT, 1967, p.177). O teatro, com suas reproduções do convívio humano e das relações interpessoais, tem que surpreender seu público e chegar a isto por uma técnica que torne o que lhe é familiar em estranho. Uma representação que cria o distanciamento permite-nos reconhecer seu objeto, ao mesmo tempo com que faz que ele pareça alheio. E ele ainda completa: ―O que aparece agora frente ao espectador é tudo o que não foi rejeitado e que foi submetido a múltiplas repetições: devem ser apresentadas com completa lucidez para que possam ser recebidas com igual lucidez‖ (BRECHT, 1967, p. 218). Como afirma Fredric Jameson (1999, p.99), em seus ―experimentos‖, Brecht investiu dinheiro e recursos, inclusive pessoais, não apenas a fim de criar um outro teatro, mas para satisfazer o desejo de um homem de teatro, que é testar todas as alternativas possíveis e debatê-las. Aqui vale a pena tecer uma nota biográfica. Brecht preferia usar a palavra ―experimentos‖ a ―experiências‖ por ter
  • 37. 36 estudado originalmente as ciências naturais. Dessa forma ele podia ―protocolar‖ as reações das pessoas submetidas ao ―experimento‖ (KOUDELA, 2007, p.21). Nesse ínterim, de acordo com Jameson, sugere-se, como ver-se-á com mais detalhes no tópico seguinte, que a passagem dos vários atores por todos os papéis cria necessariamente uma multidimensionalidade, a qual é a própria essência do teatro de repertório, ou do teatro enquanto tal. Aparecem e se desvanecem discussões ampliadas, lutas sobre a interpretação e propostas de todos os tipos de alternativas gestuais e cenográficas. O exercício do distanciamento proposto pelo dramaturgo fica imediatamente esclarecido quando se entende o que é gestus. Segundo Jameson (1999, p.139), ―é o operador de um efeito de estranhamento no sentido próprio; e em particular que o estranhamento deriva da superposição de cada um destes significados sobre os demais‖. Tal conceito – central na estética brechtiana – quer dizer que por vezes os movimentos físicos do ator no palco são suficientes, como quando o intérprete chinês – tão levado em consideração por Brecht – mostrando o seu próprio gesto, destaca-o também ao público, dotando-o de significação. Desenvolveu-se uma maneira de falar e de usar a linguagem que era, simultaneamente, estilizada e natural. As posturas tomadas nas frases eram levadas a cabo, sendo relevadoras das próprias frases, completando-as. Essa simples expressão dos gestos humanos, ainda de acordo com Jameson (1999, p.140), Brecht chamou de gestisch ou linguagem gestual. Chamamos esfera do gesto aquela a que pertencem as atitudes que as personagens assumem em relação umas às outras. A posição do corpo, a entonação e a expressão fisionômica são determinadas por um gesto social [...]. O ator apodera-se da sua personagem acompanhando com uma atitude crítica de suas múltiplas exteriorizações; e é com uma atitude igualmente crítica que acompanha as exteriorizações das personagens que com ele contracenam e, ainda, as de todas as demais (BRECHT,1978, pp.61- 62). Trata-se, então, recorrendo à análise de Vanja Poty (2013), ―de um procedimento predominantemente físico do trabalho do intérprete, designando suas atitudes e nuances de expressões faciais bem como corporais, de palavras e entonações, de ritmo e variações com quebras na fala e nos movimentos‖.
  • 38. 37 Jameson (1999, p.139) exemplifica da seguinte maneira, aliando ao conceito já visto de estranhamento: O exercício, entretanto, fica imediatamente esclarecido quando entendemos que gestus é o operador de um efeito de estranhamento no sentido próprio; e em particular que o estranhamento deriva da superposição de cada um destes significados sobre os demais, mostrando-nos, por exemplo, como um movimento involuntário da mão poderia, em certas circunstâncias (quando executado por Luís XIV durante uma entrevista particularmente decisiva, mas também quando desempenhado por um insignificante lojista durante as elaboradas e imperdoáveis negociações da vida citadina), contar como um fatídico ato histórico, com consequência sérias e irreversíveis. O gestus tem a intenção de tornar compreensível aquilo que é subjetivo (comportamento subjetivo, atitude subjetiva) a partir do que é intersubjetivo, social. Mas, é preciso ressaltar que nem todos os gestos são ―sociais‖. Segundo Brecht (1978, p.107), ―a atitude de defesa perante uma mosca não é em si própria um gesto social; atitude de defesa perante um cão pode ser um gesto social, se [...] exprimir, por exemplo, a luta que um homem andrajoso tem que travar com cães de guarda‖. Compreende-se, então, que é considerado social o gesto que evidencia uma realidade social, em que se domina a natureza, ou seja, mostra-se ―o mundo dos homens‖, como é, por exemplo, o gesto de trabalhar. Segundo Koudela (2007), os modelos de comportamento formados pelas pessoas são decorrentes de uma cultura determinada por sua classe social, sexo, língua, articulação, entre outros fatores. Diante disso, Brecht ressalta que: Por gestus entenda-se um complexo de gestos, mímica e enunciados, os quais são dirigidos por uma ou mais pessoas a uma ou mais pessoas. Um homem que vende peixe mostra, entre outras coisas, o gestus de vender. Um homem que escreve seu testamento, uma mulher que atrai um homem, um policial que espanca um homem, um homem que faz o pagamento a dez homens – em tudo isso está contido o gestus social. Um homem, invocando seu Deus, só será gestus, nesta definição, se isso ocorrer com vistas a outros homens ou em um contexto onde apareçam relações de homens para homens. (BRECHT apud KOUDELA, 2007, p.101). Também há de se enfatizar que o gestus é o ―interior‖ se expressando enquanto a linguagem verbal se exterioriza intelectualmente apenas:
  • 39. 38 [...] ao falar de gestus não nos referimos à gesticulação; não se trata de movimentos das mãos no intuito de frisar ou explicar a fala, mas sim de atitudes gerais. Uma linguagem é gestual quando se fundamenta no gestus, quando revela determinadas atitudes do indivíduo que fala, assumidas perante outros indivíduos. (BRECHT apud KOUDELA, 2007, p.101). A atitude que aparece com o gestus social expressa a relação de alguém ou de algum grupo com o ambiente e a convivência sociais, esclarecendo, assim, as relações interobjetivas. Por meio dessa imitação, dessa expressão do comportamento real, é que o ―efeito educacional‖, em que o interior é orientado pelo exterior, pode ser atingido. Decorre daí que o processo de educação da peça didática visa, com a execução e observação de gestos e atitudes, tornar conscientes posicionamentos internos, exteriorizando-os. Abordar-se-á essa aprendizagem proporcionada pelo teatro, com destreza, no tópico seguinte. E vale ressaltar, a fim de retomarmos a utilização dos métodos teatrais de Brecht para o rádio: Um gestus pode ser manifestado apenas por meio de palavras (no rádio); assim será introduzida nas palavras uma determinada gestualidade e uma determinada mímica, que poderão ser detectadas (uma reverência humilde, um tapinha nas costas). (BRECHT apud KOUDELA, 2007, p.101). 3.1.1 As Peças de Aprendizagem Nas últimas décadas do século XIX, a série de conflitos que ocorriam em diversas partes do mundo prenunciava a eclosão da Primeira Guerra Mundial. A Alemanha ostentava uma oligarquia financeira compacta, resultado de uma concentração do capital industrial aliado ao capital bancário, formando monopólios poderosos. Nesse cenário, a classe operária passava por momentos difíceis e, inicialmente, de uma forma bastante tímida, apareciam movimentos de revolta contra o regime burguês. Não é de se estranhar, portanto, que toda a obra de Brecht virá marcada pela luta contra o capitalismo e contra o imperialismo. Todo o tempo há uma profunda reflexão sobre a situação do homem num mundo dividido em classes e condicionado a uma divisão econômica e política.
  • 40. 39 A partir das explanações e considerações sobre o teatro épico e o seu contexto de aparição, levando em conta as insatisfações sociais de Brecht, bem como seus recursos de estranhamento/distanciamento e gestus, podemos adentrar no que tange aos elementos pedagógicos a que quer alcançar o autor. É sob esse espectro que Brecht desenvolve suas obras, no plano épico, em que o público não é mero espectador, mas participante e julgador crítico da arte, que representa a realidade política, a desigualdade e o caráter íntimo de cada ser humano. Nesse caso, Bertolt Brecht não deseja apenas salientar, em suas peças, que está atuando de forma a haver o distanciamento entre ator e personagem, e entre personagem e plateia, mas sim de forma a ser, literalmente, pedagógico. Para o autor, o sistema socioeconômico é tal como é, mas poderia ser de um outro jeito e, frente a isso, aquele que assiste a uma peça brechtiana tem que se posicionar de maneira ativa. Na perspectiva de Ewen (1991, pp. 219-220), elas ―eram compostas mais com o olho nos seus participantes do que na plateia e marcaram uma fase altamente interessante, embora controvertida na evolução do autor‖. Segundo Oliveira (2013), ainda na visão de Ewen, ―a origem das peças didáticas remonta ao modelo de instrução jesuíta e humanista‖. É dessa forma que surge a Lehrstücke, ou peças didáticas de Brecht. Faz-se importante salientar que, quando, em 1935, o autor traduziu o termo para o inglês, afirmou que não haveria uma expressão equivalente. No português, a tradução mais correta seria ―peça de aprendizagem‖, já que o termo ―didático‖, na acepção tradicional, implica ―doar‖ conteúdos por meio de uma relação autoritária e doutrinária entre o que detém o conhecimento e aquele que é ―ignorante‖ (KOUDELA, 2007, pp.99-100). Segundo Luciano Gatti (2015, p.12), o ―objetivo de Brecht era transformar a experiência teatral em ocasião para a formulação de novos conhecimentos. Trata-se assim de aprender coletivamente com o trabalho teatral‖. As obras comumente atribuídas ao teatro didático brechtiano são compostas por seis peças: O vôo sobre o oceano, originalmente intitulada O vôo de Lindbergh (escrita em 1928/1929); A peça didática de Baden-Baden sobre o acordo ou Baden-Baden sobre o acordo (escrita em 1929); Aquele que diz sim; Aquele que diz não (encenadas sempre em conjunto, escritas em 1929/1930); A decisão (escrita em 1929/1930) e A exceção e a regra (escrita em 1929/1930). Vê-se que é uma época em que ele se dedica à criação de tais peças. Elas encontram-se compiladas
  • 41. 40 na coleção Teatro Completo (Brecht, 1992), nos volumes três (as cinco primeiras) e quatro (a última). É por meio da peça didática que Brecht rompe com a organização teatral estabelecida. ―Existem outros meios de produção e difusão do trabalho teatral, além do público habitual dos teatros. Por exemplo, as crianças nas escolas, as associações de jovens, os coros operários, muito numerosos na Alemanha‖ (KOUDELA, 2007, p.50). Nesse contexto, o rádio vai aparecer como algo importante e significativo à época. Segundo Ingrid Koudela (2007, p.100), o ―aluno‖ deve aprender por si próprio, sem se confrontar com uma determinação já concluída ou pré-estabelecida, por isso mesmo não deve existir a figura do diretor, que pode ser somente um coordenador do processo. Este coloca questões como ―como é introduzido o processo/para onde se dirige/ como é estruturado‖. A contribuição se dá por meio de perguntas, dúvidas, multiplicidade de pontos de vista, comparações, lembranças, experiências, trazendo à tona a realidade vivida ou compreendida pelos atores. Recorrendo à Gatti (2015, p.51), ele complementa que conferir função pedagógica ao experimento em cena exige crítica durante o processo de aprendizado de todo ensinamento preconcebido. De outro modo, o coordenador, ―responsável‖ pelos aprendizes, ou o próprio autor, ver-se-iam reduzidos a transmissores de doutrinas, sejam elas de teor revolucionário ou não. A fim de localizar temporalmente a peça didática na obra de Brecht, é preciso lembrar o conflito legal que se deu após a versão filmada da Ópera dos Três Vinténs, dirigida por Pabst, em 1930. Brecht, com o ocorrido, sente a necessidade de produzir arte distante das ideias já engendradas de teatro. Contextualizando, a fim de compreender melhor os rumos do autor, houve um mal-entendido nos termos do contrato assinado por Brecht com a Nero Filmes. A companhia cinematográfica estava interessada apenas em enlatar uma peça que fora um sucesso de bilheteria do teatro alemão e não fazia questão nenhuma da intervenção de Brecht (que, de fato, não participou da reestruturação do roteiro), nem de atender as perspectivas políticas. O dramaturgo não tinha recursos financeiros suficientes para ―abrir as portas‖ da Justiça, como conta Iná Camargo, mas foi indenizado por algumas pernas e danos. Aprendendo com as novas formas de estruturação da arte e a readequação
  • 42. 41 das forças produtivas, só cabia a ele desenvolver, na prática, ―uma crítica de maior alcance às ideias liberais sobre arte no capitalismo‖ (COSTA, 2012, p. 142). Resumindo, deu-se, segundo Iná Camargo, a industrialização das artes do espetáculo, ou seja, as forças produtivas ficaram submissas às determinações do capital: ―[...] quando venderam os direitos autorais da Ópera dos três vinténs ao estúdio que produziu o filme, Brecht e Weill caíram na rede do filme musical enlatado‖ (COSTA, 2012, pp. 138-139). Brecht aprendeu com sua ingenuidade ao assinar o contrato e vender o roteiro e passou a entender como funcionam as novas relações de produção que estavam se estabelecendo. Então, distancia-se da mídia enquanto relações de produção – ainda submetidas à dinâmica burguesa –, não enquanto forças produtivas – que apontava para a superação da arte burguesa. Ou seja, o dramaturgo tenta reestabelecer essas forças produtivas. O rádio, por exemplo, não estava (nem está) a serviço de novas relações de produção. As pessoas que detêm o poder econômico não usufruíam o meio como poderiam, forçando-o a manter relações que estão aquém do que ele podia (e ainda pode) fazer. Isso significa dizer que, com essa experiência, Brecht aponta para um debate ainda muito importante no campo da comunicação. Aqueles que afirmam que os meios técnicos de comunicação que se desenvolveram entre o fim do século XIX e o início do século XX são imediatamente incapazes de algo que não seja alienador perdem de vista justamente essa formulação brechtiana. É então por meio das peças de aprendizagem que, como afirma Koudela (1966, p.13): ―Brecht propõe a superação da separação entre atores e espectadores, através do Funktionswechsel (mudança de função) do teatro‖. Entretanto, a peça didática (Lehrstück), durante um longo período, foi esquecida ou talvez considerada como parte menos importante da obra do alemão. O consenso de especialistas era de que as peças didáticas pertenciam a uma fase de transição no pensamento do dramaturgo, à qual se seguiu, no final da década de 30, a fase madura do ―teatro épico/dialético‖. Essas peças, então, foram inicialmente desprezadas por conta de sua rigidez da ação dramática. De acordo com Oliveira (2013), alguns autores, sobretudo alemães, iniciaram pesquisas sobre tais peças e destacaram sua importância como proposta pedagógica inovadora. Dentre esses autores, destaca-se Reiner Steinweg, que em
  • 43. 42 1972 publicou ―A peça didática – a teoria de Brecht para uma educação político- estética‖. Aceitava-se, geralmente, o conceito de que as peças épicas faziam parte do período de transição marxista no pensamento de Brecht, mas Steinweg contrapõe essa tese. Ele afirma, segundo Koudela (2007, p.4), que a peça didática, e não a peça épica de espetáculo (episches Schaustück), conduz a um modelo de ensino e aprendizagem que aponta para um ―teatro do futuro‖. De acordo com Steinweg (apud Koudela, 2007, p.5), há uma ―regra básica‖ que diferencia a peça didática e a peça épica de espetáculo e indica que ―a determinação de atuar para si mesmo é o pressuposto para a realização da peça didática como ato artístico‖ (grifo do autor). Seguindo tal raciocínio, constata-se que a peça de aprendizagem serve muito mais aos atuantes que aos observadores. Diante da ―regra básica‖, inferimos que as apresentações públicas das peças de aprendizagem não são, portanto, o objetivo único nem o mais importante, pelo contrário, elas não necessitam de público. Se ele existir, diante de uma atuação natural, livre e própria ao atuante – o princípio da improvisação –, como é proposto, pode haver troca de diálogo entre os coros e os espectadores. Outro pressuposto para o efeito pedagógico da peça didática é a imitação, a qual aparece na primeira fase da infância e contribui para a formação do caráter de uma pessoa. A imitação pressupõe sempre uma modificação do modelo, não podendo se restringir ao modelo fornecido pelo texto. Há de se experimentar alternativas de atuação, com invenção própria e atual. Para tanto, a realidade de cada participante e o vínculo que eles possuem com sua própria experiência fazem toda a diferença no processo. Ele vai imitar outro ser humano, mas não é como se fosse esse homem, não com o intuito de esquecer-se de si mesmo. Sua individualidade é preservada como a de uma pessoa qualquer, diferente das outras, com seus traços próprios, semelhante assim a todas as outras que observa. (BRECHT apud KOUDELA, 2007, p.111). Outro fator intrínseco para a peça didática é o estudo do efeito de estranhamento, o qual liberta o ator-aluno ―da obrigação de provocar hipnose‖ (KOUDELA, 2007, p.19). Mas, Brecht (apud Koudela, 2007, p.105, grifo da autora) explica:
  • 44. 43 No entanto, ele não necessita, nos seus esforços por retratar determinadas pessoas e mostrar seu comportamento, renunciar totalmente ao meio da identificação. Utiliza esse meio até o ponto que qualquer pessoa sem talento ou ambição de interpretação o utilizaria para representar outra pessoa, isto é, para mostrar seu comportamento. Nota-se, portanto, que esse trabalho teatral não pede atores profissionais. Ao contrário, a premissa é poder trabalhar com amadores, sejam eles crianças, jovens ou trabalhadores das fábricas, dispostos a representar uma metáfora da realidade social, um recorte. Assim, o teatro torna-se capaz, culturalmente, de lidar com problemas que repousam sobre fatos concretos, pois elaboram experiências individuais e históricas que determinam o comportamento devido ao valor de aprendizagem (KOUDELA, 2007, p.98). Aos atuantes, não se faz necessária a reprodução de ações e posturas apenas consideradas positivas na sociedade. Brecht afirma que posturas e ações associais podem gerar efeito educacional, já que geram observação, reflexão, julgamento e discussão sobre a conduta (KOUDELA, 2007, p.68). O grau de abstração embutido nessas peças existe para que se entenda que elas não estão acabadas, ou seja, para que novas possibilidades possam ser realizadas. Na verdade, precisam que os jogadores se sintam forçados a tomar uma decisão, sendo, então, empreendedores políticos. No programa da noite de estreia das peças de aprendizagem, Brecht afirmou que o objetivo delas era evidenciar o comportamento político incorreto, dessa forma se aprenderia o comportamento correto (GATTI, 2015, p.70). ―Mostrando‖ o personagem ao grupo, pode-se supor que há o aprendizado. Nesse aspecto, há sempre um indivíduo que se distancia do coletivo, a partir de experiências negativas, mas úteis para o processo de aprendizagem. Com esse ―jogo‖ teatral, o coletivo entende que a ―revolução‖ precisa de todos, mesmo daquele que se distancia temporariamente, portanto é um processo de investigação em conjunto (GATTI, 2015, p.76). Sobre a experiência coletiva, Gatti (2015, p.74) afirma que o ator não vivencia o personagem, mas o compartilha com os demais presentes em cena. Para isso, deve estudá-lo, compreendê-lo por si mesmo e pelo efeito que produz, depois deve apresentá-lo aos demais, de modo que sua postura perante o personagem seja discutida e compartilhada numa experiência coletiva.
  • 45. 44 Tais peças possuem a preocupação genuína de Brecht enquanto educador. No texto ―Teoria da Pedagogia‖, escrito em 1930, o dramaturgo esclarece que reúne teatro, política e aprendizagem: Os filósofos burgueses estabelecem uma grande diferença entre o atuante e o observador. Essa diferença não é feita pelo pensador. Se mantivermos essa diferença, então deixaremos a política para o atuante e a filosofia para o observador, quando na realidade os políticos deveriam ser filósofos e os filósofos, políticos. Entre a verdadeira filosofia e a verdadeira política não existe diferença. A partir desse reconhecimento, aparece a proposta do pensador para educar os jovens através do jogo teatral, isto é, fazer com que sejam ao mesmo tempo atuantes e espectadores, como é sugerido nas prescrições da pedagogia. (BRECHT apud KOUDELA, 2007, p.15, grifo do autor). Há, dessa forma, uma quebra de padrões. No teatro, em que a comunicação era apenas unilateral, Brecht procura empreender uma comunicação bilateral, em que o fazer artístico é relevante também em seu próprio ato, no ensinamento embutido no processo da construção da peça. Temos, portanto, uma ressignificação do ―meio‖, ou seja, o produto é menos importante que o aprendizado. De acordo com Oliveira (2013), ―Brecht procura um público novo, para além dos muros da instituição teatral tradicional. Participantes em escolas e cantores em corais passam a fazer parte desse universo novo de espectadores‖. A dialética é caracterizada como método de comportamento e pensamento. Sendo assim, a peça didática é concebida como modelo para uma relação dialética entre teoria e prática, como demonstra Gatti (2015, pp.35-36), que cita uma fala do próprio Brecht: Pouco antes de morrer, em uma entrevista de 1956, ao responder quem era o ―público‖ de sua peça, ele reafirma que a peça havia sido escrita ―para o jogo em grupo. Ela foi escrita não para um público de leitores, nem para o público de espectadores, mas exclusivamente para alguns jovens que queriam se dar ao trabalho de estudá-la. Cada um deles deve passar de um papel ao outro e assumir, sucessivamente, o lugar do acusado, dos acusadores, das testemunhas, dos juízes. Nestas condições, cada um deles irá submeter-se aos exercícios da discussão e terminará por adquirir a noção – a noção prática – do que é a dialética‖. Podemos complementar a tese dialética com essa alternância de papéis realizada durante os experimentos. Essa ação objetivava realçar o caráter
  • 46. 45 teatral do processo, combatendo a empatia ilusionista. Com a apresentação do personagem de um ponto de vista distanciado, todos podem avaliar o comportamento apresentado. Para Gatti (2015, p.54), certamente aparecerão dificuldades na formação coletiva, porém elas também serão discutidas, apenas assim há um trabalho revolucionário. Cabia à peça de aprendizagem, então, conferir caráter cênico à prova de que se aprende melhor pelo experimento prático do que pela observação teórica. Além disso, novos elementos são incorporados à sua estética teatral, tais como: descontinuidade, intertextualidade, pluralidade, descontextualização, fragmentação e valorização do receptor. Em seu artigo ―Teatro de Diversão ou Teatro Pedagógico‖, escrito em 1936 e publicado somente em 1957, Brecht (1967, p.97) explicita: O teatro se transformou em assunto para os filósofos, filósofos, diga- se de passagem, que não pretendiam apenas explicar o mundo, mas, também, transformá-lo. Começamos também a filosofar; começamos também a ensinar. E onde foi parar a diversão? Brecht problematiza o teatro como local para se pensar e, em seguida, questiona onde está a diversão. Tal pergunta se dá pelo fato de, em um consenso geral, apenas o aprendizado é útil e somente a diversão é agradável. O dramaturgo busca, então, que seu teatro épico não seja extremamente desagradável e cansativo. Para tanto, intenta diferenciar o aprendizado que se pode ter com o teatro e aquele oriundo da escola: Sem dúvida, o aprendizado que conhecemos na escola, na preparação para as profissões, etc., é algo que exige esforço. Mas é preciso considerar igualmente em que circunstância ele decorre e a que objetivos serve. Trata-se, propriamente, de uma compra. O conhecimento é simplesmente uma mercadoria. Ela é adquirida para ser revendida. (BRECHT, 1967, p. 98). Paralelamente a essa análise crítica da educação como produto vendável, Brecht reflete sobre a limitação do aprender, que se dá por fatores que estão ―fora do alcance da vontade daquele que aprende‖. A partir disso, ele afirma que existe o desemprego, instância que nenhum conhecimento pode defender. Além do mais, existe a divisão do trabalho, que ―torna inútil e impossível o conhecimento
  • 47. 46 universal‖. Seguindo tal raciocínio, ele afirma que não há conhecimento que gere poder, entretanto há conhecimento que só é proporcionado por meio do poder. Situando-se no campo do aprendizado, o dramaturgo, no mesmo artigo, situa os melhores alunos, aqueles que estão descontentes com suas respectivas condições de vida e têm grande interesse em aprender e se orientar. E completa: ―O desejo de aprender depende, assim, de várias coisas e, portanto, existe a possibilidade de aprender com gosto, alegria e luta‖ (BRECHT, 1967, p.99). O teatro possui, então, condições de ensinar e ser, ao mesmo tempo, pedagógico e divertido. De acordo com Oliveira (2013), ―tanto o seu teatro épico quanto o didático são narrativos e descritivos, onde por meio de um processo dialético Brecht apresentava duas funções: fazer as pessoas se divertirem e pensarem‖. A função das peças didáticas, ainda segundo Oliveira (2013), era fazer com que seus participantes fossem ativos e reflexivos ao mesmo tempo. O que subjaz a essas tentativas era a prática coletiva da arte, que teria também uma função instrutiva no tocante a certas ideias morais e políticas relativas à época. Em meio à proletarização dos produtores, ou seja, ao processo em que os produtores (autores, atores, técnicos) são expropriados dos seus meios de produção e transformados em proletários, os trabalhadores do teatro e do cinema, caso queiram fazer arte e não mercadoria, encontrariam na ―peça didática um método decisivo para alcançar seu objetivo. Mas isto depende de compreenderem que a peça didática põe na ordem do dia a transferência dos meios de produção aos verdadeiros produtores‖ (COSTA, 2012, p.143). Sendo assim, com a peça didática, os meios de produção estão sob o controle dos envolvidos, não apenas presos ―nas garras‖ do capital. A libertação da força produtiva depende da apropriação dos meios de produção pelos verdadeiros produtores, representados aqui pelos artistas e técnicos. Sob a consideração de Koudela (2007, p.4), o ato artístico pensado e realizado coletivamente acontece em definitivo por conta da imitação e crítica de modelos de atitudes, comportamentos e discursos. ―Ensinar/aprender tem por objetivo gerar atitude crítica e comportamento político, [...] fornecendo um método para a intervenção do pensamento e da ação no plano social‖. Com tais peças, intenta-se não apelar para o sentimento do espectador, o que lhe permitiria reagir apenas esteticamente, mas sim para a sua
  • 48. 47 racionalidade. Os atores devem chamar a atenção de seus espectadores causando o estranhamento, e o espectador, por sua vez, precisa ―tomar partido‖ em vez de se identificar. Brecht passou por uma fase de experimentos e tentativas, a fim de traduzir os conhecimentos da dialética materialista em formas dramáticas. O autor intencionava promover a troca da função do teatro, para que ele deixasse de ser simplesmente uma mercadoria estética vendida aos espectadores e pudesse ser um espaço/momento de construção participativa da consciência político-estética. Tanto o público quanto os atuantes passaram a ocupar a posição de observadores, como defende Gatti (2015, p.37). Ambas as posições se transformam reciprocamente, e o espetáculo adquire nova função, que é a organização do público-atuante. Essa estratégia Brecht nomeou de Umfunktionierung, termo que poderia ser traduzido por ―inverter o funcionamento‖, conferir uma nova função‖ ou simplesmente ―refuncionalizar‖ as instituições artísticas. O objetivo de Brecht com as peças de aprendizagem era interferir na organização social do trabalho (infraestrutura). Ela é concebida para uma ordem socialista do futuro, portanto carrega um realismo político e busca dissolver a organização fundamentada na diferença de classes, democratizando o teatro e o fazer artístico. E foi no rádio que Brecht encontrou espaço para realizar seus experimentos pedagógicos teatrais. É como afirma (Brecht, 2007): ―Ao encontro desse empenho do rádio em configurar artisticamente aquilo que se ensina, viriam então os esforços da arte moderna, os quais almejam emprestar um caráter educativo à arte‖. Além disso, Brecht (2007) complementa com relevantes apontamentos sobre o uso de novas tecnologias por um teatro que se pretende didático e dialético: Se a instituição teatral se dedicasse ao teatro épico, à representação pedagogicamente documentária, então o rádio poderia desenvolver uma forma absolutamente nova de propaganda para o teatro, isto é, poderia desenvolver informação real – uma informação imprescindível. Suas causas para adentrar esse meio de comunicação serão mais bem explicitadas no capítulo cinco, o qual propõe um breve relato sobre a História do rádio na Alemanha e a Teoria do rádio, do próprio Brecht. Como afirma Koudela