7. RIO DE JANEIRO – MEDICINA E
PSICANÁLISE
No Rio de Janeiro, vários dentre os grandes nomes
que compunham o establishment psiquiátrico em
vias de constituição se interessaram pela nova
doutrina.
O vínculo prioritário desses personagens era com a
medicina, grande fonte de prestígio é legitimidade.
A psicanálise ocupava um lugar secundário, como
um saber ou uma prática acessórios à psiquiatria.
Por isso não havia interesse na criação de uma
corporação psicanalítica, isto é, de sociedades de
formação.
8. HENRIQUE ROXO (1877-1969)
Catedrático de psiquiatria da Faculdade de
Medicina a partir de 1911, introduziu a doutrina
freudiana em seus cursos.
11. JULIO PORTO-CARRERO (1887-1937)
O maior de todos os divulgadores da teoria
freudiana e o único dentre os pioneiros a praticar a
psicanálise e intitular-se psicanalista, foi catedrático
de Medicina Legal na Faculdade de Direito.
12. CARACTERÍSTICAS DESSA PRIMEIRA FASE DE INTRODUÇÃO DA PSICANÁLISE NO BRASIL
A doutrina psicanalítica, aparentemente tão
subversiva, seduz figuras notáveis tão bem
estabelecidas do campo médico.
Vinculação desses pioneiros com projetos
pedagógicos e higiênicos.
13. ULISSES PERNAMBUCANO
Grande nome da psiquiatria pernambucana e
também considerado um dos precursores da
psicanálise, foi diretor da Escola Normal de
Pernambuco em 1923, onde fez importante reforma
pedagógica.
14. JULIO PORTO-CARRERO (1887-1937)
Foi colaborador assíduo da Associação Brasileira de Educação.
Mesmo quando a questão pedagógica não era explícita, a visão
da psicanálise como uma espécie de "ortopedia moral" era o que
prevalecia.
Foi o responsável pela criação de uma clínica psicanalítica na
Liga Brasileira de Higiene Mental em 1926 e, no decorrer dos
anos 1930, revelou-se feroz defensor das idéias eugênicas.
Essa convivência entre psicanálise, higiene e eugenia parece
inexplicável ao nosso olhar contemporâneo. Torna-se mais
compreensível quando se levam em conta as preocupações
desses médicos do início do século, obcecados em viabilizar um
projeto "civilizador" e modernizador para o país. A teoria
psicanalítica, apesar de seu viés subversivo (ou mesmo por
causa dele), era capaz de fornecer uma alternativa moderna e
científica para os preceitos da moral tradicional, vistos como
arcaicos e ultrapassados.
Porto-Carrero foi um dos precursores que mais publicou títulos
psicanalíticos.
15. DIFUSÃO LEIGA DA PSICANÁLISE
A psicanálise, como fator de modernização e
"civilização", logo ultrapassou as fronteiras da
academia e da corporação médica.Livros de
vulgarização começaram a ser publicados,
surgiram colunas sobre o tema em revistas
femininas, programas radiofônicos começam a ir ao
ar.
Toda essa difusão leiga da psicanálise se dá em
meio a um interesse generalizado pela chamada
"questão sexual". No decorrer dos anos 1930,
assiste-se à realização de cursos populares sobre
sexologia, de comemorações especiais como o
"Dia do Sexo", de emissões radiofônicas sobre
sexo e campanhas de educação sexual.
16. DIFUSÃO LEIGA DA PSICANÁLISE
Em termos de mercado editorial, pode-se falar num
boom sexológico. Em meio a obras de sexólogos
de renome surgem livros sobre Freud (como na
coleção "Freud ao alcance de todos", da editora
Calvino), ou de autoria do próprio Freud e de seus
discípulos.
O primeiro livro publicado pela Editora José
Olympio em 1932 foi Conheça-te pela psicanálise,
do psicanalista americano J. Ralph. Na década de
1930 são publicados dez volumes com cerca de 50
títulos de autoria do próprio Freud, entre
conferências, ensaios, artigos e livros. Além destes,
muitos títulos de autores brasileiros sobre
psicanálise são publicados.
17. GASTÃO PEREIRA DA SILVA (1897-1987).
Foi um dos primeiros psicanalistas do Rio de Janeiro, tendo
iniciado sua prática nos anos 1930, sem nunca ter feito formação
em qualquer das sociedades de psicanálise fundadas
posteriormente.
Afirmava ter praticado "medicina em lombo de burro" no interior
antes de interessar-se pela psicanálise no final dos anos 1920.
Com o intuito explícito de tornara doutrina freudiana acessível ao
leitor comum, publicou em 1931 o livro Para compreender Freud.
Esse primeiro livro de Pereira da Silva – que em 1942 estará na
sua sexta edição – foi publicado às expensas do próprio autor.
Os livros-seguintes serão publicados por editoras diversas,
incluindo a prestigiosa Jose Olympio.Dentre os inúmeros títulos
de sua autoria encontramos Lenine e a psicanálise, Crime e
psicanálise, Neurose do coração, Educação sexual da criança, A
psicanálise em doze lições, Conhece-te pelos sonhos, O drama
sexual dos nossos filhos, Vícios da imaginação e O tabu da
virgindade.
18. GASTÃO PEREIRA DA SILVA (1897-1987).
Além dos livros, Gastão manteve intensa atividade na imprensa
escrita. , Em 1934 criou na revista Carioca a coluna "Psicanálise
dos sonhos", ilustrado, por uma fotografia de Freud. Na revista
Vamos Ler manteve uma coluna intitu-lada "Página das mães".
Posteriormente colaborou na revista Seleções Sexuais com a
seção "Confidências".
Ainda nos anos 1930, manteve durante três anos o programa
"No mundo dos sonhos", na Rádio Nacional, no qual, segundo
suas palavras, "radiofonizava os sonhos [enviados pelos
ouvintes], como se fossem pequeninas histórias, em sketchs,
interpretadas pelo cast do rádio teatro daquela emissora".
Escreveu rádio novelas que foram ao ar e ainda criou um "Curso
de psicanálise por correspondência",
Pode-se dizer que a extensa produção de Gastão Pereira da
Silva indica a existência, na época, da demanda por uma
espécie de auto-ajuda psicanalítico-sexológica que parecia fazer
bastante sucesso. A difusão entre os leigos, portanto, pelo
menos no Rio de Janeiro, antecipou em alguns anos a
institucionalização da nova prática.
19. ALDELHEID KOCH (1896-1980)
Em São Paulo, o movimento de institucionalização surgiu mais
cedo, tendo em Durval Marcondes sua figura central. Em
dezembro de 1936, a partir do contato estabelecido por
Marcondes com a IPA, a jovem psicanalista Aldelheid Koch
chegou à cidade de São Paulo com a tarefa de formar o primeiro
grupo de psicanalistas oficialmente autorizados em solo
brasileiro.
Koch iniciara em 1929 sua formação no prestigioso Berliner
Psychoanalytische Institute, a mais prestigiosa instituição de
formação em psicanálise na época. Entre 1934 e 1935,
entretanto, o Instituto Berlinense foi "arianizado" por decreto do
governo nazista. As obras de Freud e outros analistas judeus
foram queimadas em praça pública.
Koch foi obrigada a se filiar diretamente à IPA e, aos 40 anos,
recém-autorizada como analista, fugiu da Alemanha com a
incumbência de iniciar o treinamento oficial de analistas no
Brasil, formando o embrião da futura Sociedade Brasileira de
Psicanálise de São Paulo, que foi reconhecida pela IPA em
1951.
20. PSICANÁLISE E O MOVIMENTO
MODERNISTA
É importante lembrar que na São Paulo dos anos
1920 as idéias psicanalíticas circulavam no
movimento Modernista. As grandes figuras do
movimento, Oswald (1914-1972) e Mário de
Andrade (1893-1945), leram Freud e assimilaram
suas idéias em maior ou menor grau.
A própria idéia de antropofagia parece ter se
inspirado em um dos grandes clássicos freudianos
- Totem e tabu.
Além dessa difusão junto às vanguardas artísticas
e intelectuais, a nova doutrina estava presente em
espaços institucionais não médicos que certamente
contribuíram para sua maior aceitação e difusão.
21. FUNDAÇÃO DA CLÍNICA DE ORIENTAÇÃO INFANTIL NO
SERVIÇO DE HIGIENE MENTAL DA SECRETARIA DE EDUCAÇÃO
DO ESTADO DE SP
Durval Marcondes funda a Clínica de Orientação
Infantil no Serviço de Higiene Mental da Secretaria
de Educação do Estado de São Paulo, por ele
dirigido.
Nessa clínica, supervisionava e formava
educadoras, que aprenderam a encarar a criança e
sua família a partir do ponto de vista psicanalítico.
No ano seguinte a psicanálise foi introduzida como
disciplina no curso de sociologia da Escola Livre de
Sociologia e Política, de novo sob a
responsabilidade de Durval Marcondes e Aldelheid
Koch.
22. BUSCA POR UM PSICANALISTA AUTORIZADO
PARA DAR INÍCIO À FORMAÇÃO DE
PSICANALISTAS CARIOCAS
Enquanto isso, no Rio de Janeiro, ao longo dos anos 1940,
um pequeno grupo de médicos tentava trazer um psicanalista
autorizado para dar início à formação de psicanalistas
cariocas.
Entre estes estavam Danilo (1916-1989) e Marialzira
Perestrello (1916-), Alcion Bania (1911-1974) e Walderedo
Ismael de Oliveira (1917-).
Após algumas tentativas frustradas, o grupo rumou em
direção à Argentina em busca de formação junto à Sociedade
de Psicanálise de Buenos Aires.
Somente no final dessa década chegaram dois psicanalistas
enviados pela IPA para dar início à formação de analistas.
O primeiro a chegar, em fevereiro de 1948, foi Mark Burke
(1900-1975), membro da Sociedade Psicanalítica Britânica, e
o segundo, em março de 1949, foi Werner Kemper (1899-
1975), membro da Sociedade de Berlim.
23. SOCIEDADES PSICANALÍTICAS CARIOCAS
Dois anos depois, um desentendimento entre os
adeptos de um e outro analista formou dois grupos,
um dirigido por Kemper e outro por Burke.
O grupo do analista alemão foi reconhecido em
1955 pela IPA como Sociedade Psicanalítica do Rio
de Janeiro - SPRJ.
Burke retomou à Inglaterra em 1953, em meio a
boatos sobre sua sanidade mental.
Seus seguidores se juntaram aos analistas
formados em Buenos Aires, e o grupo foi
reconhecido em 1957 como Sociedade Brasileira
de Psicanálise do Rio de Janeiro - SBPRJ.
24. SOCIEDADES PSICANALÍTICAS CARIOCAS
Foram assim formadas as duas sociedades
psicanalíticas que dominaram a cena da formação no
Rio de Janeiro até os anos 1970.
Ao contrário da sociedade paulista que, coerente com
os vínculos desde cedo estabelecidos com o meio não
médico admitia candidatos "leigos" desde sua fundação,
as duas sociedades cariocas foram monopolizadas
pelos psiquiatras que, a exemplo das sociedades
americanas, exigiam de seus candidatos a posse de um
diploma de medicina.
Como se pode perceber, a calorosa recepção da
psicanálise pelo establishment médico carioca não foi
sem consequências, e esse vinculo privilegiado com a
psiquiatria será a marca do movimento carioca.
25. SOCIEDADES PSICANALÍTICAS CARIOCAS
Curiosamente, entretanto, a abertura aos não-
médicos conferiu ao movimento paulista e à
sociedade lá fundada um alto grau de estabilidade
e relativa tranquilidade, quando comparado ao seu
congênere carioca,
No Rio, como vimos, desde logo armou-se uma
dissidência - duas sociedades são formadas no
lugar de uma.
Além desse começo já turbulento, em 1953 foi
fundado um instituto dissidente, vinculado à linha
"culturalista" norte americana (dissidência das
sociedades "oficiais"), o Instituto de Medicina
Psicológica - IMP. Em 1968,
26. CÍRCULO PSICANALÍTICO
Kattrin Kemper (1905-1978), esposa de Werner,
abandonou a SPRJ e fundou, no ano seguinte, com
alguns de seus analisandos, o Círculo Psicanalítico da
Guanabara, mais tarde Círculo Psicanalítico do Rio de
janeiro.
O Círculo iniciou em 1972 sua primeira turma para
formação em psicanálise, também aberta a "leigos".
Em 1971, um grupo de psicólogos que estudavam e
faziam supervisão com psicanalistas da SPRJ fundou a
Sociedade de Psicologia Clínica, que oferecia formação
exclusivamente para psicólogos.
27. 1970
E esse o momento de maior obscurantismo da ditadura militar
que havia se instalado em 1964. A Censura, a repressão e a
tortura de presos políticos chegaram a seu auge.
Ao mesmo tempo, a psicanálise, que, como vimos, já vinha se
difundindo desde pelo menos os anos 1930, conquistou
definitivamente os corações e mentes das camadas médias
letradas dos grandes centros urbanos.
28. Como entender essa convivência, até certo ponto pacífica,
entre o obscurantismo político e a busca de liberação
"interior"?
A resposta mais fácil tem sido explicar a volta sobre si mesmo
pelo fechamento político. Isto é, a repressão política,
impedindo uma preocupação com o que estava "lá fora", na
sociedade, obrigou as pessoas a se preocuparem
exclusivamente com o que estava "dentro", com sua vida
interior, sua psicologia.
29. A repressão teve como um de seus efeitos uma
despolitização no sentido tradicional do termo.
Na década de 1970, porém, já era possível falar de
um outro tipo de politização, vinculado ao
movimento contracultural que então florescia nos
países desenvolvidos do Ocidente.
30. Essas questões "menores" produziam uma crítica
contundente à chamada "moral burguesa", visando
muito mais aos costumes, aos comportamentos
cotidianos, aos modos de pensar e sentir, do que à
grande e abstrata luta capital versus trabalho.
31. Na esteira da expansão psicanalítica – expansão
enquanto terapia enquanto profissão e enquanto
modo de compreensão do ser humano –, surgiu e
se expandiu uma nova especialidade: a psicologia.
Além de se "psicanalizar", a psicologia também
conheceu uma expansão sem precedentes. Em
1974, quando entrou em funcionamento o
Conselho Federal de Psicologia, havia 895
profissionais inscritos. Em 1975 esse número subiu
para 4.950 e no ano seguinte chegou a 6.890.
32. “DIVISÃO SEXUAL DO TRABALHO CLÍNICO”
Aqui nos voltamos para o desenrolar do movimento
psicanalítico na cidade do Rio de Janeiro, local onde o
embate entre psicólogos e médicos em torno do monopólio
do título de "psicanalista" atingiu contornos dramáticos.
A relação dos novos profissionais com os psicanalistas das
sociedades oficiais – que, como vimos, até o início dos anos
1970 praticamente monopolizavam a formação em
psicanálise no Rio de Janeiro – era de reverência e
ambiguidade.
33. “DIVISÃO SEXUAL DO TRABALHO CLÍNICO”
Esse monopólio, entretanto, estava com seus dias contados.
Dois movimentos ocorridos no decorrer da década de 1970 já
indicavam a ameaça que as psicólogas representavam para a
corporação psicanalítica tal como ela então se constituía.
Utilizando uma linguagem bélica, vamos chamá-Ias
de"invasão argentina" e "invasão francesa".
34. “INVASÃO ARGENTINA”
A "invasão argentina" ocorreu quando um grande
número de psicólogos e psicanalistas, vários dentre
eles afugentados de seu país pela repressão
política, veio se estabelecer no Rio de
Janeiro.Trouxeram com eles uma forma de
trabalhar com a psicanálise que desafiava a
hegemonia das sociedades "oficiais".
35. “DIVISÃO SEXUAL DO TRABALHO CLÍNICO”
A partir do final da década de 1970, surgiu uma
série de instituições de formação de psicanalistas
não "oficiais" cuja clientela vai ser formada
principalmente por psicólogas.
A hegemonia das sociedades da IPA foi seriamente
ameaçada, a ponto de as duas sociedades
"oficiais" passarem a admitir candidatos-psicólogos
para formação a partir de 1980.
36. “PSICANÁLISE E FACISMO”
Desde o início dos anos 1970 corriam boatos sobre a
participação de um dos candidatos em formação na
Sociedade - Amilcar Lobo - como médico junto aos
aparelhos de repressão da ditadura.
Denúncias foram formalizadas junto à direção da
sociedade e também da IPA, sem que qualquer
providência oficial fosse tomada.
No final de 1980, numa mesa-redonda promovida na PUC-
Rio intitulada "Psicanálise e Fascismo", o caso Amílcar
Lobo é trazido a público através da denúncia de um ex-
preso político.
Dois psicanalistas da SPRJ que participavam da mesa-
redonda - Hélio Pellegrino (1924-1988) e Eduardo
Mascarenhas (1943-1997) - reafirmaram a denúncia junto
à direção da sociedade e acabaram por ser excluídos de
seus quadros.
37. “PSICANÁLISE E FACISMO”
No início de 1981, o caso ganhou a manchete dos principais
jornais cariocas através do depoimento de vários outros
presos políticos e não foi mais possível ignorar a conivência
do establishment psicanalítico com as atividades de Lobo
junto ao DOI-CODI.
O desfecho do caso só ocorreu após a redemocratização do
país, em 1986, quando o Conselho Regional de Medicina
abriu um processo contra Lobo, cassando seu direito de
exercer a profissão dois anos depois.
A crise política e moral gerada pelo caso Amílcar Lobo foi o
golpe final de uma série de outros golpes que vinham
sofrendo as sociedades ditas "oficiais".
38. SOCIEDADES DE FORMAÇÃO EM
PSICANÁLISE
A partir de 1969, quando ocorreu a primeira cisão
na SPRJ com a fundação do Círculo de Kattrin
Kemper, até 1989, foram criadas no Rio de Janeiro
18 sociedades de formação em psicanálise não
vinculadas à IPA.
Destas, 16 surgiram após 1974, e, dentre estas,
dez se apoiavam de forma mais ou menos explícita
na teoria LACANIANA como fonte de legitimação.
39. Curiosamente, a proliferação de sociedades lacanianas
ocorreu no Brasil como um todo (embora o Rio de
Janeiro permaneça sendo uma espécie de recordista), o
que não acontecera no período do monopólio das
sociedades "oficiais", nem mesmo na época de maior
difusão da psicanálise.
Sem contar cinco sociedades paulistas, entre 1982 e
1990 foram fundadas 13 instituições de formação
lacaniana nas seguintes cidades: Brasília, Vitória,
Salvador, Recife, Belo Horizonte (duas), Curitiba,
Teresina, Porto Alegre (duas), Fortaleza e São Luís
(duas).
Esta informação revela-se finda mais surpreendente
quando se sabe que até 1987 só havia sociedades
psicanalíticas "oficiais" no Rio de Janeiro (duas), em
São Paulo e Porto Alegre, além de núcleos
psicanalíticos no Recife e em Brasília.
40. RUPTURA DO MONOPÓLIO EXERCIDO PELAS
SOCIEDADES VINCULADAS AO IPA
Mais que a "invasão argentina", portanto, uma espécie de
"invasão "francesa" – isto é, lacaniana – instrumentou a ruptura
do monopólio exercido, pelas sociedades vinculadas à IPA (e, no
Rio de Janeiro, pelos médicos) sobre o controle e a transmissão
do título de psicanalista.
Essa reorientação do meio psicanalítico, que atingiu mais
fortemente o meio carioca, ocorrida no final dos anos 1970 e no
decorrer dos anos 1980, foi, portanto, provocada pela: intensa
difusão da psicanálise no meio "psi" não médico e entre o
público leigo – o que se traduziu numa ampliação sem
precedentes do mercado e numa pressão muito forte por parte
dos profissionais não médicos pelo acesso ao título de
psicanalista.
A disputa profissional se desdobrava, assim, em uma disputa
teórica – a teoria lacaniana pretendendo substituir a teoria
kleiniana que até então reinava absoluta nas sociedades
"oficiais" – e em uma disputa política pela hegemonia no campo
e, consequentemente, pela definição tanto da própria psicanálise
quanto do oficio de psicanalista.
41. A definição do que é ser "psicanalista" é uma questão
candente desde seu surgimento. Quem pode ou deve atribuir
a alguém o título de psicanalista?
Sabemos que tudo começou de modo extremamente
personalizado em torno de figura de Freud. Com o passar do
tempo, a institucionalização tornou-se inevitável, com a
fundação da Associação Internacional (IPA) e a implantação
de um modelo único de formação.
Pode-se falar aí na escolha de uma via burocrática de
legitimação, em detrimento do carisma – que se baseia na
autoridade e na legitimidade do "pai fundador" e seus
discípulos.
A via carismática, entretanto, permanecia como
potencialidade sempre presente, expressando-se nos
diversos casos de rupturas, dissidências e concomitante
fundação de outras escolas ou instituições como a leitura do
capitulo anterior nos demonstra.
42. LACAN - CONTRIBUIÇÕES
Lacan foi o grande atualizador dessa via, através de sua
crítica à rigidez burocrática das sociedades "oficiais" e de seu
chamado a uma "volta a Freud", uma volta às origens da
psicanálise.
O que Lacan propunha não era apenas uma releitura dos
textos do pai fundador, mas sobretudo uma revolução no
modo de transmissão do título de psicanalista.
A via carismática é valorizada em detrimento da burocrática. A
psicanálise não pode ser contida nos limites de uma
formação pré-programada – tantos anos de análise didática,
tantas horas de supervisão, um certo número de cursos.
A ênfase na experiência singular de cada candidato implica,
além do abandono de esquemas escolares de transmissão,
um constante testar de sua, adesão irrestrita à doutrina.
A formação nunca acaba. O analista deve dar provas
constantes de seu compromisso com a causa.
43. LACAN - CONTRIBUIÇÕES
O fundamentalismo lacaniano teve, como vimos, importante papel
no redirecionamento do movimento psicanalítico brasileiro.
Este conheceu uma efervescência sem precedentes, em termos de
produção de textos, encontros, seminários, conferências.
Ao mesmo tempo, no que tange à sua difusão entre o público leigo,
a psicanálise passou a competir com as chamadas terapias
"alternativas" e, no campo psiquiátrico, com uma inclinação cada vez
mais pronunciada em direção a uma visão biológica dos transtornos
mentais que se alia, na psicologia, à perspectiva cognitivo-
comportamental.
O futuro do próprio movimento vai depender do modo como irão se
estruturar tanto no campo profissional quanto entre os clientes
potenciais – essas duas tendências que expressam, sem dúvida
alguma, um novo "espírito do tempo", uma nova forma de conceber
o ser humano e suas perturbações.