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RETIFICAÇÃO OU SUPRIMENTO OU RESTAURAÇÃO DE REGISTRO CIVIL
Nº 5026276-86.2021.8.21.0001/RS
REQUERENTE: JULIA WIECZOREK
SENTENÇA
Vistos, etc.
 
JÚPITER WIECZOREK (nome social), qualificada na inicial, por
procurador, formula o presente pedido de RETIFICAÇÃO DE REGISTRO
CIVIL, objetivando a alteração do sexo feminino para não-binário e do nome para
JÚPITER WIECZOREK.
Refere, em síntese e principalmente, que foi registrada sob o sexo
feminino quando do seu nascimento. Há aproximadamente dois anos e meio, auto
identifica-se como pessoa não-binária, tendo como consequência a experiência de
disforia de gênero recorrente e o desejo de afirmar, de forma social e médica, o seu
gênero.
Assim, emitiu Carteira de Identidade Social em 16 de abril de 2.019 e
iniciou acompanhamento psicológico e endocrinológico há pelo menos 01 (um) ano,
consoante documentos anexados à exordial (Evento 1, LAUDO13). Para evitar
constrangimentos e situações vexatórias, faz-se necessária a retificação postulada, a
fim de lhe dar dignidade, tomando como fundamento a Constituição Federal e a Lei
dos Registros Públicos. Anexados documentos. Exarou parecer o representante do
Ministério Público,  opinando pela procedência do pedido (Evento-47).
Relatei. Decido.
Pessoas que se identificam com gênero diverso daquele atribuído no
registro civil estão respaldadas pela decisão do Supremo Tribunal Federal vinculada
à ADI 4.275. Contudo, ainda não há no Brasil nenhum instrumento normativo que
preveja a alteração do registro civil para além do “masculino” ou do “feminino”.
A legislação pátria, no entanto, ao contrário de alguns outros países,
não contempla soluções autorizativas para a solução da questão enfocada nos
presentes autos.
5026276-86.2021.8.21.0001 10010850675
.V11
Poder Judiciário
Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul
Vara dos Registros Públicos da Comarca de Porto Alegre
Três premissas imprescindíveis ao presente caso foram mencionadas
na decisão relativa à ADI 4.275: “o direito à igualdade sem discriminações abrange
a identidade ou expressão de gênero; a identidade de gênero é manifestação da
própria personalidade da pessoa humana e, como tal, cabe ao Estado apenas o papel
de reconhecê-la, nunca de constituí-la; a pessoa não deve provar o que é e o Estado
não deve condicionar a expressão da identidade a qualquer tipo de modelo, ainda
que meramente procedimental.” (Relator: MARCO AURÉLIO, Relator p/ Acórdão:
EDSON FACHIN, Tribunal Pleno, julgado em 01/03/2018).
O Poder Judiciário deve funcionar como respaldo jurídico, de forma a
frear eventuais discriminações das classes minoritárias, garantindo a todos o
exercício pleno de uma vida digna.
Há notícia de apenas três decisões no Brasil,  relacionadas à retificação
de registro de pessoas não-binárias:
O Juízo  da 1ª Vara de Família da Ilha do Governador, no Rio de
Janeiro, pelo Dr. Antonio da Rocha Lourenço Neto, manifestou que: "o direito não
pode permitir que a dignidade da pessoa humana do agênero seja violada sempre
que o mesmo ostentar documentos que não condizem sua realidade física e
psíquica".
Na Comarca de Corrente, no Piauí, o Dr.   Igor Rafael Carvalho
destacou que a perspectiva de gênero não deve considerar a genitália como pilar da
identidade e "relaciona-se mais estritamente à persona que o indivíduo adota no seu
contexto social e na cultura".
Em Santa Catarina, a Dra. Vânia Petermann consignou que: "o Poder
Judiciário, diante dos casos concretos, deve funcionar como respaldo jurídico,
freando a discriminação das minorias e garantindo a todos o exercício pleno de uma
vida digna", apontando que "impedir as pessoas de serem o que sentem que são é
uma afronta à Constituição".
Ainda que a Lei 6.015/1973, em seu artigo 54, determine a informação
sobre o sexo no registro de nascimento, essa norma infraconstitucional não abrange
tamanha complexidade da experiência das pessoas.
O não reconhecimento legal do terceiro gênero ou do gênero não
binário, viola frontalmente a Constituição federal, onde em seu art. 1º, III “a
dignidade da pessoa humana”, pois impede que pessoas intergênero indiquem seu
gênero diverso do dualismo masculino/feminino.
5026276-86.2021.8.21.0001 10010850675
.V11
Poder Judiciário
Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul
Vara dos Registros Públicos da Comarca de Porto Alegre
O princípio à dignidade humana significa que cada ser humano é uma
criação única, muito embora diferentes, todos os seres humanos têm igual valor.
Cada ser humano é um fim em si mesmo. A ausência de normatização da
possibilidade da identificação do terceiro gênero  não pode ser obstáculo ao seu
reconhecimento. "Os ideais de igualdade e dignidade, o viés protetivo
da personalidade, previstos em nossa Constituição, dependem do avanço legislativo
para atender a dinâmica evolutiva da vida em Sociedade. A dignidade da pessoa
humana é pilar fundamental e sustenta outras proteções, como o direito de liberdade
de expressão e de autodeterminar-se, o que também consta de tratados internacionais
de que o Brasil é signatário.
As pessoas que nascem com características sexuais que não se
encaixam nas definições típicas do sexo masculino e feminino, não podem ser
colocadas à margem de um sistema jurídico estático. Impedir as pessoas de serem o
que sentem que são é uma afronta à Constituição. Nunca foi uma opção ou escolha.
O sexo não determina por si só  a identidade de gênero, ou de agênero ou a
orientação sexual de uma pessoa. Trata-se de autodeterminação. A orientação sexual
envolve questões sentimentais.
Não permitir a autonomia da pessoa é torná-la inferior, pois o Direito e
a Justiça não podem permanecer neutras em relação às concepções divergentes da
chamada normalidade praticada em ideais morais e religiosos. Impossibilitar os
indivíduos de serem o que sentem que são é uma afronta à Constituição.  Não é uma
opção ou escolha.
Assim, a presente decisão busca reafirmar o princípio da dignidade da
pessoa humana - “princípio desprezado em tempos tão estranhos” - o qual “deve
prevalecer para assentar-se o direito do ser humano de buscar a integridade e
apresentar-se à sociedade como de fato se enxerga” (ADI 4.275).
Isto posto, JULGO PROCEDENTE o pedido de RETIFICAÇÃO
DE REGISTRO CIVIL formulado por JÚPITER WIECZOREK (nome social),
determinando que o seu nome seja alterado para JÚPITER WIECZOREK, bem
como seja alterada a anotação referente ao sexo, de feminino para não-binário,
permanecendo os demais dados inalterados.
Mantenha-se segredo de justiça. A alteração deverá ser praticada pelo
titular do Ofício, ou por quem estiver em legal substituição. O expediente deverá ser
arquivado em caráter de segredo de justiça. Informação ou certidão de inteiro teor
não poderá ser dada a terceiro, salvo ao próprio interessado ou no atendimento de
requisição judicial.
5026276-86.2021.8.21.0001 10010850675
.V11
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Retificação de registro para não-binário

  • 1. Rua Manoelito de Ornelas, 50 - Bairro: Praia de Belas - CEP: 90110230 - Fone: (51) 3210-6500 - Email: frpoacentvreg@tjrs.jus.br RETIFICAÇÃO OU SUPRIMENTO OU RESTAURAÇÃO DE REGISTRO CIVIL Nº 5026276-86.2021.8.21.0001/RS REQUERENTE: JULIA WIECZOREK SENTENÇA Vistos, etc.   JÚPITER WIECZOREK (nome social), qualificada na inicial, por procurador, formula o presente pedido de RETIFICAÇÃO DE REGISTRO CIVIL, objetivando a alteração do sexo feminino para não-binário e do nome para JÚPITER WIECZOREK. Refere, em síntese e principalmente, que foi registrada sob o sexo feminino quando do seu nascimento. Há aproximadamente dois anos e meio, auto identifica-se como pessoa não-binária, tendo como consequência a experiência de disforia de gênero recorrente e o desejo de afirmar, de forma social e médica, o seu gênero. Assim, emitiu Carteira de Identidade Social em 16 de abril de 2.019 e iniciou acompanhamento psicológico e endocrinológico há pelo menos 01 (um) ano, consoante documentos anexados à exordial (Evento 1, LAUDO13). Para evitar constrangimentos e situações vexatórias, faz-se necessária a retificação postulada, a fim de lhe dar dignidade, tomando como fundamento a Constituição Federal e a Lei dos Registros Públicos. Anexados documentos. Exarou parecer o representante do Ministério Público,  opinando pela procedência do pedido (Evento-47). Relatei. Decido. Pessoas que se identificam com gênero diverso daquele atribuído no registro civil estão respaldadas pela decisão do Supremo Tribunal Federal vinculada à ADI 4.275. Contudo, ainda não há no Brasil nenhum instrumento normativo que preveja a alteração do registro civil para além do “masculino” ou do “feminino”. A legislação pátria, no entanto, ao contrário de alguns outros países, não contempla soluções autorizativas para a solução da questão enfocada nos presentes autos. 5026276-86.2021.8.21.0001 10010850675 .V11 Poder Judiciário Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul Vara dos Registros Públicos da Comarca de Porto Alegre
  • 2. Três premissas imprescindíveis ao presente caso foram mencionadas na decisão relativa à ADI 4.275: “o direito à igualdade sem discriminações abrange a identidade ou expressão de gênero; a identidade de gênero é manifestação da própria personalidade da pessoa humana e, como tal, cabe ao Estado apenas o papel de reconhecê-la, nunca de constituí-la; a pessoa não deve provar o que é e o Estado não deve condicionar a expressão da identidade a qualquer tipo de modelo, ainda que meramente procedimental.” (Relator: MARCO AURÉLIO, Relator p/ Acórdão: EDSON FACHIN, Tribunal Pleno, julgado em 01/03/2018). O Poder Judiciário deve funcionar como respaldo jurídico, de forma a frear eventuais discriminações das classes minoritárias, garantindo a todos o exercício pleno de uma vida digna. Há notícia de apenas três decisões no Brasil,  relacionadas à retificação de registro de pessoas não-binárias: O Juízo  da 1ª Vara de Família da Ilha do Governador, no Rio de Janeiro, pelo Dr. Antonio da Rocha Lourenço Neto, manifestou que: "o direito não pode permitir que a dignidade da pessoa humana do agênero seja violada sempre que o mesmo ostentar documentos que não condizem sua realidade física e psíquica". Na Comarca de Corrente, no Piauí, o Dr.   Igor Rafael Carvalho destacou que a perspectiva de gênero não deve considerar a genitália como pilar da identidade e "relaciona-se mais estritamente à persona que o indivíduo adota no seu contexto social e na cultura". Em Santa Catarina, a Dra. Vânia Petermann consignou que: "o Poder Judiciário, diante dos casos concretos, deve funcionar como respaldo jurídico, freando a discriminação das minorias e garantindo a todos o exercício pleno de uma vida digna", apontando que "impedir as pessoas de serem o que sentem que são é uma afronta à Constituição". Ainda que a Lei 6.015/1973, em seu artigo 54, determine a informação sobre o sexo no registro de nascimento, essa norma infraconstitucional não abrange tamanha complexidade da experiência das pessoas. O não reconhecimento legal do terceiro gênero ou do gênero não binário, viola frontalmente a Constituição federal, onde em seu art. 1º, III “a dignidade da pessoa humana”, pois impede que pessoas intergênero indiquem seu gênero diverso do dualismo masculino/feminino. 5026276-86.2021.8.21.0001 10010850675 .V11 Poder Judiciário Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul Vara dos Registros Públicos da Comarca de Porto Alegre
  • 3. O princípio à dignidade humana significa que cada ser humano é uma criação única, muito embora diferentes, todos os seres humanos têm igual valor. Cada ser humano é um fim em si mesmo. A ausência de normatização da possibilidade da identificação do terceiro gênero  não pode ser obstáculo ao seu reconhecimento. "Os ideais de igualdade e dignidade, o viés protetivo da personalidade, previstos em nossa Constituição, dependem do avanço legislativo para atender a dinâmica evolutiva da vida em Sociedade. A dignidade da pessoa humana é pilar fundamental e sustenta outras proteções, como o direito de liberdade de expressão e de autodeterminar-se, o que também consta de tratados internacionais de que o Brasil é signatário. As pessoas que nascem com características sexuais que não se encaixam nas definições típicas do sexo masculino e feminino, não podem ser colocadas à margem de um sistema jurídico estático. Impedir as pessoas de serem o que sentem que são é uma afronta à Constituição. Nunca foi uma opção ou escolha. O sexo não determina por si só  a identidade de gênero, ou de agênero ou a orientação sexual de uma pessoa. Trata-se de autodeterminação. A orientação sexual envolve questões sentimentais. Não permitir a autonomia da pessoa é torná-la inferior, pois o Direito e a Justiça não podem permanecer neutras em relação às concepções divergentes da chamada normalidade praticada em ideais morais e religiosos. Impossibilitar os indivíduos de serem o que sentem que são é uma afronta à Constituição.  Não é uma opção ou escolha. Assim, a presente decisão busca reafirmar o princípio da dignidade da pessoa humana - “princípio desprezado em tempos tão estranhos” - o qual “deve prevalecer para assentar-se o direito do ser humano de buscar a integridade e apresentar-se à sociedade como de fato se enxerga” (ADI 4.275). Isto posto, JULGO PROCEDENTE o pedido de RETIFICAÇÃO DE REGISTRO CIVIL formulado por JÚPITER WIECZOREK (nome social), determinando que o seu nome seja alterado para JÚPITER WIECZOREK, bem como seja alterada a anotação referente ao sexo, de feminino para não-binário, permanecendo os demais dados inalterados. Mantenha-se segredo de justiça. A alteração deverá ser praticada pelo titular do Ofício, ou por quem estiver em legal substituição. O expediente deverá ser arquivado em caráter de segredo de justiça. Informação ou certidão de inteiro teor não poderá ser dada a terceiro, salvo ao próprio interessado ou no atendimento de requisição judicial. 5026276-86.2021.8.21.0001 10010850675 .V11 Poder Judiciário Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul Vara dos Registros Públicos da Comarca de Porto Alegre