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O MOSCARDO E OUTRAS HISTÓRIAS
Posfácio
“Nenhum homem é uma ilha, isolado em si mesmo; todo o homem é um
pedaço do continente, uma parte da terra firme” afirmava o poeta John Donne1
no
século XVII. A pequenez e individualidade do ser humano rapidamente se desfazem
pela imersão do Eu no coletivo, na cultura e história da humanidade. Um dos elos
fulcrais para a concatenação do indivíduo aos restantes elementos da sua espécie
está associado ao papel ancestral desempenhado pelos aedos, os contadores de
histórias. Ao transmitirem um conjunto de narrativas (pictóricas, linguísticas ou
fazendo recurso a outros suportes), procuravam legitimar a pertença desse Eu a um
coletivo.
Se, na antiguidade, essas narrativas serviam para perpetuar as façanhas dos
heróis, ensinar a distinguir o bem do mal, transmitir valores éticos e morais; na
contemporaneidade, elas extravasaram esse papel e procuram, agora,
problematizar o real, surgir como instantâneos de situações quotidianas, muitas
vezes irrelevantes e/ou negligenciáveis, e para as quais a narrativa não procura
apresentar uma resolução do problema ou fornecer uma moralidade a ser
interiorizada. No fundo, foi esse papel de instrumento lúdico e, em simultâneo, de
farpa cravada na consciência do homem para o relembrar da sua fragilidade que
Eça de Queirós realçou ao afirmar que “Contar histórias é uma das mais belas
ocupações humanas: e a Grécia assim o compreendeu, divinizando Homero que
não era mais que um sublime contador de contos da carochinha. Todas as outras
ocupações humanas tendem mais ou menos a explorar o homem; só essa de contar
histórias se dedica amoravelmente a entretê-lo, o que tantas vezes equivale a
consolá-lo. Infelizmente, quase sempre, os contistas estragam os seus contos por os
encherem de literatura, de tanta literatura que nos sufoca a vida!”2
A coletânea O Moscardo e outras histórias, de João Ricardo Lopes, entronca,
precisamente, nessa linha de narrativas problematizadoras do real; estes contos
presenteiam o leitor com uma visão crítica e reflexiva da existência humana, como
se fossem fotogramas, quadros, telas vivas que o instigam a uma autorreflexão
contínua, a indagar e a exorcizar o seu próprio quotidiano. Por isso mesmo, no final
1
Cf. DONNE, John - “Meditation XVII” in Devotions upon Emergent Occasions, Michigan: The
University of Michigan Press, 1959, pág. 109.
2
Cf. QUEIRÓS, Eça – Correspondência, Porto: Livraria Chandron de Lello & Irmãos Lda., 1925, pág.
160.
da generalidade dos contos, o leitor não consegue evitar que um “E se….” domine o
seu cérebro e o force a redefinir o seu conceito de realidade. É precisamente esse o
ponto de partida, iniciado pela epígrafe de Borges: os feitos heroicos em si mesmo
são irrelevantes; porém, são fundamentais enquanto início da invenção e da
racionalização.
Assim, no conto inaugural, “O Moscardo”, o leitor é transportado para o
interior de um acontecimento insólito ocorrido no Rijksmuseum, associa-se à
investigação do narrador-personagem para, tal como ele, se surpreender com a fuga
do moscardo – “assinatura satírica” do pintor Adriaen Pietersz van de Venne –,
cansado de viver aprisionado numa obra de arte. Este desconcerto é também
explorado no conto “Em branco” e em “Um encontro com o diabo”. No primeiro,
efetua-se uma reflexão sobre a produção artística, neste caso, a de um quadro.
Após um extenso processo criativo, ocorrido na mente do pintor, conclui-se que a
sua melhor produção é aquela que permite ao observador ficar fascinado com todas
as possibilidades latentes e preso à incapacidade de atingir o incognoscível, o
indizível, isto é, aceder à intenção do autor; daí a tela surgir “em branco”. No
segundo, ocorre uma conversa entre Emil Corian e o Diabo, durante a qual o
símbolo da maldade procura explicar que as suas diversas faces são apenas fruto
de construção humana na sua ânsia de imputar os seus erros a uma entidade alheia
a si próprio. Ao tentar escapar a essa teia horrenda criada à sua volta, o Diabo
procura auxiliar Emil ao dizer-lhe que deverá rejeitar o convite que lhe será feito
pouco depois e partir com a sua futura esposa, uma judia, para a América. Como é
óbvio, Emil faz o contrário do que lhe foi sugerido, pensando, assim, enganar o
Diabo. No entanto, o estranho diálogo ocorre na fatídica noite de 14 de agosto de
1939 e, ao não aceitar o conselho do Diabo, a personagem condena-se às
perseguições do III Reich.
Os contos funcionam como um imenso painel constituído por diversos
azulejos onde se recriam situações do mundo hodierno ou, como brilhantemente lhe
chamou o autor, é “uma casa com muitas janelas” que confluem para um “pátio”
repleto de pequenos “flagrantes” da vida humana repleta de contradições e
incertezas. Inseridas no “mundo líquido” da modernidade, como o classificou
Gaulejac3
, liquidez advinda da inexistência de metanarrativas legitimadoras, da
contínua presença do multiperspetivismo, da ausência de valores e padrões
seguros, as personagens, o sujeito “hipermoderno”, são forçadas a aceitar o
desencanto e a desilusão. Nem mesmo a escrita sai imune a esta contínua reflexão.
3
Cf. GAULEJAC, Vincent - Qui est «je»?, Paris: Éditions du Seuil, 2009.
Por isso, em “Epílogo” termina-se com uma metaficção ao abordar-se os meandros
da originalidade e da luta contínua entre o autor e o seu alter ego, ao constatar-se
que todas as narrativas são influenciadas por tudo o que existe/existiu, a
originalidade reside na forma como cada aedo as conta.
Esse “pátio” torna-se ainda mais amplo e complexo já que o texto exige
sistematicamente o trabalho colaborativo do leitor, tarefa indispensável à
interpretação de qualquer texto, a “máquina preguiçosa que requer do leitor um
árduo trabalho cooperativo para preencher espaços do não-dito ou do já-dito,
espaços, por assim dizer, deixados em branco”4
. Porém, esse trabalho é ainda mais
aturado visto o “leitor modelo” aqui inserido ser, por vezes, o alter ego do próprio
autor: conhecedor da história da humanidade, capaz de identificar diversas
personalidades (Cristo, o imperador Nero, o oficial romano que presenciou a morte
de Cristo, Lavoisier, Maria Callas, Bakhtin, entre outras), com uma ampla cultura
literária, musical e fílmica (daí alguns contos terem como protagonista autores como
Tranströmer, trazerem para a narrativa os cenários dos contos de Edgar Allan Poe,
a diegese da Metamorfose de Kafka, o conflito de Leandro, rei da Helíria mesclado
com o regresso a casa de Ulisses, incluírem a sonoridade dos mais diversos
compositores clássicos como Bach, Rachmaninoff, Donizetti, os filmes de Tarkovski,
as telas de van Gogh,…), o viajante atento e observador (Milão, Amesterdão, Paris,
Lanzarote, Porto, Suécia,…). A obra surge, assim, como um rizoma5
; nela literatura,
música, pintura, história, teologia, entre muitas outras áreas do saber, entrecruzam-
se e criam ramificações inseparáveis.
João Ricardo Lopes criou, deste modo, um conjunto de narrativas que
permite ao leitor posicionar-se numa das muitas janelas do pátio ou ficar na esquina
e brincar a uma espécie de jogo de “silêncio e sombra”, de “dito e não dito”,
vivenciando quadros da vida moderna com todas as suas incongruências, deceções,
ilusões, surpreender-se com as situações narradas e sentir nascer dentro de si a
dúvida, a necessidade de observar de outro ângulo a realidade.
Paula Morais
4
ECO, Umberto – Leitura do texto literário Lector in fabula: a cooperação interpretativa nos textos
literários, (trad. de Mário Brito), 2.ª ed., Lisboa: Presença, 1983, pág. 27.
5
Cf. DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix - Mille plateaux: capitalisme et schizophrénie, Paris: Les
Éditions de Minuit, 1980, pp. 13 – 31.

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Crítica e Posfácio ao livro «O Moscardo e Outras Histórias» de João Ricardo Lopes

  • 1. O MOSCARDO E OUTRAS HISTÓRIAS Posfácio “Nenhum homem é uma ilha, isolado em si mesmo; todo o homem é um pedaço do continente, uma parte da terra firme” afirmava o poeta John Donne1 no século XVII. A pequenez e individualidade do ser humano rapidamente se desfazem pela imersão do Eu no coletivo, na cultura e história da humanidade. Um dos elos fulcrais para a concatenação do indivíduo aos restantes elementos da sua espécie está associado ao papel ancestral desempenhado pelos aedos, os contadores de histórias. Ao transmitirem um conjunto de narrativas (pictóricas, linguísticas ou fazendo recurso a outros suportes), procuravam legitimar a pertença desse Eu a um coletivo. Se, na antiguidade, essas narrativas serviam para perpetuar as façanhas dos heróis, ensinar a distinguir o bem do mal, transmitir valores éticos e morais; na contemporaneidade, elas extravasaram esse papel e procuram, agora, problematizar o real, surgir como instantâneos de situações quotidianas, muitas vezes irrelevantes e/ou negligenciáveis, e para as quais a narrativa não procura apresentar uma resolução do problema ou fornecer uma moralidade a ser interiorizada. No fundo, foi esse papel de instrumento lúdico e, em simultâneo, de farpa cravada na consciência do homem para o relembrar da sua fragilidade que Eça de Queirós realçou ao afirmar que “Contar histórias é uma das mais belas ocupações humanas: e a Grécia assim o compreendeu, divinizando Homero que não era mais que um sublime contador de contos da carochinha. Todas as outras ocupações humanas tendem mais ou menos a explorar o homem; só essa de contar histórias se dedica amoravelmente a entretê-lo, o que tantas vezes equivale a consolá-lo. Infelizmente, quase sempre, os contistas estragam os seus contos por os encherem de literatura, de tanta literatura que nos sufoca a vida!”2 A coletânea O Moscardo e outras histórias, de João Ricardo Lopes, entronca, precisamente, nessa linha de narrativas problematizadoras do real; estes contos presenteiam o leitor com uma visão crítica e reflexiva da existência humana, como se fossem fotogramas, quadros, telas vivas que o instigam a uma autorreflexão contínua, a indagar e a exorcizar o seu próprio quotidiano. Por isso mesmo, no final 1 Cf. DONNE, John - “Meditation XVII” in Devotions upon Emergent Occasions, Michigan: The University of Michigan Press, 1959, pág. 109. 2 Cf. QUEIRÓS, Eça – Correspondência, Porto: Livraria Chandron de Lello & Irmãos Lda., 1925, pág. 160.
  • 2. da generalidade dos contos, o leitor não consegue evitar que um “E se….” domine o seu cérebro e o force a redefinir o seu conceito de realidade. É precisamente esse o ponto de partida, iniciado pela epígrafe de Borges: os feitos heroicos em si mesmo são irrelevantes; porém, são fundamentais enquanto início da invenção e da racionalização. Assim, no conto inaugural, “O Moscardo”, o leitor é transportado para o interior de um acontecimento insólito ocorrido no Rijksmuseum, associa-se à investigação do narrador-personagem para, tal como ele, se surpreender com a fuga do moscardo – “assinatura satírica” do pintor Adriaen Pietersz van de Venne –, cansado de viver aprisionado numa obra de arte. Este desconcerto é também explorado no conto “Em branco” e em “Um encontro com o diabo”. No primeiro, efetua-se uma reflexão sobre a produção artística, neste caso, a de um quadro. Após um extenso processo criativo, ocorrido na mente do pintor, conclui-se que a sua melhor produção é aquela que permite ao observador ficar fascinado com todas as possibilidades latentes e preso à incapacidade de atingir o incognoscível, o indizível, isto é, aceder à intenção do autor; daí a tela surgir “em branco”. No segundo, ocorre uma conversa entre Emil Corian e o Diabo, durante a qual o símbolo da maldade procura explicar que as suas diversas faces são apenas fruto de construção humana na sua ânsia de imputar os seus erros a uma entidade alheia a si próprio. Ao tentar escapar a essa teia horrenda criada à sua volta, o Diabo procura auxiliar Emil ao dizer-lhe que deverá rejeitar o convite que lhe será feito pouco depois e partir com a sua futura esposa, uma judia, para a América. Como é óbvio, Emil faz o contrário do que lhe foi sugerido, pensando, assim, enganar o Diabo. No entanto, o estranho diálogo ocorre na fatídica noite de 14 de agosto de 1939 e, ao não aceitar o conselho do Diabo, a personagem condena-se às perseguições do III Reich. Os contos funcionam como um imenso painel constituído por diversos azulejos onde se recriam situações do mundo hodierno ou, como brilhantemente lhe chamou o autor, é “uma casa com muitas janelas” que confluem para um “pátio” repleto de pequenos “flagrantes” da vida humana repleta de contradições e incertezas. Inseridas no “mundo líquido” da modernidade, como o classificou Gaulejac3 , liquidez advinda da inexistência de metanarrativas legitimadoras, da contínua presença do multiperspetivismo, da ausência de valores e padrões seguros, as personagens, o sujeito “hipermoderno”, são forçadas a aceitar o desencanto e a desilusão. Nem mesmo a escrita sai imune a esta contínua reflexão. 3 Cf. GAULEJAC, Vincent - Qui est «je»?, Paris: Éditions du Seuil, 2009.
  • 3. Por isso, em “Epílogo” termina-se com uma metaficção ao abordar-se os meandros da originalidade e da luta contínua entre o autor e o seu alter ego, ao constatar-se que todas as narrativas são influenciadas por tudo o que existe/existiu, a originalidade reside na forma como cada aedo as conta. Esse “pátio” torna-se ainda mais amplo e complexo já que o texto exige sistematicamente o trabalho colaborativo do leitor, tarefa indispensável à interpretação de qualquer texto, a “máquina preguiçosa que requer do leitor um árduo trabalho cooperativo para preencher espaços do não-dito ou do já-dito, espaços, por assim dizer, deixados em branco”4 . Porém, esse trabalho é ainda mais aturado visto o “leitor modelo” aqui inserido ser, por vezes, o alter ego do próprio autor: conhecedor da história da humanidade, capaz de identificar diversas personalidades (Cristo, o imperador Nero, o oficial romano que presenciou a morte de Cristo, Lavoisier, Maria Callas, Bakhtin, entre outras), com uma ampla cultura literária, musical e fílmica (daí alguns contos terem como protagonista autores como Tranströmer, trazerem para a narrativa os cenários dos contos de Edgar Allan Poe, a diegese da Metamorfose de Kafka, o conflito de Leandro, rei da Helíria mesclado com o regresso a casa de Ulisses, incluírem a sonoridade dos mais diversos compositores clássicos como Bach, Rachmaninoff, Donizetti, os filmes de Tarkovski, as telas de van Gogh,…), o viajante atento e observador (Milão, Amesterdão, Paris, Lanzarote, Porto, Suécia,…). A obra surge, assim, como um rizoma5 ; nela literatura, música, pintura, história, teologia, entre muitas outras áreas do saber, entrecruzam- se e criam ramificações inseparáveis. João Ricardo Lopes criou, deste modo, um conjunto de narrativas que permite ao leitor posicionar-se numa das muitas janelas do pátio ou ficar na esquina e brincar a uma espécie de jogo de “silêncio e sombra”, de “dito e não dito”, vivenciando quadros da vida moderna com todas as suas incongruências, deceções, ilusões, surpreender-se com as situações narradas e sentir nascer dentro de si a dúvida, a necessidade de observar de outro ângulo a realidade. Paula Morais 4 ECO, Umberto – Leitura do texto literário Lector in fabula: a cooperação interpretativa nos textos literários, (trad. de Mário Brito), 2.ª ed., Lisboa: Presença, 1983, pág. 27. 5 Cf. DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix - Mille plateaux: capitalisme et schizophrénie, Paris: Les Éditions de Minuit, 1980, pp. 13 – 31.