O irmão gêmeo do narrador, Ica, está agitado e inquieto desde que acordou. Quando Ica chega em casa após o trabalho, ele confronta o narrador sobre passar muito tempo no computador trabalhando e ter se afastado de Ica nos últimos anos. O narrador reflete sobre como seu relacionamento com Ica mudou e sobre como vem ignorando os sentimentos de carência de Ica.
2. ICA, por GAEL GUERRA
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Capítulo – 1
É quando Ica acorda e vejo sua cara mal
humorada, que o pensamento me vem à cabeça:
“esse vai ser um dia daqueles”. Mas não estou
dizendo isso apenas por tê-lo olhado ligeiro. É uma
intuição de irmão mesmo, sabe. Mas o que não
entendo. É o porquê disso. Já faz tanto tempo que
não sinto este tipo de sensação e agora, hoje,
especificamente hoje, é como se estivesse acordado
depois de um longo tempo em estado de sono
profundo.
É um pressentimento de que mais cedo ou
mais tarde, acredito até que mais cedo do que possa
sequer imaginar. As coisas vão mudar pro meu lado.
Tenho a consciência de que ele já está acostumado
em me ver trabalhar, mesmo a essa hora da manhã.
Mas hoje, está diferente. É a tensão carregada que
se espalha pelo quarto e que me deixa apreensivo.
Mas tão apreensivo, que se torna difícil até mesmo
de me concentrar.
3. ICA, por GAEL GUERRA
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O engraçado é que mesmo de mau-humor,
meu irmão se esforça pra se manter calado e
continuar a sua rotina. Então, apenas se levanta,
desce do beliche, retira sua toalha do prego atrás da
porta e segue para o banheiro. Meia hora depois,
retorna e começa a se vestir para o trabalho, e
finalmente me deixa sozinho. É quando essa tensão
vai embora junto com ele. Do jeito que tem que ser.
Quer dizer, não do jeito que tem que ser, porque não
deveria haver tensão nenhuma. Normalmente, ele
pode querer falar alguma coisa, mas sempre
mantem o bico calado. Então sempre o percebo de
vez em quando, fico observando pelo canto do olho,
que ele está com seu olhar fixo em mim. Sempre
querendo interromper a minha rotina. Mas a última
vez que tentou, lancei um olhar assassino que o fez
se calar no mesmo instante. Isso, porque sempre
estive sobre esse estresse de cumprir com os prazos
e não dava tempo de finalizar o trabalho e ele
sempre me interrompia e para me reestabelecer no
que estava fazendo, era realmente um processo
muito demorado.
E é assim, como em todos os outros dias.
Sempre a mesma rotina e sei que quando ele chegar.
Vai ficar deitado um pouco na minha cama
esperando o tempo passar, até resolver se levantar e
cair na noite. Ainda mais em uma sexta-feira.
4. ICA, por GAEL GUERRA
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Depois de um tempo, passou a respeitar essa minha
necessidade e não atrapalhar o meu trabalho, o qual
me mantém sempre ocupado. Focado naquilo que
tenho que fazer.
Para que entendam o porquê desta tensão é
preciso dizer que Ica é o meu gêmeo, cinco minutos
mais novo. Na verdade o seu nome na realidade é
Icaro, mas desde pequeno que o chamo assim e
mesmo nossos pais, acabaram adotando o mesmo
jeito de chamá-lo. Já eu, me chamo “Mano” e é ai
que vocês se perguntam: “Mas que diacho de nome é
esse?” e eu lhe digo: é tudo culpa de papai, que é
meio “Zen” sabe? Meio “Zen noção” no mais puro
estilo hippie de ser. Mas isso foi apenas uma
discussão antiga entre meus pais. Sobre o nome que
dariam a seu primeiro filho. Antes de saberem que
viriam gêmeos.
Mamãe queria Icaro, só que Papai, queria
Mano. Mas mamãe com toda a sua delicadeza e
estupidez, jamais iria permitir que seu primeiro filho
se chamasse Mano. Convenhamos, não é lá um
nome dos mais interessantes. Mas foi justamente
quando descobriram que teriam gêmeos. Então, foi
um alívio para papai, porque mamãe acabou
aceitando em ter um Icaro e um Mano. Justamente,
porque ela teria um filho com o nome que ela
escolhera. Assim foi a desventura da escolha de
5. ICA, por GAEL GUERRA
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nossos nomes. Tudo em uma acalorada discussão
entre meus pais.
Mas aí vem a pegadinha, em alguns casos,
gêmeos, podem nascer idênticos, em outros casos,
podem nascer parecidos ou mesmo diferentes. Mas
no nosso caso, somos praticamente idênticos, e
temos uma única diferença em nossa aparência.
Se forem atentos o suficiente em nos observar.
Irão perceber que eu tenho olhos escuros, mas
muito escuros mesmo, tão escuros que às vezes,
pelo meu jeito sério de olhar pras pessoas, me faz
parecer meio que um psicopata. Os mesmos olhos
de mamãe. Puxei a ela. Agora, já o meu irmão, tem
os olhos mais claros, um tom de castanhos tão
claros, que às vezes se confundem com verdes. São
olhos realmente muito bonitos quando se parar para
apreciar. Assim, tendo os mesmos olhos de papai.
Ica também herdou seu gênio meio “Zen noção”. Não
que ele seja meio hippie, apenas apronta muito,
desde criança foi assim.
Fora este pequeno detalhe, temos a mesma
altura mediana, os mesmos cabelos escuros e bem
branquelos. Nada de extraordinário quanto a nossa
aparência. Entretanto, para entrar no velho clichê
sobre gêmeos. Meu irmão e eu, temos gostos
bastante diferentes.
6. ICA, por GAEL GUERRA
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Faço mais o tipo nerd. Viciado em leitura,
jogos online, seriados e trabalho como freelancer
como artista conceitual. Desenhando para jogos
voltados para celular.
Já o meu irmão. É mais baladeiro, trabalha
como guia de turismo, está sempre rodeado de
amigos e é muito galinha. Toda a semana pega uma
menina diferente e nunca para com uma, aliás, se
tem uma coisa que reparei em todos esses anos, é
que nunca o vi namorar nenhuma das meninas com
quem se envolvia. Parece até, que de nós dois,
apenas eu amadureci. Porque ele continua um
grande molecão. Mas, verdade seja dita. O considero
duas vezes mais inteligente do que eu, pois no meu
caso, demoro a entender as coisas, já o meu irmão
não, ele é fora do comum, seu pensamento ágil como
um raio, e compreende tudo no ato. Ele é assim.
Mas aí. Tem o hoje. Especialmente hoje. Não
tenho como saber ao certo. É sobre este incomodo
quando penso em Ica, ainda mais depois que ele
saiu. Contudo o que disse, em como o conheço bem,
é ainda mais difícil de explicar. É fato que não temos
nos falado muito.
Tudo bem!!!
A verdade é que não nos falamos e ponto final
e por mais que seja realmente a minha culpa. Há de
entender, que realmente não dá pra ficar lhe dando
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atenção, e hoje chegou ao cúmulo. Esse peso
presente durante todo o dia. Tão pesado, que não sei
como explicar.
Aina assim, não conseguia desgrudar os olhos
do monitor nem por um segundo se quer. Estava
produzindo a todo vapor sem nem perceber as horas
passarem e derrepente, quando olho para a janela,
percebo que já estava de noite. O estranho foi a
sincronia, porque neste mesmo instante meu irmão
havia chegado em casa.
No mesmo exato instante em que ouvi a porta
do quarto bater.
Estava tão concentrado, que, se quer notei o
barulho do portão de casa, pois com a janela aberta,
dá pra ouvir o som que o portão faz quando é
fechado, porque ele range feito uma criança
chorona.
Já não estava mais concentrado no trabalho e
meus sentidos estavam focados em seus
movimentos. Ele não disse nada, apenas trocou de
roupa. Deitou-se na minha cama e pegou um dos
meus livros de dentro da gaveta que fica embaixo da
cama. Abriu o livro folheando algumas páginas e
como sempre, fingiu ler, mas sinto seu olhar pelo
canto do olho em cima de mim, me observando e a
tensão voltou a pairar pelo quarto.
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Não demorou nem três minutos até ele fechar
o livro e começar a me encarar. Sabe? Posso ser
meio implicante e por isso finjo estar na minha
rotina. Mesmo que nem perceba direito o que estou
fazendo no computador. Mantive os olhos grudados
no monitor sem realmente enchergar o que estava a
minha frente. Até que percebo ele se aproximar um
pouco mais da beirada da cama e continuar com os
olhos fixados em mim.
Ica se mexeu de novo, se ajeitando ainda mais,
na beirada da cama.
Foi neste instante que tive vontade de rir. Mas
apenas relaxei os ombros, embalado por uma
respiração profunda, o sinti parar de respirar, Isso,
porque tenho certeza que ele sabe que estou
reparando nele.
Coisas de gêmeos afinal.
– Desembucha Ica! – Disse, sem nem ao
menos retirar os olhos do monitor.
– Mano.
– O que é? – Eu perguntei, enquanto sentia
sua inquietação.
– Você não se cansa de ficar no computador? –
Não precisava olhar em sua direção para perceber
que agora era um misto de irritação com
inquietação.
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– É o meu trabalho, Ica. É necessário, se eu
quiser entregar tudo dentro do prazo. – Meu tom de
voz era sério o que parecia deixar ele ainda mais
inquieto.
Talves inquieto, não fosse a palavra certa.
Talvez a palavra certa, fosse: apreensão. – “Ica
estava apreensivo”.
– Não é isso Mano.
– O que é então, Ica? – Já comecei a sentir
aquela fisgada em meu humor que indicava a falta
de paciência se acumular na minha voz e ele, ao
perceber que eu ia começar a falar de novo, saiu na
frente e disparou seus argumentos.
– Eu acordo pela manhã, e você já está na
frente do computador. Chego do trabalho e você está
na frente do computador, às vezes vou dormir, e
você continua no computador. Quer dizer, você não
sai da frente da porra desse computador maldito.
Desde que terminou com a Nanda, só quer saber de
trabalho, virou um completo babaca.
Respirei fundo. Larguei a caneta em cima da
mesinha digitalizadora. Girei a cadeira em sua
direção e fiquei observando Ica, que tinha uma
expressão séria no rosto, mas que foi se diluindo
enquanto o encarava. Foi tomando uma forma aflita.
Pelo o que podia notar, já estava esperando receber
uma resposta grosseira por ficar me interrompendo.
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O problema era que pela primeira vez em cinco
anos, sinto realmente o observar de verdade, como
se estivesse desperto para o que via a minha frente e
ao fazer isso, fez-me perceber a razão de meu
incômodo. Esse peso sobre os ombros que senti
durante todo o dia.
Em todos esses cinco anos, tinha essa
consciência de seu desgosto com a minha rotina.
Mas apenas no decorrer desta última semana em
que aparentemente o ignorava. Senti de verdade que
não era apenas desgosto. Era sua carência e estava
crescendo à medida que o tempo passava. Ele queria
voltar aos tempos em que éramos mais parceiros um
do outro, em que andávamos sempre grudado um ao
outro, como verdadeiros amigos, porque toda a
nossa infância, adolescência e uma parte da vida
adulta, fomos sempre assim. Não tinha para
ninguém, sempre e apenas nós dois como melhores
amigos. Claro que tinhamos outros laços de
amizade, mas nós dois, éramos inseparáveis.
Mas nos últimos cinco anos, pelo menos no
meu caso, tudo em que pensava, era em trabalho e
sempre que Ica desviava a minha atenção, apenas
lhe dava uma bronca por ficar me atrapalhando. Até
que em um dado momento, parou de tentar. Pelo
menos até agora.
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Não entendia isso. Ele sempre saía à noite, ia
se divertir e não parecia mais incomodado com a
minha rotina. Mas o fato era que, enquanto eu
pensava no assunto, vinha uma sensação de que Ica
estava cada vez mais desestimulado com a sua
própria vida e nesta última semana, surgiu essa
tensão, como se ele estivesse reunindo coragem, dia
após dia, pra tentar de alguma forma falar comigo.
Enquanto refletia, sua aflição se tornava cada
vez mais evidente. Aliás, ele sempre foi expressivo
demais, muito diferente de mim. Por isso, achava
fácil de ler, ou pelo menos entender o que ele estava
sentindo e sabia que a minha inexpressividade
quando vagava pelas terras da reflexão lhe deixava
aflito, por não saber ao certo o que viria a seguir.
– Que foi? – Ele perguntou num ato defensivo.
Apenas suspirei. Levantei da cadeira e me
sentei na cama ao seu lado. Ica estava tão tenso que
se encolheu com a minha aproximação, o que era
até engraçado, ainda mais ao perceber, o quanto
poderia deixá-lo neste estado de alerta por apenas
me aproximar um pouco, e justamente por ver este
movimento involuntário que me fazia perceber o
quanto vinha sendo um tanto duro com o meu
irmão durante todo esse tempo em que o ignorei.
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Sempre mantendo o afastado e agora entendo menos
ainda o porquê de fazer isso. Afinal de contas, não
tenho tanta necessidade de me sobrecarregar, pelo
menos não agora, vivo em uma faze tranquila da
minha carreira profissional.
Ele estava verdadeiramente apreensivo
enquanto o observava. Mas não devia, não era certo
fazê-lo sentir-se assim. Era essa a sensação que me
incomodava profundamente.
Mas por que tanto tempo pra notar isso?
Afaguei seus cabelos, da forma como fazíamos
quando eramos garotos e ficávamos sentados um ao
lado do outro no sofá da sala em nossa antiga casa,
enquanto assistíamos desenho animado no horário
da manhã.
Um sempre fazia cafuné no outro. Ao lembrar-
me desse momento de cumplicidade, percebia em
como éramos carinhosos naqueles tempos. Vivíamos
sempre grudados, alias eramos mais que grudados,
eramos a sombra um do outro.
Enquanto lhe fazia cafuné, sentia sua
apreensão ir embora gradativamente e seu corpo se
desarmar comigo ali ao seu lado. Até que tomou a
iniciativa de fazer o mesmo. Esticou seu braço e
começou a afagar os meus cabelos, na parte de trás
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da minha cabeça, dando-me o mesmo sinal de afeto
que compartilhamos tantas vezes no passado. Mas
ainda sentia que Ica ainda guardava algo dentro de
si. Algo que ainda queria. Carregava a vontade na
ponta da língua que parecia querer sair. As palavras
pareciam querer se formar, mas não as
pronunciava.
– O que você quer, Ica? – Eu perguntei.
Ele pensou um pouco. Em seguida, repensou
mais um pouco. Ia dizer alguma coisa. Mas no final,
respirou fundo e apenas baixou um pouco a cabeça
sem dizer nada.
– Pode me dizer Ica. O que você quer? – Tornei
a perguntar, mas agora, tinha baixado a minha
própria cabeça buscando seu campo de visão. Para
que ele me retornasse o olhar e se sentisse
tranquilo. Queria que sentisse confiança em mim de
novo, de que poderia me contar qualquer coisa. Mas
só então, a real situação de nosso relacionamento
como irmãos realmente me pareceu degradada e no
fundo sabia que toda a culpa era minha.
Era só perceber o quanto Ica relutava em me
dizer o que simplesmente tinha vontade. Não havia
mais a mesma liberdade que compartilhavamos,
parecia conformado por esperar, talvez uma negativa
vinda de mim.
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– Fala pra mim Ica! – Disse enquanto fitava
seus olhos tão profundamente quanto um irmão
poderia ao tentar alcançar a confiança perdida, a
confiança que deseja conquistar para que os
empecilhos pudessem ser dissolvidos, tornando
mais fácil conseguir que seu próprio irmão lhe
revelasse o que realmente desejava. Foi quando ele
apenas me retribuiu o mesmo olhar que disse:
– To carente mano! Sai comigo pra balada? –
Ica disse quase inaudível, mas suas palavras foram
ouvidas de todas as formas, podia ler em seus lábios
enquanto se moviam. Mesmo em cinco anos, tem
coisas que nunca se perdem. Antes que pudesse se
quer expressar qualquer reação ele continuou: – É
porque, só quero a sua companhia. – Saiu de uma
forma um tanto aflita, mesmo assim, vê-lo tentar se
justificar, por querer sair comigo, machucou.
Machucou mesmo.
Respirei fundo, porque sabia que não ia negar.
Detestava balada, música alta, muita gente se
esbarrando. Isso me irritava ao extremo. Mas uma
coisa era fato. Podia até ter passado todo esse tempo
apenas focando nas minhas atividades, mas não
deixava de notar os movimentos de meu irmão. Ica
sempre foi importante para mim e mais ainda. Havia
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o peso em meu âmago. Como se a sensação que
sentisse desse desconforto, fosse um reflexo do
limite em que meu irmão se encontrava. Talvez fosse
hora de começar a dar mais atenção e fazer algo por
ele ao invés de apenas concentrar meus esforços, em
torno demeu próprio estilo esgoista de vida.
– Está bem Ica. Aonde vamos hoje?