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Índice
Apresentação .............................................................................................. 04
A Troca .......................................................................................................... 05
O Homem do Comboio ............................................................................ 17
Rui ou “As Aparências Enganam!” ...................................................... 23
O Sábio ........................................................................................................... 28
“É para se ir fazendo...” ............................................................................ 35
Saudades do Paraíso (Reflexões de Adão) ...................................... 46
A Serpente de Bronze .............................................................................. 49
O Puro ............................................................................................................ 59
Nico, o Valentão ......................................................................................... 67
O Sonho de Demba ................................................................................... 75
Sobre o autor .............................................................................................. 93
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Apresentação
O médico, pastor e escritor Joed Venturini disponibilizou, há alguns
anos já, boa quantidade de sua produção literária na internet, através de
seus blogs. São poemas, crônicas, estudos bíblicos e contos de excelente
qualidade que remetem, para além de sua capacidade como escritor,
suas vastas experiências de vida e caminhada cristã. Uma dessas ricas
experiências é o período em que serviu como missionário no Oeste
africano, mais especificamente em Guiné Bissau.
Se o escritor colombiano Vargas Vila diz que "um escritor não revela
nada em seus livros se não se revela a si mesmo”, é certo que deste mal
não padece o pastor Joed: em seus contos, ambientados em três
continentes, o autor revela toda a sua mundivivência e dá notícia de sua
grande humanidade.
A força do ótimo narrador em Joed mostra-se no amálgama entre o
singular e o prosaico, no uso desassombrado do tom coloquial e na
profusão de histórias e estórias bem urdidas, que transitam do mistério
ao humor, do drama ao tragicômico, em relatos sempre com base em
alguma lição/passagem bíblica. Outra peculiaridade desta seleta é que
aqui contos bíblicos (que utilizam personagens bíblicas como
protagonistas) somam-se a outros ambientados em Portugal, Brasil e
Guiné Bissau, formando um pitoresco passeio pela lusofonia, redigidos
por quem a viveu e vive na pele – algo ao alcance de muito poucos
autores.
Assim, este e-book surge com a proposta de reunir numa única
plataforma os ótimos contos já publicados pelo autor, que encontravam-
se disseminados em seus blogs. Como promotores da boa literatura
evangélica e sabedores da carência de bons títulos ficcionais em nossa
seara, é com grande prazer que apresentamos este livro aos leitores.
Sammis Reachers
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A Troca
Um grupo de garotos passou correndo pela frente da porta, enquanto
o velho Eurico a fechava para sair. Um deles praticamente esbarrou no
ancião, mas Eurico parecia não perceber ou pelo menos não se
incomodar. Era parte de sua maneira de reagir ao ambiente. E seu estilo
poderia ser considerado perfeito. Fazia já quinze anos que vivia naquela
favela e nunca fora assaltado! Ninguém o molestava. Vivia só e
sossegado e era respeitado.
Saía pouco, pois era aposentado. Ia metodicamente à igreja
evangélica mais próxima, mas tirando isso, e as saídas diárias à padaria
e semanais ao supermercado, era ali mesmo, nas estreitas ruas da
comunidade pobre, que fazia sua vida. O velho era conhecido como uma
espécie de operador de milagres. Distribuía compaixão como o orvalho
matinal e sua especialidade, se é que se poderia chamar assim, era
recuperar jovens desviados. E na sua favela havia muito material de
trabalho.
O ancião tinha uma estratégia pouco comum. Poderia se dizer que
ganhava pela exaustão. Primeiro escolhia, em oração, um jovem que
estivesse mesmo muito mal. Em geral eram delinquentes envolvidos
com o tráfico de drogas e membros de gangues da favela. Então iniciava
uma maratona de jejum e oração por aquele jovem. Quando sentia que
tinha suficiente cobertura de oração, “atacava”. De tal forma procurava
o seu alvo que às vezes virava sua sombra. Em regra era rejeitado de
início, mas ia ganhando terreno até que o jovem acabava ouvindo o
homem.
Mesmo com meios tão arcaicos à psicologia moderna, o ancião tinha
resultados surpreendentes. Podia citar uma lista respeitável de nomes
de jovens que tinham deixado uma vida que levaria a uma morte
prematura e que tinham sido recuperados ao ponto de se casarem,
terem emprego e serem fiéis membros de igreja, e até dois que eram
pastores.
Mas Eurico não fazia propaganda de seu trabalho. Seria contrário ao
seu estilo e personalidade. Além de mais ele considerava seu ministério
como uma simples retribuição pelo que ele mesmo recebera. Fora, em
tempos idos, um alcoólatra que estragara a vida e desgraçara a família.
[6]
Teria morrido assim, se não fosse o amor paciente e perseverante de um
antigo diácono da igreja onde agora assistia. Essa era sua história. Essa
era sua vida.
Ultimamente, porém, o homem andava um tanto preocupado e
nervoso. O caso que tomara parecia não se resolver como os anteriores.
Estava já há meses orando, jejuando e lutando pela vida de Edmilson e
parecia não haver nenhuma sensibilidade da parte do rapaz. A cada nova
investida de Eurico o jovem se afundava mais em sua vida de pecado.
Como chefe de uma facção da gangue, tinha dinheiro e poder sobre
outros jovens. Não se importava com nada a não ser usar e abusar de
seu poder sobre os assustados moradores da favela. Passear de carro e
trocar de namorada eram outros de seus passatempos e, claro, tudo bem
regado a chope e cocaína.
Eurico não era homem de desistir fácil. Não sentira ainda que fosse
tempo de deixar de lutar pela vida e salvação de Edmilson e por isso
mais uma vez após uma semana de intensa oração, ele se dirigia até o
local aonde sabia que poderia encontrar o rapaz.
O jovem não estava em casa. Fora visto indo para o topo do morro,
aonde tinham uma casa que servia como uma espécie de prisão para
inimigos capturados ou devedores que não pagavam suas remessas de
droga. Era ali, no terraço, que costumavam executar aqueles que tinham
atravessado o caminho dos líderes do pedaço. Eurico estremecera, mas
não de medo. Estava seguro. Temia pelo seu alvo. Era pelo moço que
sentia medo.
Subiu custosamente o morro, parando várias vezes. A idade já não
facilitava. As oitenta primaveras já tinham passado há alguns anos e os
músculos não tinham a força de outrora. Perto do local que queria
alcançar o ancião foi barrado por dois garotos armados, de uns dezesseis
anos.
— E aí vovô, aonde é que pensa que vai?
— Vim ver o Edmilson — Explicou Eurico com toda a naturalidade.
— Manero — riu o outro garoto — Ó velho, cê num acha que tá velho
demais pra andar cheirando?
[7]
Eurico baixou a cabeça cansada e levantando-a, fitou o rapaz bem nos
olhos, de tal forma que o fez ficar sem jeito. Foi então que o outro notou
a Bíblia na mão do velho e reagiu:
— Pode passar velho, vai logo!
Mais uma vez a superstição local se fazia sentir. Os traficantes, por
regra, não se metiam com “crentes” porque diziam que dava azar. As
evidências confirmavam. Eurico avançou até a casa. Era um casarão
abandonado. Por todo o lado cheirava a dejetos humanos e havia ratos
andando em plena luz do dia. Um despacho de macumba bem na entrada
terminava de compor o quadro macabro.
O ancião não hesitou. Subiu as escadas gastas. Não havia ninguém no
1º andar, nem no 2º. Ao chegar ao terraço já o velho arfava novamente.
Parou e viu um jovem negro, alto, de soberbo aspecto, perto de um corpo
que jazia no chão em meio a uma poça de sangue. Ao pressentir a
presença do homem o jovem apontou a arma com ar furioso e olhos
arregalados onde se evidenciavam sinais da última dose de droga.
Eurico levantou a Bíblia em sinal de identificação. A arma foi baixada
e os olhos do rapaz se encheram de impaciência e aborrecimento.
— Cê num me larga velho? Me deixa, pô! Tô cansado de te aturar! Vê
se me esquece!
— Boa tarde, Edmilson! — o ancião respondeu em tom triste.
Um silêncio pesado se seguiu.
— Não posso desistir de você, Edmilson. — continuou o ancião —
Você está no meu coração. Quero ver você salvo e seguro nos braços de
Jesus!
O Jovem riu com sarcasmo e balançou a cabeça.
— Os braços que eu quero são outros. — gozou ele — Além do que,
se você qué rezá aproveita e vê se ajuda esse aqui que precisa mais que
eu — riu apontando o cadáver — Eu tenho mais que fazer.
Dizendo isso o rapaz passou pelo velho com desdém e o empurrou
[8]
com violência. Eurico perdeu o equilíbrio e caiu sentado junto ao muro
que circundava o terraço e o jovem se foi.
O ancião encolheu-se. Estaria errado desta vez? Seria Edmilson um
caso realmente perdido? Na verdade o livre arbítrio era de se
considerar. Ele não podia forçar a vontade de alguém a quem Deus fizera
livre. No entanto o peso da alma do jovem o fazia sofrer e as lágrimas
brotavam de seu rosto cansado. Ali ficou com a cabeça apoiada nos
joelhos chorando e clamando por uma oportunidade de ser
verdadeiramente intercessor, de ficar na brecha por este rapaz.
O tempo passou. Eurico não sabia se muito ou pouco. Quando se deu
conta havia outra pessoa no terraço e o sol declinava rapidamente no
horizonte. A presença dessa pessoa o fez erguer-se um tanto assustado.
Limpou as lágrimas do rosto e o nariz que pingava e tentou se recompor.
Mas a aproximação da outra pessoa o deixou deveras surpreso.
Saída como que de uma espécie de névoa veio ao seu encontro uma
velha de aspecto medonho. Curvada e cheia de reumatismo ela parecia
não ter sequer um osso que não fosse deformado. Ergueu o rosto para
Eurico e o fitou com superioridade. O ancião tremeu sem querer.
O rosto da velha era de tal forma enrugado e cheio de espinhas e
pontos negros que só o fixá-lo já era penoso. O nariz de proporções
significativas era peludo e torto. A boca irregular de lábios secos. Da
cabeça quase careca saíam uns poucos fios de cabelo grisalho em total
desalinho. A mulher trazia uma roupa toda negra e esfarrapada
condizente com seu aspecto físico. Sua presença causava repulsa e
medo, tremor e asco ao mesmo tempo.
Depois do primeiro susto Eurico tentou se recuperar. Pensou que
fosse alguém da família do homem morto que permanecia no extremo
do terraço e tentou ser gentil:
— Boa tarde, senhora. Veio pelo moço acidentado? — perguntou
apontando o cadáver.
— Acidentado? — pronunciou a velha com sarcasmo.
Sua voz era metálica e grave. Um tanto inesperado. Causava arrepios
na medula e parecia penetrar os ossos. Não parecia ser humana.
[9]
— Acidentado? — repetiu a velha.
— Bem — titubeou Eurico sem jeito — eu, na verdade, não sei.
Quando cheguei aqui já estava morto.
A velha parecia não estar interessada no que ele dizia. Aproximou-se
do ancião e o rodeou examinando cada detalhe dele e em especial a
Bíblia em sua mão. À sua aproximação Eurico experimentou um
fenômeno de todo inusitado. O chão parecia ter se tornado frio. Como se
a temperatura à volta da mulher fosse bem mais baixa que o resto do ar.
A tal ponto se fez sentir isso que o pobre homem quase tremia de frio e
segurava o queixo para que não batesse.
A velha tornou a se afastar dele sem palavras como se tivesse perdido
o interesse e avançou até o parapeito da varanda examinando as
redondezas. Eurico fez enorme esforço para sair de seu estado quase
catatônico.
— Posso ajudá-la de alguma forma? — perguntou com educação.
A velha o mirou de novo com aquele olhar gelado e desdenhou:
— Não é você que quero! — respondeu secamente.
— Então, quem é? — insistiu o ancião já com seus pressentimentos.
A mulher parecia incomodada com a presença e a insistência do
homem e pareceu atacá-lo. Voltando-se com rapidez surpreendente o
questionou:
— Não tem medo de mim?
Desta vez foi Eurico que ficou firme e com olhar tranquilo e seguro
sorriu e respondeu:
— Deveria ter?
— A grande maioria dos homens tem… — disse a velha com
segurança.
— Parece ter muita experiência! — refletiu Eurico.
[10]
— Alguma... — devolveu a outra com sarcasmo.
— E está procurando... — sugeriu o ancião.
— Edmilson — declarou a velha de forma seca e voltou a perscrutar
a vizinhança.
Eurico ficou abalado com a revelação e se aproximou corajosamente
da velha apesar de que o frio que ela transmitia ser a última coisa do
mundo que queria experimentar de novo. De súbito, sentiu-se cheio de
ousadia para lutar pelo jovem que pretendia ver salvo, e pressentia que
esta anciã só podia trazer más notícias. Chegou-se com convicção e
disparou:
— Quem é a senhora?
A velha olhou Eurico com um misto de admiração e desprezo e sorriu.
Um sorriso que faria gelar o coração do mais corajoso. De sua boca
disforme se viam uns poucos dentes amarelo-acastanhados e a risada
qual grito de hiena na noite africana parecia vindo de outro mundo. A
mulher, olhando o homem no fundo dos olhos, pronunciou calmamente:
— Sou a Morte!
— Não pode levá-lo! — foi à reação imediata e quase impensada do
ancião.
A Morte mostrou surpresa, franzindo o sobrolho que logo abriu em
novo sorriso desdenhoso.
— Você vai me impedir?
— Não posso... — reconheceu Eurico — Mas ele não está pronto!
— Isso não é problema meu. — deu de ombros a velha — Cumpro
minhas obrigações e chegou a hora do rapaz. Se não se preparou para
me receber é problema dele.
— E meu também. — protestou o homem — Eu assumi a
responsabilidade por ele.
[11]
— Ninguém pode assumir a responsabilidade por outro. — devolveu
a Morte — Cada um tem que me enfrentar sozinho e a hora de Edmilson
é chegada.
— Então, me leve a mim. — tentou Eurico já desesperado — Eu posso
ir já, estou pronto. Não tenho medo de você. Leve-me no lugar dele!
Agora o homem parecia pela primeira vez ter conseguido a total
atenção de sua interlocutora que o examinava com mais cuidado ainda.
A morte aproximou-se novamente e o frio glaciar de ainda a pouco
voltou a gelar Eurico de forma desagradável e quase insuportável. Tudo
nele clamava por se ver livre dessa sensação, mas ficou quieto, em seu
interior lutando pela alma de seu protegido.
A morte percebeu a luta do homem e sua forte resolução e se afastou
lentamente.
— Tem a certeza do que me propõe? — questionou tentando
verificar a certeza do homem.
— Sim! — afirmou Eurico com total convicção.
— E porque faz isso? — quis saber a morte.
— Pela salvação dele. — explicou o ancião — Ele não está pronto
para ir. Precisa de mais tempo. O amor de Deus há de vencer em sua
vida, mas precisa de mais tempo.
— E é esse tempo que você quer comprar para ele? — sugeriu a velha
rindo.
— Se for possível… — clamou ele.
— Possível é… — disse ela — Não seria a primeira vez. Tem-se feito
muitas vezes e creio que ainda se farão muitas mais.
— E ele terá tempo suficiente? — quis saber o homem ansioso.
— Isso não pode saber. Só o Todo Poderoso sabe essas coisas. Pode
ser que sim. Pode ser que não. Acha que vale a pena mesmo assim?
Morrer sem ter a certeza? Pode ser em vão… — tentou a morte matreira.
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— O amor nunca é em vão! - sentenciou Eurico — Estou disposto a
dar a Edmilson mais uma oportunidade, nem que seja a última!
A morte balançou a cabeça e chegou-se ao fim do terraço aonde se
via toda a favela. Suspirou com ar cansado e olhou mais uma vez com
seus pequeninos olhos negros o homem que a observava em suspense.
— Tanto trabalho a fazer... Voltarei por você... Amanhã!
Antes que Eurico pudesse dizer qualquer coisa uma névoa vinda não
se sabe de onde encobriu a velha e a sua figura fantasmagórica
desapareceu.
O homem ficou muito tempo ali em pé sem saber bem o que se
passara com ele. Fora sonho? Fora visão? Fora real? Como saber a
verdade? O ancião sentia-se confuso. Seria genuíno que ele negociara
com a morte e se oferecera para ir ao lugar de Edmilson? Isso seria
possível? Seria aceito? No dia seguinte seria a sua vez? Estaria realmente
tão preparado como se julgava?
Com esses pensamentos na cabeça ele deixou o local e à medida que
descia do morro notava toda a agitação típica do fim de dia, mas algo
mais do que era normal. Finalmente um jovem o informou. A polícia
havia estado no morro durante a tarde. Tinha havido troca de tiros e
Edmilson fora baleado. Estava no hospital.
Eurico estremeceu. Tinha que verificar. Sentia-se cansado. Na
verdade exausto, mas não teria paz sem confirmar o que sucedera.
Questionou sobre o hospital em que o jovem estaria internado e foi até
lá, chegando já noite cerrada. Procurou o médico que atendera
Edmilson. O clínico sentou com o ancião e parecia confuso.
— Foi algo muito estranho. — disse o médico — O rapaz foi baleado
três vezes no abdômen, na região do fígado. Chegou aqui com
hemorragia interna incontrolável. Não havia nada que pudéssemos
fazer. Nem se o tivéssemos recebido logo após os tiros. Mas tinham
passado mais de duas horas! Ele estava à morte! O pulso estava indo e
todos nos preparávamos para deixá-lo cadáver quando, de repente, o
sangue parou. O cara se recuperou bem ali, à nossa frente. Olha, se eu
não tivesse visto, não acreditaria. Se é que existe essa coisa de milagre,
este foi um!
[13]
Eurico ouviu tudo com lágrimas nos olhos e sentindo que, afinal, tudo
o que vivera fora verdade. Cheio de convicção e certeza conseguiu
autorização e chegou à cabeceira do moço por quem se dispusera a
morrer. O jovem orgulhoso e cheio de antipatia que ele vira no começo
do dia já não estava ali. Edmilson tinha um ar assustado de garoto pobre
que era o verdadeiro estado de sua alma. Olhou Eurico com vergonha e
uma pitada de esperança. Tremia ao lhe contar.
— Foi uma emboscada. O meu pessoal me traiu. O desgraçado do
Mendes queria a minha posição. Miserável! Vai pagar caro! — dizia com
o rosto se contorcendo de dor e raiva.
— Ainda odiando? — interrompeu Eurico — Isso não te trouxe nada
de bom.
O moço parou de falar e o olhou triste. Desta vez parecia reconhecer
a verdade nas palavras do velho.
— Eu vi a morte! — disse então tremendo — E era horrível!
— Eu sei. — balançou a cabeça o ancião — Mas não precisa ter medo
dela agora. Você vai viver. Mas o quanto e como vai depender de onde
você vai colocar o coração.
Na entrada do quarto uma enfermeira fez sinal ao ancião que era
hora de se retirar. Edmilson segurou o braço dele com angústia. Em seus
olhos ele via agora todo o vazio de seu coração, toda a busca de sua alma.
— O que é que eu faço? — perguntou com voz embargada.
Eurico o olhou com carinho. Colocou sua Bíblia na cabeceira. Era a
sua velha Bíblia. Companheira de tantos anos. Ganhara aquele livro do
homem que o levara a Cristo. Era seu mais precioso tesouro. Mas sentia
que agora o rapaz precisava mais dela do que ele. Sorriu de leve e
acrescentou:
— Comece lendo o livro onde está marcado. Depois, quando sair
daqui procure o pastor João da igreja lá da favela. Ele saberá te ajudar.
Não desperdice seu tempo, meu filho! A vida é curta! Você não sabe o
que vem amanhã.
[14]
— Você virá me visitar? — quis saber o moço.
— Não sei. — respondeu o velho com o olhar perdido — Tenho
amanhã um compromisso muito importante. Logo você saberá.
Com uma breve oração ele se despediu do moço e saiu. Trazia o
coração em paz. Sentia que aquele jovem estava a caminho da
recuperação. Seria difícil o caminho e muito espinhoso. As tentações
seriam múltiplas e a luta tremenda. Mas ele queria acreditar. Era tudo
que precisava. Fizera a sua parte. Talvez até demais. E com esse
pensamento enchendo sua mente chegou a casa finalmente e dormiu um
sono pesado, sem sobressaltos, cheio de paz.
No dia seguinte, levantou-se à hora habitual. Fez tudo como em
qualquer outro dia. Por que seria diferente? Foi o que pensou. O dia
inteiro, porém, esperava sentir aquela presença gelada que o envolvera
no dia anterior e que certamente o viria buscar. Mas nada aconteceu de
manhã e à tarde ia já avançada quando se sentou em seu sofá de leitura
e adormeceu com um velho livro de poesia no colo.
Acordou com uma sensação estranha e imediatamente sentiu que
não estava só. Um arrepio percorreu sua espinha, mas recuperou
depressa e levantando-se deu de cara com uma moça que, sentada à
mesa da sala, preparava um chá.
Era jovem e extremamente bela. Alta e esbelta, de feições finas, rosto
pequeno emoldurado por abundante cabelo castanho claro, olhos
enormes de um verde enigmático, lábios bem desenhados e um queixo
artístico. Era branca, muito branca e dela parecia emanar um perfume
doce inebriante que o ancião sentiu ser delicioso demais.
Eurico sorriu diante de tal visão e limpando a garganta, se desculpou:
— Peço desculpa não a vi entrar, estava lendo e creio que cochilei.
— Não tem problema, eu tenho tempo. — ela respondeu numa voz
maviosa e musical.
E as palavras foram acompanhadas de um sorriso que trazia a beleza
sombria de uma noite de luar. Eurico não pode evitar um novo arrepio,
mas não sabia como reagir.
[15]
— Em que posso servi-la? — quis saber, sempre educado.
— Temos encontro marcado. — lembrou a moça com certo ar de
surpresa no rosto — Certamente não esqueceu!
O ancião recuou um passo e parou. Estava confuso e admirado.
Balançou a cabeça e fixou melhor o olhar.
— Tenho encontro marcado com a... — não foi capaz de dizê-lo.
— Comigo! — completou a moça.
— Não pode ser! — continuou estranhando o velho.
— Porque não? — insistiu ela.
— Não foi você que vi ontem!
— Ah! — riu ela e se aproximou estendendo a xícara de chá
fumegante e cheiroso.
À sua aproximação ele sentiu o frio que lhe percorrera o corpo no dia
anterior. Mas este não era o mesmo tipo de frio. Não gelava. Não fazia
tremer. Era mais um tipo refrescante, qual brisa gostosa em tarde
abafada.
A moça fez sinal e ele tornou a sentar-se no sofá. Ela foi postar-se não
muito longe, bem em frente a ele.
— Na verdade foi comigo que falou ontem. — continuou a morte —
Mas ontem você me viu como Edmilson me veria. Ontem eu era a morte
aos olhos dele. Hoje estou diferente, ou talvez não. Na verdade não
mudo. O que muda é a maneira como as pessoas me veem.
Eurico abanou a cabeça. Fazia sentido. Era mesmo bastante lógico.
Sorriu. Não podia evitá-lo. Como temer uma morte com esta cara?
— Está preparado?
— Sim! — disse prontamente o homem sem hesitar — E Edmilson?
[16]
— Terá sua oportunidade.
— E será suficiente? - insistiu ele.
— Só o Todo Poderoso sabe! — decretou ela — Tome seu chá. Você
já fez sua parte.
Novo sorriso encheu o ar de parte a parte. Ele bebeu o chá e encostou
a cabeça na poltrona. Fechou os olhos sentido o perfume que enchia o
ar. Logo estava dormindo.
No outro dia de manhã corria a notícia na favela. O velho Eurico
morrera na tarde anterior enquanto dormia e o barbeiro que costumava
cortar-lhe o cabelo comentava:
— Isso é que é uma Bela Morte!
* * * * * * * * * * *
Baseado em João 15:13: “Ninguém tem maior amor do que este: de
dar alguém a própria vida em favor de seus amigos."
[17]
O Homem do Comboio1
Muito se tem escrito sobre os heróis da História. Ponto comum
nessas narrativas é o realçar da coragem, da ousadia, da iniciativa desses
homens e mulheres cujos feitos ficaram para as gerações posteriores
como marco de valentia. E, no entanto, a maioria dos descendentes de
Adão é caracterizada pela falta de ousadia.
Milhões em todo o mundo vivem vidas pacatas, sem nunca dar um
passo que obrigue a Ter coragem ou fazer um ato que indique bravura.
A falta de ousadia e de iniciativa parece contagiosa. Qual doença. Muitos
se abrigarão sob o escudo da prudência lembrando que o “seguro
morreu de velho”. E se é verdade que assim foi, também é notória que
não lhe conhecemos o nome e para além do fato de que viveu até idade
avançada não sabemos que tipo de realizações, se alguma sequer,
chegou a alcançar. É caso para perguntar, será que o tal Senhor seguro
chegou mesmo a viver na plena acepção da palavra? Faltando-nos arte
para melhor defender a necessidade de ousadia na vida deixamos uma
singela estória que talvez ajude a meditar nessa questão.
Havia um homem. Um homem já maduro e avançado em anos. Ele
morava do lado de uma passagem de nível de movimentada linha
ferroviária lá para os lados de Santarém, Portugal. Vamos chamá-lo de
João, que é um nome tão bom quanto outro qualquer.
Era de estatura mediana, entroncado, músculos bem desenvolvidos
por anos de labor manual, mas um pouco flácidos pelo chegar da idade.
Rosto moreno, tostado de sol, com as rugas exageradas denunciando
mais idade do que realmente tinha. Testa alta, serena, cabelos
abundantes, bem aparados, já bastante grisalhos nas têmporas, bigode
farto e bem cuidado. Os olhos de um negro límpido cheios de expressão,
lábios grossos, mas de pouco falar, queixo quadrangular, masculino,
mãos enormes, rudes, calejadas, fortes.
O Sr. João vestia invariavelmente calças pretas de lã por cima das
ceroulas, camisa branca abotoada até o colarinho, colete do mesmo
tecido e cor das calças e um paletó de tom cinza escuro um bocado gasto,
sobretudo nos cotovelos, mas sempre asseado. Um boné de lã de tecido
1
Em Portugal, comboio é como são chamados os trens. (N.E.)
[18]
quadriculado em tons de bege e castanho terminava de compor o visual
com botas alentejanas de cano alto e biqueiro larga.
O homem vivia sozinho. Tivera família no passado. Mulher e filhos.
Mas, ou por infortúnio de doença, ou por desgraça de acidente, ou por
mero acaso da sorte, estava agora só e isolado na sua pequena casa junto
à passagem de nível. A casinha, em cuja frente se via apenas a porta e
duas janelas em cada lado desta, estava cuidadosamente caiada e um
jardim diminuto, mas belo, se podia ver à entrada. Era em frente a esse
jardim que o homem se sentava diariamente a ver passar o comboio. Ali
nascera, crescera e se casara. Ali morava ainda, e ali esperava morrer.
Nunca fora além da cidade de Santarém, ali perto onde o levavam as
obrigações do negócio para vender o fruto da terra e já nem isso fazia
nesses últimos anos em que já só trabalhava para o sustento próprio e
comprava o que precisava na vendinha do mestre Tonho ali logo ao
lado.
Dias e dias, tardes e tardes ele assistia à passagem das locomotivas
por sua casa. Ao cruzarem aquela passagem elas diminuíam bastante a
velocidade. O homem podia ver o interior das carruagens, os rostos das
pessoas, as cores das roupas, os semblantes mais ou menos pesados.
Admirava a beleza dos estofados da primeira classe, a macieza dos
bancos da Segunda classe e a alegria do povo da terceira. Enlevava-se
com o brilho dos metais novos nos carros que faziam transporte de
passageiros e se entusiasmava com a quantidade de material que podia
ser levado pelos enormes e quase intermináveis comboios de carga.
Conhecia já a maioria dos maquinistas. Não de nome, só de rosto. E estes
também o conheciam e cumprimentavam já com o boné nas mãos e um
sorriso amigável ante a aparente onipresença do homem junto à linha
férrea.
De tal maneira o Sr. João conhecia os trens que a ele lhe perguntavam
horários e destinos e ele a todos respondia com exatidão matemática,
acrescentando o andamento do dia e um possível atraso ou antecipação.
Era para a maioria, o Ti João do Comboio, embora nunca, em toda a sua
vida, tivesse embarcado num.
O melhor amigo de Sr. João era tal Manuel da Várzea, porque sua casa
ficava num terreno baixo próximo ao Tejo e um tanto sujeita a
inundações. Os dois se entretiam muitas tardes em jogos de cartas
infindáveis em meio a conversas banais e a observação do movimento
dos trens. A mesa pequenina colocada no jardim do Sr. João, cada qual
[19]
sentado sobre um tosco banquinho de madeira, dois copos pequenos e
uma garrafa de licor ou vinho compunham o quadro já conhecido na
vizinhança.
— Olá Ti João, Olá Senhor Manuel — dizia uma moça que passava.
— Olá rapariga — retribuiu o Manuel.
— Olá Margarida — devolvia atencioso o Sr. João tirando o boné.
— Então, a jogar? — brincava ela.
— É para matar o tempo — desculpava-se o Manuel.
O João só encolhia os ombros.
— Então Ti João o comboio do Porto, a que horas chega? —
perguntou ela.
— Olha filha — informava o homem do comboio — deve aí estar a
qualquer momento, pois o horário dele é 17h25min e já são 17h15min
e como o de Coimbra passou hoje a modos que quinze minutos
adiantado o teu deve estar mesmo aí.
— Obrigado Ti João, tenho que ir a correr — despediu-se ela.
Os dois observaram a bela trigueira que se afastava apressada e
sorriam quase imperceptivelmente. Passados mais uns minutos o
Manuel comentava:
— Deve estar à espera do rapaz do Vieira. Parece que estão
prometidos ou o que é. Acho que agora se fala namorado.
O João encolheu os ombros.
— Tempos novos — continuava o Manuel — que na nossa época uma
rapariga não ia a correr esperar-nos a lado nenhum e nem nós vínhamos
da cidade em comboios de primeira.
O João levantou o sobrolho e encolheu os ombros.
[20]
— Que rica vida leva o rapaz. — falava ainda o Manuel — Sempre
daqui para lá, de lá para cá nesses comboios. Isso é que é passear! O Ti
João sempre havia de querer saber o que é que há depois do Porto.
O João não respondeu. Sua mente vagava com o comboio que pouco
depois apitava e passava majestoso e imponente estremecendo a
cancela. O maquinista fez sinal ao Sr. João que lhe retribuiu e suspirou.
O que estaria no fim da linha? Quantas noites ela já sonhara com isso?
Quantos dias ele levara a pensar nisso?
Por vezes, imaginava cidades cheias de luz, com ruas movimentadas,
vitrines repletas de coisas caras e supérfluas, mas bonitas e coloridas.
Cafés, bares, restaurantes, carros, transportes públicos e uma enorme
confusão de gente de raças e cores diferentes com línguas estranhas e
incompreensíveis. Como seria ver a cidade grande? Sentir aquele calor,
aquele reboliço na azáfama da metrópole que não pode parar.
Outras vezes o homem pensava em paisagens belas e distantes, em
pastos verdejantes, colinas cobertas de árvores de frutas, montanhas e
rios, lagos e represas e o mar. Sim o mar de que lera e ouvira falar e até
o vira uma vez na televisão da dona Joaquina. Como seria ver o mar?
Dizem que é como um rio, mas não tem fim, ou os olhos não lhe vem o
fim. Que mistério isso, seria verdade? Que paisagens e que contrastes
esta linha de trem continha? Ela podia levar um homem a um mundo
novo e quem sabe a uma nova vida. E a voz monótona do Manuel o
acordava de suas divagações.
— Então eu já contei ao compadre aquela passada do Tonico da Praça
no outro dia? Pois olha que foi dos diabos, o rapaz ia partindo tudo lá na
feira do sitio por vias de um negócio mal feito por um cigano!
Sim, ele já conhecia a história. O Manuel fizera o favor de contá-la
dúzias de vezes, mas a ouviria de novo com o mesmo ar de pachorra das
outras vezes e provavelmente comentaria a mesma coisa que em outras
ocasiões. Tanto fazia o Manuel não reparava que estava sempre a se
repetir, coisas da idade. “E não tardo como ele” pensava o João e
suspirava e a mente vagava.
Que tipo de pessoas poderia conhecer num comboio? Viajantes
inveterados que viajam pelo simples prazer de se deslocarem. Homens
de negócio, estudantes em férias, agricultores com arranjos na cidade,
padres que vão para novas paróquias, senhoras que visitam a família. E
[21]
que tipo de amizades se fariam ali? Ou no destino a que chegasse a quem
se ligaria sua alma pela força de descerem na mesma paragem? Que
emoções estariam reservadas a uma viagem destas? O medo do
desconhecido, a alegria do encontro inesperado. A angústia da incerteza,
a tristeza da saudade, o esclarecimento do conhecimento adquirido, o
enriquecimento do coração, o alargar da visão, o reavivar do Espírito.
— E tudo terminou bem — falava ainda o Manuel — que a polícia não
estava lá para brincadeiras e fechou os ciganos a sete chaves e quase deu
uma medalha ao nosso Tonico que saiu um valente rapaz.
— Fez ele muito bem — comentou o João sem pensar no que dizia e
suspirou.
O jogo acabou e o Manuel se foi, deixando o amigo envolto pela luz
exangue do anoitecer.
No dia seguinte o Manuel procurou seu parceiro de cartas logo cedo,
mas não o achou em casa. Andou pela vila e não o viu pelo que calculou
que fora ás terras buscar algo para o almoço. À tarde, porém, o João não
estava, como habitualmente, no seu posto de vigia, a controlar a
passagem dos comboios. O Manuel começou a se conturbar. Perguntou
pelo amigo em toda a redondeza. Não, ninguém vira o Ti João dos
comboios...
E foi a Dona Maria da Encarnação que desvendou o mistério. Vira o
Sr. João na estação de comboios em Santarém a andar de um lado para
outro em traje de domingo. Parecia tomado de uma febre! Inicialmente,
ela pensou que ele esperava alguém, mas depois o viu encaminhar-se à
bilheteria e pedir um bilhete até o fim da linha. Nem sequer se
preocupou com o nome da estação final ou o preço da passagem. A
mulher, curiosa, ficou a observar e viu com espanto o homem entrar no
primeiro comboio que parou e só pode descortinar o seu sorriso de
satisfação sentado à janela e falando com uma senhora que seria
companheira de viagem.
— Ai! Que o diabo do homem perdeu a cabeça! — foi a sentença
extemporânea do Sr. Manuel arreliado por perder o parceiro de cartas e
de entardecer.
E a notícia correu célere. O Ti João, aquele que por mais de vinte anos
[22]
fora visto a espreitar a passagem dos trens sem nunca entrar num,
aquele que sonhara com o destino das locomotivas durante décadas sem
sequer chegar próximo da estação, o homem que ficara conhecido por
toda a redondeza como o ti João dos comboios, finalmente e
inexplicavelmente, embarcara.
* * * * * * * * * * *
Baseado em Neemias 11:4: "Quem observa o vento nunca semeará e
quem olha para as nuvens nunca segará."
[23]
Rui ou "As Aparências Enganam"!
(Conto baseado em história real)
— Ninguém fala mal da minha mãe! — gritou o garoto mirando o
oponente com raiva nos olhos.
— Pois, eu repito o que disse! — reiterou o outro rindo.
Maldita e pejorativa, a frase lhe escapuliu dos lábios, qual cuspidela
fétida de tuberculose terminal, levantando uma onda de risos e
provocações do bando reunido.
O menino olhava o inimigo com os olhos injetados de sangue. Era
pequeno, talvez dez anos, franzino e branquinho, de cabelo louro como
uma espiga de trigo madura e certamente mais fraco que o adversário.
Sem medir as consequências de seu ato fútil, carregou sobre o outro
cheio de fúria justificada.
O grandalhão, bem uns quinze anos, braços de homem acostumado
ao trabalho pesado limitou-se a se desviar ligeiramente e aproveitar o
embalo do garoto para o projetar sobre o chão de cascalho. A patota riu
alto, divertida. As provocações e gargalhadas cresciam de tom à medida
que o desastre era mais evidente.
Levantando-se a custo, com os braços ralados e ardendo e as calças
já rasgadas a criança não se conteve. No seu rosto lia-se um misto de
medo, susto, indignação e ódio. Não aceitaria aquela situação enquanto
ainda tivesse um pouco de dignidade. Tentou novo assalto. Desta vez foi
mais moderado e cuidadoso. O chão de pedrinhas e alcatrão não era
nada convidativo.
O resultado foi tão mal ou pior do que o anterior. O saldo foi um olho
negro e toda a turma o rodeando com insultos. Ele se deixou ficar no
chão chorando baixinho, derrotado, humilhado, destruído.
Aquela tinha sido a vingança covarde dos que não podiam competir
com ele na sala de aula. Desde que chegara ali não se limitara a ser
estrangeiro, o “russinho”, o protestante. Era também o melhor aluno em
tudo, querido e admirado dos professores, bajulado dos pais, bem visto
[24]
pelas meninas. Estas coisas se pagam caro aos dez anos. E o carrasco
fora bem escolhido!
O Rui não era muito alto, mas trabalhava como ajudante de mecânico
há vários anos e ganhara músculos de ferro. Era repetente já de fama
maior, só por isso ainda circulava entre a criançada. No dia a dia era
pacato e calmo, sempre bem disposto e de olhar submisso. Mas o tinham
excitado com mentiras e provocado até que servisse de vingador sobre
o loirinho.
Ele cumprira seu papel sem grande gosto. Até uma ponta de remorso
parecia o atacar, mas o coração embrutecido de adolescente que não
tivera infância não se deixava tomar de ternura. A única linguagem que
conhecia era a da violência. Em casa e na oficina era ele que
apanhava. Ali, quem dava as cartas primeiro era ele e se não era grande
motivo de orgulho vista a diferença de tamanhos, servia-lhe
perfeitamente de compensação.
Magoado de corpo e alma o garotinho encetou o caminho de casa. Foi
um autêntico calvário com os demais a seguirem–no de perto com os
mesmos palavrões e provocações de antes e os risos. O olhar das pessoas
que o viam rasgado e podiam ler na sua órbita roxa o desfecho pouco
feliz de uma luta infantil era duro de enfrentar. Mas, o pior era o medo
da reação paterna e as consequências que daí poderiam advir. Foi longa
a estrada...
Ele nem reparou na beleza do caminho, no recorte dos campos
divididos por muros de pedras artisticamente desenhados, a brancura
da cal das casinhas que pareciam mais de bonecas que de gente, o
vermelho das telhas portuguesas a contrastar com o azul do céu, o gado
gordo e malhado a preto e branco que pintava a paisagem qual postal
holandês. O estado de alma não lhe permitia ver nada a não ser as pedras
frias da estrada de paralelepípedos antigos e alguns tufos de grama que
teimavam em crescer aqui e além por entre as pedras desafiando os
carros que passavam por ali sem sequer os notar.
Finalmente perdeu o cortejo blasfemador ao chegar à sua rua. Mas
isso não lhe aliviara o coração. Restava enfrentar a família e isso ele teria
que o fazer sozinho. E ali estava sua casa. O sobrado mal pintado, a loja
por baixo e a casa por cima, com vista para o interior.
Felizmente, a reação paterna foi bem mais suave do que ele previra. Sua
explicação do motivo da briga parecera ter servido de amortecedor ao
[25]
estado triste em que se apresentava. Nem sequer se mencionou o fato
de ter a roupa rasgada e o olho negro. Ficara apenas a promessa do
progenitor:
— Amanhã estarei à tua espera na saída das aulas para que me mostres
quem é esse Rui!
Aquilo entrou-lhe na alma como profecia messiânica! Teria afinal
vingança, um salvador surgiria do fundo de um carro verde e como no
grande e terrível dia do Senhor! Ele espalharia o terror entre as hostes
de escarnecedores que o importunavam, e a partir dali reinaria
soberano sobre toda a escola e arredores!
A noite chegou sem sono, apenas a grande expectativa de ter a honra
lavada, do nome limpo e exaltado. O Rui saberia quem ele era e que não
estava só no mundo, por mais que se pensasse o contrário. O pai subia-
lhe no conceito uns dez degraus. Sua pose masculina e séria afirmando
que resolveria o problema, de repente, lhe pareceu ver nele músculos
que nunca antes notara com o peito largo de um boxeador, as mãos
grandes e apropriadas. Aquele seria um combate desigual, como fora o
seu. A sede de vingança tomara conta do garoto e somente de
madrugada adormeceu, com sonhos de cargas de cavalaria e massacre
de exércitos rivais, com muito sangue e dor, muita dor para o inimigo...
As aulas no dia seguinte foram um total desperdício. Como prestar
atenção nos professores com a expectativa que o consumia por
dentro? Olhava o rosto impávido do Rui, desconhecendo a destruição
que o aguardava e isso lhe trazia tamanha satisfação que ria sem querer
e procurava evitar tal reação, não fosse ela denunciá-lo.
Por duas ou três vezes durante a longa manhã tivera momentos de
rara lucidez em que duvidou da vinda do pai ou do cumprimento da
promessa. Mas, afogara a razão no seu lago de vingança. A injustiça tinha
que ser resolvida, era urgente e necessária a retribuição. A vida lhe
parecia sem sentido sem aquele corretivo dado ao mau elemento e à sua
corja.
Finalmente, o último sinal soou, como trombeta divina, e lá estava o
carro verde e o salvador imponente e com ar decidido. Aproximou-se
tremendo e o pai o saudou perguntando:
— Quem é o Rui?
[26]
— É aquele! — mostrou-lhe excitado — Aquele tolo ali, metido a
esperto, que não sabe nada de História, nem de Português ou de Inglês,
ou Matemática, ou seja que matéria for. Aquele ali que só sabe dar
caneladas no futebol, se assoa para o chão, cospe a torto e a direito e diz
palavrões. É aquele ali, com ar de parvo que nunca vai saber mais do
que 2 + 2 e que merecia ser aniquilado como verme que era!
Já o pai galgara o espaço que o separava do guri. A mão erguera-se
no ar e o menino esperou o barulho do primeiro estalo com os olhos
semi-cerrados. Mas, qual quê? O pai apenas pousara a mão suavemente
sobre o ombro do inimigo e lhe falava amistosamente, convidando a
aproveitar a carona até à vila.
Atordoado, o garoto tentou tirar sentido de tudo aquilo. Seria
verdade tamanha traição? Podia o pai ser tão falso a ponto de o
desfeitear de maneira tão vil? E então lhe veio a luz... É claro! O pai não
podia bater no Rui ali à frente de todos! Ele era um homem de respeito
na sociedade local, isso não lhe ficaria bem. A carona era o engodo para
levar o Rui até um descampado, onde o corretivo seria aplicado. Neste
momento, a sabedoria do homem parecia realmente superior! Afinal é
verdade está tão propalada superioridade dos adultos!
O Rui caíra na armadilha. Aceitara a carona e se instalara no banco
da frente, ao lado do motorista. O menino atrás contava os minutos até
o local do esperado massacre. Porém, o carro se dirigia estupidamente
para a vila, pelo caminho mais curto e povoado. O pai falava
mansamente ao Rui sobre o sucedido como se tivesse ocorrido um erro
ligeiro. Queria a ajuda do rapagão para futuros erros do menino?!! Ele
era o pai e ele deveria corrigir o filho, não um qualquer na rua.
Terminaram fazendo uma espécie de pacto. Se o garoto fizesse ou
dissesse algo errado, o Rui tinha permissão para o denunciar ao Pai, que
lhe aplicaria a disciplina devida à falta em causa. E assim se despediram
na frente da casa do moço.
A criança no banco de trás desaparecera em sua decepção. Lágrimas
sentidas lhe queimavam os olhos numa nova humilhação tão difícil de
suportar quanto inesperada. Jamais teria esperado isso do próprio
pai! Fora entregue como se fosse ele o verdadeiro culpado. Será que o
homem não vira logo no rosto do Rui que era ele o culpado, que era ele
o mau da estória?
[27]
O dia se arrastou qual caracol paralítico, sem ânimo, sem interesse,
sem remissão. O menino se sentia traído, ultrajado e só. Como poderia
enfrentar a escola? Como olhar para o grupo de escarnecedores? Como
encarar o Rui? Tudo parecia desfocado e em meio a uma névoa de
dúvida. A própria questão da justiça e do direito tinham sido violadas. E
logo por quem se supunha ser o defensor sagrado de tudo o que era
virtuoso na vida!
O que o garoto não sabia é que aquela conversa a que ele chamara
traição tivera o mais profundo efeito no Rui. O moço, acostumado ao
punho de aço do padrasto e ao trabalho duro desde menino, nunca
tivera alguém que o tratasse como igual. Nunca experimentara a palavra
de confiança e respeito. Jamais encarara o olhar limpo de franqueza que
conhecera nesse dia.
Aquela conversa e mais do que isso, aquela atitude o resgatara
verdadeiramente! Tinham lhe dado uma nova visão do mundo, da vida
e da própria humanidade. Uma centelha de honra e dignidade foi
acendida em seu coração, e mesmo sem saber bem o que fazer com ela
o rapaz sentia que era algo tão bom que precisava ser valorizado. No
seu coração de pedra surgira uma brecha e ali poderia brotar uma flor
de esperança e, quem sabe, se suas raízes não abririam outras brechas,
deixando que a alma florisse em botão e a vida sorrisse afinal?
No dia seguinte, Rui olhou o loirinho com simpatia e quase
carinho. Sem perceber ele era já parte essencial da solução do problema
do garotinho assustado. E foi assim que, para surpresa do menino,
quando dois malandros troçadores se aproximaram dele com más
intenções, o gigante mecânico se interpôs e disse de sobrolho carregado
e punho fechado numa voz rouca:
— Se tocar no miúdo, vai ter que se ver comigo ...
* * * * * * * * * * *
Baseado em Romanos 8:28.
[28]
O Sábio
A cidade era minúscula, como tantas outras nos estados sulistas da
América do Norte. O auto-carro2 que cruzava a região, a maioria das
vezes nem parava. Mas nesse dia, para surpresa dos cerca de 500
habitantes locais, descera um estranho e se dirigiu à pensão da Betty
Sue.
Bem, aquele era o único local na cidade onde se podia alugar um
quarto, comer uma refeição e beber uma cerveja fresca. Betty Sue era o
centro nervoso da cidadezinha. Todas as fofocas passavam por lá e para
se estar em dia com o mexerico era obrigatório dar uma paradinha lá,
pelo menos dia sim, dia não.
O cavalheiro que descera do auto-carro estava munido de uma só
mala. Bastante apresentável o tipo. De terno cinzento-escuro, camisa
branca, impecavelmente engomada e uma gravata com desenhos
modernos, difíceis de decifrar, mas que ficava bem no conjunto. Rosto
comprido e sério, a testa alta, o cabelo recuado, cortado à escovinha, os
olhos grandes de um azul profundo, a boca larga, lábios estreitos e
orelhas meio de abano com o nariz razoavelmente grande.
Parecia preparado para ficar uns dias, pois pagou previamente pela
semana. Betty Sue, que fora quem o viu de mais perto, assegurou que era
muito sério e de poucas falas. O nome não dizia nada de novo: Nick
Thompson. Mas, no fim da tarde, já o estranho era o motivo principal das
conversas e todos lutavam para acrescentar mais pormenores sobre o
indivíduo. Havia que se apressar, pois quem mais tirasse dele mais teria
proeminência na cidade nos dias subsequentes.
O dia seguinte foi de grande agitação na cidade. É claro que alguém
que não conhecesse o local nem daria por isso. Só os da terra podiam ver
a procura febril de novos dados sobre o Sr. Thompson.
O homem levantou-se cedo. Pediu um café puro, uma torrada e nada
mais. Passou no barbeiro para fazer a barba e além da saudação e alguns
monossílabos nada mais dissera. Comprou um jornal do dia anterior na
2
Em Portugal, auto-carro é como são chamados os ônibus. (N.E.)
[29]
banca, engraxou os sapatos com o Tony e se retirou para o quarto até o
almoço. Foi aí que Betty Sue tentou sua sorte.
— O Sr. Thompson pretende se demorar por estas bandas? —
perguntou com um sorriso franco do seu rosto bolachudo e sempre
exageradamente maquiado.
— Talvez — fora a resposta lacônica.
— Vem de longe?
— Um pouco.
— A negócios?
— Certamente.
— Muito dinheiro envolvido?
— É possível…
E assim prosseguiu a conversa. A mulher tentando tirar e o homem
sem largar nada. Ficara quase na mesma. Tudo que lhe perguntava ele
concordava de um modo pouco convicto, o que a deixou um tanto
contrariada e confusa. O que poderia relatar às comadres no fim do dia?
Estavam mortas por saber mais do desconhecido e ele ali armado com
uma couraça de indiferença perante a curiosidade quase mórbida da
pequena cidade.
E não é que fora o Smith da tabacaria que conseguiu a nota mais
saliente do dia? Ao vender um maço de cigarro ao Sr. Thompson lhe
inquiriu sobre a visita àquela cidade. Porque ali, um local tão pequeno?
— Gosto muito de sossego — foi a resposta.
Todos gostaram daquela palavra. Era sem dúvida um atestado de
bom senso e levantou a ideia de que o homem poderia querer se instalar
ali mesmo. Afinal, dinheiro era o que parecia não lhe faltar. A Betty Sue
lhe vira a carteira cheia, fora os cartões de crédito, e garantia a quem
quisesse ouvir, e todos queriam, que o Sr. Nick devia ser um desses
milionários excêntricos.
[30]
Os dias foram se passando lentamente para o povo da cidade e pouco
se acrescentava sobre o mistério do visitante. Vestia sempre bem,
apesar de variar muito pouco. Andava muito limpo. Fora visto colhendo
plantas locais e terra. Iniciara um jardim no parapeito da janela do seu
quarto e respondia com expressões guturais ou monossílabos.
No salão de barbearia se discutia sobre ele a todo o vapor:
— Deve ser podre de rico. — referia Tony o engraxate — De outra
forma não viria gastar dinheiro num local tão afastado e perdido no
mapa.
— Escolheu muito bem, se quer saber a minha opinião — interpôs o
prefeito Jackson, meio magoado com a desconsideração do Tony.
— Pode ser um fugitivo da lei — tentou o Barnaby aposentado das
linhas de ferro.
— Não tem cara disso. — resistiu MacSurrey o barbeiro — Ele é
muito calmo para quem está fugindo e já está aqui há mais de uma
semana! Um fugitivo não fica tanto tempo em lugar nenhum.
— Pois eu acho que é um escritor, um sábio de alguma espécie! —
opinou Larry, um caminhoneiro meio desempregado — Deve estar
fazendo pesquisa para um novo livro ou lá como o chamam.
— Bem pensado! — reagiu o prefeito — Lá cara de entendido ele tem!
Olha para as coisas sempre com um ar de quem conhece bem. Ouve os
assuntos com atenção e apesar de não dar opiniões vê-se perfeitamente
que está por dentro de tudo. Eu não me admiraria se fosse professor
universitário ou até coisa maior.
— Mas porque é que não fala? — estranhou Tony — Parece até que
o gato lhe comeu a língua!
— E lá é preciso falar para se ser alguém? — retorquiu MacSurrey
irritado — Lembro-me bem do que meu avô contava de um grande génio
que conheceu e que quase não falava. Estava sempre tão absorto em
pensamentos superiores que as conversas do dia-a-dia o distraíam e não
se dava a bater papo nas esquinas. Pode ser esse o caso.
[31]
— Exatamente! — concordou Larry sacudindo com uma risada seu
enorme corpo de mais de dois metros e 130 quilos — Até tem graça, um
crânio desses aqui na nossa cidade! Ainda vai tornar famosa a nossa
região, descobrindo alguma coisa importante por aqui.
— Seria boa ideia — opinou Jackson com os olhos brilhando — Podia
ser que implementasse o turismo. Podíamos ter um hotel ou dois, e
quem sabe um drive-in, para dar mais animação à cidade.
— Sim, Porque a Betty Sue já deu o que tinha a dar — comentou o
Tony rindo ao que todos gargalharam com gosto.
E de fato, no café-restaurante-pensão, outro grupo, este de mulheres,
também conversava sobre o desconhecido enquanto tomavam xícaras
de chá e biscoitos de chocolate.
— Tem um ar tão distinto — dizia a Mary Lou — Acho que é mesmo
um dos homens mais charmosos que já conheci! Me lembra artista de
cinema...
— Poderia ser. — riu de excitação a Conchita que estava ali desde que
viera do México — Pode bem-estar descansando da cidade grande e se
escondendo da fama e dos jornalistas. Li numa revista que há muitos
atores que fazem isso.
— Já pensou que emocionante? — sorriu a Sra. Jackson — Isso pode
trazer fama à nossa terra, turistas, quem sabe?
— Não parece ator. — comentou a Betty Sue, que para todos os
efeitos era a maior entendida na matéria, pois hospedava o homem —
Parece mais um estudioso ou professor de alguma coisa.
— Sim — retrucou Samantha — tem mesmo cara de doutor! Aquela
testa não engana ninguém!
— Olha que se calhar não era mal partido hein? — tentou a Sra.
Jackson rindo para Samantha, que era a solteira mais cobiçada da
cidade.
— Lá dinheiro tem de sobra! — disse Betty Sue — Isso eu posso
[32]
garantir!
— E é bem mais bonito que o Perkins — riu Mary Lou lembrando um
pretendente de Samantha.
— Mas, falando sério — procurava acalmar os ânimos a visada nas
brincadeiras — que o homem tem cara de sábio lá isso tem e ninguém
pode negar.
A partir desse dia então, Nick Thompson, passou a ter a fama,
merecida ou não, de sábio de grande valor. E tudo que fizesse ou
dissesse era interpretado à luz dessa opinião. Se ele pegava uma pena
de pássaro que caíra estava estudando aerodinâmica. Se demorava-se a
ver o pôr do sol, estaria compondo poesias imortais. Se respondia por
monossílabas era para não gastar seus preciosos neurônios com
conversas tolas e se vestia sempre a mesma cor de roupa era porque isso
certamente teria um efeito positivo na saúde e bem-estar das pessoas.
Até houve quem notasse que o prefeito estava repetindo mais vezes o
seu terno azul-marinho...
Certa ocasião enquanto os homens estavam reunidos a tomar cerveja
o Sr. Nick entrou e saudou a todos cordialmente. Ofereceram-lhe cerveja
e o homem aceitou de bom grado, pois estava quente e uma geladinha ia
bem. Discutia-se a supremacia do transporte aéreo sobre o marítimo.
Havia, como sempre, dois partidos. Uns defendiam os aviões, outros os
navios. A conversa estava acalorada. Havia que aproveitar o fim da tarde
em discussão, já que mais nada havia a fazer na cidade, senão esperar
pelo jornal da noite na televisão e isso ainda ia demorar ainda um bom
tempo.
Depois de muitos argumentos pró aéreos e pró marítimos houve um
que teve a ideia de questionar o ilustre visitante, que segundo o conceito
geral era um sábio. O arguido olhou para os presentes com ar distraído,
levantou as sobrancelhas por alguns segundos e baixando-as de seguida
abriu um sorriso suave e encantador e com um leve dar de ombros
abanou a cabeça como que reiterando o óbvio.
Aquele gesto foi seguido de perto por todos e por incrível que pareça
terminou a discussão. A todos parecera que o génio visitante rematara
a polémica como ninguém e o gesto foi descrito exaustivamente sobre
as mesas de jantar das várias casas locais. É claro que cada lado da
[33]
disputa reclamava o referido gesto como sendo a afirmação cabal de sua
vitória no conceito do sábio. Mas a verdade é que todos concordavam
com a profunda astúcia e tremenda sabedoria do indivíduo.
Ainda não completara um mês que o Sr. Nick estava na cidade e o
prefeito já o convidara a ser sócio de um negócio importante, o xerife lhe
encomendara dois discursos sobre segurança pública no centro cívico e
a senhorita Samantha Brown se preparava para acabar com seus dias de
solteira, no que seria o grande casamento da década.
Porém, misteriosa e quase furtivamente como chegara, o estranho se
foi. Não chegou a se despedir de ninguém. Não terminou de usar os dias
pelos quais pagara a pensão da Betty Sue. Simplesmente saiu de mala na
mão e fora dos limites da cidade pegou carona, desaparecendo das vidas
de todos sem deixar rastro.
Iniciava-se a lenda, o mito. Tinham sido visitados por um gênio por
algum tempo e alguns mais espiritualistas até falavam de anjo ou outro
ser se uma realidade desconhecida. Houve inclusive quem sugerisse
trazer a televisão para fazer uma reportagem, pois jurava que o tal Nick
era, na verdade, um extraterrestre que viera investigá-los. Fosse como
fosse, tinham sido dias de excitação na cidadezinha.
Passaram-se algumas semanas e um carro com chapa de outro estado
e símbolo oficial parou à frente da pensão de Betty Sue. Era um sábado
de manhã, perto da hora do almoço e o local estava abarrotado, como de
costume. Os dois homens que desceram pareciam de alguma instituição
estatal e o carro trazia um emblema na porta. Alguma coisa sobre Saúde
Pública. Entraram, pediram café e sanduíches e ficaram conversando um
pouco.
Quando a dona da pensão trouxe os pedidos lhe mostraram uma
fotografia. Era do Nick! Betty Sue gelou! Conhecia ela o homem? Ela fez
sinal que não. Todos os presentes estavam em suspense, acompanhando
a situação.
— É algum criminoso? — perguntou ela, temerosa.
— Não! — afirmou o homem rindo — Nick não faria mal a uma
borboleta! É apenas maluco! Completamente louco! Fugiu do Sanatório
de Memphis há dois meses e tivemos uma denúncia que teria vindo para
[34]
estes lados. É que levou todo o dinheiro da recepção... Ainda era uma boa
quantia!
Betty Sue deu um sorriso amarelo e voltou-se. Todos os cidadãos
presentes a olhavam. Podia-se ver em seus olhos o espanto e a quase
incredulidade.
A verdade é que nunca mais ninguém falou de Nick Thompson
naquelas paragens.
* * * * * * * * * * *
Baseado em Provérbios 17:28: “Até o tolo quando se cala será
reputado por sábio; e o que cerrar os seus lábios por entendido.”
[35]
"É para se ir fazendo..." (Conto regional)
Fui criado nas ilhas portuguesas dos Açores. Guardo recordações
maravilhosas desses tempos. A cosmovisão açoreana é típica do ilhéu e
se resume na frase que serve de título a este conto. A narrativa é
ambientada nos Açores e se baseia no texto de Eclesiastes 11:4:
"Quem observa o vento nunca semeará, e o que olha para as nuvens
nunca segará".
A Maria tinha o ar mais consolado do mundo. É verdade que a vida
ia difícil. Era verdade que o Manuel não era lá o marido que ela
esperava. Mas, que importava isso se estava agora à espera de seu
primeiro rebento? Vivia pelo ser que lhe crescia no ventre e que já sentia
espernear. Havia de ser forte e belo.
E sentada na varanda bordava para seu enxoval quando o Ti Zeca, da
Herminia lhe gritou:
— Ó Maria, antã isso faz-se ou não? Nunca mais terminas o bordado,
rapariga...
Ela riu gostoso e respondeu:
— Não se preocupe tio, é para se ir fazendo...
E o garoto nasceu. De fato, forte e saudável, cabeludo e
vermelhão. Francisco de nascimento, Francisco José de Batismo, que o
padrinho na cidade assim o quis. Cresceu rápido, bem constituído e com
força, que é o que se precisava naquelas terras de vida dura.
Cresceu ilhéu, vendo o Atlântico norte todos os dias, e aprendendo a
amar o ar húmido e a terra fértil dos Açores. Desde muito cedo ouviu
aquela frase tão tradicional da região e que parecia andar de boca em
boca como doce preferido. Chavão máximo do modo de ser e de viver se
dizia com pachorra e boa disposição de qualquer coisa em que se estava
envolvido: “Não é para se fazer, é para se ir fazendo” ...
O Francisco incorporou facilmente o dito que melhor do que
qualquer outro falava da cosmovisão das gentes açoreanas. Cresceu na
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tranquilidade da vida do campo, rodeado dos animais domésticos e das
vacas nos cerrados do pai. Viu as estações passarem e as festas
chegarem com seu reboliço, mas sempre numa paz de alma própria de
quem tem horizontes limitados pela imensidão dos mares que o cercam.
Pelo que tranquilo nascera e calmo se desenvolveu.
Na idade apropriada começou a frequentar a escola da
freguesia. Antes, de madrugada ainda, ia aos campos com o pai tratar
das vacas. Depois, havia as aulas e à tarde um pouco de tempo livre para
brincar. O menino era sossegado na sala, não dava nenhum trabalho à
professora. No recreio preferia se quedar vendo os outros a gastar
energias correndo de um lado para o outro, qual coelhos
assanhados. Não se metia em brigas, não discutia e nunca era
repreendido pela mestra. Apenas não era de muito estudo.
O 1º ano passou sem que aprendesse mais que as vogais. No 2º, e já
repetente, ia pelo mesmo caminho. E quando um dia, já um pouco
preocupada pela lentidão do filho a mãe o repreendeu pela demora em
terminar o dever de casa, o menino a olhou com olhos meigos e com um
ligeiro sorriso ainda bem infantil e respondeu:
— Ó mãe, isto é para se ir fazendo!
E não dera mesmo para aquilo, dizia o pai. Era pau de outra cepa.
Aprendeu a escrever o nome que era o que o progenitor sabia, e lhe
chegara para ter família e casa. Havia de chegar também ao Francisco. A
família aceitou tudo passivamente. Não valia a pena fazer confusão por
causa disso. Nem todos nascem para doutores e o filho do Manuel da
Burra havia de ser mesmo um agricultor e criador de gado como o pai.
O rapaz cresceu forte, que lá comer, comia que dava gosto. Então
pelas festas do Divino Espirito Santo era um ver se te avias que ninguém
o batia numa mesa de banquete. E foi mais ou menos por essa altura,
devia o garoto ter já uns 18 anos, que viu a Susana, na tourada das
Fontinhas.
O dia estava de festa, o sol a pino, tudo florido, um cheiro de perfume
no ar e a freguesia cheia para a tourada a moda da Terceira. O Francisco
fora com outros amigos, a modes de espairecer um bocado. Mas logo
olhara para cima e notara numa janela vermelha, uma rapariga com os
ombros apoiados numa linda colcha bordada com motivos campestres
[37]
com fios dourados num fundo azul e rosa. Ficara fisgado à primeira
como peixe que encara isca colorida.
Os amigos o impulsionaram na aventura, que era bem hora do rapaz
se entusiasmar por alguma coisa. Mas o Francisco com seu ar bonachão
limitou-se a olhar, e a olhar. Lá a cachopa o viu sim senhor, e até lhe
retribuiu o olhar. Mas mais do que isso não se passou. Na hora dos
touros o rapaz não ousou sair à rua a modos de impressionar como seria
a tradição. Não era do seu estilo e estava muito bem sentado com um
chouriço preto à frente que até dava gosto. Mas, nos intervalos entre
cada touro lá se arrastava até a janela rubra a fim de admirar a flor
humana que brilhava mais que as vegetais. Mas quando os colegas o
apertaram querendo saber se o namoro era para se fazer, respondeu
dando de ombros:
— É para se ir fazendo...
A partir daquele dia da festa, Francisco passou a frequentar as
Fontinhas a cada fim de semana, que era freguesia vizinha à sua. Ia de
bicicleta e passava frente á casa da Susana vezes sem conta, nunca
ousando, no entanto, encetar conversa. E fora a pequena que o abordara
um dia, perto do portão da casa e que lhe permitira iniciar este namoro
meio amizade que frustrava os familiares. É que os pais da moça tinham
planos mais elevados. Havia um filho do Sr. Dr. Azevedo de Angra que
parecia arrastar a asa à pequena, e este brutamontes da Vila Nova que
nem sabia falar direito vinha entornar o caldo. E o que é que a rapariga
via naquela cara bolachuda e avermelhada?
Mas as coisas do coração são assim e a Susana saía à mãe, de pelo na
venta, não aceitava ser pau-mandado e nunca se poderia dizer que era
uma maria–vai-com–as-outras. Bem o Pedro Azevedo, filho do doutor,
destinado à alta sociedade de Angra a presenteava com as prendas mais
bonitas vindas do continente. A rapariga agradecia e continuava a falar
ao Francisco a cada fim de semana, apesar de ser ela a puxar a conversa
e a dar as conclusões. E os meses se arrastaram. Um ano se passou e já
iam quase no fim do segundo e a coisa não atava nem desatava.
O Manuel da Burra não dava interesse a esse namorico do filho, mas
a mãe se arreliava e não pouco. Foi ter com o padre Bento que a casara
e batizara o pequerucho.
[38]
— Ó Senhor Padre, a sua bênção.
— Deus te abençoe, minha filha.
— Sr. Padre, ando com uma coisa cá a atraverssar-me o coração, a
modes que me deixa louca!
— Ó rapariga de Deus, diz lá o que tens. Sou teu confessor há poderes
de anos.
— É o Francisco, sr. Padre. O rapaz é trabalhador e nunca me dá
canseiras, lá isso é verdade, é uma paz de espírito. Mas não é capaz de
fazer nada sozinho. Tudo tem que ser à pressão. Se não for empurrado
não desemperra.
— Feitios filha, são feitios... cada um tem o seu... Lá o rapaz é assim
quieto, que não é nenhum pecado. Vê lá o Luciano da Mariquita, que
trabalhos lhe dá! Vês logo que te saiu a sorte grande!
— Loivado seja, Sr. Padre! Não estou a reclamar que o meu Francisco
é uma joia de rapaz. Mas queria vê-lo casado e não sei se o veja.
— Então não hás-de ver? Isso se arranja facilmente. Ouvi até que tem
rapariga lá para as Fontinhas.
— Ter tem, mas não sei se por muito tempo.
— Explica-te lá criatura, que não te entendo. Tem ou não tem?
— Ó Sr. Padre, o Francisco anda de namoro com uma pequena das
Fontinhas há quase 2 anos. É boa rapariga, sim senhor, que lhe conheço
a família e até me dei com a mãe dela nos meus tempos de solteira. Casou
com o Firmino, aquele que anda metido nisso dos laticínios lá pra Angra.
— Sei quem é, boa gente.
— Pois o Francisco vai lá todo santo domingo. Faça chuva ou faça sol,
não falha. Mas a coisa não anda.
— Como assim?
[39]
— Ele nunca mais se despacha a pedi-la. E o pior é que o filho mais
novo do Dr. Azevedo tem o olho na pequena e se o meu Francisco não se
avia vai ficar a ver navios.
— Ó lá... isso é outra história, que o Pedrinho do Dr. Azevedo eu
conheço e não é rapaz para desfeitas. Se cismou com a rapariga temos
sarilho e do grosso.
— Está a ver sr. Padre. Sei que se falar ao Francisco ele há de escutá-
lo. A mim já se me secou a língua de tentar, e parece que estou como o
santo a pregar aos peixinhos.
— Ó rapariga, isso não é problema e se arranja. Dou três palavrinhas
ao pequeno e já tens nora noutra freguesia que até te regalas!
— Valha-me nossa Senhora, que era um alivio grande! Sr. Padre era
uma esmola que me fazia ...
— Não fales mais nisso! Vai-te descansada e com a ajuda de Deus!
E ela foi. Se havia alguém que podia tratar da coisa era o Padre Bento,
que casamenteiro como ele não havia em todo aquele lado da ilha.
Nisso se passou mais um ano e quando chegou a primavera e Abril
entrou, havia ares de festa na casa do Firmino das Fontinhas. Foi uma
boda como poucas e o banquete demorou até de noite com tudo do bom
e do melhor. A Susana e o Pedrinho do Dr. Azevedo deram o nó na Sé de
Angra com pompa e circunstância com a igreja cheia de convidados que
o pai da noiva não cabia em si de contente.
Não fora falta de paciência da rapariga que levara a este
desenlace. Praticamente iniciara o namoro e a cada fim de semana era
ela que fazia a maior parte do trabalho perguntando e
respondendo. Lutara contra a vontade do pai e de todos ao
redor. Ninguém se levantara a favor do tosco agricultor. Meses a fio à
espera que o rapaz se decidisse e tentou várias vezes levar a conversa
para o lado do pedido de casamento. Mas, o Francisco parecia
irredutível. Era mais fácil Moisés tirar água da rocha que ela um pedido
de casamento daquele criador de vacas! Por fim cansou! Não dava para
continuar perdendo a juventude numa causa vã. Aceitara o pedido do
Pedro e despediu o Francisco com lágrimas nos olhos.
[40]
O Manuel da Burra quase não ligou ao caso. A Maria, porém,
desesperou! Adivinhava que se o filho não casasse ali, não havia de casar
mais! E como é comum as mães conhecerem bem os filhos que têm, ela
estava mais que certa. Se o moço já era fechado e titubeante antes
daquilo tudo, agora é que não se abria mais. Preferia as vacas às pessoas
e o campo à freguesia. Fechou-se em copas e passou a falar ainda menos
que antes.
Mas a sorte, esta personagem tão desejada mas difícil de encontrar,
parecia ter um gosto especial por aquele campônio tranquilo e veio lhe
bater à porta novamente com armas e bagagens e sem que ninguém
pudesse prever. O Antônio da Canada das Flores tinha embarcado para
o Brasil há anos, era o Francisco ainda novo. Fizera fortuna considerável
e voltara agora com ideias de se estabelecer na terrinha e montar um
negócio. Chegara com todo o aparato próprio do emigrante que regressa
em grande. Fizera logo festa.
Foi mordomo da festa do Senhor Espirito Santo e pagou uma tourada
como há anos não se via pelos lados da Vila Nova. Iluminou a Igreja para
gáudio do Padre Bento e construiu uma senhora casa com sobrado e
tudo. Andava de carro para todo o lado e vestia roupas um tanto
extravagantes. Manias dos trópicos... Mas quem reparava nisso, quando
o sujeito era tão mão aberta?
Só uma nuvem escura toldava o sol da felicidade do Sr. Antônio. Mas
era uma nuvem de volume considerável. É que a Ivone, sua senhora, não
lhe dera herdeiros. Dois abortos e um pequeno que não chegara a uma
semana e lá se tinham ido as esperanças de ter continuidade. E para
quem deixar aquele dinheiro todo se não tinha irmãos ou sobrinhos e os
primos eram todos afastados? Foi aí que entrou o Francisco.
Não se sabe por obra de quem, talvez a fada madrinha, o Sr. Antônio
fincou os olhos no rapaz do Manuel da Burra e decidiu que ali estava um
bom moço para se investir. A aproximação não se fez esperar e logo o
Antônio e o Manuel eram vistos juntos por toda a freguesia, bebendo
vinho dosBiscoitos, comendo espetadas de porco ou chouriço na birosca
da Madalena. Eram verdadeiros compadres. E ninguém na freguesia
entendia o que o Antônio via no raio do Francisco. Era trabalhador sim
senhor, comedido e respeitador. Nunca fora visto em patuscadas
noturnas ou sarilhos de saias. Ia à missa com a mãe todos os domingos,
cuidava da sua vidinha sem chatear ninguém. Mas era também um
[41]
mosca-morta completo, não se lhe tirava duas frases de jeito. Andava
quase na casa dos 30 e nem sinal de casamento. E não fora ele que
perdera, por falta de iniciativa, a Susana do Firmino das Fontinhas?
Nenhuma razão porém, demovia o Antônio. Meteu na cabeça que o
Francisco era um rapaz ás direitas e que era ele que lhe serviria de filho
e herdeiro à falta de prole própria. E lá se puseram ele e o Manuel da
Burra a fazer planos e esquemas de como usar a fortuna brasileira em
bons fins e de preferência bem lucrativos. Só um problema havia. O
Manuel colocara no nome do filho tudo o que tinha. É que tivera pelo
inverno uma pneumonia das brabas e pensara que estava a esticar o
pernil, pelo que, antes que o Diabo as tecesse foi tratando da papelada
com o Osório do caminho da Praia. Agora pois, para que qualquer
negócio fosse tratado, era preciso que o Francisco anui-se e colocasse no
papel aquele garrancho a que chamava assinatura. E aqui começou o
cabo dos trabalhos.
Convencer o rapaz é que eram elas. Ouvia tudo com paciência
angelical e parecia concordar, mas mal o Antônio saia de sua casa
Francisco voltava aos campos e ás vacas, como se sua vida não estivesse
prestes a mudar completamente com o simples riscar de uma caneta
barata. Ele só se sentia bem no seu ambiente. Só e sossegado no meio do
gado, cheirando a erva molhada e o estrume fresco é que parecia feliz e
contentado. Que isso de negócios e planos não lhe entrava bem.
Foi levado a Angra para tratar da papelada, mas a viagem fora um
desastre! Primeiro que o Francisco não se sentia bem nas roupas que lhe
arranjaram para a ocasião solene. O sapato o apertava e a gravata o
sufocava. Depois que a cidade o deixava assustado e nervoso com tantos
carros e movimento.
A rua da Sé lhe parecia um formigueiro humano e a praça velha uma
verdadeira babel. O Pior foi ver a Susana de repente a sair de uma loja,
muito bem vestida á senhora da cidade de braço dado com o marido que
já era doutor desde que voltara de Coimbra. A visão o aterrara e lhe
tirara o sossego e nem toda a boa vontade do Antônio ou a bonomia do
Manuel o demoveram. Ele não quis saber de assinar nada sem pensar
bem antes.
— Mas já pensara por mais de três meses!... — reclamou o Antônio.
[42]
Afinal de contas, quanto tempo é que se ia perder nisso? Não se podia
ficar adiando eternamente o assunto pois tinha necessidade de andar
com o negócio. O tempo das festas já se fora e havia que colocar o
dinheiro a render pois não há felicidade que não acabe e fortuna que não
se esgote.
Novamente a indecisão do Francisco e sua falta de iniciativa
trabalhou contra ele. Parecia que a tal sorte que quando sorri traz
alegria a qualquer um, só podia azedar o humor do Francisco. O Pai
desesperou, a mãe redobrou os rosários e as missas, o padre Bento
gastou mais um bocado do seu latim e o “Brasileiro” esperou mais um
tempo. Sempre que arguiam o Francisco se o negócio se fazia ou não
respondia invariavelmente:
— Vai-se fazendo ...
Os anos se passaram. O Antônio Brasileiro lá se arranjou com um
proprietário de terras da Agualva e o negócio até lhe ia bem. Produzia
queijo de cabra e outras coisas e fornecia aos laticínios de Angra. O
Manuel da Burra morrera, que Deus o tenha; não suportou por mais de
2 dias depois que o touro do Constantino lhe dera uma valente marrada
na preparação da tourada das Lajes. A Maria o chorou a valer e passou a
usar luto completo que havia de envergar até a morte. E o Francisco
mantinha a vida quieta e sumida de sempre sem que nada parecesse o
tirar daquela quase sonolência.
A pobre mãe vendo os anos se chegarem e pensando no futuro lá
resolveu tornar a atazinar o filho a ver se desta a coisa ia, pois já não lhe
devia restar muito tempo. Numa tarde fria de Outono com a chuva
caindo impiedosa e o vento soprando por entre as frestas da janela,
esperou o Francisco com uma sopa bem quentinha e o pão de milho que
ele tanto gostava barrado em manteiga suculenta. Quando o moço
parecia estar se satisfazendo encheu-lhe de novo o prato do líquido
espesso e revitalizante e começou:
— Ó filho, tens que pensar na vida.
O Francisco levantou os olhos lentamente da sopa e perscrutou a face
da mãe à procura de sinais do que ela tinha preparado para aquela
conversa. Não via nada que o ajudasse e tornou a baixar a cabeça para o
[43]
prato.
— Teu pai, que Deus o receba, já aí não está para nos valer. E eu não
posso durar para sempre filho. Estou a ficar velha e cansada.
O filho suspirou como que a mostrar que não estava para discussões
no fim de um dia de trabalho que fora bastante dificultado pelo tempo
agreste.
— Tu tens vivido tua vida sossegado e não tens me dado desgostos
de mais, que Deus te pague.
Mas o teu feitio também não tem dado para mais. À esta altura eu já
devia ter 3 ou 4 pequenos a pular à minha volta e cá estou sozinha nesta
casa que mais parece um sepulcro. Já não te posso sofrer assim tão
apagadinho e mudo. Ainda estás em tempo de fazeres pela vida. Olha
que sabia bem ter netos antes de ir desta para melhor. Mas é preciso
que te decidas a dar o passo e deixar de seres tão teimoso.
Francisco não lhe respondeu. Ele nunca respondia. Ouvia sempre
calado e escusava de dar trela ás conjecturas da mãe. Aprendera depois
de tantos anos que se ficasse bem quieto a velhota se havia de cansar e
parar de o apoquentar. Era o único jeito. Mas Maria continuava.
— Tenho estado a tentar ajudar-te que só quero o teu melhor filho.
Então uma mulher não há de lutar pelos filhos? Olha a Berta, viúva do
Fernandinho, é boa rapariga. Já lhe acabou o luto maior e pode casar. É
trabalhadora e asseada e traz o seu pequeno sempre tão limpinho que
dá gosto. Mas vive com dificuldade. É uma cruz. Tu bem que podias
amanhar-te com ela e todos ficavam felizes. O padre Bento já me disse
que via esse arranjo com bons olhos. Tu já não podes pensar em
raparigas novas, mas a Berta vinha mesmo a calhar. Não me dizes nada?
A Mulher desta vez estava irritada. Desde que perdera o seu Manuel
que andava desensofrida. Aquilo nem era vida nem nada. Para ouvir
uma voz tinha que ser ela a falar, pois a voz do filho só a ouviam as vacas.
As vezes até achava que o rapaz já perdera a faculdade da fala ou
esquecera como pronunciar as palavras. Mas o Francisco não parecia se
enternecer com os arroubos da mãe.
Então, perdera a Susana que era uma flor de estufa e ia agora
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amarrar-se á Berta que coitada já vira melhores dias? Não estava tudo
tão bem assim, sem mudanças bruscas, sem confusões? Agora queria ele
lá um filho de outro para criar? Crianças gritam e choram e sujam tudo.
Não lhe parecia bom arranjo e quando a mãe desesperada lhe perguntou
se não lhe ajudava a fazer a vida melhor, respondeu lacônica e
silenciosamente:
— Há de se ir fazendo ...
Mas dois anos se passaram, e no tempo se armar o presépio a Maria
adoeceu. Não parecia coisa de monta mas já não se levantou, e mesmo o
Francisco tendo vendido duas vacas para pagar as deslocações do
médico de Angra já não havia o que fazer. Antes que o carnaval chegasse,
já se lhe fazia o funeral e o Francisco só no mundo se afundava em sua
solidão e silêncio.
Nunca deixara de ser trabalhador. Não fora por falta de sorte que
estava só e mal na vida. Tivera tantas oportunidades que desperdiçara
que já tinha a fama e o proveito de ser o indivíduo mais perdulário da
ilha e quase não o viam mais. Deixara de ir á missa. Não andava pelo
povoado, não ia á tasca beber e ás vezes, nos meses de verão, já nem
sequer à casa vinha de noite. Dormia nos campos, metido entre as vacas
e coberto pelo capote que não deixava há anos.
Por falta de alimentação correta e submetido daquele jeito ás
intempéries, acabou por emagrecer. Apesar de rijo e forte e de se gabar
de não ter ficado um dia sequer doente desde o sarampo que tivera aos
8; agora estava mal, com uma tosse que não o largava. A princípio achou
que fosse só uma constipação. Depois atribuiu tudo a uma pancada de
vento que o pegara desprevenido. Mas quando começou a cuspir sangue
lembrou-se do pai e procurou descansar em casa. Foi aí que o padre
Bento o encontrou numa tarde de sábado, consumido de febre e já há 3
dias sem comer. Procurou tratá-lo, mas a coisa já estava avançada
demais... O Francisco morreu antes que o médico pudesse aviar a receita.
Que desperdício!
O velho pároco que o batizara pensava na futilidade daquela vida. Na
constante indecisão do rapaz. Nunca sabia se queria ou não. Nunca se
resolvia a fazer o que era preciso. Recordando o texto sagrado o padre
recitou em voz alta o Eclesiastes: “Quem olha o vento nunca semeará e
quem olha as nuvens nunca segará”. O Francisco fora o exemplo
[45]
consumado disso mesmo e custava ao religioso ver uma vida assim
perdida sem realização ou fruto. E, enquanto pensava nisso chegou ao
cemitério aonde o coveiro cavava a cova do malogrado.
O rapaz estava sentado encostado a uma campa fumando um cigarro
de palha e pareceu ter sido apanhado de surpresa pelo visitante.
— Então? — disse o cura — Essa cova é para se fazer ou que?
O coveiro de sobrolho levantado e tentando um sorriso desdentado
respondeu com gosto:
— Ó Senhor Padre, é para se ir fazendo ...
* * * * * * * * * * *
Conto baseado em Eclesiastes 11:4 e 5.
[46]
Saudades do Paraíso (Reflexões de Adão...)
Tenho saudades da Inocência ...Hoje fui até lá. Não sei bem o porquê.
Não disse nada a Eva. Já fazia tanto tempo que não ia...
No princípio passávamos por lá muitas vezes, mas a luz da espada
flamejante nos mantinha distantes e ela chorava. Depois paramos de ir.
Não fazia mais sentido.
Mas hoje fui lá... Está tão mudado... O mato cresceu tanto que há uma
verdadeira floresta onde antes havia só um belo jardim. Logo estará
perdido. Bem, acho que para nós está perdido há muito tempo...
Creio que queria recordar. Lembrar a liberdade, a paz, a inocência, a
comunhão. Tudo parece hoje tão distante que nem me lembro mais
como era. Depois que Abel morreu, ficou ainda mais difícil. O erro de
tudo aquilo parecia pesar ainda sobre nossas cabeças, como se a culpa
no fundo fosse nossa. Não sei se é isso que os pais devem sentir ao ver
os erros dos filhos, mas é o que sentimos.
Então Caim foi embora. Agora raramente ouvimos falar dele. É
verdade que outro dia um filho de seu filho passou por aqui. Estranho,
é homem crescido. Estou ficando velho e cansado e nem sabia.
Tenho saudade! Saudade da força, da vitalidade que tinha com Deus
no jardim. Ele nos perdoou mas as consequências são terríveis e mesmo
o perdão não as pode apagar.
Os sacrifícios aliviam, a esperança traz algum consolo, mas a
comunhão nunca mais será a mesma e meu coração parece não ter
parado de murchar desde aquele dia fatídico. Maldito dia, terrível dia.
Tanto engano e mentira!
A serpente ainda vai aparecendo de vez em quando. Já não fala, mas
o veneno está lá. Tenho matado algumas, mas parecem renascer com
facilidade e sua malícia não diminuiu nada com o tempo. Como fomos
enganados!
"Conhecereis a verdade", disse ela. Sim, mas não explicou como
iríamos lidar com ela. "Sabereis a diferença entre o bem e o mal", sim, mas
quem disse que teríamos a força para escolher o certo? Sereis como
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Deus! Ah! Como se isso fosse possível ...como se isso fosse desejável...
Quanto mais o tempo passa, mais parece grande a tolice daquele dia,
mais parece incrível que tenhamos caído tão facilmente. Mas, a verdade
é que caímos. E o peso dessa escolha vai manchar meu nome por toda a
eternidade. Multidões de gerações me amaldiçoarão ao saber como fui
enganado. Ninguém estava tão habilitado a resistir... e é isso o que mais
me dói. Ter caído sem necessidade. Ter caído podendo ter ficado de pé.
Tenho saudades da inocência, do riso alegre e sem malícia que enchia
o rosto de minha mulher, dos sonhos tão doces à noite, do trabalho tão
recompensador, da natureza tão amiga. Saudades da sensação de pureza
e santidade que me enchia cada vez que o Criador vinha nos visitar.
Aqueles momentos eram tão plenos. Sua presença era a razão de toda a
existência, o motivo da vida, a causa de nos sentirmos desfalecer com
sua ausência. Não se pode mesmo viver sem a Sua presença.
Simplesmente tudo deixa de fazer sentido.
A chama se apagou e não encontro maneira de acendê-la
novamente. O céu parece sempre escuro e fechado. Não creio que o
Criador tenha deixado de nos amar. Posso ver seu cuidado de muitas
formas. No entanto, a relação não pode ser a mesma. Quebrei sua
confiança, que fora total. Falhei no único ponto em que Ele me pôs à
prova. Dei um voto de desconfiança em sua provisão, logo naquilo em
que sua prodigalidade fora tão evidente.
Sinto saudade da harmonia, da paz! Agora parece que não passa um
dia sem que eu discuta com Eva ou um de meus filhos ou netos. É que
com o conhecimento do bem e do mal nos veio uma incrível,
incontrolável e permanente vontade de julgar os outros. Julgar o que
fazem e o que não fazem. Dizer se é bom ou mal. Mas nossos
julgamentos falham justamente por falta de conhecimento. Sim, nosso
conhecimento é tão limitado! Conhecemos pouco dos outros, de suas
razões e motivos. Conhecemos pouco de nós mesmos, de nossas
verdadeiras razões e motivos para julgar. Conhecemos pouco sobre o
próprio ato de julgar e por isso os julgamentos falhos nos levam a tantos
conflitos e injustiças.
Sinto saudade da liberdade! E é tão estranho. Lá no jardim havia
limites que Deus colocara. Mas eu me sentia tão seguro, tão confortável,
tão protegido! Foi só quando saímos dos limites e aparentemente
podíamos fazer o que desejássemos com nossas vidas é que notei que a
[48]
liberdade se fora. Compramos uma ilusão, um engano e pensávamos que
estávamos nos libertando, quando na verdade estávamos entrando
direto numa escravidão que parece não ter saída.
Como sinto saudade do sono bem dormido do jardim! Da sensação
de plenitude e satisfação. Esta vida que ganhamos não consegue trazer
isso. Durmo sempre preocupado com o dia de amanhã. Sob o peso das
necessidades da família. A responsabilidade de ser o que todos esperam
que eu seja: O líder, o chefe, aquele que sabe. E no entanto, acho que
todos já perceberam que, por trás de meus olhos murchos e barba
branca, eu sei tanto quanto eles. Que estou tão perdido quanto eles. Tão
arrependido e só quanto qualquer outro. Insatisfeito e cansado...
No jardim não sentíamos dor e não sabíamos o que era solidão. A
presença do Criador era tão completa e constante que enchia o dia e a
noite como um doce perfume que sentimos sempre no ar, mesmo sem
saber de onde vem. Mas o perfume se foi... Descobrimos que é possível
alguém sentir-se só. É possível se ter medo. É possível morrer!
Coisa estranha a morte. Não deveria trazer tanto medo, mas chego à
conclusão que ela é tão terrível porque é contrária à nossa
natureza. Fomos criados pela Fonte da Vida para termos vida. A morte
é tudo que a vida não é. Fria, vazia, sem razão, quebrando a
continuidade, separando, rasgando, silenciando de uma vez. Sei que vou
morrer! Não sei quando nem como, mas isso talvez não seja tão
importante quanto saber para quê. Sim, para que morrer? Por que
motivo? Para onde? E é isso que mais me assusta.
Sinto saudade da inocência, da justificação! De poder estar em pé
diante de Deus sem vergonha ou receio. De sentir-me digno, puro,
perfeito. Resta hoje só o sonho, a esperança. O eco daquelas palavras:
“esmagará a cabeça da serpente”. E é esse sonho distante, que nem
entendo bem, que me faz caminhar e olhar adiante com alguma
expectativa. Cada criança que nasce me traz a pergunta: Será este? Cada
dia que passa me traz a certeza: estamos mais perto dele. E pelo dia da
redenção anseio, por ele vivo, creio que por ele morrerei. Nesse dia
viverei novamente e então, só então, deixarei de sentir saudades do
Paraíso.
* * * * * * * * * * *
Baseado em Gênesis 3.
[49]
A SERPENTE DE BRONZE
Milca acordou cedo como fazia todos os dias. Eram as
responsabilidades da mãe da família. Seu marido ainda dormia e os
filhos demorariam algum tempo até despertar. Ela cingiu-se e tomou um
cesto feito de vime bem largo, mas pouco fundo. Era a medida exata para
a alimentação da família durante um dia normal de semana. Com gestos
mecânicos, produto do automatismo do hábito diário, ela saiu da tenda.
Estava ainda clareando no gigantesco arraial de Israel. Milhares de
tendas com milhões de ocupantes no meio do deserto, no caminho do
mar vermelho. Estavam nos limites da região de Edom. Tinham deixado
para trás o monte Hor aonde Arão morrera e fora enterrado por ordem
de Deus.
A tenda de Milca ficava a meio do arraial da tribo de Dã no extremo
nordeste do acampamento de Israel segundo a disposição das tribos que
Moisés ordenara por orientação divina. A mulher aproximou-se de outra
tenda e chamou com voz baixa:
— Lia esperou pouco tempo e outra mulher surgiu do interior desta
tenda com um largo sorriso nos lábios e olhar brilhante.
— A Paz seja contigo — saudou a recém chegada.
— E contigo seja a paz — retribuiu Milca.
Ela e Lia eram companheiras e amigas desde a infância. Criadas no
Egito ainda lembravam-se da terra do cativeiro. Casaram-se no deserto
quase no mesmo dia e já embalavam os netos apesar de terem pouco
mais de 40 anos. A amizade era algo tão natural que já não sabiam viver
sem a outra ali ao lado, na tenda vizinha.
Todos os dias iam juntas buscar o maná que Deus dava para a
alimentação do povo no deserto. Era uma tarefa rotineira que permitia
iniciar o dia com uma boa conversa. As duas seguiram em direção ao
alimento por entre outras tendas armadas na vizinhança trocando
pequenas informações pouco importantes da vida das respectivas
famílias.
A região era árida e pedregosa. Um vento quente e seco soprava
[50]
quase continuamente de leste e trazia com ele um cansaço fora do
normal. A respiração parecia mais difícil neste clima inóspito e baixo
desse calor opressivo. Mas a verdade é que já não se lembravam de
quando não estavam no deserto caminhando de um lado para outro.
Fora do arraial pararam. Lá estava o pão do céu como todos os dias.
Uma camada de farinha amarelada, quase dourada, fina e fácil de
recolher que cobria a região de forma milagrosa todas as manhãs sem
falha. Cada família devia tomar o suficiente para o dia sob pena de
perder o excedente que se estragava no dia seguinte. A única exceção
era a sexta-feira. No Sábado não havia maná, mas a dose dupla recolhida
na Sexta não se deteriorava. Tudo isso, prova tão inequívoca do cuidado
divino, parecia Ter perdido sua importância para o povo. Á força de ver
o milagre se repetir semanas e meses a fio o tornavam banal e até
cansativo.
— De vez em quando não tens vontade de comer uma coisa
diferente? — perguntou Milca parando de colher por um instante.
— Como assim? — estranhou Lia.
— Comer comida de verdade. Comer algo fresco, bem suculento.
Ainda não esqueci as frutas que tínhamos no Egito. A carne gostosa que
é tão rara aqui no deserto. A água em abundância, o pão e os bolos dos
padeiros egípcios. Estou farta de maná. São a mesma coisa todos os dias.
— Mas que mais poderíamos pedir no deserto? Esta é uma prova do
cuidado de Deus. Nunca nos faltou alimento. Não devemos desprezar um
milagre assim. Lembra só da quantidade de gente que se alimenta disto
todos os dias.
— Sim... Todos os dias, e sempre o mesmo. E porque é que não saímos
deste maldito deserto? Já vão mais de 30 anos andando aqui de um lado
para outro. Às vezes acho que Moisés não sabe o que fazer. Não sabe
para onde vai.
— Não podes dizer isso. — reclamou Lia séria — Ele é o profeta de
Deus. Além disso, é o Senhor que nos guia através da nuvem e da coluna
de fogo. Não é Moisés que escolhe o caminho.
— Pois Deus poderia Ter algo melhor a nos dar. Afinal é Deus só no
[51]
deserto?
— Milca! Não fale assim! Já te esqueces-te de como o Senhor nos tirou
do Egito? Ainda há poucas semanas não fomos vitoriosos sobre o Rei
Arade dos cananeus? Não tomamos suas cidades?
— E porque não ficamos nelas? Não eram melhores que o deserto?
— A isso não posso responder, mas a verdade é que o Senhor sempre
nos protegeu e nos guiou bem. Não é agora que vou começar a duvidar
dele.
— Pois eu não sou tão passiva como tu. Não vou ficar o resto da
minha vida neste deserto. Já viste que quase toda a força adulta que saiu
do Egito morreu neste deserto? Foi para isso que Deus nos tirou da
escravidão?
— Milca, tu sabes a razão — protestou Lia ainda com paciência —
Fomos nós que tivemos falta de fé e deixamos de confiar no Senhor
quando era hora de conquistar Canaã. Foi essa a promessa do Senhor,
que a geração adulta morreria.
— Mas começo a achar que nós também não vamos chegar a viver
em Canaã. E está tão perto!
— Deus tem seu tempo.
Milca calou-se. Gostava tanto de Lia, mas às vezes não se entendiam.
A amiga era tola e ingénua. Acreditava em tudo que Moisés e os levitas
falavam. Afinal, havia que questionar um pouco. Porque eram os
sacerdotes tão especiais? Não eram da família de Moisés? E Levi não era
a sua tribo? Muito conveniente para Ele que ficassem na direção do
povo...
Lia também se manteve quieta. Ficava triste com a rebeldia de Milca.
Era uma mulher trabalhadora e boa mãe, mas parecia não se submeter
à lei de Deus e cumpria tudo mecanicamente. Não conseguia entender o
valor do Senhor de Israel. Estava sempre a murmurar e a se lembrar do
Egito. Alimentava seus ressentimentos constantemente.
A tarefa da recolha de maná acabava. Por todo o deserto à volta do
[52]
acampamento viam-se pessoas recolhendo a sagrada farinha para seus
familiares. As duas mulheres colocaram os cestos na cabeça e partiram
em direção ás suas tendas ainda sem falar. Já perto de casa foi Milca
quem quebrou o silêncio.
— Acho que alguém deveria falar seriamente com Moisés sobre esta
situação. Isto tem que acabar.
Lia preferiu não responder. Já aprendera que não valia a pena
argumentar com Milca, pois o que ela decidia estava decidido e pronto.
As duas se separaram e o dia correu normalmente. Surgiu um boato de
que um grupo de líderes tinha reclamado com Moisés sobre o maná e a
constante permanência no deserto. Não constava que o homem de Deus
tivesse respondido. Manso e sereno como sempre, deixara para Deus a
resposta, pois na verdade era para o Senhor a questão.
E a resposta veio mais depressa do que se poderia prever.
Subitamente, sem que soubessem dizer de onde, começaram a surgir
serpentes abrasadoras cuja picada era extremamente dolorosa. Os
répteis pareciam brotar do nada e não havia lugar seguro. Estavam por
toda a parte. Dentro das tendas. Por baixo das caixas e esteiras, no
interior dos cestos e panelas de barro, no meio da areia, atrás das
pedras. O povo estava totalmente vulnerável.
As estórias de picadas fatais começaram a propagar-se à medida que
crescia o número de pessoas mortas pelo veneno das cobras. O quadro
era tétrico e aterrador. A pessoa era normalmente surpreendida pelas
serpentes e atacada com violência sendo mordida uma ou mais vezes.
Ao fim de dez minutos o local da mordida estava inchado por vezes em
forma de bolha e com perda de sensação. A partir desse local se
espalhava uma dor fina e aguda. A pessoa se mostrava em pânico e por
vezes mesmo histérica. Em menos de meia hora estava corada, tonta ou
até com vertigens e vomitando á medida que a tensão arterial descia.
As vítimas então se queixavam de opressão no peito com dificuldade
de respirar e alguns apresentavam febre. A pele no local da mordida ia
ficando pálida e com mau cheiro indicando necrose. A pessoa ficava
prostrada e começava a sangrar pelo nariz, gengivas e olhos.
Normalmente em menos de duas horas estava já inconsciente e morria
antes de completar três horas.
[53]
Todos os esforços para fazer parar essa evolução eram fúteis e o
número de mortes cresceu em poucos dias junto com o temor das
serpentes incutido no povo por todo o arraial. Constava que apenas na
região da tribo de Levi perto do tabernáculo é que as serpentes não
atacavam.
Alguns homens tentaram organizar grupos de caça aos répteis, mas
os resultados tinham sido muito fracos, pois as cobras pareciam
proliferar mais a cada dia e vários dos caçadores tinham tido a mesma
sorte das vítimas incautas. Em todo o acampamento o clamor era um só,
e o reconhecimento do pecado crescia à medida que aumentavam os
casos de fatalidade entre o povo.
Milca e Lia também sofriam com esta situação. Também elas haviam
visto as serpentes abrasadoras e tinham escapado por pouco de suas
picadas mortais. Não podiam evitar a preocupação e, no entanto nada
restava ao povo senão pedir a misericórdia de Deus.
Era novamente manhã e as duas amigas recolhiam como sempre o
maná cotidiano tão providencial. Nesta manhã, porém, estavam mais
caladas do que habitualmente.
— Ouviste sobre o Abiel? — perguntou Liz a meia voz.
— Quem? O marido da Tamar? — tentou localizar Milca.
— Sim, esse mesmo. — confirmou Lia — Foi picado ontem à tarde.
Dizem que durou ainda menos que os outros.
Milca abanou a cabeça indignada e como sempre reclamou:
— E será que ninguém vai fazer nada a respeito disso? Vão
simplesmente assistir ao povo sendo envenenado e morrendo? Que
espécie de líderes é que temos?
— Mas já fizeram. — respondeu Lia — Não ouvistes?
— Ouvi o que? Sobre o grupo que foi a Moisés?
— Fazer o que?
[54]
— Confessar o pecado do povo e pedir a Ele que intercedesse por nós
a Deus. Afinal foram as nossas murmurações que trouxeram as
serpentes. Foi um castigo para nossa rebeldia e ingratidão para com o
Senhor.
— Lá estas tu outra vez. — reclamou Milca — Mas o que foi que
Moisés respondeu?
— Ele orou a Deus.
— Como sempre...
— E o Senhor respondeu. Será que ninguém te contou?
— Não ouvi nada.
— Bem, o que me disseram ontem à noite é que Deus deu a Moisés a
incumbência de fazer uma serpente semelhante as que andam por aí e
colocá-la sobre uma estaca. Dizem que todo aquele que for mordido por
uma cobra e olhar aquela serpente viverá. Moisés então uma serpente
de bronze e a levantou lá no arraial de Levi perto do tabernáculo.
— Essa é a solução? — disse Milca indignada — Então não havia coisa
melhor a fazer? Porque não nos deu Moisés um remédio fácil que nos
cure dessas malditas mordidas. Porque não nos deu um veneno que
mate as cobras ou armadilhas para as apanharem? Porque não vamos
embora deste deserto horrível onde moram estas cobras? Ou então, já
que Moisés é tão íntimo de Deus, porque não ora simplesmente e pede a
Deus que acabe de uma vez com essas cobras?
Milca parecia enfurecida. Sua rebeldia crescia de dia para dia em vez
de diminuir. O castigo pelo pecado de que ela também era culpada
parecia não Ter lhe trazido qualquer convicção de pecado. Apenas
queria o lado bom da aliança, as bênçãos. Não estava disposta a suportar
a parte da obediência e do compromisso. Esbravejou mais um bocado
sobre o ridículo que lhe parecia ser a solução de Deus por Moisés e então
parou de falar.
— Bem — iniciou Lia com calma — não sei bem porque o Senhor deu
[55]
essa solução a Moisés, mas foi o que ele mandou. Ele é nosso Deus e
devemos obedecê-lo.
— Pois me parece uma solução bem pouco criativa e muito
inconveniente para nós!
— Mas é eficaz segundo dizem. Já esta manhã eu mesma ouvi de
pessoas que foram mordidas e olharam a serpente de bronze e ficaram
curadas.
— Mas teve que se deslocar uma distância enorme até o local da
estaca que está convenientemente dentro do acampamento de Levi.
Para nós são quase cinco quilômetros.
— No entanto, é isso ou a morte!
— Não sei se é tão simples assim. Duvidas de Deus?
— Talvez de Moisés e seus artifícios.
— Ele sempre nos guiou bem...
Milca calou-se. Mais uma vez preferia ficar com sua opinião e deixar
a amiga piedosa pensar o que quisesse. Ela é que não queria ouvir falar
de andar até o tabernáculo por causa de uma mordida. Aliás, ela era
cuidadosa e não seria picada. Não tinha nada a ver com a ralé do povo
que mais precisava mesmo era de um corretivo.
A tarde chegou e o sol declinou trazendo o início da noite. Lia foi
preparar a refeição noturna e assim que acendeu o fogo uma pequena
serpente pulou das chamas e a mordeu na mão. Ela gritou de dor e
abafou a mão com um pano enquanto via a cobra fugir por baixo da
tenda para fora. Primeiro se desesperou com a dor local e o inchaço.
Colocou a mão na água e tentou esfregá-la, mas a dor crescia e parecia
se espalhar pelo braço até o ombro ardendo muito na axila. Ela estava
sozinha em casa e não hesitou. Tomou um archote e saiu.
Mal saíra encontrou o marido de Milca que a procurava. A amiga
acabara de ser picada e pedia ajuda. Lia mostrou a mão que começava a
inchar visivelmente ao homem horrorizado. Na entrada da tenda de
Milca ela surgiu arrastando a perna e a mancar um pouco.
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Joed Venturini - Contos Reunidos

  • 1. [1]
  • 2. [2]
  • 3. [3] Índice Apresentação .............................................................................................. 04 A Troca .......................................................................................................... 05 O Homem do Comboio ............................................................................ 17 Rui ou “As Aparências Enganam!” ...................................................... 23 O Sábio ........................................................................................................... 28 “É para se ir fazendo...” ............................................................................ 35 Saudades do Paraíso (Reflexões de Adão) ...................................... 46 A Serpente de Bronze .............................................................................. 49 O Puro ............................................................................................................ 59 Nico, o Valentão ......................................................................................... 67 O Sonho de Demba ................................................................................... 75 Sobre o autor .............................................................................................. 93
  • 4. [4] Apresentação O médico, pastor e escritor Joed Venturini disponibilizou, há alguns anos já, boa quantidade de sua produção literária na internet, através de seus blogs. São poemas, crônicas, estudos bíblicos e contos de excelente qualidade que remetem, para além de sua capacidade como escritor, suas vastas experiências de vida e caminhada cristã. Uma dessas ricas experiências é o período em que serviu como missionário no Oeste africano, mais especificamente em Guiné Bissau. Se o escritor colombiano Vargas Vila diz que "um escritor não revela nada em seus livros se não se revela a si mesmo”, é certo que deste mal não padece o pastor Joed: em seus contos, ambientados em três continentes, o autor revela toda a sua mundivivência e dá notícia de sua grande humanidade. A força do ótimo narrador em Joed mostra-se no amálgama entre o singular e o prosaico, no uso desassombrado do tom coloquial e na profusão de histórias e estórias bem urdidas, que transitam do mistério ao humor, do drama ao tragicômico, em relatos sempre com base em alguma lição/passagem bíblica. Outra peculiaridade desta seleta é que aqui contos bíblicos (que utilizam personagens bíblicas como protagonistas) somam-se a outros ambientados em Portugal, Brasil e Guiné Bissau, formando um pitoresco passeio pela lusofonia, redigidos por quem a viveu e vive na pele – algo ao alcance de muito poucos autores. Assim, este e-book surge com a proposta de reunir numa única plataforma os ótimos contos já publicados pelo autor, que encontravam- se disseminados em seus blogs. Como promotores da boa literatura evangélica e sabedores da carência de bons títulos ficcionais em nossa seara, é com grande prazer que apresentamos este livro aos leitores. Sammis Reachers
  • 5. [5] A Troca Um grupo de garotos passou correndo pela frente da porta, enquanto o velho Eurico a fechava para sair. Um deles praticamente esbarrou no ancião, mas Eurico parecia não perceber ou pelo menos não se incomodar. Era parte de sua maneira de reagir ao ambiente. E seu estilo poderia ser considerado perfeito. Fazia já quinze anos que vivia naquela favela e nunca fora assaltado! Ninguém o molestava. Vivia só e sossegado e era respeitado. Saía pouco, pois era aposentado. Ia metodicamente à igreja evangélica mais próxima, mas tirando isso, e as saídas diárias à padaria e semanais ao supermercado, era ali mesmo, nas estreitas ruas da comunidade pobre, que fazia sua vida. O velho era conhecido como uma espécie de operador de milagres. Distribuía compaixão como o orvalho matinal e sua especialidade, se é que se poderia chamar assim, era recuperar jovens desviados. E na sua favela havia muito material de trabalho. O ancião tinha uma estratégia pouco comum. Poderia se dizer que ganhava pela exaustão. Primeiro escolhia, em oração, um jovem que estivesse mesmo muito mal. Em geral eram delinquentes envolvidos com o tráfico de drogas e membros de gangues da favela. Então iniciava uma maratona de jejum e oração por aquele jovem. Quando sentia que tinha suficiente cobertura de oração, “atacava”. De tal forma procurava o seu alvo que às vezes virava sua sombra. Em regra era rejeitado de início, mas ia ganhando terreno até que o jovem acabava ouvindo o homem. Mesmo com meios tão arcaicos à psicologia moderna, o ancião tinha resultados surpreendentes. Podia citar uma lista respeitável de nomes de jovens que tinham deixado uma vida que levaria a uma morte prematura e que tinham sido recuperados ao ponto de se casarem, terem emprego e serem fiéis membros de igreja, e até dois que eram pastores. Mas Eurico não fazia propaganda de seu trabalho. Seria contrário ao seu estilo e personalidade. Além de mais ele considerava seu ministério como uma simples retribuição pelo que ele mesmo recebera. Fora, em tempos idos, um alcoólatra que estragara a vida e desgraçara a família.
  • 6. [6] Teria morrido assim, se não fosse o amor paciente e perseverante de um antigo diácono da igreja onde agora assistia. Essa era sua história. Essa era sua vida. Ultimamente, porém, o homem andava um tanto preocupado e nervoso. O caso que tomara parecia não se resolver como os anteriores. Estava já há meses orando, jejuando e lutando pela vida de Edmilson e parecia não haver nenhuma sensibilidade da parte do rapaz. A cada nova investida de Eurico o jovem se afundava mais em sua vida de pecado. Como chefe de uma facção da gangue, tinha dinheiro e poder sobre outros jovens. Não se importava com nada a não ser usar e abusar de seu poder sobre os assustados moradores da favela. Passear de carro e trocar de namorada eram outros de seus passatempos e, claro, tudo bem regado a chope e cocaína. Eurico não era homem de desistir fácil. Não sentira ainda que fosse tempo de deixar de lutar pela vida e salvação de Edmilson e por isso mais uma vez após uma semana de intensa oração, ele se dirigia até o local aonde sabia que poderia encontrar o rapaz. O jovem não estava em casa. Fora visto indo para o topo do morro, aonde tinham uma casa que servia como uma espécie de prisão para inimigos capturados ou devedores que não pagavam suas remessas de droga. Era ali, no terraço, que costumavam executar aqueles que tinham atravessado o caminho dos líderes do pedaço. Eurico estremecera, mas não de medo. Estava seguro. Temia pelo seu alvo. Era pelo moço que sentia medo. Subiu custosamente o morro, parando várias vezes. A idade já não facilitava. As oitenta primaveras já tinham passado há alguns anos e os músculos não tinham a força de outrora. Perto do local que queria alcançar o ancião foi barrado por dois garotos armados, de uns dezesseis anos. — E aí vovô, aonde é que pensa que vai? — Vim ver o Edmilson — Explicou Eurico com toda a naturalidade. — Manero — riu o outro garoto — Ó velho, cê num acha que tá velho demais pra andar cheirando?
  • 7. [7] Eurico baixou a cabeça cansada e levantando-a, fitou o rapaz bem nos olhos, de tal forma que o fez ficar sem jeito. Foi então que o outro notou a Bíblia na mão do velho e reagiu: — Pode passar velho, vai logo! Mais uma vez a superstição local se fazia sentir. Os traficantes, por regra, não se metiam com “crentes” porque diziam que dava azar. As evidências confirmavam. Eurico avançou até a casa. Era um casarão abandonado. Por todo o lado cheirava a dejetos humanos e havia ratos andando em plena luz do dia. Um despacho de macumba bem na entrada terminava de compor o quadro macabro. O ancião não hesitou. Subiu as escadas gastas. Não havia ninguém no 1º andar, nem no 2º. Ao chegar ao terraço já o velho arfava novamente. Parou e viu um jovem negro, alto, de soberbo aspecto, perto de um corpo que jazia no chão em meio a uma poça de sangue. Ao pressentir a presença do homem o jovem apontou a arma com ar furioso e olhos arregalados onde se evidenciavam sinais da última dose de droga. Eurico levantou a Bíblia em sinal de identificação. A arma foi baixada e os olhos do rapaz se encheram de impaciência e aborrecimento. — Cê num me larga velho? Me deixa, pô! Tô cansado de te aturar! Vê se me esquece! — Boa tarde, Edmilson! — o ancião respondeu em tom triste. Um silêncio pesado se seguiu. — Não posso desistir de você, Edmilson. — continuou o ancião — Você está no meu coração. Quero ver você salvo e seguro nos braços de Jesus! O Jovem riu com sarcasmo e balançou a cabeça. — Os braços que eu quero são outros. — gozou ele — Além do que, se você qué rezá aproveita e vê se ajuda esse aqui que precisa mais que eu — riu apontando o cadáver — Eu tenho mais que fazer. Dizendo isso o rapaz passou pelo velho com desdém e o empurrou
  • 8. [8] com violência. Eurico perdeu o equilíbrio e caiu sentado junto ao muro que circundava o terraço e o jovem se foi. O ancião encolheu-se. Estaria errado desta vez? Seria Edmilson um caso realmente perdido? Na verdade o livre arbítrio era de se considerar. Ele não podia forçar a vontade de alguém a quem Deus fizera livre. No entanto o peso da alma do jovem o fazia sofrer e as lágrimas brotavam de seu rosto cansado. Ali ficou com a cabeça apoiada nos joelhos chorando e clamando por uma oportunidade de ser verdadeiramente intercessor, de ficar na brecha por este rapaz. O tempo passou. Eurico não sabia se muito ou pouco. Quando se deu conta havia outra pessoa no terraço e o sol declinava rapidamente no horizonte. A presença dessa pessoa o fez erguer-se um tanto assustado. Limpou as lágrimas do rosto e o nariz que pingava e tentou se recompor. Mas a aproximação da outra pessoa o deixou deveras surpreso. Saída como que de uma espécie de névoa veio ao seu encontro uma velha de aspecto medonho. Curvada e cheia de reumatismo ela parecia não ter sequer um osso que não fosse deformado. Ergueu o rosto para Eurico e o fitou com superioridade. O ancião tremeu sem querer. O rosto da velha era de tal forma enrugado e cheio de espinhas e pontos negros que só o fixá-lo já era penoso. O nariz de proporções significativas era peludo e torto. A boca irregular de lábios secos. Da cabeça quase careca saíam uns poucos fios de cabelo grisalho em total desalinho. A mulher trazia uma roupa toda negra e esfarrapada condizente com seu aspecto físico. Sua presença causava repulsa e medo, tremor e asco ao mesmo tempo. Depois do primeiro susto Eurico tentou se recuperar. Pensou que fosse alguém da família do homem morto que permanecia no extremo do terraço e tentou ser gentil: — Boa tarde, senhora. Veio pelo moço acidentado? — perguntou apontando o cadáver. — Acidentado? — pronunciou a velha com sarcasmo. Sua voz era metálica e grave. Um tanto inesperado. Causava arrepios na medula e parecia penetrar os ossos. Não parecia ser humana.
  • 9. [9] — Acidentado? — repetiu a velha. — Bem — titubeou Eurico sem jeito — eu, na verdade, não sei. Quando cheguei aqui já estava morto. A velha parecia não estar interessada no que ele dizia. Aproximou-se do ancião e o rodeou examinando cada detalhe dele e em especial a Bíblia em sua mão. À sua aproximação Eurico experimentou um fenômeno de todo inusitado. O chão parecia ter se tornado frio. Como se a temperatura à volta da mulher fosse bem mais baixa que o resto do ar. A tal ponto se fez sentir isso que o pobre homem quase tremia de frio e segurava o queixo para que não batesse. A velha tornou a se afastar dele sem palavras como se tivesse perdido o interesse e avançou até o parapeito da varanda examinando as redondezas. Eurico fez enorme esforço para sair de seu estado quase catatônico. — Posso ajudá-la de alguma forma? — perguntou com educação. A velha o mirou de novo com aquele olhar gelado e desdenhou: — Não é você que quero! — respondeu secamente. — Então, quem é? — insistiu o ancião já com seus pressentimentos. A mulher parecia incomodada com a presença e a insistência do homem e pareceu atacá-lo. Voltando-se com rapidez surpreendente o questionou: — Não tem medo de mim? Desta vez foi Eurico que ficou firme e com olhar tranquilo e seguro sorriu e respondeu: — Deveria ter? — A grande maioria dos homens tem… — disse a velha com segurança. — Parece ter muita experiência! — refletiu Eurico.
  • 10. [10] — Alguma... — devolveu a outra com sarcasmo. — E está procurando... — sugeriu o ancião. — Edmilson — declarou a velha de forma seca e voltou a perscrutar a vizinhança. Eurico ficou abalado com a revelação e se aproximou corajosamente da velha apesar de que o frio que ela transmitia ser a última coisa do mundo que queria experimentar de novo. De súbito, sentiu-se cheio de ousadia para lutar pelo jovem que pretendia ver salvo, e pressentia que esta anciã só podia trazer más notícias. Chegou-se com convicção e disparou: — Quem é a senhora? A velha olhou Eurico com um misto de admiração e desprezo e sorriu. Um sorriso que faria gelar o coração do mais corajoso. De sua boca disforme se viam uns poucos dentes amarelo-acastanhados e a risada qual grito de hiena na noite africana parecia vindo de outro mundo. A mulher, olhando o homem no fundo dos olhos, pronunciou calmamente: — Sou a Morte! — Não pode levá-lo! — foi à reação imediata e quase impensada do ancião. A Morte mostrou surpresa, franzindo o sobrolho que logo abriu em novo sorriso desdenhoso. — Você vai me impedir? — Não posso... — reconheceu Eurico — Mas ele não está pronto! — Isso não é problema meu. — deu de ombros a velha — Cumpro minhas obrigações e chegou a hora do rapaz. Se não se preparou para me receber é problema dele. — E meu também. — protestou o homem — Eu assumi a responsabilidade por ele.
  • 11. [11] — Ninguém pode assumir a responsabilidade por outro. — devolveu a Morte — Cada um tem que me enfrentar sozinho e a hora de Edmilson é chegada. — Então, me leve a mim. — tentou Eurico já desesperado — Eu posso ir já, estou pronto. Não tenho medo de você. Leve-me no lugar dele! Agora o homem parecia pela primeira vez ter conseguido a total atenção de sua interlocutora que o examinava com mais cuidado ainda. A morte aproximou-se novamente e o frio glaciar de ainda a pouco voltou a gelar Eurico de forma desagradável e quase insuportável. Tudo nele clamava por se ver livre dessa sensação, mas ficou quieto, em seu interior lutando pela alma de seu protegido. A morte percebeu a luta do homem e sua forte resolução e se afastou lentamente. — Tem a certeza do que me propõe? — questionou tentando verificar a certeza do homem. — Sim! — afirmou Eurico com total convicção. — E porque faz isso? — quis saber a morte. — Pela salvação dele. — explicou o ancião — Ele não está pronto para ir. Precisa de mais tempo. O amor de Deus há de vencer em sua vida, mas precisa de mais tempo. — E é esse tempo que você quer comprar para ele? — sugeriu a velha rindo. — Se for possível… — clamou ele. — Possível é… — disse ela — Não seria a primeira vez. Tem-se feito muitas vezes e creio que ainda se farão muitas mais. — E ele terá tempo suficiente? — quis saber o homem ansioso. — Isso não pode saber. Só o Todo Poderoso sabe essas coisas. Pode ser que sim. Pode ser que não. Acha que vale a pena mesmo assim? Morrer sem ter a certeza? Pode ser em vão… — tentou a morte matreira.
  • 12. [12] — O amor nunca é em vão! - sentenciou Eurico — Estou disposto a dar a Edmilson mais uma oportunidade, nem que seja a última! A morte balançou a cabeça e chegou-se ao fim do terraço aonde se via toda a favela. Suspirou com ar cansado e olhou mais uma vez com seus pequeninos olhos negros o homem que a observava em suspense. — Tanto trabalho a fazer... Voltarei por você... Amanhã! Antes que Eurico pudesse dizer qualquer coisa uma névoa vinda não se sabe de onde encobriu a velha e a sua figura fantasmagórica desapareceu. O homem ficou muito tempo ali em pé sem saber bem o que se passara com ele. Fora sonho? Fora visão? Fora real? Como saber a verdade? O ancião sentia-se confuso. Seria genuíno que ele negociara com a morte e se oferecera para ir ao lugar de Edmilson? Isso seria possível? Seria aceito? No dia seguinte seria a sua vez? Estaria realmente tão preparado como se julgava? Com esses pensamentos na cabeça ele deixou o local e à medida que descia do morro notava toda a agitação típica do fim de dia, mas algo mais do que era normal. Finalmente um jovem o informou. A polícia havia estado no morro durante a tarde. Tinha havido troca de tiros e Edmilson fora baleado. Estava no hospital. Eurico estremeceu. Tinha que verificar. Sentia-se cansado. Na verdade exausto, mas não teria paz sem confirmar o que sucedera. Questionou sobre o hospital em que o jovem estaria internado e foi até lá, chegando já noite cerrada. Procurou o médico que atendera Edmilson. O clínico sentou com o ancião e parecia confuso. — Foi algo muito estranho. — disse o médico — O rapaz foi baleado três vezes no abdômen, na região do fígado. Chegou aqui com hemorragia interna incontrolável. Não havia nada que pudéssemos fazer. Nem se o tivéssemos recebido logo após os tiros. Mas tinham passado mais de duas horas! Ele estava à morte! O pulso estava indo e todos nos preparávamos para deixá-lo cadáver quando, de repente, o sangue parou. O cara se recuperou bem ali, à nossa frente. Olha, se eu não tivesse visto, não acreditaria. Se é que existe essa coisa de milagre, este foi um!
  • 13. [13] Eurico ouviu tudo com lágrimas nos olhos e sentindo que, afinal, tudo o que vivera fora verdade. Cheio de convicção e certeza conseguiu autorização e chegou à cabeceira do moço por quem se dispusera a morrer. O jovem orgulhoso e cheio de antipatia que ele vira no começo do dia já não estava ali. Edmilson tinha um ar assustado de garoto pobre que era o verdadeiro estado de sua alma. Olhou Eurico com vergonha e uma pitada de esperança. Tremia ao lhe contar. — Foi uma emboscada. O meu pessoal me traiu. O desgraçado do Mendes queria a minha posição. Miserável! Vai pagar caro! — dizia com o rosto se contorcendo de dor e raiva. — Ainda odiando? — interrompeu Eurico — Isso não te trouxe nada de bom. O moço parou de falar e o olhou triste. Desta vez parecia reconhecer a verdade nas palavras do velho. — Eu vi a morte! — disse então tremendo — E era horrível! — Eu sei. — balançou a cabeça o ancião — Mas não precisa ter medo dela agora. Você vai viver. Mas o quanto e como vai depender de onde você vai colocar o coração. Na entrada do quarto uma enfermeira fez sinal ao ancião que era hora de se retirar. Edmilson segurou o braço dele com angústia. Em seus olhos ele via agora todo o vazio de seu coração, toda a busca de sua alma. — O que é que eu faço? — perguntou com voz embargada. Eurico o olhou com carinho. Colocou sua Bíblia na cabeceira. Era a sua velha Bíblia. Companheira de tantos anos. Ganhara aquele livro do homem que o levara a Cristo. Era seu mais precioso tesouro. Mas sentia que agora o rapaz precisava mais dela do que ele. Sorriu de leve e acrescentou: — Comece lendo o livro onde está marcado. Depois, quando sair daqui procure o pastor João da igreja lá da favela. Ele saberá te ajudar. Não desperdice seu tempo, meu filho! A vida é curta! Você não sabe o que vem amanhã.
  • 14. [14] — Você virá me visitar? — quis saber o moço. — Não sei. — respondeu o velho com o olhar perdido — Tenho amanhã um compromisso muito importante. Logo você saberá. Com uma breve oração ele se despediu do moço e saiu. Trazia o coração em paz. Sentia que aquele jovem estava a caminho da recuperação. Seria difícil o caminho e muito espinhoso. As tentações seriam múltiplas e a luta tremenda. Mas ele queria acreditar. Era tudo que precisava. Fizera a sua parte. Talvez até demais. E com esse pensamento enchendo sua mente chegou a casa finalmente e dormiu um sono pesado, sem sobressaltos, cheio de paz. No dia seguinte, levantou-se à hora habitual. Fez tudo como em qualquer outro dia. Por que seria diferente? Foi o que pensou. O dia inteiro, porém, esperava sentir aquela presença gelada que o envolvera no dia anterior e que certamente o viria buscar. Mas nada aconteceu de manhã e à tarde ia já avançada quando se sentou em seu sofá de leitura e adormeceu com um velho livro de poesia no colo. Acordou com uma sensação estranha e imediatamente sentiu que não estava só. Um arrepio percorreu sua espinha, mas recuperou depressa e levantando-se deu de cara com uma moça que, sentada à mesa da sala, preparava um chá. Era jovem e extremamente bela. Alta e esbelta, de feições finas, rosto pequeno emoldurado por abundante cabelo castanho claro, olhos enormes de um verde enigmático, lábios bem desenhados e um queixo artístico. Era branca, muito branca e dela parecia emanar um perfume doce inebriante que o ancião sentiu ser delicioso demais. Eurico sorriu diante de tal visão e limpando a garganta, se desculpou: — Peço desculpa não a vi entrar, estava lendo e creio que cochilei. — Não tem problema, eu tenho tempo. — ela respondeu numa voz maviosa e musical. E as palavras foram acompanhadas de um sorriso que trazia a beleza sombria de uma noite de luar. Eurico não pode evitar um novo arrepio, mas não sabia como reagir.
  • 15. [15] — Em que posso servi-la? — quis saber, sempre educado. — Temos encontro marcado. — lembrou a moça com certo ar de surpresa no rosto — Certamente não esqueceu! O ancião recuou um passo e parou. Estava confuso e admirado. Balançou a cabeça e fixou melhor o olhar. — Tenho encontro marcado com a... — não foi capaz de dizê-lo. — Comigo! — completou a moça. — Não pode ser! — continuou estranhando o velho. — Porque não? — insistiu ela. — Não foi você que vi ontem! — Ah! — riu ela e se aproximou estendendo a xícara de chá fumegante e cheiroso. À sua aproximação ele sentiu o frio que lhe percorrera o corpo no dia anterior. Mas este não era o mesmo tipo de frio. Não gelava. Não fazia tremer. Era mais um tipo refrescante, qual brisa gostosa em tarde abafada. A moça fez sinal e ele tornou a sentar-se no sofá. Ela foi postar-se não muito longe, bem em frente a ele. — Na verdade foi comigo que falou ontem. — continuou a morte — Mas ontem você me viu como Edmilson me veria. Ontem eu era a morte aos olhos dele. Hoje estou diferente, ou talvez não. Na verdade não mudo. O que muda é a maneira como as pessoas me veem. Eurico abanou a cabeça. Fazia sentido. Era mesmo bastante lógico. Sorriu. Não podia evitá-lo. Como temer uma morte com esta cara? — Está preparado? — Sim! — disse prontamente o homem sem hesitar — E Edmilson?
  • 16. [16] — Terá sua oportunidade. — E será suficiente? - insistiu ele. — Só o Todo Poderoso sabe! — decretou ela — Tome seu chá. Você já fez sua parte. Novo sorriso encheu o ar de parte a parte. Ele bebeu o chá e encostou a cabeça na poltrona. Fechou os olhos sentido o perfume que enchia o ar. Logo estava dormindo. No outro dia de manhã corria a notícia na favela. O velho Eurico morrera na tarde anterior enquanto dormia e o barbeiro que costumava cortar-lhe o cabelo comentava: — Isso é que é uma Bela Morte! * * * * * * * * * * * Baseado em João 15:13: “Ninguém tem maior amor do que este: de dar alguém a própria vida em favor de seus amigos."
  • 17. [17] O Homem do Comboio1 Muito se tem escrito sobre os heróis da História. Ponto comum nessas narrativas é o realçar da coragem, da ousadia, da iniciativa desses homens e mulheres cujos feitos ficaram para as gerações posteriores como marco de valentia. E, no entanto, a maioria dos descendentes de Adão é caracterizada pela falta de ousadia. Milhões em todo o mundo vivem vidas pacatas, sem nunca dar um passo que obrigue a Ter coragem ou fazer um ato que indique bravura. A falta de ousadia e de iniciativa parece contagiosa. Qual doença. Muitos se abrigarão sob o escudo da prudência lembrando que o “seguro morreu de velho”. E se é verdade que assim foi, também é notória que não lhe conhecemos o nome e para além do fato de que viveu até idade avançada não sabemos que tipo de realizações, se alguma sequer, chegou a alcançar. É caso para perguntar, será que o tal Senhor seguro chegou mesmo a viver na plena acepção da palavra? Faltando-nos arte para melhor defender a necessidade de ousadia na vida deixamos uma singela estória que talvez ajude a meditar nessa questão. Havia um homem. Um homem já maduro e avançado em anos. Ele morava do lado de uma passagem de nível de movimentada linha ferroviária lá para os lados de Santarém, Portugal. Vamos chamá-lo de João, que é um nome tão bom quanto outro qualquer. Era de estatura mediana, entroncado, músculos bem desenvolvidos por anos de labor manual, mas um pouco flácidos pelo chegar da idade. Rosto moreno, tostado de sol, com as rugas exageradas denunciando mais idade do que realmente tinha. Testa alta, serena, cabelos abundantes, bem aparados, já bastante grisalhos nas têmporas, bigode farto e bem cuidado. Os olhos de um negro límpido cheios de expressão, lábios grossos, mas de pouco falar, queixo quadrangular, masculino, mãos enormes, rudes, calejadas, fortes. O Sr. João vestia invariavelmente calças pretas de lã por cima das ceroulas, camisa branca abotoada até o colarinho, colete do mesmo tecido e cor das calças e um paletó de tom cinza escuro um bocado gasto, sobretudo nos cotovelos, mas sempre asseado. Um boné de lã de tecido 1 Em Portugal, comboio é como são chamados os trens. (N.E.)
  • 18. [18] quadriculado em tons de bege e castanho terminava de compor o visual com botas alentejanas de cano alto e biqueiro larga. O homem vivia sozinho. Tivera família no passado. Mulher e filhos. Mas, ou por infortúnio de doença, ou por desgraça de acidente, ou por mero acaso da sorte, estava agora só e isolado na sua pequena casa junto à passagem de nível. A casinha, em cuja frente se via apenas a porta e duas janelas em cada lado desta, estava cuidadosamente caiada e um jardim diminuto, mas belo, se podia ver à entrada. Era em frente a esse jardim que o homem se sentava diariamente a ver passar o comboio. Ali nascera, crescera e se casara. Ali morava ainda, e ali esperava morrer. Nunca fora além da cidade de Santarém, ali perto onde o levavam as obrigações do negócio para vender o fruto da terra e já nem isso fazia nesses últimos anos em que já só trabalhava para o sustento próprio e comprava o que precisava na vendinha do mestre Tonho ali logo ao lado. Dias e dias, tardes e tardes ele assistia à passagem das locomotivas por sua casa. Ao cruzarem aquela passagem elas diminuíam bastante a velocidade. O homem podia ver o interior das carruagens, os rostos das pessoas, as cores das roupas, os semblantes mais ou menos pesados. Admirava a beleza dos estofados da primeira classe, a macieza dos bancos da Segunda classe e a alegria do povo da terceira. Enlevava-se com o brilho dos metais novos nos carros que faziam transporte de passageiros e se entusiasmava com a quantidade de material que podia ser levado pelos enormes e quase intermináveis comboios de carga. Conhecia já a maioria dos maquinistas. Não de nome, só de rosto. E estes também o conheciam e cumprimentavam já com o boné nas mãos e um sorriso amigável ante a aparente onipresença do homem junto à linha férrea. De tal maneira o Sr. João conhecia os trens que a ele lhe perguntavam horários e destinos e ele a todos respondia com exatidão matemática, acrescentando o andamento do dia e um possível atraso ou antecipação. Era para a maioria, o Ti João do Comboio, embora nunca, em toda a sua vida, tivesse embarcado num. O melhor amigo de Sr. João era tal Manuel da Várzea, porque sua casa ficava num terreno baixo próximo ao Tejo e um tanto sujeita a inundações. Os dois se entretiam muitas tardes em jogos de cartas infindáveis em meio a conversas banais e a observação do movimento dos trens. A mesa pequenina colocada no jardim do Sr. João, cada qual
  • 19. [19] sentado sobre um tosco banquinho de madeira, dois copos pequenos e uma garrafa de licor ou vinho compunham o quadro já conhecido na vizinhança. — Olá Ti João, Olá Senhor Manuel — dizia uma moça que passava. — Olá rapariga — retribuiu o Manuel. — Olá Margarida — devolvia atencioso o Sr. João tirando o boné. — Então, a jogar? — brincava ela. — É para matar o tempo — desculpava-se o Manuel. O João só encolhia os ombros. — Então Ti João o comboio do Porto, a que horas chega? — perguntou ela. — Olha filha — informava o homem do comboio — deve aí estar a qualquer momento, pois o horário dele é 17h25min e já são 17h15min e como o de Coimbra passou hoje a modos que quinze minutos adiantado o teu deve estar mesmo aí. — Obrigado Ti João, tenho que ir a correr — despediu-se ela. Os dois observaram a bela trigueira que se afastava apressada e sorriam quase imperceptivelmente. Passados mais uns minutos o Manuel comentava: — Deve estar à espera do rapaz do Vieira. Parece que estão prometidos ou o que é. Acho que agora se fala namorado. O João encolheu os ombros. — Tempos novos — continuava o Manuel — que na nossa época uma rapariga não ia a correr esperar-nos a lado nenhum e nem nós vínhamos da cidade em comboios de primeira. O João levantou o sobrolho e encolheu os ombros.
  • 20. [20] — Que rica vida leva o rapaz. — falava ainda o Manuel — Sempre daqui para lá, de lá para cá nesses comboios. Isso é que é passear! O Ti João sempre havia de querer saber o que é que há depois do Porto. O João não respondeu. Sua mente vagava com o comboio que pouco depois apitava e passava majestoso e imponente estremecendo a cancela. O maquinista fez sinal ao Sr. João que lhe retribuiu e suspirou. O que estaria no fim da linha? Quantas noites ela já sonhara com isso? Quantos dias ele levara a pensar nisso? Por vezes, imaginava cidades cheias de luz, com ruas movimentadas, vitrines repletas de coisas caras e supérfluas, mas bonitas e coloridas. Cafés, bares, restaurantes, carros, transportes públicos e uma enorme confusão de gente de raças e cores diferentes com línguas estranhas e incompreensíveis. Como seria ver a cidade grande? Sentir aquele calor, aquele reboliço na azáfama da metrópole que não pode parar. Outras vezes o homem pensava em paisagens belas e distantes, em pastos verdejantes, colinas cobertas de árvores de frutas, montanhas e rios, lagos e represas e o mar. Sim o mar de que lera e ouvira falar e até o vira uma vez na televisão da dona Joaquina. Como seria ver o mar? Dizem que é como um rio, mas não tem fim, ou os olhos não lhe vem o fim. Que mistério isso, seria verdade? Que paisagens e que contrastes esta linha de trem continha? Ela podia levar um homem a um mundo novo e quem sabe a uma nova vida. E a voz monótona do Manuel o acordava de suas divagações. — Então eu já contei ao compadre aquela passada do Tonico da Praça no outro dia? Pois olha que foi dos diabos, o rapaz ia partindo tudo lá na feira do sitio por vias de um negócio mal feito por um cigano! Sim, ele já conhecia a história. O Manuel fizera o favor de contá-la dúzias de vezes, mas a ouviria de novo com o mesmo ar de pachorra das outras vezes e provavelmente comentaria a mesma coisa que em outras ocasiões. Tanto fazia o Manuel não reparava que estava sempre a se repetir, coisas da idade. “E não tardo como ele” pensava o João e suspirava e a mente vagava. Que tipo de pessoas poderia conhecer num comboio? Viajantes inveterados que viajam pelo simples prazer de se deslocarem. Homens de negócio, estudantes em férias, agricultores com arranjos na cidade, padres que vão para novas paróquias, senhoras que visitam a família. E
  • 21. [21] que tipo de amizades se fariam ali? Ou no destino a que chegasse a quem se ligaria sua alma pela força de descerem na mesma paragem? Que emoções estariam reservadas a uma viagem destas? O medo do desconhecido, a alegria do encontro inesperado. A angústia da incerteza, a tristeza da saudade, o esclarecimento do conhecimento adquirido, o enriquecimento do coração, o alargar da visão, o reavivar do Espírito. — E tudo terminou bem — falava ainda o Manuel — que a polícia não estava lá para brincadeiras e fechou os ciganos a sete chaves e quase deu uma medalha ao nosso Tonico que saiu um valente rapaz. — Fez ele muito bem — comentou o João sem pensar no que dizia e suspirou. O jogo acabou e o Manuel se foi, deixando o amigo envolto pela luz exangue do anoitecer. No dia seguinte o Manuel procurou seu parceiro de cartas logo cedo, mas não o achou em casa. Andou pela vila e não o viu pelo que calculou que fora ás terras buscar algo para o almoço. À tarde, porém, o João não estava, como habitualmente, no seu posto de vigia, a controlar a passagem dos comboios. O Manuel começou a se conturbar. Perguntou pelo amigo em toda a redondeza. Não, ninguém vira o Ti João dos comboios... E foi a Dona Maria da Encarnação que desvendou o mistério. Vira o Sr. João na estação de comboios em Santarém a andar de um lado para outro em traje de domingo. Parecia tomado de uma febre! Inicialmente, ela pensou que ele esperava alguém, mas depois o viu encaminhar-se à bilheteria e pedir um bilhete até o fim da linha. Nem sequer se preocupou com o nome da estação final ou o preço da passagem. A mulher, curiosa, ficou a observar e viu com espanto o homem entrar no primeiro comboio que parou e só pode descortinar o seu sorriso de satisfação sentado à janela e falando com uma senhora que seria companheira de viagem. — Ai! Que o diabo do homem perdeu a cabeça! — foi a sentença extemporânea do Sr. Manuel arreliado por perder o parceiro de cartas e de entardecer. E a notícia correu célere. O Ti João, aquele que por mais de vinte anos
  • 22. [22] fora visto a espreitar a passagem dos trens sem nunca entrar num, aquele que sonhara com o destino das locomotivas durante décadas sem sequer chegar próximo da estação, o homem que ficara conhecido por toda a redondeza como o ti João dos comboios, finalmente e inexplicavelmente, embarcara. * * * * * * * * * * * Baseado em Neemias 11:4: "Quem observa o vento nunca semeará e quem olha para as nuvens nunca segará."
  • 23. [23] Rui ou "As Aparências Enganam"! (Conto baseado em história real) — Ninguém fala mal da minha mãe! — gritou o garoto mirando o oponente com raiva nos olhos. — Pois, eu repito o que disse! — reiterou o outro rindo. Maldita e pejorativa, a frase lhe escapuliu dos lábios, qual cuspidela fétida de tuberculose terminal, levantando uma onda de risos e provocações do bando reunido. O menino olhava o inimigo com os olhos injetados de sangue. Era pequeno, talvez dez anos, franzino e branquinho, de cabelo louro como uma espiga de trigo madura e certamente mais fraco que o adversário. Sem medir as consequências de seu ato fútil, carregou sobre o outro cheio de fúria justificada. O grandalhão, bem uns quinze anos, braços de homem acostumado ao trabalho pesado limitou-se a se desviar ligeiramente e aproveitar o embalo do garoto para o projetar sobre o chão de cascalho. A patota riu alto, divertida. As provocações e gargalhadas cresciam de tom à medida que o desastre era mais evidente. Levantando-se a custo, com os braços ralados e ardendo e as calças já rasgadas a criança não se conteve. No seu rosto lia-se um misto de medo, susto, indignação e ódio. Não aceitaria aquela situação enquanto ainda tivesse um pouco de dignidade. Tentou novo assalto. Desta vez foi mais moderado e cuidadoso. O chão de pedrinhas e alcatrão não era nada convidativo. O resultado foi tão mal ou pior do que o anterior. O saldo foi um olho negro e toda a turma o rodeando com insultos. Ele se deixou ficar no chão chorando baixinho, derrotado, humilhado, destruído. Aquela tinha sido a vingança covarde dos que não podiam competir com ele na sala de aula. Desde que chegara ali não se limitara a ser estrangeiro, o “russinho”, o protestante. Era também o melhor aluno em tudo, querido e admirado dos professores, bajulado dos pais, bem visto
  • 24. [24] pelas meninas. Estas coisas se pagam caro aos dez anos. E o carrasco fora bem escolhido! O Rui não era muito alto, mas trabalhava como ajudante de mecânico há vários anos e ganhara músculos de ferro. Era repetente já de fama maior, só por isso ainda circulava entre a criançada. No dia a dia era pacato e calmo, sempre bem disposto e de olhar submisso. Mas o tinham excitado com mentiras e provocado até que servisse de vingador sobre o loirinho. Ele cumprira seu papel sem grande gosto. Até uma ponta de remorso parecia o atacar, mas o coração embrutecido de adolescente que não tivera infância não se deixava tomar de ternura. A única linguagem que conhecia era a da violência. Em casa e na oficina era ele que apanhava. Ali, quem dava as cartas primeiro era ele e se não era grande motivo de orgulho vista a diferença de tamanhos, servia-lhe perfeitamente de compensação. Magoado de corpo e alma o garotinho encetou o caminho de casa. Foi um autêntico calvário com os demais a seguirem–no de perto com os mesmos palavrões e provocações de antes e os risos. O olhar das pessoas que o viam rasgado e podiam ler na sua órbita roxa o desfecho pouco feliz de uma luta infantil era duro de enfrentar. Mas, o pior era o medo da reação paterna e as consequências que daí poderiam advir. Foi longa a estrada... Ele nem reparou na beleza do caminho, no recorte dos campos divididos por muros de pedras artisticamente desenhados, a brancura da cal das casinhas que pareciam mais de bonecas que de gente, o vermelho das telhas portuguesas a contrastar com o azul do céu, o gado gordo e malhado a preto e branco que pintava a paisagem qual postal holandês. O estado de alma não lhe permitia ver nada a não ser as pedras frias da estrada de paralelepípedos antigos e alguns tufos de grama que teimavam em crescer aqui e além por entre as pedras desafiando os carros que passavam por ali sem sequer os notar. Finalmente perdeu o cortejo blasfemador ao chegar à sua rua. Mas isso não lhe aliviara o coração. Restava enfrentar a família e isso ele teria que o fazer sozinho. E ali estava sua casa. O sobrado mal pintado, a loja por baixo e a casa por cima, com vista para o interior. Felizmente, a reação paterna foi bem mais suave do que ele previra. Sua explicação do motivo da briga parecera ter servido de amortecedor ao
  • 25. [25] estado triste em que se apresentava. Nem sequer se mencionou o fato de ter a roupa rasgada e o olho negro. Ficara apenas a promessa do progenitor: — Amanhã estarei à tua espera na saída das aulas para que me mostres quem é esse Rui! Aquilo entrou-lhe na alma como profecia messiânica! Teria afinal vingança, um salvador surgiria do fundo de um carro verde e como no grande e terrível dia do Senhor! Ele espalharia o terror entre as hostes de escarnecedores que o importunavam, e a partir dali reinaria soberano sobre toda a escola e arredores! A noite chegou sem sono, apenas a grande expectativa de ter a honra lavada, do nome limpo e exaltado. O Rui saberia quem ele era e que não estava só no mundo, por mais que se pensasse o contrário. O pai subia- lhe no conceito uns dez degraus. Sua pose masculina e séria afirmando que resolveria o problema, de repente, lhe pareceu ver nele músculos que nunca antes notara com o peito largo de um boxeador, as mãos grandes e apropriadas. Aquele seria um combate desigual, como fora o seu. A sede de vingança tomara conta do garoto e somente de madrugada adormeceu, com sonhos de cargas de cavalaria e massacre de exércitos rivais, com muito sangue e dor, muita dor para o inimigo... As aulas no dia seguinte foram um total desperdício. Como prestar atenção nos professores com a expectativa que o consumia por dentro? Olhava o rosto impávido do Rui, desconhecendo a destruição que o aguardava e isso lhe trazia tamanha satisfação que ria sem querer e procurava evitar tal reação, não fosse ela denunciá-lo. Por duas ou três vezes durante a longa manhã tivera momentos de rara lucidez em que duvidou da vinda do pai ou do cumprimento da promessa. Mas, afogara a razão no seu lago de vingança. A injustiça tinha que ser resolvida, era urgente e necessária a retribuição. A vida lhe parecia sem sentido sem aquele corretivo dado ao mau elemento e à sua corja. Finalmente, o último sinal soou, como trombeta divina, e lá estava o carro verde e o salvador imponente e com ar decidido. Aproximou-se tremendo e o pai o saudou perguntando: — Quem é o Rui?
  • 26. [26] — É aquele! — mostrou-lhe excitado — Aquele tolo ali, metido a esperto, que não sabe nada de História, nem de Português ou de Inglês, ou Matemática, ou seja que matéria for. Aquele ali que só sabe dar caneladas no futebol, se assoa para o chão, cospe a torto e a direito e diz palavrões. É aquele ali, com ar de parvo que nunca vai saber mais do que 2 + 2 e que merecia ser aniquilado como verme que era! Já o pai galgara o espaço que o separava do guri. A mão erguera-se no ar e o menino esperou o barulho do primeiro estalo com os olhos semi-cerrados. Mas, qual quê? O pai apenas pousara a mão suavemente sobre o ombro do inimigo e lhe falava amistosamente, convidando a aproveitar a carona até à vila. Atordoado, o garoto tentou tirar sentido de tudo aquilo. Seria verdade tamanha traição? Podia o pai ser tão falso a ponto de o desfeitear de maneira tão vil? E então lhe veio a luz... É claro! O pai não podia bater no Rui ali à frente de todos! Ele era um homem de respeito na sociedade local, isso não lhe ficaria bem. A carona era o engodo para levar o Rui até um descampado, onde o corretivo seria aplicado. Neste momento, a sabedoria do homem parecia realmente superior! Afinal é verdade está tão propalada superioridade dos adultos! O Rui caíra na armadilha. Aceitara a carona e se instalara no banco da frente, ao lado do motorista. O menino atrás contava os minutos até o local do esperado massacre. Porém, o carro se dirigia estupidamente para a vila, pelo caminho mais curto e povoado. O pai falava mansamente ao Rui sobre o sucedido como se tivesse ocorrido um erro ligeiro. Queria a ajuda do rapagão para futuros erros do menino?!! Ele era o pai e ele deveria corrigir o filho, não um qualquer na rua. Terminaram fazendo uma espécie de pacto. Se o garoto fizesse ou dissesse algo errado, o Rui tinha permissão para o denunciar ao Pai, que lhe aplicaria a disciplina devida à falta em causa. E assim se despediram na frente da casa do moço. A criança no banco de trás desaparecera em sua decepção. Lágrimas sentidas lhe queimavam os olhos numa nova humilhação tão difícil de suportar quanto inesperada. Jamais teria esperado isso do próprio pai! Fora entregue como se fosse ele o verdadeiro culpado. Será que o homem não vira logo no rosto do Rui que era ele o culpado, que era ele o mau da estória?
  • 27. [27] O dia se arrastou qual caracol paralítico, sem ânimo, sem interesse, sem remissão. O menino se sentia traído, ultrajado e só. Como poderia enfrentar a escola? Como olhar para o grupo de escarnecedores? Como encarar o Rui? Tudo parecia desfocado e em meio a uma névoa de dúvida. A própria questão da justiça e do direito tinham sido violadas. E logo por quem se supunha ser o defensor sagrado de tudo o que era virtuoso na vida! O que o garoto não sabia é que aquela conversa a que ele chamara traição tivera o mais profundo efeito no Rui. O moço, acostumado ao punho de aço do padrasto e ao trabalho duro desde menino, nunca tivera alguém que o tratasse como igual. Nunca experimentara a palavra de confiança e respeito. Jamais encarara o olhar limpo de franqueza que conhecera nesse dia. Aquela conversa e mais do que isso, aquela atitude o resgatara verdadeiramente! Tinham lhe dado uma nova visão do mundo, da vida e da própria humanidade. Uma centelha de honra e dignidade foi acendida em seu coração, e mesmo sem saber bem o que fazer com ela o rapaz sentia que era algo tão bom que precisava ser valorizado. No seu coração de pedra surgira uma brecha e ali poderia brotar uma flor de esperança e, quem sabe, se suas raízes não abririam outras brechas, deixando que a alma florisse em botão e a vida sorrisse afinal? No dia seguinte, Rui olhou o loirinho com simpatia e quase carinho. Sem perceber ele era já parte essencial da solução do problema do garotinho assustado. E foi assim que, para surpresa do menino, quando dois malandros troçadores se aproximaram dele com más intenções, o gigante mecânico se interpôs e disse de sobrolho carregado e punho fechado numa voz rouca: — Se tocar no miúdo, vai ter que se ver comigo ... * * * * * * * * * * * Baseado em Romanos 8:28.
  • 28. [28] O Sábio A cidade era minúscula, como tantas outras nos estados sulistas da América do Norte. O auto-carro2 que cruzava a região, a maioria das vezes nem parava. Mas nesse dia, para surpresa dos cerca de 500 habitantes locais, descera um estranho e se dirigiu à pensão da Betty Sue. Bem, aquele era o único local na cidade onde se podia alugar um quarto, comer uma refeição e beber uma cerveja fresca. Betty Sue era o centro nervoso da cidadezinha. Todas as fofocas passavam por lá e para se estar em dia com o mexerico era obrigatório dar uma paradinha lá, pelo menos dia sim, dia não. O cavalheiro que descera do auto-carro estava munido de uma só mala. Bastante apresentável o tipo. De terno cinzento-escuro, camisa branca, impecavelmente engomada e uma gravata com desenhos modernos, difíceis de decifrar, mas que ficava bem no conjunto. Rosto comprido e sério, a testa alta, o cabelo recuado, cortado à escovinha, os olhos grandes de um azul profundo, a boca larga, lábios estreitos e orelhas meio de abano com o nariz razoavelmente grande. Parecia preparado para ficar uns dias, pois pagou previamente pela semana. Betty Sue, que fora quem o viu de mais perto, assegurou que era muito sério e de poucas falas. O nome não dizia nada de novo: Nick Thompson. Mas, no fim da tarde, já o estranho era o motivo principal das conversas e todos lutavam para acrescentar mais pormenores sobre o indivíduo. Havia que se apressar, pois quem mais tirasse dele mais teria proeminência na cidade nos dias subsequentes. O dia seguinte foi de grande agitação na cidade. É claro que alguém que não conhecesse o local nem daria por isso. Só os da terra podiam ver a procura febril de novos dados sobre o Sr. Thompson. O homem levantou-se cedo. Pediu um café puro, uma torrada e nada mais. Passou no barbeiro para fazer a barba e além da saudação e alguns monossílabos nada mais dissera. Comprou um jornal do dia anterior na 2 Em Portugal, auto-carro é como são chamados os ônibus. (N.E.)
  • 29. [29] banca, engraxou os sapatos com o Tony e se retirou para o quarto até o almoço. Foi aí que Betty Sue tentou sua sorte. — O Sr. Thompson pretende se demorar por estas bandas? — perguntou com um sorriso franco do seu rosto bolachudo e sempre exageradamente maquiado. — Talvez — fora a resposta lacônica. — Vem de longe? — Um pouco. — A negócios? — Certamente. — Muito dinheiro envolvido? — É possível… E assim prosseguiu a conversa. A mulher tentando tirar e o homem sem largar nada. Ficara quase na mesma. Tudo que lhe perguntava ele concordava de um modo pouco convicto, o que a deixou um tanto contrariada e confusa. O que poderia relatar às comadres no fim do dia? Estavam mortas por saber mais do desconhecido e ele ali armado com uma couraça de indiferença perante a curiosidade quase mórbida da pequena cidade. E não é que fora o Smith da tabacaria que conseguiu a nota mais saliente do dia? Ao vender um maço de cigarro ao Sr. Thompson lhe inquiriu sobre a visita àquela cidade. Porque ali, um local tão pequeno? — Gosto muito de sossego — foi a resposta. Todos gostaram daquela palavra. Era sem dúvida um atestado de bom senso e levantou a ideia de que o homem poderia querer se instalar ali mesmo. Afinal, dinheiro era o que parecia não lhe faltar. A Betty Sue lhe vira a carteira cheia, fora os cartões de crédito, e garantia a quem quisesse ouvir, e todos queriam, que o Sr. Nick devia ser um desses milionários excêntricos.
  • 30. [30] Os dias foram se passando lentamente para o povo da cidade e pouco se acrescentava sobre o mistério do visitante. Vestia sempre bem, apesar de variar muito pouco. Andava muito limpo. Fora visto colhendo plantas locais e terra. Iniciara um jardim no parapeito da janela do seu quarto e respondia com expressões guturais ou monossílabos. No salão de barbearia se discutia sobre ele a todo o vapor: — Deve ser podre de rico. — referia Tony o engraxate — De outra forma não viria gastar dinheiro num local tão afastado e perdido no mapa. — Escolheu muito bem, se quer saber a minha opinião — interpôs o prefeito Jackson, meio magoado com a desconsideração do Tony. — Pode ser um fugitivo da lei — tentou o Barnaby aposentado das linhas de ferro. — Não tem cara disso. — resistiu MacSurrey o barbeiro — Ele é muito calmo para quem está fugindo e já está aqui há mais de uma semana! Um fugitivo não fica tanto tempo em lugar nenhum. — Pois eu acho que é um escritor, um sábio de alguma espécie! — opinou Larry, um caminhoneiro meio desempregado — Deve estar fazendo pesquisa para um novo livro ou lá como o chamam. — Bem pensado! — reagiu o prefeito — Lá cara de entendido ele tem! Olha para as coisas sempre com um ar de quem conhece bem. Ouve os assuntos com atenção e apesar de não dar opiniões vê-se perfeitamente que está por dentro de tudo. Eu não me admiraria se fosse professor universitário ou até coisa maior. — Mas porque é que não fala? — estranhou Tony — Parece até que o gato lhe comeu a língua! — E lá é preciso falar para se ser alguém? — retorquiu MacSurrey irritado — Lembro-me bem do que meu avô contava de um grande génio que conheceu e que quase não falava. Estava sempre tão absorto em pensamentos superiores que as conversas do dia-a-dia o distraíam e não se dava a bater papo nas esquinas. Pode ser esse o caso.
  • 31. [31] — Exatamente! — concordou Larry sacudindo com uma risada seu enorme corpo de mais de dois metros e 130 quilos — Até tem graça, um crânio desses aqui na nossa cidade! Ainda vai tornar famosa a nossa região, descobrindo alguma coisa importante por aqui. — Seria boa ideia — opinou Jackson com os olhos brilhando — Podia ser que implementasse o turismo. Podíamos ter um hotel ou dois, e quem sabe um drive-in, para dar mais animação à cidade. — Sim, Porque a Betty Sue já deu o que tinha a dar — comentou o Tony rindo ao que todos gargalharam com gosto. E de fato, no café-restaurante-pensão, outro grupo, este de mulheres, também conversava sobre o desconhecido enquanto tomavam xícaras de chá e biscoitos de chocolate. — Tem um ar tão distinto — dizia a Mary Lou — Acho que é mesmo um dos homens mais charmosos que já conheci! Me lembra artista de cinema... — Poderia ser. — riu de excitação a Conchita que estava ali desde que viera do México — Pode bem-estar descansando da cidade grande e se escondendo da fama e dos jornalistas. Li numa revista que há muitos atores que fazem isso. — Já pensou que emocionante? — sorriu a Sra. Jackson — Isso pode trazer fama à nossa terra, turistas, quem sabe? — Não parece ator. — comentou a Betty Sue, que para todos os efeitos era a maior entendida na matéria, pois hospedava o homem — Parece mais um estudioso ou professor de alguma coisa. — Sim — retrucou Samantha — tem mesmo cara de doutor! Aquela testa não engana ninguém! — Olha que se calhar não era mal partido hein? — tentou a Sra. Jackson rindo para Samantha, que era a solteira mais cobiçada da cidade. — Lá dinheiro tem de sobra! — disse Betty Sue — Isso eu posso
  • 32. [32] garantir! — E é bem mais bonito que o Perkins — riu Mary Lou lembrando um pretendente de Samantha. — Mas, falando sério — procurava acalmar os ânimos a visada nas brincadeiras — que o homem tem cara de sábio lá isso tem e ninguém pode negar. A partir desse dia então, Nick Thompson, passou a ter a fama, merecida ou não, de sábio de grande valor. E tudo que fizesse ou dissesse era interpretado à luz dessa opinião. Se ele pegava uma pena de pássaro que caíra estava estudando aerodinâmica. Se demorava-se a ver o pôr do sol, estaria compondo poesias imortais. Se respondia por monossílabas era para não gastar seus preciosos neurônios com conversas tolas e se vestia sempre a mesma cor de roupa era porque isso certamente teria um efeito positivo na saúde e bem-estar das pessoas. Até houve quem notasse que o prefeito estava repetindo mais vezes o seu terno azul-marinho... Certa ocasião enquanto os homens estavam reunidos a tomar cerveja o Sr. Nick entrou e saudou a todos cordialmente. Ofereceram-lhe cerveja e o homem aceitou de bom grado, pois estava quente e uma geladinha ia bem. Discutia-se a supremacia do transporte aéreo sobre o marítimo. Havia, como sempre, dois partidos. Uns defendiam os aviões, outros os navios. A conversa estava acalorada. Havia que aproveitar o fim da tarde em discussão, já que mais nada havia a fazer na cidade, senão esperar pelo jornal da noite na televisão e isso ainda ia demorar ainda um bom tempo. Depois de muitos argumentos pró aéreos e pró marítimos houve um que teve a ideia de questionar o ilustre visitante, que segundo o conceito geral era um sábio. O arguido olhou para os presentes com ar distraído, levantou as sobrancelhas por alguns segundos e baixando-as de seguida abriu um sorriso suave e encantador e com um leve dar de ombros abanou a cabeça como que reiterando o óbvio. Aquele gesto foi seguido de perto por todos e por incrível que pareça terminou a discussão. A todos parecera que o génio visitante rematara a polémica como ninguém e o gesto foi descrito exaustivamente sobre as mesas de jantar das várias casas locais. É claro que cada lado da
  • 33. [33] disputa reclamava o referido gesto como sendo a afirmação cabal de sua vitória no conceito do sábio. Mas a verdade é que todos concordavam com a profunda astúcia e tremenda sabedoria do indivíduo. Ainda não completara um mês que o Sr. Nick estava na cidade e o prefeito já o convidara a ser sócio de um negócio importante, o xerife lhe encomendara dois discursos sobre segurança pública no centro cívico e a senhorita Samantha Brown se preparava para acabar com seus dias de solteira, no que seria o grande casamento da década. Porém, misteriosa e quase furtivamente como chegara, o estranho se foi. Não chegou a se despedir de ninguém. Não terminou de usar os dias pelos quais pagara a pensão da Betty Sue. Simplesmente saiu de mala na mão e fora dos limites da cidade pegou carona, desaparecendo das vidas de todos sem deixar rastro. Iniciava-se a lenda, o mito. Tinham sido visitados por um gênio por algum tempo e alguns mais espiritualistas até falavam de anjo ou outro ser se uma realidade desconhecida. Houve inclusive quem sugerisse trazer a televisão para fazer uma reportagem, pois jurava que o tal Nick era, na verdade, um extraterrestre que viera investigá-los. Fosse como fosse, tinham sido dias de excitação na cidadezinha. Passaram-se algumas semanas e um carro com chapa de outro estado e símbolo oficial parou à frente da pensão de Betty Sue. Era um sábado de manhã, perto da hora do almoço e o local estava abarrotado, como de costume. Os dois homens que desceram pareciam de alguma instituição estatal e o carro trazia um emblema na porta. Alguma coisa sobre Saúde Pública. Entraram, pediram café e sanduíches e ficaram conversando um pouco. Quando a dona da pensão trouxe os pedidos lhe mostraram uma fotografia. Era do Nick! Betty Sue gelou! Conhecia ela o homem? Ela fez sinal que não. Todos os presentes estavam em suspense, acompanhando a situação. — É algum criminoso? — perguntou ela, temerosa. — Não! — afirmou o homem rindo — Nick não faria mal a uma borboleta! É apenas maluco! Completamente louco! Fugiu do Sanatório de Memphis há dois meses e tivemos uma denúncia que teria vindo para
  • 34. [34] estes lados. É que levou todo o dinheiro da recepção... Ainda era uma boa quantia! Betty Sue deu um sorriso amarelo e voltou-se. Todos os cidadãos presentes a olhavam. Podia-se ver em seus olhos o espanto e a quase incredulidade. A verdade é que nunca mais ninguém falou de Nick Thompson naquelas paragens. * * * * * * * * * * * Baseado em Provérbios 17:28: “Até o tolo quando se cala será reputado por sábio; e o que cerrar os seus lábios por entendido.”
  • 35. [35] "É para se ir fazendo..." (Conto regional) Fui criado nas ilhas portuguesas dos Açores. Guardo recordações maravilhosas desses tempos. A cosmovisão açoreana é típica do ilhéu e se resume na frase que serve de título a este conto. A narrativa é ambientada nos Açores e se baseia no texto de Eclesiastes 11:4: "Quem observa o vento nunca semeará, e o que olha para as nuvens nunca segará". A Maria tinha o ar mais consolado do mundo. É verdade que a vida ia difícil. Era verdade que o Manuel não era lá o marido que ela esperava. Mas, que importava isso se estava agora à espera de seu primeiro rebento? Vivia pelo ser que lhe crescia no ventre e que já sentia espernear. Havia de ser forte e belo. E sentada na varanda bordava para seu enxoval quando o Ti Zeca, da Herminia lhe gritou: — Ó Maria, antã isso faz-se ou não? Nunca mais terminas o bordado, rapariga... Ela riu gostoso e respondeu: — Não se preocupe tio, é para se ir fazendo... E o garoto nasceu. De fato, forte e saudável, cabeludo e vermelhão. Francisco de nascimento, Francisco José de Batismo, que o padrinho na cidade assim o quis. Cresceu rápido, bem constituído e com força, que é o que se precisava naquelas terras de vida dura. Cresceu ilhéu, vendo o Atlântico norte todos os dias, e aprendendo a amar o ar húmido e a terra fértil dos Açores. Desde muito cedo ouviu aquela frase tão tradicional da região e que parecia andar de boca em boca como doce preferido. Chavão máximo do modo de ser e de viver se dizia com pachorra e boa disposição de qualquer coisa em que se estava envolvido: “Não é para se fazer, é para se ir fazendo” ... O Francisco incorporou facilmente o dito que melhor do que qualquer outro falava da cosmovisão das gentes açoreanas. Cresceu na
  • 36. [36] tranquilidade da vida do campo, rodeado dos animais domésticos e das vacas nos cerrados do pai. Viu as estações passarem e as festas chegarem com seu reboliço, mas sempre numa paz de alma própria de quem tem horizontes limitados pela imensidão dos mares que o cercam. Pelo que tranquilo nascera e calmo se desenvolveu. Na idade apropriada começou a frequentar a escola da freguesia. Antes, de madrugada ainda, ia aos campos com o pai tratar das vacas. Depois, havia as aulas e à tarde um pouco de tempo livre para brincar. O menino era sossegado na sala, não dava nenhum trabalho à professora. No recreio preferia se quedar vendo os outros a gastar energias correndo de um lado para o outro, qual coelhos assanhados. Não se metia em brigas, não discutia e nunca era repreendido pela mestra. Apenas não era de muito estudo. O 1º ano passou sem que aprendesse mais que as vogais. No 2º, e já repetente, ia pelo mesmo caminho. E quando um dia, já um pouco preocupada pela lentidão do filho a mãe o repreendeu pela demora em terminar o dever de casa, o menino a olhou com olhos meigos e com um ligeiro sorriso ainda bem infantil e respondeu: — Ó mãe, isto é para se ir fazendo! E não dera mesmo para aquilo, dizia o pai. Era pau de outra cepa. Aprendeu a escrever o nome que era o que o progenitor sabia, e lhe chegara para ter família e casa. Havia de chegar também ao Francisco. A família aceitou tudo passivamente. Não valia a pena fazer confusão por causa disso. Nem todos nascem para doutores e o filho do Manuel da Burra havia de ser mesmo um agricultor e criador de gado como o pai. O rapaz cresceu forte, que lá comer, comia que dava gosto. Então pelas festas do Divino Espirito Santo era um ver se te avias que ninguém o batia numa mesa de banquete. E foi mais ou menos por essa altura, devia o garoto ter já uns 18 anos, que viu a Susana, na tourada das Fontinhas. O dia estava de festa, o sol a pino, tudo florido, um cheiro de perfume no ar e a freguesia cheia para a tourada a moda da Terceira. O Francisco fora com outros amigos, a modes de espairecer um bocado. Mas logo olhara para cima e notara numa janela vermelha, uma rapariga com os ombros apoiados numa linda colcha bordada com motivos campestres
  • 37. [37] com fios dourados num fundo azul e rosa. Ficara fisgado à primeira como peixe que encara isca colorida. Os amigos o impulsionaram na aventura, que era bem hora do rapaz se entusiasmar por alguma coisa. Mas o Francisco com seu ar bonachão limitou-se a olhar, e a olhar. Lá a cachopa o viu sim senhor, e até lhe retribuiu o olhar. Mas mais do que isso não se passou. Na hora dos touros o rapaz não ousou sair à rua a modos de impressionar como seria a tradição. Não era do seu estilo e estava muito bem sentado com um chouriço preto à frente que até dava gosto. Mas, nos intervalos entre cada touro lá se arrastava até a janela rubra a fim de admirar a flor humana que brilhava mais que as vegetais. Mas quando os colegas o apertaram querendo saber se o namoro era para se fazer, respondeu dando de ombros: — É para se ir fazendo... A partir daquele dia da festa, Francisco passou a frequentar as Fontinhas a cada fim de semana, que era freguesia vizinha à sua. Ia de bicicleta e passava frente á casa da Susana vezes sem conta, nunca ousando, no entanto, encetar conversa. E fora a pequena que o abordara um dia, perto do portão da casa e que lhe permitira iniciar este namoro meio amizade que frustrava os familiares. É que os pais da moça tinham planos mais elevados. Havia um filho do Sr. Dr. Azevedo de Angra que parecia arrastar a asa à pequena, e este brutamontes da Vila Nova que nem sabia falar direito vinha entornar o caldo. E o que é que a rapariga via naquela cara bolachuda e avermelhada? Mas as coisas do coração são assim e a Susana saía à mãe, de pelo na venta, não aceitava ser pau-mandado e nunca se poderia dizer que era uma maria–vai-com–as-outras. Bem o Pedro Azevedo, filho do doutor, destinado à alta sociedade de Angra a presenteava com as prendas mais bonitas vindas do continente. A rapariga agradecia e continuava a falar ao Francisco a cada fim de semana, apesar de ser ela a puxar a conversa e a dar as conclusões. E os meses se arrastaram. Um ano se passou e já iam quase no fim do segundo e a coisa não atava nem desatava. O Manuel da Burra não dava interesse a esse namorico do filho, mas a mãe se arreliava e não pouco. Foi ter com o padre Bento que a casara e batizara o pequerucho.
  • 38. [38] — Ó Senhor Padre, a sua bênção. — Deus te abençoe, minha filha. — Sr. Padre, ando com uma coisa cá a atraverssar-me o coração, a modes que me deixa louca! — Ó rapariga de Deus, diz lá o que tens. Sou teu confessor há poderes de anos. — É o Francisco, sr. Padre. O rapaz é trabalhador e nunca me dá canseiras, lá isso é verdade, é uma paz de espírito. Mas não é capaz de fazer nada sozinho. Tudo tem que ser à pressão. Se não for empurrado não desemperra. — Feitios filha, são feitios... cada um tem o seu... Lá o rapaz é assim quieto, que não é nenhum pecado. Vê lá o Luciano da Mariquita, que trabalhos lhe dá! Vês logo que te saiu a sorte grande! — Loivado seja, Sr. Padre! Não estou a reclamar que o meu Francisco é uma joia de rapaz. Mas queria vê-lo casado e não sei se o veja. — Então não hás-de ver? Isso se arranja facilmente. Ouvi até que tem rapariga lá para as Fontinhas. — Ter tem, mas não sei se por muito tempo. — Explica-te lá criatura, que não te entendo. Tem ou não tem? — Ó Sr. Padre, o Francisco anda de namoro com uma pequena das Fontinhas há quase 2 anos. É boa rapariga, sim senhor, que lhe conheço a família e até me dei com a mãe dela nos meus tempos de solteira. Casou com o Firmino, aquele que anda metido nisso dos laticínios lá pra Angra. — Sei quem é, boa gente. — Pois o Francisco vai lá todo santo domingo. Faça chuva ou faça sol, não falha. Mas a coisa não anda. — Como assim?
  • 39. [39] — Ele nunca mais se despacha a pedi-la. E o pior é que o filho mais novo do Dr. Azevedo tem o olho na pequena e se o meu Francisco não se avia vai ficar a ver navios. — Ó lá... isso é outra história, que o Pedrinho do Dr. Azevedo eu conheço e não é rapaz para desfeitas. Se cismou com a rapariga temos sarilho e do grosso. — Está a ver sr. Padre. Sei que se falar ao Francisco ele há de escutá- lo. A mim já se me secou a língua de tentar, e parece que estou como o santo a pregar aos peixinhos. — Ó rapariga, isso não é problema e se arranja. Dou três palavrinhas ao pequeno e já tens nora noutra freguesia que até te regalas! — Valha-me nossa Senhora, que era um alivio grande! Sr. Padre era uma esmola que me fazia ... — Não fales mais nisso! Vai-te descansada e com a ajuda de Deus! E ela foi. Se havia alguém que podia tratar da coisa era o Padre Bento, que casamenteiro como ele não havia em todo aquele lado da ilha. Nisso se passou mais um ano e quando chegou a primavera e Abril entrou, havia ares de festa na casa do Firmino das Fontinhas. Foi uma boda como poucas e o banquete demorou até de noite com tudo do bom e do melhor. A Susana e o Pedrinho do Dr. Azevedo deram o nó na Sé de Angra com pompa e circunstância com a igreja cheia de convidados que o pai da noiva não cabia em si de contente. Não fora falta de paciência da rapariga que levara a este desenlace. Praticamente iniciara o namoro e a cada fim de semana era ela que fazia a maior parte do trabalho perguntando e respondendo. Lutara contra a vontade do pai e de todos ao redor. Ninguém se levantara a favor do tosco agricultor. Meses a fio à espera que o rapaz se decidisse e tentou várias vezes levar a conversa para o lado do pedido de casamento. Mas, o Francisco parecia irredutível. Era mais fácil Moisés tirar água da rocha que ela um pedido de casamento daquele criador de vacas! Por fim cansou! Não dava para continuar perdendo a juventude numa causa vã. Aceitara o pedido do Pedro e despediu o Francisco com lágrimas nos olhos.
  • 40. [40] O Manuel da Burra quase não ligou ao caso. A Maria, porém, desesperou! Adivinhava que se o filho não casasse ali, não havia de casar mais! E como é comum as mães conhecerem bem os filhos que têm, ela estava mais que certa. Se o moço já era fechado e titubeante antes daquilo tudo, agora é que não se abria mais. Preferia as vacas às pessoas e o campo à freguesia. Fechou-se em copas e passou a falar ainda menos que antes. Mas a sorte, esta personagem tão desejada mas difícil de encontrar, parecia ter um gosto especial por aquele campônio tranquilo e veio lhe bater à porta novamente com armas e bagagens e sem que ninguém pudesse prever. O Antônio da Canada das Flores tinha embarcado para o Brasil há anos, era o Francisco ainda novo. Fizera fortuna considerável e voltara agora com ideias de se estabelecer na terrinha e montar um negócio. Chegara com todo o aparato próprio do emigrante que regressa em grande. Fizera logo festa. Foi mordomo da festa do Senhor Espirito Santo e pagou uma tourada como há anos não se via pelos lados da Vila Nova. Iluminou a Igreja para gáudio do Padre Bento e construiu uma senhora casa com sobrado e tudo. Andava de carro para todo o lado e vestia roupas um tanto extravagantes. Manias dos trópicos... Mas quem reparava nisso, quando o sujeito era tão mão aberta? Só uma nuvem escura toldava o sol da felicidade do Sr. Antônio. Mas era uma nuvem de volume considerável. É que a Ivone, sua senhora, não lhe dera herdeiros. Dois abortos e um pequeno que não chegara a uma semana e lá se tinham ido as esperanças de ter continuidade. E para quem deixar aquele dinheiro todo se não tinha irmãos ou sobrinhos e os primos eram todos afastados? Foi aí que entrou o Francisco. Não se sabe por obra de quem, talvez a fada madrinha, o Sr. Antônio fincou os olhos no rapaz do Manuel da Burra e decidiu que ali estava um bom moço para se investir. A aproximação não se fez esperar e logo o Antônio e o Manuel eram vistos juntos por toda a freguesia, bebendo vinho dosBiscoitos, comendo espetadas de porco ou chouriço na birosca da Madalena. Eram verdadeiros compadres. E ninguém na freguesia entendia o que o Antônio via no raio do Francisco. Era trabalhador sim senhor, comedido e respeitador. Nunca fora visto em patuscadas noturnas ou sarilhos de saias. Ia à missa com a mãe todos os domingos, cuidava da sua vidinha sem chatear ninguém. Mas era também um
  • 41. [41] mosca-morta completo, não se lhe tirava duas frases de jeito. Andava quase na casa dos 30 e nem sinal de casamento. E não fora ele que perdera, por falta de iniciativa, a Susana do Firmino das Fontinhas? Nenhuma razão porém, demovia o Antônio. Meteu na cabeça que o Francisco era um rapaz ás direitas e que era ele que lhe serviria de filho e herdeiro à falta de prole própria. E lá se puseram ele e o Manuel da Burra a fazer planos e esquemas de como usar a fortuna brasileira em bons fins e de preferência bem lucrativos. Só um problema havia. O Manuel colocara no nome do filho tudo o que tinha. É que tivera pelo inverno uma pneumonia das brabas e pensara que estava a esticar o pernil, pelo que, antes que o Diabo as tecesse foi tratando da papelada com o Osório do caminho da Praia. Agora pois, para que qualquer negócio fosse tratado, era preciso que o Francisco anui-se e colocasse no papel aquele garrancho a que chamava assinatura. E aqui começou o cabo dos trabalhos. Convencer o rapaz é que eram elas. Ouvia tudo com paciência angelical e parecia concordar, mas mal o Antônio saia de sua casa Francisco voltava aos campos e ás vacas, como se sua vida não estivesse prestes a mudar completamente com o simples riscar de uma caneta barata. Ele só se sentia bem no seu ambiente. Só e sossegado no meio do gado, cheirando a erva molhada e o estrume fresco é que parecia feliz e contentado. Que isso de negócios e planos não lhe entrava bem. Foi levado a Angra para tratar da papelada, mas a viagem fora um desastre! Primeiro que o Francisco não se sentia bem nas roupas que lhe arranjaram para a ocasião solene. O sapato o apertava e a gravata o sufocava. Depois que a cidade o deixava assustado e nervoso com tantos carros e movimento. A rua da Sé lhe parecia um formigueiro humano e a praça velha uma verdadeira babel. O Pior foi ver a Susana de repente a sair de uma loja, muito bem vestida á senhora da cidade de braço dado com o marido que já era doutor desde que voltara de Coimbra. A visão o aterrara e lhe tirara o sossego e nem toda a boa vontade do Antônio ou a bonomia do Manuel o demoveram. Ele não quis saber de assinar nada sem pensar bem antes. — Mas já pensara por mais de três meses!... — reclamou o Antônio.
  • 42. [42] Afinal de contas, quanto tempo é que se ia perder nisso? Não se podia ficar adiando eternamente o assunto pois tinha necessidade de andar com o negócio. O tempo das festas já se fora e havia que colocar o dinheiro a render pois não há felicidade que não acabe e fortuna que não se esgote. Novamente a indecisão do Francisco e sua falta de iniciativa trabalhou contra ele. Parecia que a tal sorte que quando sorri traz alegria a qualquer um, só podia azedar o humor do Francisco. O Pai desesperou, a mãe redobrou os rosários e as missas, o padre Bento gastou mais um bocado do seu latim e o “Brasileiro” esperou mais um tempo. Sempre que arguiam o Francisco se o negócio se fazia ou não respondia invariavelmente: — Vai-se fazendo ... Os anos se passaram. O Antônio Brasileiro lá se arranjou com um proprietário de terras da Agualva e o negócio até lhe ia bem. Produzia queijo de cabra e outras coisas e fornecia aos laticínios de Angra. O Manuel da Burra morrera, que Deus o tenha; não suportou por mais de 2 dias depois que o touro do Constantino lhe dera uma valente marrada na preparação da tourada das Lajes. A Maria o chorou a valer e passou a usar luto completo que havia de envergar até a morte. E o Francisco mantinha a vida quieta e sumida de sempre sem que nada parecesse o tirar daquela quase sonolência. A pobre mãe vendo os anos se chegarem e pensando no futuro lá resolveu tornar a atazinar o filho a ver se desta a coisa ia, pois já não lhe devia restar muito tempo. Numa tarde fria de Outono com a chuva caindo impiedosa e o vento soprando por entre as frestas da janela, esperou o Francisco com uma sopa bem quentinha e o pão de milho que ele tanto gostava barrado em manteiga suculenta. Quando o moço parecia estar se satisfazendo encheu-lhe de novo o prato do líquido espesso e revitalizante e começou: — Ó filho, tens que pensar na vida. O Francisco levantou os olhos lentamente da sopa e perscrutou a face da mãe à procura de sinais do que ela tinha preparado para aquela conversa. Não via nada que o ajudasse e tornou a baixar a cabeça para o
  • 43. [43] prato. — Teu pai, que Deus o receba, já aí não está para nos valer. E eu não posso durar para sempre filho. Estou a ficar velha e cansada. O filho suspirou como que a mostrar que não estava para discussões no fim de um dia de trabalho que fora bastante dificultado pelo tempo agreste. — Tu tens vivido tua vida sossegado e não tens me dado desgostos de mais, que Deus te pague. Mas o teu feitio também não tem dado para mais. À esta altura eu já devia ter 3 ou 4 pequenos a pular à minha volta e cá estou sozinha nesta casa que mais parece um sepulcro. Já não te posso sofrer assim tão apagadinho e mudo. Ainda estás em tempo de fazeres pela vida. Olha que sabia bem ter netos antes de ir desta para melhor. Mas é preciso que te decidas a dar o passo e deixar de seres tão teimoso. Francisco não lhe respondeu. Ele nunca respondia. Ouvia sempre calado e escusava de dar trela ás conjecturas da mãe. Aprendera depois de tantos anos que se ficasse bem quieto a velhota se havia de cansar e parar de o apoquentar. Era o único jeito. Mas Maria continuava. — Tenho estado a tentar ajudar-te que só quero o teu melhor filho. Então uma mulher não há de lutar pelos filhos? Olha a Berta, viúva do Fernandinho, é boa rapariga. Já lhe acabou o luto maior e pode casar. É trabalhadora e asseada e traz o seu pequeno sempre tão limpinho que dá gosto. Mas vive com dificuldade. É uma cruz. Tu bem que podias amanhar-te com ela e todos ficavam felizes. O padre Bento já me disse que via esse arranjo com bons olhos. Tu já não podes pensar em raparigas novas, mas a Berta vinha mesmo a calhar. Não me dizes nada? A Mulher desta vez estava irritada. Desde que perdera o seu Manuel que andava desensofrida. Aquilo nem era vida nem nada. Para ouvir uma voz tinha que ser ela a falar, pois a voz do filho só a ouviam as vacas. As vezes até achava que o rapaz já perdera a faculdade da fala ou esquecera como pronunciar as palavras. Mas o Francisco não parecia se enternecer com os arroubos da mãe. Então, perdera a Susana que era uma flor de estufa e ia agora
  • 44. [44] amarrar-se á Berta que coitada já vira melhores dias? Não estava tudo tão bem assim, sem mudanças bruscas, sem confusões? Agora queria ele lá um filho de outro para criar? Crianças gritam e choram e sujam tudo. Não lhe parecia bom arranjo e quando a mãe desesperada lhe perguntou se não lhe ajudava a fazer a vida melhor, respondeu lacônica e silenciosamente: — Há de se ir fazendo ... Mas dois anos se passaram, e no tempo se armar o presépio a Maria adoeceu. Não parecia coisa de monta mas já não se levantou, e mesmo o Francisco tendo vendido duas vacas para pagar as deslocações do médico de Angra já não havia o que fazer. Antes que o carnaval chegasse, já se lhe fazia o funeral e o Francisco só no mundo se afundava em sua solidão e silêncio. Nunca deixara de ser trabalhador. Não fora por falta de sorte que estava só e mal na vida. Tivera tantas oportunidades que desperdiçara que já tinha a fama e o proveito de ser o indivíduo mais perdulário da ilha e quase não o viam mais. Deixara de ir á missa. Não andava pelo povoado, não ia á tasca beber e ás vezes, nos meses de verão, já nem sequer à casa vinha de noite. Dormia nos campos, metido entre as vacas e coberto pelo capote que não deixava há anos. Por falta de alimentação correta e submetido daquele jeito ás intempéries, acabou por emagrecer. Apesar de rijo e forte e de se gabar de não ter ficado um dia sequer doente desde o sarampo que tivera aos 8; agora estava mal, com uma tosse que não o largava. A princípio achou que fosse só uma constipação. Depois atribuiu tudo a uma pancada de vento que o pegara desprevenido. Mas quando começou a cuspir sangue lembrou-se do pai e procurou descansar em casa. Foi aí que o padre Bento o encontrou numa tarde de sábado, consumido de febre e já há 3 dias sem comer. Procurou tratá-lo, mas a coisa já estava avançada demais... O Francisco morreu antes que o médico pudesse aviar a receita. Que desperdício! O velho pároco que o batizara pensava na futilidade daquela vida. Na constante indecisão do rapaz. Nunca sabia se queria ou não. Nunca se resolvia a fazer o que era preciso. Recordando o texto sagrado o padre recitou em voz alta o Eclesiastes: “Quem olha o vento nunca semeará e quem olha as nuvens nunca segará”. O Francisco fora o exemplo
  • 45. [45] consumado disso mesmo e custava ao religioso ver uma vida assim perdida sem realização ou fruto. E, enquanto pensava nisso chegou ao cemitério aonde o coveiro cavava a cova do malogrado. O rapaz estava sentado encostado a uma campa fumando um cigarro de palha e pareceu ter sido apanhado de surpresa pelo visitante. — Então? — disse o cura — Essa cova é para se fazer ou que? O coveiro de sobrolho levantado e tentando um sorriso desdentado respondeu com gosto: — Ó Senhor Padre, é para se ir fazendo ... * * * * * * * * * * * Conto baseado em Eclesiastes 11:4 e 5.
  • 46. [46] Saudades do Paraíso (Reflexões de Adão...) Tenho saudades da Inocência ...Hoje fui até lá. Não sei bem o porquê. Não disse nada a Eva. Já fazia tanto tempo que não ia... No princípio passávamos por lá muitas vezes, mas a luz da espada flamejante nos mantinha distantes e ela chorava. Depois paramos de ir. Não fazia mais sentido. Mas hoje fui lá... Está tão mudado... O mato cresceu tanto que há uma verdadeira floresta onde antes havia só um belo jardim. Logo estará perdido. Bem, acho que para nós está perdido há muito tempo... Creio que queria recordar. Lembrar a liberdade, a paz, a inocência, a comunhão. Tudo parece hoje tão distante que nem me lembro mais como era. Depois que Abel morreu, ficou ainda mais difícil. O erro de tudo aquilo parecia pesar ainda sobre nossas cabeças, como se a culpa no fundo fosse nossa. Não sei se é isso que os pais devem sentir ao ver os erros dos filhos, mas é o que sentimos. Então Caim foi embora. Agora raramente ouvimos falar dele. É verdade que outro dia um filho de seu filho passou por aqui. Estranho, é homem crescido. Estou ficando velho e cansado e nem sabia. Tenho saudade! Saudade da força, da vitalidade que tinha com Deus no jardim. Ele nos perdoou mas as consequências são terríveis e mesmo o perdão não as pode apagar. Os sacrifícios aliviam, a esperança traz algum consolo, mas a comunhão nunca mais será a mesma e meu coração parece não ter parado de murchar desde aquele dia fatídico. Maldito dia, terrível dia. Tanto engano e mentira! A serpente ainda vai aparecendo de vez em quando. Já não fala, mas o veneno está lá. Tenho matado algumas, mas parecem renascer com facilidade e sua malícia não diminuiu nada com o tempo. Como fomos enganados! "Conhecereis a verdade", disse ela. Sim, mas não explicou como iríamos lidar com ela. "Sabereis a diferença entre o bem e o mal", sim, mas quem disse que teríamos a força para escolher o certo? Sereis como
  • 47. [47] Deus! Ah! Como se isso fosse possível ...como se isso fosse desejável... Quanto mais o tempo passa, mais parece grande a tolice daquele dia, mais parece incrível que tenhamos caído tão facilmente. Mas, a verdade é que caímos. E o peso dessa escolha vai manchar meu nome por toda a eternidade. Multidões de gerações me amaldiçoarão ao saber como fui enganado. Ninguém estava tão habilitado a resistir... e é isso o que mais me dói. Ter caído sem necessidade. Ter caído podendo ter ficado de pé. Tenho saudades da inocência, do riso alegre e sem malícia que enchia o rosto de minha mulher, dos sonhos tão doces à noite, do trabalho tão recompensador, da natureza tão amiga. Saudades da sensação de pureza e santidade que me enchia cada vez que o Criador vinha nos visitar. Aqueles momentos eram tão plenos. Sua presença era a razão de toda a existência, o motivo da vida, a causa de nos sentirmos desfalecer com sua ausência. Não se pode mesmo viver sem a Sua presença. Simplesmente tudo deixa de fazer sentido. A chama se apagou e não encontro maneira de acendê-la novamente. O céu parece sempre escuro e fechado. Não creio que o Criador tenha deixado de nos amar. Posso ver seu cuidado de muitas formas. No entanto, a relação não pode ser a mesma. Quebrei sua confiança, que fora total. Falhei no único ponto em que Ele me pôs à prova. Dei um voto de desconfiança em sua provisão, logo naquilo em que sua prodigalidade fora tão evidente. Sinto saudade da harmonia, da paz! Agora parece que não passa um dia sem que eu discuta com Eva ou um de meus filhos ou netos. É que com o conhecimento do bem e do mal nos veio uma incrível, incontrolável e permanente vontade de julgar os outros. Julgar o que fazem e o que não fazem. Dizer se é bom ou mal. Mas nossos julgamentos falham justamente por falta de conhecimento. Sim, nosso conhecimento é tão limitado! Conhecemos pouco dos outros, de suas razões e motivos. Conhecemos pouco de nós mesmos, de nossas verdadeiras razões e motivos para julgar. Conhecemos pouco sobre o próprio ato de julgar e por isso os julgamentos falhos nos levam a tantos conflitos e injustiças. Sinto saudade da liberdade! E é tão estranho. Lá no jardim havia limites que Deus colocara. Mas eu me sentia tão seguro, tão confortável, tão protegido! Foi só quando saímos dos limites e aparentemente podíamos fazer o que desejássemos com nossas vidas é que notei que a
  • 48. [48] liberdade se fora. Compramos uma ilusão, um engano e pensávamos que estávamos nos libertando, quando na verdade estávamos entrando direto numa escravidão que parece não ter saída. Como sinto saudade do sono bem dormido do jardim! Da sensação de plenitude e satisfação. Esta vida que ganhamos não consegue trazer isso. Durmo sempre preocupado com o dia de amanhã. Sob o peso das necessidades da família. A responsabilidade de ser o que todos esperam que eu seja: O líder, o chefe, aquele que sabe. E no entanto, acho que todos já perceberam que, por trás de meus olhos murchos e barba branca, eu sei tanto quanto eles. Que estou tão perdido quanto eles. Tão arrependido e só quanto qualquer outro. Insatisfeito e cansado... No jardim não sentíamos dor e não sabíamos o que era solidão. A presença do Criador era tão completa e constante que enchia o dia e a noite como um doce perfume que sentimos sempre no ar, mesmo sem saber de onde vem. Mas o perfume se foi... Descobrimos que é possível alguém sentir-se só. É possível se ter medo. É possível morrer! Coisa estranha a morte. Não deveria trazer tanto medo, mas chego à conclusão que ela é tão terrível porque é contrária à nossa natureza. Fomos criados pela Fonte da Vida para termos vida. A morte é tudo que a vida não é. Fria, vazia, sem razão, quebrando a continuidade, separando, rasgando, silenciando de uma vez. Sei que vou morrer! Não sei quando nem como, mas isso talvez não seja tão importante quanto saber para quê. Sim, para que morrer? Por que motivo? Para onde? E é isso que mais me assusta. Sinto saudade da inocência, da justificação! De poder estar em pé diante de Deus sem vergonha ou receio. De sentir-me digno, puro, perfeito. Resta hoje só o sonho, a esperança. O eco daquelas palavras: “esmagará a cabeça da serpente”. E é esse sonho distante, que nem entendo bem, que me faz caminhar e olhar adiante com alguma expectativa. Cada criança que nasce me traz a pergunta: Será este? Cada dia que passa me traz a certeza: estamos mais perto dele. E pelo dia da redenção anseio, por ele vivo, creio que por ele morrerei. Nesse dia viverei novamente e então, só então, deixarei de sentir saudades do Paraíso. * * * * * * * * * * * Baseado em Gênesis 3.
  • 49. [49] A SERPENTE DE BRONZE Milca acordou cedo como fazia todos os dias. Eram as responsabilidades da mãe da família. Seu marido ainda dormia e os filhos demorariam algum tempo até despertar. Ela cingiu-se e tomou um cesto feito de vime bem largo, mas pouco fundo. Era a medida exata para a alimentação da família durante um dia normal de semana. Com gestos mecânicos, produto do automatismo do hábito diário, ela saiu da tenda. Estava ainda clareando no gigantesco arraial de Israel. Milhares de tendas com milhões de ocupantes no meio do deserto, no caminho do mar vermelho. Estavam nos limites da região de Edom. Tinham deixado para trás o monte Hor aonde Arão morrera e fora enterrado por ordem de Deus. A tenda de Milca ficava a meio do arraial da tribo de Dã no extremo nordeste do acampamento de Israel segundo a disposição das tribos que Moisés ordenara por orientação divina. A mulher aproximou-se de outra tenda e chamou com voz baixa: — Lia esperou pouco tempo e outra mulher surgiu do interior desta tenda com um largo sorriso nos lábios e olhar brilhante. — A Paz seja contigo — saudou a recém chegada. — E contigo seja a paz — retribuiu Milca. Ela e Lia eram companheiras e amigas desde a infância. Criadas no Egito ainda lembravam-se da terra do cativeiro. Casaram-se no deserto quase no mesmo dia e já embalavam os netos apesar de terem pouco mais de 40 anos. A amizade era algo tão natural que já não sabiam viver sem a outra ali ao lado, na tenda vizinha. Todos os dias iam juntas buscar o maná que Deus dava para a alimentação do povo no deserto. Era uma tarefa rotineira que permitia iniciar o dia com uma boa conversa. As duas seguiram em direção ao alimento por entre outras tendas armadas na vizinhança trocando pequenas informações pouco importantes da vida das respectivas famílias. A região era árida e pedregosa. Um vento quente e seco soprava
  • 50. [50] quase continuamente de leste e trazia com ele um cansaço fora do normal. A respiração parecia mais difícil neste clima inóspito e baixo desse calor opressivo. Mas a verdade é que já não se lembravam de quando não estavam no deserto caminhando de um lado para outro. Fora do arraial pararam. Lá estava o pão do céu como todos os dias. Uma camada de farinha amarelada, quase dourada, fina e fácil de recolher que cobria a região de forma milagrosa todas as manhãs sem falha. Cada família devia tomar o suficiente para o dia sob pena de perder o excedente que se estragava no dia seguinte. A única exceção era a sexta-feira. No Sábado não havia maná, mas a dose dupla recolhida na Sexta não se deteriorava. Tudo isso, prova tão inequívoca do cuidado divino, parecia Ter perdido sua importância para o povo. Á força de ver o milagre se repetir semanas e meses a fio o tornavam banal e até cansativo. — De vez em quando não tens vontade de comer uma coisa diferente? — perguntou Milca parando de colher por um instante. — Como assim? — estranhou Lia. — Comer comida de verdade. Comer algo fresco, bem suculento. Ainda não esqueci as frutas que tínhamos no Egito. A carne gostosa que é tão rara aqui no deserto. A água em abundância, o pão e os bolos dos padeiros egípcios. Estou farta de maná. São a mesma coisa todos os dias. — Mas que mais poderíamos pedir no deserto? Esta é uma prova do cuidado de Deus. Nunca nos faltou alimento. Não devemos desprezar um milagre assim. Lembra só da quantidade de gente que se alimenta disto todos os dias. — Sim... Todos os dias, e sempre o mesmo. E porque é que não saímos deste maldito deserto? Já vão mais de 30 anos andando aqui de um lado para outro. Às vezes acho que Moisés não sabe o que fazer. Não sabe para onde vai. — Não podes dizer isso. — reclamou Lia séria — Ele é o profeta de Deus. Além disso, é o Senhor que nos guia através da nuvem e da coluna de fogo. Não é Moisés que escolhe o caminho. — Pois Deus poderia Ter algo melhor a nos dar. Afinal é Deus só no
  • 51. [51] deserto? — Milca! Não fale assim! Já te esqueces-te de como o Senhor nos tirou do Egito? Ainda há poucas semanas não fomos vitoriosos sobre o Rei Arade dos cananeus? Não tomamos suas cidades? — E porque não ficamos nelas? Não eram melhores que o deserto? — A isso não posso responder, mas a verdade é que o Senhor sempre nos protegeu e nos guiou bem. Não é agora que vou começar a duvidar dele. — Pois eu não sou tão passiva como tu. Não vou ficar o resto da minha vida neste deserto. Já viste que quase toda a força adulta que saiu do Egito morreu neste deserto? Foi para isso que Deus nos tirou da escravidão? — Milca, tu sabes a razão — protestou Lia ainda com paciência — Fomos nós que tivemos falta de fé e deixamos de confiar no Senhor quando era hora de conquistar Canaã. Foi essa a promessa do Senhor, que a geração adulta morreria. — Mas começo a achar que nós também não vamos chegar a viver em Canaã. E está tão perto! — Deus tem seu tempo. Milca calou-se. Gostava tanto de Lia, mas às vezes não se entendiam. A amiga era tola e ingénua. Acreditava em tudo que Moisés e os levitas falavam. Afinal, havia que questionar um pouco. Porque eram os sacerdotes tão especiais? Não eram da família de Moisés? E Levi não era a sua tribo? Muito conveniente para Ele que ficassem na direção do povo... Lia também se manteve quieta. Ficava triste com a rebeldia de Milca. Era uma mulher trabalhadora e boa mãe, mas parecia não se submeter à lei de Deus e cumpria tudo mecanicamente. Não conseguia entender o valor do Senhor de Israel. Estava sempre a murmurar e a se lembrar do Egito. Alimentava seus ressentimentos constantemente. A tarefa da recolha de maná acabava. Por todo o deserto à volta do
  • 52. [52] acampamento viam-se pessoas recolhendo a sagrada farinha para seus familiares. As duas mulheres colocaram os cestos na cabeça e partiram em direção ás suas tendas ainda sem falar. Já perto de casa foi Milca quem quebrou o silêncio. — Acho que alguém deveria falar seriamente com Moisés sobre esta situação. Isto tem que acabar. Lia preferiu não responder. Já aprendera que não valia a pena argumentar com Milca, pois o que ela decidia estava decidido e pronto. As duas se separaram e o dia correu normalmente. Surgiu um boato de que um grupo de líderes tinha reclamado com Moisés sobre o maná e a constante permanência no deserto. Não constava que o homem de Deus tivesse respondido. Manso e sereno como sempre, deixara para Deus a resposta, pois na verdade era para o Senhor a questão. E a resposta veio mais depressa do que se poderia prever. Subitamente, sem que soubessem dizer de onde, começaram a surgir serpentes abrasadoras cuja picada era extremamente dolorosa. Os répteis pareciam brotar do nada e não havia lugar seguro. Estavam por toda a parte. Dentro das tendas. Por baixo das caixas e esteiras, no interior dos cestos e panelas de barro, no meio da areia, atrás das pedras. O povo estava totalmente vulnerável. As estórias de picadas fatais começaram a propagar-se à medida que crescia o número de pessoas mortas pelo veneno das cobras. O quadro era tétrico e aterrador. A pessoa era normalmente surpreendida pelas serpentes e atacada com violência sendo mordida uma ou mais vezes. Ao fim de dez minutos o local da mordida estava inchado por vezes em forma de bolha e com perda de sensação. A partir desse local se espalhava uma dor fina e aguda. A pessoa se mostrava em pânico e por vezes mesmo histérica. Em menos de meia hora estava corada, tonta ou até com vertigens e vomitando á medida que a tensão arterial descia. As vítimas então se queixavam de opressão no peito com dificuldade de respirar e alguns apresentavam febre. A pele no local da mordida ia ficando pálida e com mau cheiro indicando necrose. A pessoa ficava prostrada e começava a sangrar pelo nariz, gengivas e olhos. Normalmente em menos de duas horas estava já inconsciente e morria antes de completar três horas.
  • 53. [53] Todos os esforços para fazer parar essa evolução eram fúteis e o número de mortes cresceu em poucos dias junto com o temor das serpentes incutido no povo por todo o arraial. Constava que apenas na região da tribo de Levi perto do tabernáculo é que as serpentes não atacavam. Alguns homens tentaram organizar grupos de caça aos répteis, mas os resultados tinham sido muito fracos, pois as cobras pareciam proliferar mais a cada dia e vários dos caçadores tinham tido a mesma sorte das vítimas incautas. Em todo o acampamento o clamor era um só, e o reconhecimento do pecado crescia à medida que aumentavam os casos de fatalidade entre o povo. Milca e Lia também sofriam com esta situação. Também elas haviam visto as serpentes abrasadoras e tinham escapado por pouco de suas picadas mortais. Não podiam evitar a preocupação e, no entanto nada restava ao povo senão pedir a misericórdia de Deus. Era novamente manhã e as duas amigas recolhiam como sempre o maná cotidiano tão providencial. Nesta manhã, porém, estavam mais caladas do que habitualmente. — Ouviste sobre o Abiel? — perguntou Liz a meia voz. — Quem? O marido da Tamar? — tentou localizar Milca. — Sim, esse mesmo. — confirmou Lia — Foi picado ontem à tarde. Dizem que durou ainda menos que os outros. Milca abanou a cabeça indignada e como sempre reclamou: — E será que ninguém vai fazer nada a respeito disso? Vão simplesmente assistir ao povo sendo envenenado e morrendo? Que espécie de líderes é que temos? — Mas já fizeram. — respondeu Lia — Não ouvistes? — Ouvi o que? Sobre o grupo que foi a Moisés? — Fazer o que?
  • 54. [54] — Confessar o pecado do povo e pedir a Ele que intercedesse por nós a Deus. Afinal foram as nossas murmurações que trouxeram as serpentes. Foi um castigo para nossa rebeldia e ingratidão para com o Senhor. — Lá estas tu outra vez. — reclamou Milca — Mas o que foi que Moisés respondeu? — Ele orou a Deus. — Como sempre... — E o Senhor respondeu. Será que ninguém te contou? — Não ouvi nada. — Bem, o que me disseram ontem à noite é que Deus deu a Moisés a incumbência de fazer uma serpente semelhante as que andam por aí e colocá-la sobre uma estaca. Dizem que todo aquele que for mordido por uma cobra e olhar aquela serpente viverá. Moisés então uma serpente de bronze e a levantou lá no arraial de Levi perto do tabernáculo. — Essa é a solução? — disse Milca indignada — Então não havia coisa melhor a fazer? Porque não nos deu Moisés um remédio fácil que nos cure dessas malditas mordidas. Porque não nos deu um veneno que mate as cobras ou armadilhas para as apanharem? Porque não vamos embora deste deserto horrível onde moram estas cobras? Ou então, já que Moisés é tão íntimo de Deus, porque não ora simplesmente e pede a Deus que acabe de uma vez com essas cobras? Milca parecia enfurecida. Sua rebeldia crescia de dia para dia em vez de diminuir. O castigo pelo pecado de que ela também era culpada parecia não Ter lhe trazido qualquer convicção de pecado. Apenas queria o lado bom da aliança, as bênçãos. Não estava disposta a suportar a parte da obediência e do compromisso. Esbravejou mais um bocado sobre o ridículo que lhe parecia ser a solução de Deus por Moisés e então parou de falar. — Bem — iniciou Lia com calma — não sei bem porque o Senhor deu
  • 55. [55] essa solução a Moisés, mas foi o que ele mandou. Ele é nosso Deus e devemos obedecê-lo. — Pois me parece uma solução bem pouco criativa e muito inconveniente para nós! — Mas é eficaz segundo dizem. Já esta manhã eu mesma ouvi de pessoas que foram mordidas e olharam a serpente de bronze e ficaram curadas. — Mas teve que se deslocar uma distância enorme até o local da estaca que está convenientemente dentro do acampamento de Levi. Para nós são quase cinco quilômetros. — No entanto, é isso ou a morte! — Não sei se é tão simples assim. Duvidas de Deus? — Talvez de Moisés e seus artifícios. — Ele sempre nos guiou bem... Milca calou-se. Mais uma vez preferia ficar com sua opinião e deixar a amiga piedosa pensar o que quisesse. Ela é que não queria ouvir falar de andar até o tabernáculo por causa de uma mordida. Aliás, ela era cuidadosa e não seria picada. Não tinha nada a ver com a ralé do povo que mais precisava mesmo era de um corretivo. A tarde chegou e o sol declinou trazendo o início da noite. Lia foi preparar a refeição noturna e assim que acendeu o fogo uma pequena serpente pulou das chamas e a mordeu na mão. Ela gritou de dor e abafou a mão com um pano enquanto via a cobra fugir por baixo da tenda para fora. Primeiro se desesperou com a dor local e o inchaço. Colocou a mão na água e tentou esfregá-la, mas a dor crescia e parecia se espalhar pelo braço até o ombro ardendo muito na axila. Ela estava sozinha em casa e não hesitou. Tomou um archote e saiu. Mal saíra encontrou o marido de Milca que a procurava. A amiga acabara de ser picada e pedia ajuda. Lia mostrou a mão que começava a inchar visivelmente ao homem horrorizado. Na entrada da tenda de Milca ela surgiu arrastando a perna e a mancar um pouco.