1. A CIDADE E AS SERRAS - Eça de Queirós
(Resumo)
Por Livros
Resumo do Livro
Nota:
Share on emailShare on facebookShare on twitterShare on
stumbleuponMore Sharing Services
Análise da obra
Publicado em 1901, no ano seguinte ao da morte de Eça de
Queirós, o romance A Cidade e as Serras foi desenvolvido a
partir da idéia central contida no conto Civilização, datado de
1892. É um romance denso, belo, ao longo do qual Eça de
Queirós ironiza ferrenhamente os males da civilização,
fazendo elogio dos valores da natureza.
É uma obra das mais significativas de Eça de Queirós. Nela o escritor relata a travessia de
Jacinto de Tormes, um ferrenho adepto do progresso e da civilização - da cidade para as
serras. Ele troca o mundo civilizado, repleto de comodidades provenientes do progresso
tecnológico, pelo mundo natural, selvagem, primitivo e pouco confortável, no sentido dos
bens que caracterizam a vida urbana moderna, mas onde encontra a felicidade, mudando
radicalmente de opinião.
A Cidade e as Serras preconiza uma relação entre as elites e as classes subalternas na
qual aquelas promovessem estas socialmente, como faz Jacinto ao reformar sua
propriedade no campo e melhorar as condições vida dos trabalhadores.
Por meio do personagem central, Jacinto de Tormes, que representa a elite portuguesa, a
obra critica-lhe o estilo de vida afrancesado e desprovido de autenticidade, que enaltece o
progresso urbano e industrial e se desenraiza do solo e da cultura do país.
Na obra, a apologia da natureza não pode ser confundida com o elogio da mesmice e da
mediocridade da vida campestre de Portugal. Ao contrário, trata-se de agigantar o espírito
lusitano, em seu caráter ativo e trabalhador. Assim, podemos afirmar que depois da tese (a
hipervalorização da civilização) e da antítese (a hipesvalorização da natureza), o
protagonista busca a síntese, ou seja, o equilíbrio, que vem da racionalização e da
modernização da vida no campo.
Um argumento para tal interpretação está no fato de que, quando se desloca para a serra,
Jacinto sente uni irresistível ímpeto empreendedor, que luta inclusive contra as
resistências dos empregados ao trabalho.
Concluindo, Jacinto de Tormes, ao buscar a felicidade, empreendeu uma viagem que o
reencontrou consigo mesmo e com o seu país. Tal viagem, que concomitantemente é
exterior e interior, abarca a pátria portuguesa e se reveste de uma significação particular,
2. pode ser lida como um processo de auto-conhecimento: um novo Portugal e um novo
português se percebem nas serras que querem utilizam da cidade o necessário para se
civilizarem sem se corromperem.
Podemos considerar A Cidade e as Serras um romance no qual se destaca a categoria
espaço, na medida em que os ambientes são fundamentais para a compreensão da
história, destacando-se os contrastes por meio dos quais se contrapõem. Assim, a
amplidão da quinta de Tormes contrasta com a estreiteza do universo tecnológico do 202,
o que aponta para a oposição entre o espaço civilizado e o espaço natural, presente em
todo o romance.
Foco narrativo
Escrito em primeira pessoa, A Cidade e as Serras, como a maioria dos romances de Eça
de Queirós, há um narrador-personagem, José Fernandes, o qual não se confunde com o
protagonista da obra, Jacinto de Tormes. Este narrador coloca-se como menos importante
do que o protagonista, como podemos perceber, por exemplo, no início da obra.
Nos primeiros parágrafos do livro o narrador, em vez de apresentar-se ao leitor, coloca-se
em segundo plano para apresentar toda a descendência dos de Tormes, até aparecer a
figura de Jacinto. Além disso, dá-lhe tratamento diferenciado, parecendo idealizar Jacinto,
na medida em que o chama de "Príncipe da Grã-Ventura", conforme apelido estudantil do
protagonista.
Personagens
Uma particularidade da personagem José Fernandes, está na importância que dá aos
instintos, sobrepondo-os à sua capacidade de sentir ou de pensar. Assim, tanto desilusões
amorosas quanto preocupações sociais são tratadas com almoços extraordinários. Ao
longo do romance ele procura provar o engano que as crenças civilizatórias de seu amigo,
Jacinto de Tormes, podem conduzir, embora o admire exageradamente.
Jacinto de Tormes é filho de uma família de fidalgos portugueses, mas nascido e criado
em Paris. Se cerca de artefatos da civilização e de tudo o que a ciência produz de mais
moderno. Entretanto, o excesso de ócio e conforto o entedia, a ponto de fazê-lo perder o
apetite, a sede lendária, a robustez física e a disposição intelectual da juventude. Levado
pelas circunstâncias a conhecer suas propriedades nas serras portuguesas, apaixona-se
pelo campo, lá introduzindo algumas inovações.
Mesmo em contato com a natureza, Jacinto não abandona alguns de seus hábitos
urbanos. Desenha futuras hortas, planeja bibliotecas na quinta, traz banheiras e vidros
desconhecidos dos habitantes do lugar. Por fim, manda instalar uma linha telefônica nas
serras, o que comprova que no fundo não houve grandes modificações em suas crenças.
Ele representa não apenas uma crítica do escritor à ultracivilização, mas também a utopia
de um novo Portugal, uma nova pátria, capaz de modernizar-se, sem perder as tradições e
as particularidades nacionais.
3. Trata-se, enfim, de um D. Sebastião atualizado pelo socialismo e pelo positivismo. A
trajetória percorrida pelo protagonista Jacinto de Tormes deve-se em grande parte, às
instâncias e insistências de José Fernandes, que ao mesmo tempo é contador da história
e um de seus personagens principais.
Os personagens ligados à vida no campo caracterizam-se por atitudes simples e
transparentes, embora tradicionalistas. Um exemplo pode ser o avó de Jacinto, Gatão,
cuja ligação ancestral com o referido ambiente manifesta-se pela total devoção à realeza
absolutista, que o leva a abandonar Portugal depois da expulsão de D. Miguel.
Entretanto, a melhor representação desse grupo de personagens da obra pode ser
atribuída a Joaninha, a mulher por quem Jacinto se apaixona, graças a seus atributos
naturais e sua simplicidade de espírito.
Enredo
O narrador centraliza seu interesse na figura de um certo Jacinto, descrevendo-o como um
homem extremamente forte e rico, que, embora tenha nascido em Paris, no 202 dos
Campos Elíseos, tem seus proventos recolhidos de Portugal, onde a família possui
extensas terras, desde os tempos de D. Dinis, com plantações e produção de vinho,
cortiça e oliveira, que lhe rendem bem.
O avô de Jacinto, também Jacinto, gordo e rico, a quem chamavam D. Galeão, era um
fanático miguelista. Quando D. Miguel deixou o poder, Jacinto Galeão exilou-se
voluntariamente em Paris, lá morrendo de indigestão. D. Angelina Fafes, após a morte do
marido, não regressou a Portugal, e, em Paris, criou seu filho, o franzino e adoentado
Cintinho que se casou com a filha de um desembargador, nascendo desta união nosso
protagonista.
Desde pequeno Jacinto brilhara, quer por sua inteligência, quer por sua capacidade. Aos
23 anos tornou-se um soberbo rapaz, vestido impecavelmente, cabelos e bigodes bem
tratados, e feliz da vida. Tudo de melhor acontecia com ele, sendo chamado pelos
companheiros de “Príncipe da Grã-Ventura”.
Positivista animado, Jacinto defendia a idéia de que “o homem só é superiormente feliz
quando é superiormente civilizado”. A maior preocupação de Jacinto era defender a tese
de que a civilização é cidade grande, é máquina e progresso que chegavam através do
fonógrafo, do telefone cujos fios cortam milhares de ruas, barulhos de veículos,
multidões... Civilização é enxergar à frente.
Com estes olhos que recebemos da Madre Natureza, lestos e sãos, nós podemos apenas
distinguir além, através da Avenida, naquela loja, uma vidraça alumiada. Nada mais! Se eu
porém aos meus olhos juntar os dois vidros simples de um binóculo de corridas, percebo,
por trás da vidraça, presuntos, queijos, boiões de geléia e caixas de ameixa seca.
Concluo, portanto, que é uma mercearia.
4. Obtive uma noção: tenho sobre ti, que com os olhos desarmados vês só o luzir da vidraça,
uma vantagem positiva. Se agora, em vez destes vidros simples, eu usasse os de meu
telescópio, de composição mais científica, poderia avistar além, no planeta Marte, os
mares, as neves, os canais, o recorte dos golfos, toda a geografia de um astro que circula
a milhares de léguas dos Campos Elísios. É outra noção, e tremenda!
Tens aqui, pois, o olho primitivo, o da natureza, elevado pela Civilização à sua máxima
potência da visão. E desde já, pelo lado do olho, portanto, eu, civilizado, sou mais feliz que
o incivilizado, porque descubro realidades do universo que ele não suspeita e de que está
privado. Aplica esta prova a todos os órgãos e compreende o meu princípio.
Enquanto à inteligência, e à felicidade que dela se tira pela incansável acumulação das
noções, só te peço que compares Renan e o Grilo... Claro é, portanto, que nos devemos
cercar de Civilização nas máximas proporções para gozar nas máximas proporções a
vantagem de viver.
Em fevereiro de 1880, José Fernandes foi chamado pelo tio e parte para Guiães e,
somente após sete anos de vida na província, retorna e reencontra Jacinto no 202 dos
Campos Elíseos.
O narrador presenciou coisas espantosas: um elevador para ligar dois andares do
palacete; no gabinete de trabalho havia aparelhos mecânicos cheios de artifício; e,
enquanto Jacinto escreve para Madame d’Oriol, José Fernandes visita uma enorme
biblioteca de trinta mil títulos, os mais diversos possíveis, dos mais renomados autores às
mais diferentes ciências. A visita termina com uma refeição em que foram servidas as mais
sofisticadas iguarias e um convite de Jacinto ao narrador que ele se hospede no 202.
Primeiros desencantos
José Fernandes, a partir daí, pôde observar com maior atenção o amigo; suas intensas
atividades o desgastavam e, com o passar do tempo, constatou que Jacinto foi perdendo a
credulidade, percebendo a futilidade das pessoas com quem convivia, a inutilidade de
muitas coisas da sua tão decantada civilização.
Nos raros momentos em que conseguiam passear, confessava ao amigo que o barulho
das ruas o incomodava, a multidão o molestava: ele atravessava um período de nítido
desencanto.
Alguns incidentes contribuíram sobremaneira para afetar o estado de ânimo de Jacinto: o
rompimento de um dos tubos da sala de banho, fazendo jorrar água quente por todo o
quarto, inundando os tapetes, foi o bastante para aparecer uma pilha de telegramas,
alguns inclusive com um riso sarcástico, com o do Grão-duque Casimiro, dizendo que não
mais apareceria pelo 202 sem que tivesse uma bóia de salvação.
5. As reuniões sociais estavam ficando maçantes. Em uma recepção ao Grão-Duque, Jacinto
já não agüentava o farfalhar das sedas das mulheres quando lhes explicava o uso dos
diferentes aparelhos, o tetrafone, o numerador de páginas, o microfone...
O criado veio lhe informar que o peixe a ser servido ficara preso no elevador e os
convidados puseram-se a pescá-lo, inutilmente, porque o peixe acabou não indo para a
mesa, fato que deixou ainda mais aborrecido o anfitrião.
Claramente percebia eu que o meu Jacinto atravessava uma densa névoa de tédio, tão
densa, e ele tão afundado na sua mole densidade, que as glórias ou os tormentos de um
camarada não o comoviam, como muito remotas, inatingíveis, separadas da sua
sensibilidade por imensas camadas de algodão.
Pobre Príncipe Grã-Ventura, tombado para o sofá de inércia, com os pés no regaço do
pedicuro! Em que lodoso fastio caíra, depois de renovar tão brava mente todo o recheio
mecânico e erudito do 202, na sua luta contra a força e a matéria!
Preocupado, Zé Fernandes consulta o fiel criado Grilo sobre o que está ocorrendo com
Jacinto. O homem respondeu com tamanho conhecimento de causa que espantou o
narrador. Uma simples palavra poderia definir todo o tédio de que era acometido: o patrão
sofria de “fartura”.
Era fartura! O meu Príncipe sentia abafadamente a fartura de Paris; e na Cidade, na
simbólica Cidade, fora de cuja vida culta e forte (como ele outrora gritava, iluminado) o
homem do século XIX nunca poderia saborear plenamente a "delícia de viver", ele não
encontrava agora forma de vida, espiritual ou social, que o interessasse, lhe valesse o
esforço de uma corrida curta numa tipóia fácil.
Pobre Jacinto! Um jornal velho, setenta vezes relido desde a crônica até aos anúncios,
com a tinta delida, as dobras roídas, não enfastiaria mais o solitário, que só possuísse na
sua solidão esse alimento intelectual, do que o parisianismo enfastiava o meu doce
camarada!
Se eu nesse verão capciosamente o arrastava a um café-concerto, ou ao festivo Pavilhão
d'Armenonville, o meu bom Jacinto, colado pesadamente à cadeira, com um maravilhoso
ramos de orquídeas na casaca, as finas mãos abatidas sobre o castão da bengala,
conservava toda a noite uma gravidade tão estafada, que eu, compadecido, me erguia, o
libertava, gozando a sua pressa em abalar, a sua fuga de ave solta... Raramente (e então
com veemente arranque como quem salta um fosso) descia a um dos seus clubes, ao
fundo dos Campos Elíseos.
Não se ocupara mais das suas sociedades e companhias, nem dos telefones de
Constantinopla, nem das religiões esotéricas, nem do bazar espiritualista, cujas cartas
fechadas se amontoavam sobre a mesa de ébano, de onde o Grilo as varria tristemente
como o lixo de uma vida finda.
6. Também lentamente se despegava de todas as sua convivências. As páginas da agenda
cor-de-rosa murcha andavam desafogadas e brancas. E se ainda cediam a um passeio de
mail-coach, ou a um convite para algum castelo amigos dos arredores de Paris, era tão
arrastadamente, com um esforço saturado ao enfiar o paletó leve, que me lembrava
sempre um homem, depois de um gordo jantar de província, a estalar, que, por polidez ou
em obediência a um dogma, devesse ainda comer uma lampreia de ovos!
Jazer, jazer em casa, na segurança das portas bem cerradas e bem fendidas contra toda a
intrusão do mundo, seria uma doçura para o meu Príncipe se o seu próprio 202, com todo
aquele tremendo recheio de Civilização, não lhe desse uma sensação dolorosa de
abafamento, de atulhamento!
Certo dia, enquanto esperavam ser recebidos por Madame d'Oriol, José Fernandes e
Jacinto subiram à Basílica do Sacré-Coeur, em construção no alto de Montmartre. Ao se
recostarem na borda do terraço, puderam contemplar Paris envolta em uma nuvem
cinzenta e fria, motivando profunda reflexões, pois a cidade - tão cheia de vida, de ouro, de
riquezas, de cultura e resplandecência, incluindo o soberbo 202, com todas as suas
sofisticações - estava agora sucumbida sob as nuvens cinzentas, a cidade não passava de
uma ilusão.
(...) uma ilusão! E a mais marga, porque o homem pensa ter na cidade a base de toda a
sua grandeza e só nela tem a fonte de toda a sua miséria. Vê, Jacinto! Na Cidade perdeu
ele a força e beleza harmoniosa do corpo e se tornou esse ser ressequido e escanifrado
ou obeso e afogado em unto de ossos moles como trapos, de nervos trêmulos como
arames, com cangalhas, com chinós, com dentauros de chumbo sem sangue, sem febre,
sem viço, torto, corcunda - esse ser em que Deus, espantado , mal pôde reconhecer o seu
esbelto e rijo e nobre Adão!
Na Cidade findou a sua liberdade moral; cada manhã ela lhe impõe uma necessidade, e
cada necessidade o arremessa para uma dependência; pobre e subalterno, a sua vida é
um constante solicitar, adular, vergar, rastejar, aturar: rico e superior como um Jacinto, a
sociedade logo o enreda em tradições, preceitos, etiquetas, cerimônias, prazer, ritos,
serviços mais disciplinares que os de um cárcere ou de um quartel... A sua tranqüilidade
(bem tão alto que Deus com ele recompensa os santos) onde está, meu Jacinto?
Sumida para sempre, nessa batalha desesperada pelo pão ou pela fama, ou pelo poder,
ou pelo gozo, ou pela fugidia rodela de ouro! Alegria como a haverá na Cidade para esses
milhões de seres que tumultuam na arquejante ocupação de desejar - e que, nunca
fartando o desejo, incessantemente padecem de desilusão, desesperança ou derrota? Os
sentimentos mais genuinamente humanos logo na cidade se desumanizam!
Vê, meu Jacinto! São como luzes que o áspero vento do viver social não deixa arder com
serenidade e limpidez; e aqui abala e faz tremer; e além brutamente apaga; e adiante
obriga a flamejar com desnaturada violência. As amizades nunca passam de alianças que
o interesse, na hora inquietada da defesa ou na hora sôfrega do assalto, ata
apressadamente com um cordel apressado, e que estalam ao menor embate da rivalidade
7. ou do orgulho.
E o amor, na Cidade, meu gentil Jacinto? Considera esses vastos armazéns com
espelhos; onde a nobre carne de Eva se vende, tarifada ao arrátel, como a de vaca!
Contempla esse velho deus do himeneu, que circula trazendo em vez do ondeante facho
da paixão a apertada carteira do dote!
(...) Mas o que a Cidade mais deteriora no homem é a Inteligência, porque ou lha
arregimenta dentro da banalidade ou lha empurra para a extravagância. Nesta densa e
pairante camada de idéias e fórmulas que constitui a atmosfera mental das cidades, o
homem que a respira, nela envolto, só pensa todos os pensamentos já pensados só
exprime todas as expressões já exprimidas; ou então, para se destacar na pardacenta e
chata rotina e trepar ao frágil andaime da gloríola, inventa num gemente esforço, inchando
o crânio, uma novidade disforme que espante e que detenha a multidão. (...)
Assim, meu Jacinto, na Cidade, nesta criação tão antinatural onde o solo é de pau e feltro
e alcatrão, e o carvão tapa o céu, e agente vive acamada nos prédios com o paninho nas
lojas, e a claridade vem pelos canos, e as mentiras se murmuram através de arames - o
homem aparece como uma criatura anti-humana, sem beleza, sem força, sem liberdade,
sem riso, sem sentimento, e trazendo em si uma espírito que é passivo como um escravo
ou impudente como um histrião... E aqui tem o belo Jacinto o que é a bela Cidade!
Zé Fernandes continuou a filosofar, acrescentando preocupações de caráter pessoal,
indagando a posição dos pequenos que, como vermes, se arrastavam pelo chão,
enquanto os poderosos os massacravam; eles iam às óperas aquecidos, lançando aos
pobres não mais que algumas migalhas. Religiosamente, acreditava ser necessário um
novo Messias que ensinasse às multidões a humildade e a mansidão.
Só uma estreita e reluzente casta goza na Cidade e os gozos especiais que ele a cria. O
resto, a escura, imensa plebe, só nela sofre, e com sofrimento especiais, que só nela
existem! (...) A tua Civilização reclama incansavelmente regalos e pompas, que só obterá,
nesta amarga desarmonia social, se o capital der ao trabalho, por cada arquejante esforço,
uma migalha ratinhada. Irremediável é, pois, que incessantemente a plebe sirva, a plebe
pene! A sua esfalfada miséria é a condição do esplendor sereno da Cidade. (...)
Pensativamente deixou a borda do terraço, como se a presença da Cidade, estendida na
planície, fosse escandalosa. E caminhamos devagar, sob a moleza cinzenta da tarde,
filosofando - considerando que para esta iniqüidade não havia cura humana, trazida pelo
esforço humano.
Ah, os Efrains, os Trèves, os vorazes e sombrios tubarões do mar humano, só
abandonarão ou afrouxarão a exploração das plebes, se uma influência celeste, por
milagre novo, mais alto que os milagres velhos, lhes converter as almas! O burguês triunfa,
muito forte, todo endurecido no pecado - e contra ele são impotentes os prantos dos
humanitários, os raciocínios dos lógicos, as bombas dos anarquistas. Para amolecer tão
8. duro granito só uma doçura divina. Eis pois a esperança da Terra novamente posta num
Messias!...
O auto da compadecida
A peça retoma elementos do teatro popular, contidos nos autos medievais, e da literatura de
cordel para exaltar os humildes e satirizar os poderosos e os religiosos que se preocupam
apenas com questões materiais.
- Leia a análise de O auto da Compadecida
Resumo
A primeira peripécia narrativa da peça, o enterro do cachorro, pode ser encontrada em
diversas obras anteriores, como no cordel "O Dinheiro", de Leandro Gomes de Barros (1865-
1918). Nesse cordel, um cachorro também deixara uma soma em dinheiro no testamento com
a condição de que fosse ―enterrado em latim‖.
As duas próximas peripécias, ambas encontradas na segunda parte da peça (que pode ser
dividida em três atos), apresentam um gato que supostamente ―descome‖ dinheiro e de um
instrumento musical que seria capaz de ressuscitar os mortos. Essas duas estruturas narrativas
estão no romance de cordel "História do Cavalo que Defecava Dinheiro", também de Leandro
Gomes de Barros.
Na peça, porém, Suassuna substituiu o cavalo por um gato, certamente para facilitar a
encenação. Esse é um exemplo de como uma necessidade prática pode influir na narrativa,
obrigando o autor a transformá-la conforme as necessidades impostas pela forma de
apresentação.
A apropriação da tradição, ao contrário de ser facilitada pela tematização prévia, é
dificultada, pois, ao imitar, é preciso fazer jus a quem se imita, superando-o ou pelo menos
igualando-se a ele em qualidade e inventividade. No texto de Leandro Gomes, o instrumento
musical capaz de levantar defuntos era uma rabeca e, em Suassuna, passa a ser uma gaita,
provavelmente também por causa de uma necessidade cênica.
No último ato da peça ocorre o julgamento dos personagens que foram mortos por Severino
de Aracaju, e do próprio Severino, morto por uma facada de João Grilo. É impossível não
pensar no "Auto da Barca do Inferno", de Gil Vicente, em que uma série de personagens é
julgada por seus atos em terra e tem como juízes um anjo e um demônio. A fonte direta de
Suassuna, porém, estava mais próxima. É "O Castigo da Soberba", romance popular
nordestino, de autoria anônima, no qual a compadecida aparece para salvar um grupo de
condenados.
Fica patente o cunho de sátira moralizante da peça, que assume uma posição cujo foco está
na base da pirâmide social, a melhor maneira de desvelar os discursos mentirosos das
autoridades e integrar os homens e mulheres por meio da compaixão, a qual só os
desprendidos podem desenvolver. Nesse aspecto, a moral que se depreende da peça é muito
semelhante à do cristianismo primitivo, que se baseava no preceito ―amai-vos uns aos
outros‖.
Personagens
Os personagens de "Auto da Compadecida" são alegóricos, ou seja, não representam
indivíduos, mas tipos que devem ser compreendidos de acordo com a posição estrutural que
9. ocupam. A criação desses personagens possibilita que se enxergue a sociedade de uma
cidadezinha do Nordeste. É por isso que a peça pode ser chamada sátira social, pois procura
reformar os costumes, moralizar e salvar as instituições de sua vulgarização.
Palhaço: é o anunciador da peça e também o grande comentador das situações. Suas falas
apresentam muitas vezes um discurso mais direto, que dá a impressão de vir do autor. Na
verdade, o Palhaço exerce função metalinguística no espetáculo, ao refletir sobre o próprio
mecanismo mágico de produção da imitação e ao suprimir a distância entre realidade e
representação.
João Grilo: protagonista, personagem pobre e franzino, que usa de sua infinita astúcia para
garantir a sobrevivência. Já foi comparado a Macunaíma, o herói sem caráter. Tal
comparação, no entanto, revela-se inadequada, já que João Grilo, ao contrário do
personagem criado por Mário de Andrade, trabalha de forma dura, ajuda seu grande amigo
Chicó e tem como justificativa de suas traquinagens ser assolado por uma pobreza absoluta. O
mais acertado seria compará-lo ao personagem picaresco, encontrado no romance medieval
Lazarilho de Tormes. Mas nem é preciso ir tão longe, pois Pedro Malazarte – cuja origem
ibérica está em Pedro Urdemalas – é o personagem popular mais próximo de João Grilo.
Chicó: é o contador de causos, o mentiroso ingênuo que cria histórias apenas para satisfazer
um desejo inventivo. Chicó se aproxima do narrador popular, e suas histórias revelam muito
do prazer narrativo desinteressado da cultura popular. Chicó e João Grilo são como a dupla de
palhaços entre os quais a esperteza é mal repartida — um sempre a tem de mais e o outro, de
menos.
Padre João: mau sacerdote local, preocupado apenas em angariar fundos para sua
aposentadoria.
Sacristão: outro exemplo de mau religioso.
Bispo: juntamente com o padre João e o sacristão, ajudará a compor o quadro de
representação da Igreja corrompida.
Antônio Moraes: típico senhor de terras, truculento e poderoso, que se impõe pelo medo,
pelo dinheiro e pela força.
Padeiro: representante da burguesia interessada apenas em acumular capital, explora seus
empregados e tem acordos com as autoridades da Igreja.
Mulher do padeiro: esposa infiel e devassa, tem amor genuíno apenas por seus animais de
estimação.
Frade: bom sacerdote, serve, no enredo da peça, para salvaguardar a instituição Igreja das
críticas do autor.
Severino do Aracajú: cangaceiro violento e ignorante.
Cangaceiro: ajudante de Severino, seu papel é apenas puxar o gatilho e executar outros
personagens.
Demônio: ajudante do Diabo, parece disposto a condenar todos os personagens mortos no
final do segundo ato.
10. O Encourado (o Diabo): segundo uma crença nordestina, o diabo utiliza roupas de couro e
veste-se como um boiadeiro. Funciona como uma espécie de antagonista de João Grilo; como
ele, também é astuto, mas acaba sendo derrotado pelo herói.
Manuel (Nosso Senhor Jesus Cristo): personagem que simboliza o bem, porém um bem sem
misericórdia. É representado por um ator negro, a fim de que isso produza um efeito de
estranhamento no público.
A Compadecida (Nossa Senhora): heroína da peça, funciona como uma advogada de João
Grilo e de seus conterrâneos, derrotando com seus argumentos cheios de misericórdia os
planos do Encourado de levar todos ao inferno.
Sobre Ariano Suassuna
Ariano Suassuna nasceu na cidade de João Pessoa, Paraíba, em 16 de junho de 1927. Quando
tinha cerca de três anos de idade, seu pai foi assassinado por motivos políticos durante a
Revolução de 30 e após isso o restante da família mudou-se para Taperoá, no sertão
paraibano. Nessa cidade ele realizou seus primeiros estudos e começou a se familiarizar com
a linguagem e cultura do sertão nordestino.
Em 1942, mudou-se com a família para o Recife, onde terminou seus estudos. Iniciou em 1946
a Faculdade de Direito, onde conhece Hermilo Borba Filho e com ele funda o Teatro do
Estudante de Pernambuco. Em 1947, Ariano Suassuna publica sua primeira peça, Uma mulher
vestida de sol, com a qual ganhou o prêmio Nicolau Carlos Magno.
Em 1950, forma-se em Direito e passa a exercer também a carreira de advogado. Após
escrever mais algumas peças, Suassuna publica O Auto da Compadecida em 1955. Dois anos
depois, essa peça é encenada pelo Teatro Adolescente do Recife e ganha a medalha de ouro
da Associação Brasileira de Críticos Teatrais, projetando o escritor para todo o país.
Em 1957, abandona a carreira de advogado para tornar-se professor na Universidade Federal
de Pernambuco. No ano seguinte, casa-se com Zélia de Andrade Lima, com a qual teve seis
filhos. Mais uma vez junto com Hermilio Borba Filho, funda em 1959 o Teatro Popular do
Nordeste. Além disso, foi membro fundador do Conselho Federal de Cultura (1967) e do
Conselho Estadual de Cultura de Pernambuco (1968).
Em 1969, Suassuna foi nomeado Diretor do Departamento de Extensão Cultural da
Universidade Federal de Pernambuco, cargo que ocupou até o ano de 1974. Nessa mesma
universidade, doutorou-se em História em 1976 e ocupou o cargo de professor de Estética e
Teoria do Teatro, dentre outras matérias, durante mais de trinta anos.
Em 1970, lança o Movimento Armorial, que se interessava pelo conhecimento e
desenvolvimento das formas de expressão populares tradicionais.
Suas principais obras são: "Uma mulher vestida de sol" (1947), "O castigo da soberba" (1953),
"O rico avarento" (1954), "O Auto da Compadecida" (1955), "O santo e a porca" (1957), "A
caseira e a Catarina" (1962) e "O Romance d'A Pedra do Reino e o Príncipe do Sangue do Vai-e-
Volta" (1971).
hicó e João Grilo, personagens principais da peça, conseguem um emprego na
padaria da cidade, onde vivem o Padeiro e a Mulher do Padeiro. Os patrões
cuidam melhor da cadela do que dos seus empregados. João Grilo sempre
11. reclama que há “bife passado na manteiga para a cadela e fome para João
Grilo”.
Quando a cadela morre, a Mulher do Padeiro exige que João Grilo e Chicó
peçam ao padre que benza sua cachorra antes do enterro. O padre não
concorda e João Grilo, amarelo esperto e embromador, alega que a cachorra é
do temido Major Antônio Morais e, então, o padre aceita.
Para conseguir que o padre realizasse o enterro em latim, João Grilo também
diz que a cachorrinha era uma cristã devota e que deixara em testamento 10
contos de reis para a igreja.
O padre realiza o desejo de todos e quando voltam à igreja encontram o bispo
contrariado que logo se arrefece ao saber que a cachorrinha deixara 7 contos
de réis para a paróquia, ou seja, sob sua responsabilidade e 3 contos de réis
para a igreja.
Chicó apaixona-se pela filha de Major Antônio Morais, Rosinha, e junto com
João Grilo engendram um plano para conseguir a benção do major.
Em uma de suas armações, onde Chicó deveria parecer valente diante de
todos, eles se encontram com o cangaceiro Severino que faz com que seu
subordinado mate o padre, o bispo, o Padeiro e a Mulher do Padeiro.
Na vez de João Grilo e Chicó, João Grilo engana Severino com uma gaita
mágica que ressuscita mortos e Severino, crente que visitaria seu Padrinho
Padre Cícero e depois voltaria, pede ao seu guarda que o mate. O subordinado
vendo que seu chefe não voltava, mata João Grilo e foge.
Todos se encontram no céu para o julgamento final e, após uma discussão
acirrada com o Diabo, João Grilo consegue a presença de Nossa Senhora que
sugere ao filho, Jesus Cristo, que envie Severino diretamente para o céu, pois
ele não era responsável pelos seus atos, que envie o Padeiro, a Mulher do
Padeiro, o padre e o bispo para o purgatório, pois na hora da morte todos
perdoaram seus agressores, e que João Grilo volte para terra.
Quando João Grilo volta, encontra Chicó e os dois conseguem fugir com
Rosinha e seguem juntos seu caminho pelo sertão.
ESTRELA DA VIDA INTEIRA - Manuel Bandeira
(Resumo)
Por Livros
Resumo do Livro
Nota:
Share on emailShare on facebookShare on twitterShare on
stumbleuponMore Sharing Services
A Obra
12. A posição entre uma natureza apaixonada que aspirava a plenitude, e o exílio em que a
doença o obrigara a viver, marcaram profundamente a sua sensibilidade, traduzindo-se, no
plano estrutural, pelo gosto das antíteses, dos paradoxos, nos contrastes violentos; no
plano emocional, por um movimento polar, uma oscilação constante que, no decorrer da
obra, vai alternar a atitude de serenidade melancólica e o sentimento de revolta impotente.
(Gilda e Antonio Cândido de Mello e Souza - Introdução in Estrela da vida inteira)
Pasárgada: a poesia das coisas mais simples
Quando Manuel Bandeira morreu, em outubro de 1968, um jornal dedicou-lhe a manchete
Bandeira, enfim, Pasárgada! em referência ao seu mais conhecido poema - Vou-me
embora pra Pasárgada. Neste poema o poeta evoca a vida que poderia ter sido e que não
foi, uma espécie de paraíso pessoal, lugar de sonhos e de desejos, em que ele poderia
realizar as felicidades mais simples, como andar em burro bravo, subir em pau-de-sebo,
andar de bicicleta, tomar banho de mar...
A enumeração, neste lugar ideal, de fantasias tão simples e despojadas já revela um dado
biográfico que se transformará em fonte de muitos temas da poesia de Bandeira: a
presença da morte, anunciada em plena adolescência, sob a forma de uma tuberculose,
doença mortal na época (início do século XX). (...) fui vivendo, morre-não-morre, e, em
1914, o doutor Bodner, médico-chefe do Sanatório de Clavadel, tentando-lhe eu
perguntado quantos anos me restariam de vida, me respondeu assim: o senhor tem lesões
teoricamente incompatíveis com a vida: no entanto, está sem bacilos, come bem, dorme
bem, não apresenta em suma nenhuma sintoma alarmante. Pode viver cinco, dez, quinze
anos...
Quem poderá dizer? Continuei esperando a morte para qualquer momento, vivendo
sempre como que provisoriamente. (Manuel Bandeira - Itinerário de Pasárgada)
A permanente consciência da morte, a luta contra ela, a convivência com sua presença -
fazedoras de ausências - transformam-se poeticamente numa descoberta essencial de
vida, numa valorização intensa da existência mais cotidiana, redescoberta como única,
irrepetível, insubstituível.
Não é possível separar a experiência de vida da experiência poética do autor de
Pasárgada, embora sua poesia - de uma universalidade intensa, ardente e simples - não
possa ser reduzida a acontecimentos biográficos, que se revelam matrizes de imagens, de
emoções, de ritmos, transfigurados na alquimia da criação.
O critico Alfredo Bosi, em sua História concisa da literatura brasileira, escreve: (...)
veremos que a presença do biográfico é ainda poderosa mesmos nos livros de inspiração
absolutamente moderna, como Libertinagem, núcleo daquele seu não-me-importismo
irônico, e, no fundo, melancólico, que lhe deu uma fisionomia tão cara aos leitores jovens
desde 1930.
O adolescente mau curado da tuberculose persiste no adulto solitário que olha de longe o
13. carnaval da vida e de tudo faz matéria para os ritmos livres do seu obrigado
distanciamento.
A sua obra, escrita ao longo de mais de meio século, atravessa praticamente toda a
história do Modernismo no Brasil e apresenta muitos dos mais expressivos livros da poesia
moderna, como Ritmo dissoluto, Libertinagem, Estrela da manhã e outros.
Estrela da vida inteira / Da vida que poderia / Ter sido e não foi. Poesia, / Minha vida
verdadeira.
Nascido na Recife, em 1886, tendo passado a infância principalmente no Rio e no próprio
Recife, Manuel Bandeira publica seu primeiro livro de poema em 1917 - A cinza das horas,
que será seguido por Carnaval, em 1919, em que apresenta pela primeira vez, versos
livres na literatura brasileira. Conhece Mario de Andrade e os modernistas paulistas em
1921.
Não participa diretamente da Semana de Arte Moderna de 1922, mas o seu poema Os
sapos, paródia contundente dos parnasianos, provoca um dos momentos de maior
escândalo, ao ser lido por Ronald de Carvalho, no Teatro Municipal de São Paulo, no dia
15 de fevereiro: o de maior polemica de toda a Semana.
A partir de então, não é possível pensar a poesia moderna no Brasil sem a presença de
Bandeira, que atravessará todas as chamadas fases do Modernismo, com uma produção
poética de mais alto nível. Já na fase heróica, de 1922, em que a ruptura com o passado e
com as estruturas estabelecidas era a mais vital palavra de ordem, Mário de Andrade
chamava o poeta de S. João Batista do Modernismo, reconhecendo o seu papel de
anunciador da nova poesia.
Aos poemas de Bandeira nascem e crescem dos acontecimentos mais cotidianos, mais
comuns, dos momentos que aparentemente são banais e insignificantes. Do dia-a-dia mia
desapercebido desentranha sua poesia, em que instantes da existência aparecem
transfigurados em pura essencialidade da vida.
Detalhes prosaicos e perdidos na rotina descolorida dos dias revelam-se instantes de
iluminação, instantes de transcendência e de proximidade da essência mais profunda - e
mais simples - da vida. O grande milagre da existência, a mais cotidiana, que a
consciência da morte revelará como algo intenso, único, irrepetível.
Sua linguagem coloquial e, despojada, atinge algum dos momentos mais expressivos da
língua: grande intensidade, grande condensação, com imensa simplicidade. Ao lado de
Carlos Drummond, Bandeira é o grande incorporador do prosaico e do coloquial na poesia
brasileira moderna.
... a poesia está em tudo - tanto nos amores como nos chinelos, tanto nas coisas lógicas
como nas disparatas.
14. Uma poética de iluminações da existência cotidiana, com a mais expressiva
coloquialmente, e com intensa condensação de imagens e ritmos, a obra de Bandeira
lembra muitas vezes a criação poética dos haicais japoneses, em que se flagram instante
de plenitude, de frágil e plena percepção da vida, concentrada em um detalhe
aparentemente banal.
Ao mesmo tempo, em unidade indissociável, a obra de Bandeira representa a mais longa
convivência com a morte, de toda a poesia brasileira. Sem ser dominado pelo desespero,
sem ser possuído pelo medo, sem dramatizações retóricas. Com amadurecida amargura.
Com ironia e auto-ironia, melancólicas. Com sofrida serenidade. Com nostalgia da vida
que poderia ter sido e que não foi e nem será.
Até mesmo com ternura pela morte, companhia constante de muitos anos, interlocutora
secreta que, paradoxalmente, revela o valor absoluto de cada dia, de cada pessoa, de
cada coisa. A sabedoria da morte - quando se descobre que não apenas os outros morrem
- transformou-se, como em muitas correntes filosóficas, em sabedoria de vida. A
importância da existência, de cada um: simples, essencial, passageira. Milagre. E a morte,
também milagre.
Bandeira é poeta da mais intensa ternura. De ardor terno e intenso pela vida. Uma
sensibilidade moderna, não grandiloqüente. Ternura melancólica pela infância perdida, e
por seus personagens. Ternura ardente pelo corpo. A sua poesia amorosa revela-se como
ardente lírica erótica.
Poesia do corpo, de grande intensidade. Os corpos se estendem, as almas não. Imagens
eróticas que se tornam experiências sagradas, transcendentalizadas, tal a naturalidade, o
ardor e a intensidade da ternura. O físico se funde com o onírico, terna e
desconcertantemente.
Além disso, revela-se um dos mais versáteis e flexíveis fazedores de versos do
modernismo brasileiro. Suas estruturas de métrica e de ritmo vão desde as mais libertárias
experiências de verso livre, dos fluxos mais soltos e irregulares até as estruturas mais
tradicionais, de verso em redondilhas da lírica medieval, dos versos decassílabos clássicos
e neoclássico e outros combinados com variadas formas fixas de estrófica regular, com
sonetos, canções etc.
Um fazedor de versos e estrofes extremamente versátil, com raro domínio técnico e com
grande erudição, capaz de traduzir de varias línguas e de escrever à moda de, imitando
estilos os mais diversos, da época e autores.
Manuel Bandeira é também expressivo criador de imagens, com igual e desconcertante
simplicidade. Nas constelações de imagens dos seus poemas percebemos um movimento
oposto e complementar: por um lado, o cotidiano parece transfigurado, instante de
iluminação, com aura de símbolo transcendente, e, por outro lado, o desconhecido, o
misterioso, o onírico aparecem configurados familiarmente, tornados próximos e
confidentes, tornados íntimos do dia-a-dia.
15. Morto a mais de vinte anos, Bandeira continua se revelando como o mais simples e mais
despojado dos poetas do Modernismo brasileiro, como o poeta capaz de simplicidade mais
essencial e mais expressiva.
"Memórias de um Sargento de Milícias" - Resumo da obra
de Manuel Antônio de Almeida
03/09/2012 21h 35
O romance de Manuel Antônio de Almeida, escrito no período do romantismo, retrata a vida
do Rio de Janeiro no início do século XIX e desenvolve pela primeira vez na literatura nacional
a figura do malandro.
- Leia a análise Memórias de um Sargento de Milícias
Resumo
Por ser originariamente um folhetim, publicado semanalmente, o enredo necessitava prender
a atenção do leitor, com capítulos curtos e até certo ponto independentes, em geral
contendo um episódio completo. A trama, por isso, é complexa, formada de histórias que se
sucedem e nem sempre se relacionam por causa e efeito.
―Filho de uma pisadela e de um beliscão‖ (referência à maneira como seus pais flertaram, ao
se conhecer no navio que os conduz de Portugal ao Brasil), o pequeno Leonardo é uma criança
16. intratável, que parece prever as dificuldades que irá enfrentar. E não são poucas:
abandonado pela mãe, que foge para Portugal com um capitão de navio, é igualmente
abandonado pelo pai, mas encontra no padrinho seu protetor. Esse é dono de uma barbearia e
tem guardada boa soma em dinheiro.
Enquanto o pequeno Leonardo apronta as suas diabruras pela vizinhança, seu pai, Leonardo
Pataca, se envolve amorosamente com a Cigana, mas essa o abandona logo. Ele, então,
recorre à feitiçaria (proibida naquela época) para tentar trazê-la de volta. Porém, no auge da
cerimônia o major Vidigal e seus homens invadem a casa do feiticeiro, açoitam os praticantes
e levam Leonardo Pataca preso. Ele pede socorro à Comadre, que pede ajuda a um Tenente-
Coronel que se considerava em dívida com a família de Pataca, e ele logo é solto.
Já o Compadre (ou padrinho) que cuidava do menino Leonardo havia aprendido o ofício de
barbeiro com o homem que o criara. Foi para a África como médico em um navio negreiro e,
durante a volta, o capitão em seu leito de morte lhe confiou um baú de dinheiro para que o
entregasse a sua filha. Ele, porém, ficou com o dinheiro. Após isso aparenta ter se tornado
um homem de bem e cria o Leonardo como se fosse um filho, sonhando em torna-lo padre. O
menino, porém, causa transtornos por qualquer lugar onde passa e, após levar uma enorme
bronca do padre da cidade, jura vingança.
O padre era um homem que aparentava ser santo, mas na realidade era um lascivo e fora ele
quem roubara a Cigana de Leonardo Pataca. Como o padre passava boa parte de seu tempo
na casa dela, um dia o menino Leonardo resolve armar uma emboscada para desmascará-lo.
Ele vai até a casa da Cigana para informar o horário de uma festa, mas ele mente o horário
para que o padre chegue atrasado. Quando por fim chegou à igreja, o padre repreende ao
menino perguntando-lhe qual era a hora certa do sermão. Leonardo, então, diz que falou o
horário correto e que a Cigana estava de prova, pois ouviu tudo. Sem saber o que fazer frente
ao choque de todos, ele dispensa o menino.
Leonardo Pataca, ao saber que havia sido trocado pelo padre, resolve tentar conquistar
Cigana novamente. Ela, porém, não dá bola para ele. Para se vingar, ele contrata um amigo
para causar uma confusão em uma festa que ela iria promover em sua casa. No momento da
bagunça Vidigal, que já havia sido avisado por Pataca, aparece e prende o padre em
flagrante, somente de cueca, meia, sapato e gorrinho na cabeça. Com isso, Leonardo Pataca
consegue ficar mais um tempo com a Cigana.
O Compadre passou a frequentar a casa de D. Maria, uma rica mulher com gosto pelo Direito,
sempre acompanhado do afilhado Leonardo. Com o tempo o menino foi sossegando, até que
chegou a idade dos amores. Luisinha, uma menina descrita como feia e que era filha do
recém-falecido irmão de D. Maria, foi morar com a tia. No dia da festa do Espírito Santo
foram todos ver a queima de fogos. A menina se divertiu, abraçou Leonardo pelas costas e no
final os dois voltaram de mãos dadas. Após isso, porém, Luisinha voltou a ficar tímida.
Um dia entra em cena José Manuel, homem mais velho que fica interessado em Lusinha por
conta da herança que ela havia recebido do pai e que iria receber de D. Maria, já que ela era
a única herdeira. O Compadre, percebendo os interesses de José Manuel, se junta à Comadre
para tentar espantar o interesseiro. Enquanto isso, Leonardo tenta conquistar Luisinha, mas
ele acaba saindo muito sem jeito e acaba espantando ela. Porém, fica claro que Luisinha
também gosta de Leonardo. Para tentar afastar José Miguel, a Comadre inventa uma série de
mentiras, que logo são descobertas. Então, D. Maria, ao invés de expulsar José, acaba se
afastando da Comadre, agora desacreditada.
Enquanto isso, novamente traído pela Cigana, Leonardo Pataca junta-se com a filha da
Comadre e têm um filho juntos. Pouco depois o Comadre morre e Leonardo vai morar junto
com o pai. Porém, ele e sua madrasta não conseguem se entender e, após muitas brigas, ele
foge de casa. Afastado de todos, Leonardo conhece um grupo que estava fazendo piquenique
e reconhece dentre eles um amigo seu de infância.
17. Leonardo passa a morar junto com eles na Rua da Vala. Lá vivem duas quarentonas viúvas e
seus seis filhos, sendo que uma tinha três rapazes e outra três moças. Vidinha era a mais
bonita e era disputada por dois primos. Porém, ela acaba se enamorando com Leonardo e os
dois passam o dia namorando dentro de casa, o que desperta ciúmes dos outros rapazes.
Esses, por sua vez, vão falar para Vidigal que Leonardo está vivendo como intruso na casa e
tirando proveito das mulheres. Num dia, Vidigal aparece e leva Leonardo preso, mas esse
consegue fugir.
A Comadre arruma um emprego para Leonardo na ucharia real, mas ele se envolve com a
esposa do patrão e acaba despedido. Vidinha vai até a casa de Toma Largura, ex-patrão de
Leonardo, para brigar com ele e com sua esposa. Enquanto isso, Vidigal consegue prender
Leonardo. Acontece que Toma Largura ficou encantado com Vidinha e começa a cerca-la de
todas as formas. A moça, encarando a ausência de Leonardo como consequência das últimas
brigas, resolve ceder à insistência de Toma Largura.
Obrigado pela polícia, Leonardo começa a servir ao exército. Depois de um tempo, Vidigal o
coloca no batalhão de granadeiros para combater os malandros do Rio. Porém, ao contrário
do que ele pensava, Leonardo continua aprontando dentro do próprio batalhão de polícia. Na
última delas, Vidigal planejava prender um homem que fazia imitações suas para animar
festas. Mas Leonardo acaba se divertindo com as graças do imitador e o avisa das intenções de
Vidigal. Quando o major descobre a traição de Leonardo, prende o moço sob juramento de
algumas chibatadas.
A Comadre fica sabendo disso e vai pedir ajuda à D. Maria e à Maria Regalada, antiga amante
de Vidigal. Elas vão até a casa do major, que as recebe com roupa civil da cintura para baixo
e farda da cintura para cima. Não conseguindo resistir aos pedidos das três mulheres, Vidigal
perdoa Leonardo e ainda promete promove-lo à sargento do exército.
Enquanto tudo isso acontecia, Luisinha estava casada com José Manuel, que a tratava mal e
só se preocupava com o dinheiro da moça. D. Maria resolve preparar uma ação judicial contra
o homem, mas ele acaba morrendo vítima de um ataque apopléctico (parecido com um
derrame). Após o enterro de José Manuel, preparam tudo para o casamento de Luisinha,
agora uma mulher feita e bonita, com Leonardo, bonito e muito elegante em sua farda de
sargento do exército. Algum tempo depois, D. Maria e Leonardo Pataca também morrem e,
junto com as outras heranças que já tinham, receberam mais duas.
Lista de personagens
Leonardo: protagonista que garante unidade à narrativa. O sargento de milícias a que se
refere o título da obra é Leonardo, embora o personagem obtenha esse cargo somente nas
últimas páginas do livro.
Leonardo Pataca: pai de Leonardo, um meirinho (oficial de Justiça) que fora vendedor de
roupas em Lisboa e, durante sua viagem ao Brasil, conhece Maria das Hortaliças, o que
resultará no nascimento de Leonardo.
Maria das Hortaliças: mãe de Leonardo, uma saloia (camponesa) muito namoradeira, que
abandona o filho para ficar com outro homem.
O Compadre ou O Padrinho: é dono de uma barbearia e toma a guarda de Leonardo após os
pais abandonarem a criança. Torna-se um segundo pai para ele.
A Comadre ou A Madrinha: mulher gorda e bonachona, apresentada como ingênua,
frequentadora assídua de missas e festas religiosas.
Major Vidigal: homem alto, não muito gordo, com ares de moleirão. Apesar do aspecto
pachorrento, era quem impunha a lei de modo enérgico e centralizado.
Dona Maria: mulher idosa e muito gorda, não era bonita, mas tinha aspecto bem-cuidado. Era
rica e devotada aos pobres. Tinha, contudo, o vício das demandas (disputas judiciais).
18. Luisinha: sobrinha de dona Maria. Seu aspecto, inicialmente sem graça, se transforma
gradualmente, até se tornar uma rapariga encantadora.
Vidinha: mulata de 18 a 20 anos, muito bonita, que atrai as atenções de Leonardo.
Sobre Manuel Antônio de Almeida
Manuel Antônio de Almeida nasceu em 17 de novembro de 1830 na cidade do Rio de Janeiro.
Enquanto fazia a Faculdade de Medicina começou a carreira de jornalista levado por
dificuldades financeiras. Formou-se em 1855, mas nunca chegou a exercer a profissão de
médico.
Durante 1852 e 1853 publicou anonimamente (assinava como ―um Brasileiro‖) os folhetins que
dariam origem ao livro Memórias de um Sargento de Milícias (1854-55). Na terceira edição,
que saiu postumamente em 1863, o nome verdadeiro do autor passou a constar na obra. Ainda
durante essa mesma época, publicou uma peça, alguns poemas, um libreto de ópera e
escreveu sua tese de Doutorado em Medicina.
Em 1858 foi nomeado Administrador da Tipografia Nacional, onde conheceu Machado de Assis.
Em 1859 é nomeado 2º Oficial da Secretaria da Fazenda e, no dia 28 de novembro de 1861,
acaba falecendo no naufrágio do navio Hermes.
Seu único livro é "Memórias de um Sargento de Milícias" (1852), mas publicou também diversos
contos, crônicas, poesias e ensaios. Além disso, escreveu uma peça teatral chamada "Dois
Amores" (1961).
Esta é uma história fantástica, narrada por um defunto-autor. Brás Cubas, o narrador-
personagem, é apresentado nela, por Machado de Assis, como um homem pretensamente
superior, a fim de revelar exatamente o oposto, ou seja, o quanto a condição huamana seria
frágil, precária. Vemos que se revela o realismo irônico, de forma universal e intemporal,
surgindo ante os leitores a postura niilista, ou seja, de completa negativa de tudo, misturada à
filosofia e à metafísica.
De acordo com Lúcia Miguel-Pereira, a obra, em sua ousadia, deixa de fora o sentimentalismo,
o moralismo de superfície, a sonhada unidade do ser humano, o plavreado sentimentalóide, o
medo de escandalizar os preconceituosos, a ideia de que o amor sempre deveria prevalecer
sobre qualquer outro tipo de paixão, a eterna recorrência à natureza, como se esta fosse a
única forma de se colocar a cor local para o leitor. Em contrapartida, homens e mulheres
revelam-se como personagens, independentemente de nacionalidade ou regionalismos; a
visão do ambiente e da época aparecem com clareza e o humor é utilizado com maestria, em
nossa literatura, pela primeira vez.
"Memórias Póstumas de Brás Cubas" é a obra que sela a nossa independência literária, a
nossa maturidade intelectual e social, a liberdade de concepção e expressão de que o Brasil se
encontrava necessitado na época. Machado de Assis atribuiu ao romance um caráter regional,
sem entretanto deixar de ser brasileiro. Apenas, não teve mais, como acontecia com autores
de escolas anteriores, que ficar provando brasilidade em seu texto.
Como perfeitamente sabemos, essa obra é conhecida como um "divisor de águas" na
Literatura Brasileira. É ela que divide em duas partes o trabalho do escritor Machado de Assis:
a fase romântica e a fase realista, que tem início com sua publicação. Também é ela, em 1881,
que faz a passagem do Romantismo para o Realismo brasileiro.
Supostamente, as memórias foram escritas por um "defunto-autor", ou seja, um narrador-
personagem que conta sua vida depois de morto, do além-túmulo, o que nos reporta aos
"Diálogos dos Mortos" de Luciano de Samósata, escritor grego, dando à obra um caráter
19. luciânico, o que também ocorre no "Auto da Barca do Inferno", de Gil Vicente, e em "Dom
Casmurro", do mesmo Machado - uma obra aberta, também característica herdada do escritor
grego já citado.
O foco narrativo em primeira pessoa dá ao personagem Brás Cubas o monopólio do texto.
Aparentemente, seu relato caracteriza-se por uma postura de isenção, ou seja, prima pela
imparcialidade, já que um morto não teria qualquer necessidade de mentir, já que deixara o
mundo dos vivos e, assim, abandonara qualquer comprometimento, ilusão ou envolvimento.
No entanto, se observarmos com cuidado, a obra só poderá ser entendida se começarmos por
analisar o que o personagem conta, procurando perceber certos sinais, que indicam que ele
mente, exagera e chega, inclusive, a ser incongruente. Brás Cubas manipula a história, mostra-
se sempre superior, com mania de grandeza, desde o início de seu relato. Chega a comparar
seu relato ao Pentateuco, que é um livro sagrado, histórico, fundador de uma tradição religiosa,
atribuído a Moisés, um profeta universalmente importante, insinuando que a diferença radical
entre este relato e o seu seria apenas o fato de Brás narrar sua existência partindo da morte e
Moisés, seguindo a cronologia normal, tomando o nascimento como início. Logicamente,
apenas um grande presunçoso não perceberia a diferença entre as duas narrativas, o grau de
importância de cada uma, o que nos revela o grande presunçoso que ainda vive no "defunto-
autor" Brás Cubas.
A ironia destaca-se no decorrer da obra e direciona-se a vários objetos. Um exemplo, seria a
postura romântica, quando apresenta alguns trechos em que a ridiculariza - como a frase de
que a natureza chora sua morte ou ao questionar a bondade e a fidelidade do amigo que o
elogia em seu funeral, insinuando que o comprara.
Mostra o ridículo de um enterro com onze pessoas presentes, mas não deixa de explicar que
os anúncios e cartas não foram feitos, portanto as pessoas não haviam sido avisadas de sua
morte. Vemos, mais uma vez, o jogo de Machado de idas e vindas e suas colocações, só que
feitos por intermédio de Brás.
É como se Machado de Assis buscasse transmitir uma forma de encarar o mundo, mostrando
que a piedade, a suavidade, o afeto, e tantos outros valores estão perecendo na conjuntura em
que a Humanidade cada vez mais se acomoda.
Notamos que o "defunto-autor" estabelece-se distanciado de Machado de Assis, assim como
da humanidade, que não teme desmascarar, ferir, escandalizar, chegando a dizer ao leitor que,
se não se agradar de sua obra, tome um piparote, como um inseto que incomoda ou um grão
de poeira em nossa roupa, jogado para longe com a ponta dos dedos. Vemos que Brás Cubas
não crê no ser humano, daí escrever com a "pena da galhofa", da ironia, do rídiculo, sem,
entretanto, sentir-se ferido, usando a "tinta da melancolia" para demonstrá-lo.
O verdadeiro caráter do narrador-personagem revela-se gradativamente, no decorrer do
romance. Aos poucos, o leitor vê do que ele é capaz, o que pensa sobre si e sobre os outros,
como não tem limites para chegar ao que deseja atingir, sem freios, sem cuidados.
Um forte niilismo pode ser verificado, quando, no capítulo final do romance, ele enumera todas
as negativas que lhe compuseram a existência, em todos os sentidos e planos. Apenas alguns
pontos positivos, como o fato de não ter que morrer pobre como D. Plácida, de não
enlouquecer como Quincas Borba e de não necessitar de trabalho para sobreviver são
mencionados, como uma pequena compensação para tantos "nãos". É um burguês, de acordo
com os personagens realistas, cheio de ilusões e empáfias. Acha-se quite com a vida.
20. No entanto, ao refletir melhor, em mais uma de suas voltas, acaba por desmentir aquilo que
seria um consolo, uma conciliação com a vida. Diz que fez mais, e que carrega um saldo, ainda
que pequeno, o qual se constitui na derradeira negativa do romance e em mais uma grande
ironia de Machado: em um radicalismo niilista, Brás nega que a Humanidade mereça ter
continuidade, vangloria-se de não ter tido filhos, de não dar prosseguimento a sua família.
Vinga-se da vida, recusa-a radicalmente, trata de demoli-la. "Não tive filhos, não transmiti a
nenhuma criatura o legado da nossa miséria" é uma frase que nos revela a universalidade da
miséria humana, tanto que o narrador troca o "eu" pelo "nós" e, assim, podemos verificar que
Brás Cubas se revela como síntese de muitas, ou talvez, de todas as pessoas, com seus
fracassos não assumidos, escamoteados, e não apenas um ser. Machado analisa a todos, de
forma profunda, com sua capacidade imensa de penetração psicológica. Desvenda-nos as
faces do ser humano, como se de um só falasse.
Temos uma obra em estilo substantivo e anti-heróico, revelado, em uma linguagem ambígua,
sutil, repleta de causticidade e humor, usada para ironizar e destruir todas as ilusões
românticas mencionadas.
No romance, surgem o uso da linguagem e a interlocução ou conversa com o leitor, que
também é denominada "processo do leitor incluso". O nosso narrador, que não é nada
confiável, ilude, provoca e desconcerta seu leitor, servindo-se de conversas nas quais ironiza
suas expectativas, fazendo, inclusive, reflexões metalinguísticas, usadas para criticar a
linguagem e a estrutura das narrativas tradicionais e questionar o próprio processo de criação
literária. Um exemplo disso é quando Brás faz a metalinguagem, ironizando, por meio dela, o
leitor apressado e acostumado com a estrutura utilizada nos folhetins românticos, nas quais a
narração é direta, regular e fluente.
Ocorre, ainda, a quebra da linearidade do enredo, aparecendo microcapítulos digressivos,
usados para comentar, explicar e exemplificar outros capítulos. Essa atitude de Machado de
Assis fragmenta o romance tradicional. Faz com que o leitor tenha que se esforçar
constantemente na montagem, organização, recriação crítica e criativa da obra. Um bom
exemplo disso seria o episódio da borboleta preta, uma alegoria à personagem Eugênia, que é
manca e pobre. Outros exemplos de fragmentação mais radicais são "O velho diálogo de Adão
e Eva" e "De como não fui ministro", capítulos compostos apenas e tão-somente de sinais de
pontuação, repletos de ideias, mas vazios de palavras, levando a imaginação do leitor a
funcionar.
O romance tem como o espaço o Rio de Janeiro e temos o tempo psicológico - das memórias -,
com quebra de linearidade, embora diversas datas sejam citadas.
Podemos dizer que Brás Cubas assume uma posição transtemporal, pois enxerga a própria
existência de fora dela, de modo onisciente e descontínuo. Os fatos são narrados quando
surgem na memória e várias digressões são feitas.
Cortiço
Um homem qualquer, trabalhador e muito economizador adquire fortuna,
amiga-se a uma negra de um cego e sente cada vez mais sede de riqueza.
Arranja confusões com um novo vizinho(Miranda) ao disputar palmos de
terra. Chega a roubar para construir o que tanto almejava: um cortiço com
casinhas e tinas para lavadeiras. Prosperou em seu projeto. João invejava
seu vizinho. Veio morar na casa de Miranda, Henrique, acadêmico de
medicina, a fim de terminar os estudos. Nessa casa, além de escravos e sua
21. família morava um senhor parasita (Botelho, ex-empregado). D. Estela
(esposa de Miranda) andava se "escovando" com o Henrique, porém
acabaram sendo flagrados pelo velho Botelho.
O cotidiano da vida no cortiço ia de acordo com a rotina e a realidade de
seus moradores, onde lavadeiras eram o tipo mais comum. Jerônimo
(português, alto, 35 a 40 anos), foi conversar com João oferecendo-lhe
serviços para a sua pedreira. Com custo, depois de prosearem bastante,
João aceitou a proposta, com a condição dele morar no cortiço e comprar em
sua venda. A mudança de Jerônimo e Piedade se sucedeu sob comentários
e cochichos das lavadeiras. Após alguns meses eles foram conquistando a
total confiança de todos, por serem sinceros , sérios e respeitáveis. Tinham
vida simples e sua filhinha estudava num internato. No domingo todos vestem
a melhor roupa e se reúnem para jantar, dançar, festejar, tudo muito a
vontade. Depois de três meses Rita Baiana volta. Nessas reuniões
sobressaia o "Choro", muito bem representado pela Baiana e seu amante
Firmo.
Toda aquela agilidade na dança deixara Jerônimo admirado ao ponto de
perder a noite em claro pensando na mulata. Pombinha tirava esses dias
para escrever cartas. Henrique entretia-se a olhar Leocádia, que em troca de
um coelho satisfez sua vontade física(transa), quando foram pegos por
Bruno(seu marido), que bateu na mesma e despejou-a de sua casa depois
de fazer um baita escândalo. Jerônimo mudou seus costumes, brigava com
sua e a cada dia mais se afeiçoava pela mulata Rita. Firmo sentia-se
enciumado. Florinda engravidou de Domingos (caixeiro da venda de João
Romão), o mesmo foi obrigado a casar-se ou fornecer dotes.
Foi aquele rebuliço em todo cortiço, nada mais falavam além disso, Florinda
viu-se obrigada a fugir de casa. Léonie(prostituta alto nível) aparece
emperiquitada com sua afilhada Juju, todos admiravam quanta riqueza, mas
nem por isso deixaram sua amizade de lado. Léonie era muito amiga de
Pombinha. Na casa de Miranda era uma festa só! Ele havia sido agraciado
com o título de Barão do Freixal pelo governo português. João indagava-se,
por não ter desfrutado os prazeres da vida, ficando só a economizar. Diante
de tal injúria, com muito mau humor implicava com tudo e todos do cortiço.
Fez despejar na rua todos os pertences de Marciana. Acusou-a de
vagabunda, acabando ela na cadeia.
A festa do Miranda esquentava e João recebeu convite para ir lá, o que o
deixou ainda mais injuriado. O forró no cortiço começou, porém briga feia se
travou entre Jerônimo e Firmo. Barricada impedia a polícia entrar, o incêndio
no 12 fez subir grande desespero, era um corre-corre, polícia, acidentados
(Jerônimo levou uma navalhada) e para finalizar caiu uma baita chuva.João
foi chamado a depor, muitos do cortiço o seguiram até a delegacia, como em
mutirão. Rita incansavelmente cuidava do enfermo Jerônimo dia e noite.
No cortiço nada se dizia a respeito dos culpados e vítimas. Piedade não se
agüentava chorando muito descontente e desesperada por seu marido
acidentado. Firmo não mais entrava por lá, ameaçado por João Romão de
ser entregue a polícia. Pombinha amanheceu indisposta decorrente da visita
feita no dia anterior à Léonie. Esta, como era de seu costume, atrancou
Pombinha em beijos e afagos, pois era além de prostituta, lésbica. Isso
deixara a menina traumatizada, que por força e insistência de sua mãe, saiu
a dar voltas atrás do cortiço, onde cochilou, sonhou e ao acordar virou
mulher.
A festa se fez por D. Isabel, ao saber de tão esperada notícia. Estava
22. Pombinha a preparar seu enxoval quando Bruno chegou e lhe pediu que
escrevesse uma carta a Leocádia. Ele chorava... Ela, ao ver a reação de
submissão dele, desfrutava sua nova sensação de posse do domínio
feminino. Imaginava furtivamente a vida de todos, pois sua escrivania servia
de confessionário. Via em seu viver que tudo aquilo continuaria, pois não
haviam homens dignos que merecessem seu amor e respeito. Pombinha,
mesmo incerta, casa-se com o Costa, foi grande a comoção no cortiço.
Surgiu um novo cortiço ali perto, o "Cabeça de Gato". A rivalidade com o
cortiço de João Romão foi criada. Firmo hospedou-se lá, tendo ainda mais
motivos contra Jerônimo. João, satisfeito com sua segurança sobre os
hóspedes, investia agora em seu visual e cultura, com roupas, danças,
leituras e uma amizade com Miranda e o velho Botelho.
Ele e o velho estavam tramando coisa com a filha do Barão. Fez-se um jantar
no qual João foi todo emperiquitado. João naquele momento de auge em sua
vida, via-se numa situação em que necessitava livrar-se da negra, chegou a
pensar em sua morte. Sem nem mesmo repousar após sua alta do hospital,
Jerônimo foi conversar com Zé Carlos e Pataca a respeito do extermínio do
Firmo. O dia corria, João proseava com Zulmira na janela da casa de
Miranda, sentindo-se familiarizado. Jerônimo foi realizar seu plano
encontrando-se com os outros dois no Garnisé (bar em frente ao cemitério).
Pataca entrou no bar, encontrou por acaso com Florinda, que se ajeitara na
vida e dera-lhe notícia que sua mãe parara num hospício. Firmo aparece e
Pataca o faz sair até a praia com pretexto de Rita estar lá. Muito chapado
seguiu-o. Lá os três treteiros espancaram-lhe e lançaram-lhe ao mar. Chovia
muito e ao ir para casa, Jerônimo desiste e se dirige à casa da Rita. O
encontro foi efervescente por ambas as partes. Tudo estava resolvido,
fugiriam no dia seguinte. Piedade, ao passar das horas, mais desesperada
ficava. Ao amanhecer do dia chorava aos prantos e no cortiço nada mais se
ouvia senão comentários sobre o sumiço do Jerônimo.
A morte de Firmo já rolava solta no cortiço. Rita encontrava-se com Jerônimo.
Ele, sonhando começar vida nova, escreve logo ao vendeiro despedindo-se
do emprego, e à mulher constando-lhe do acontecido e prometendo-lhe
somente pagar o colégio da garota. Piedade e Rita se atracaram no momento
em que a mulata saía de mudança, o cortiço todo e mais pessoas que
surgiram, entraram na briga. Foi um tremendo alvoroço, acabara sendo uma
disputa nacional (Portugueses x Brasileiros).
Nem a polícia teve coragem de entrar sem reforço. Os Cabeças de Gato
também entraram na briga. Travou-se a guerra, a luta dos capoeiristas rivais
aumentava progressivamente quando o incêndio no 88 desatou,
ensangüentando o ar. A causa foi a mesma anterior, por um desejo
maquiavélico, a velha considerada bruxa incendiou sua casa, onde morreu
queimada e soterrada, rindo ébria de satisfação. Com todo alvoroço, surgia
água de todos os lados e só se pôs fim na situação quando os bombeiros,
vistos como heróis, chegaram. O velho Libório (mendigo hospedado num
canto do cortiço) ia fugindo em meio a confusão, mas João o seguiu.
Estava o velho com oito garrafas cheias de notas de vários valores, essas
que João roubou e fugiu, deixando-o arder em brasas. Morrera naquele
incêndio a Bruxa, o Libório e a filhinha da Augusta além de muitos feridos.
Para João o incêndio era visto como lucro, pois o cortiço estava no seguro,
fazendo ele planos de expansão baseado no dinheiro do velho mendigo. Por
conseqüências do incêndio Bruno foi parar no hospital, onde Leocádia foi
visitá-lo ocorrendo assim a reconciliação de ambos. As reformas expandiram-
se até o armazém e as mudanças no estilo de João também alcançavam um
23. nível social cada vez mais alto.
Com amizade fortificada junto ao Miranda e sua família, pediu a mão de
Zulmira em casamento. Bertoleza, arrasada e acabada daquela vida,
esperava dele somente abrigo em sua velhice, nada mais.Jerônimo
abrasileirou-se de vez. Com todos costumes baianos deleitava-se a viver feliz
com a mulata Rita. Piedade desolada de tristeza habituara-se a beber e
começou a receber visitas aos domingos de sua filhinha (9 anos), que logo
cativou todo o cortiço, crismada por todos como "Senhorinha". Acabados por
desgraças da vida, Jerônimo e Piedade não mais guardavam rancor um do
outro, ambos se estimavam e em comum possuíam somente a filha a cuidar.
Jerônimo arrependia-se , mas não voltaria atrás. Deu-se a beber também.
O cortiço não parecia mais o mesmo, agora calçado, iluminado e arrumado
todo por igual. O sobrado do vendeiro também não ficara para trás nas
reformas. Quem se destacou foi Albino (lavadeiro homossexual) com a
arrumação de sua casa. A vida transcorria, novos moradores chegavam. Já
não se lia sob a luz vermelha na porta do cortiço "Estalagem de São Romão",
mas sim "Avenida São Romão". Já não se fazia o "Choradinho" e a "Cana-
verde", a moda agora era o forrobodó em casa, e justo num desses em casa
de das Dores, Piedade enchera a cara e Pataca é que lhe fizera companhia
querendo agarrá-la depois de ouvir seus lamentos, mas a caninha surtiu
efeito (vômito) e nada se sucedeu.
João Romão não pregara os olhos a pensar no que fazer para dar um fim na
crioula Bertoleza. Agostinho (filho da Augusta) sofrera acidente na pedreira,
ficara totalmente estraçalhado. Foi aquele desespero no cortiço. Botelho foi
falar a João logo cedo. Bertoleza ao ouvir, pôs-se respeito diante da situação
e exigiu seus direitos, discutiram o assunto e nada resolveram. João se
irritara e tivera a idéia de mandá-la de volta ao dono propondo esse serviço
ao velho Botelho, que aliás recebia dele remuneração por tudo que lhe
prestava. Em volta do desassossego e mau estar de João e Bertoleza o
armazém prosperava de vento em poupa aumentando o nível dos clientes e
das mercadorias.
Sua Avenida agora era freqüentada por gente de porte mais fino como
alfaiates, operários, artistas, etc. Florinda ainda de luto por sua mãe
Marciana, estava envolvida agora com um despachante. A Machona
(Augusta) quebrara o gênio depois da morte de Agostinho. Neném arrumara
pretendente. Alexandre fora promovido à sargento. Pombinha juntara-se à
Léonie e atirara-se ao mundo. De tanto desgosto, D. Isabel (mãe de
Pombinha) morrera em uma casa de saúde. Piedade recebia ajuda da
Pombinha para sobreviver, pois estimava Senhorinha, apesar de saber que o
fim da pobre garotinha seria como o seu.
Mesmo assim Piedade foi despejada indo refugiar-se no Cabeça de Gato,
que tornara-se claramente um verdadeiro cortiço fluminense. Ocorreu um
encontro em uma confeitaria na Rua do Ouvidor, entre a família do Miranda,
o Botelho e o João Romão que puseram-se a prosear. Na volta, seguindo em
direção ao Largo São Francisco, João e Botelho optaram em ficar na cidade
a conversar sobre o fim que se daria a crioula. Estava tudo certo, seu dono
iria buscá-la junto á polícia. Quando isso sucedeu-se, ao ver-se sem saída,
impetuosa a fugir, com a mesma faca que descamava e limpava peixes para
o João, Bertoleza rasgou seu ventre fora a fora. Naquele mesmo instante
João Romão recebera um diploma de sócio benemérito da comissão
abolicionista.
Home
24. Resumo do Livro
PRIMEIRAS ESTÓRIAS – Guimarães Rosa (Resumo)
PRIMEIRAS ESTÓRIAS – Guimarães Rosa
(Resumo)
Por Livros
Resumo do Livro
Nota:
Share on emailShare on facebookShare on twitterShare on stumbleuponMore Sharing Services
A Obra
Obra publicada em 1962, reúne 21 contos.
Trata-se do primeiro conjunto de histórias compactas a
seguir a linha do conto tradicional, daí o "Primeiras" do título.
O escritos acrescenta, logo após, o termo estória, tomando-o
emprestado do inglês, em oposição ao termo História ,
designando algo mais próximo da invenção, ficção.
No volume, aborda as diferentes faces do gênero: a psicológica, a fantástica, a
autobiográfica, a anedótica, a satírica, vazadas em diferentes tons: o cômico, o trágico, o
patético, o lírico, o sarcástico, o erudito, o popular.
As estórias captam episódios aparentemente banais.
As ocorrências farejadas através dos protagonistas transformam-se de uma espécie de
milagre que surge do nada, do que não se vê, como diz o próprio Guimarães Rosa;
"Quando nada acontece, há um milagre que não estamos vendo".
Este milagre pode ser então, responsável pela poesia extraída dos fatos mais corriqueiros,
pela beleza de pensar no cotidiano e não apenas vivê-lo, pelo amor que se pode ter pelas
coisas da terra, pelo homem simples, pelo mistério da vida.
Dos "causos " narrados brotam encanto e magia frutos da sensibilidade de um poeta
deslumbrado com a paisagem natural e/ou recriada de Minas Gerais.
ENREDOS
I - "As margens da alegria".
Um menino descobre a vida, em ciclos alternados de alegria (viagem de avião,
deslumbramento pela flora, e fauna) e tristeza (morte do peru e derrubada de uma árvore).
II - "Famigerado".
25. O jagunço Damázio Siqueira atormenta-se com um problema vocabular: ouviu a palavra
"famigerado" de um moço do governo e vai procurar o farmacêutico, pessoa letrada do
lugar, para saber se tal termo era um insulto contra ele, jagunço.
III - "Sorôco, sua mãe, sua filha".
Um trem aguarda a chegada da mãe e da filha de Sorôco, para conduzi - las ao manicômio
de Barbacena. Durante o trajeto até a estação, levadas por Sorôco, elas começam
surpreendentemente a cantar.
Quando o trem parte, Sorôco volta para casa cantando a mesma canção, e os amigos da
cidadezinha , solidariamente, cantam junto.
IV - "A menina e lá".
Nhinhinha possuía dotes paranormais : seus desejos, por mais estranhos que fossem,
sempre se realizavam. Isolados na roça, seus parentes guardam em segredo o fenômeno,
para dele tirar proveito. As reticentes falas da menina tinham caráter de premonição: por
exemplo, o pai reclamara da impiedosa seca.
Nhinhinha "quis" um arco-íris, que se fez no céu, depois de alentadora chuva. Quando ela
pede um caixãozinho cor-de-rosa com enfeites brilhantes ninguém percebe que o que ela
queria era morrer...
V - "Os irmão Dagobé".
O valentão Damastor Dagobé, depois de muito ridicularizar Liojorge, é morto por ele. No
arraial, todos dão como certa a vingança dos outros Dagobé : Doricão , Dismundo e
Derval. A expectativa da revanche cresce quando Liojorge comunica a intenção de
participar do enterro de Damastor.
Para surpresa de todos, os irmãos não só concordam, como justificam a atitude de
Liojorge, dizendo que Damastor teve o fim que mereceu.
VI - "A terceira margem do rio".
Um homem abandona família e sociedade, para viver à deriva numa canoa, no meio de
um grande rio. Com o tempo, todos, menos o filho primogênito, desistem de apelar para o
seu retorno e se mudam do lugar. O filho, por vínculo de amor, esforça-se para
compreender o gesto paterno: por isso, ali permanece por muitos anos.
Já de cabelos brancos e tomado por intensa culpa, ele decide substituir o pai na canoa e
comunica-lhe sua decisão. Quando o pai faz menção de se aproximar, o filho se apavora e
foge, para viver o resto de seus dias ruminando seu "falimento" e sua covardia.
VII - "Pirlimpsiquice".
26. Um grupo de colegiais ensaia um drama para apresentá-lo na festa do colégio. No dia da
apresentação, há um imprevisto, e um dos atores se vê obrigado a faltar. Como não havia
mais possibilidade de se adiar a apresentação, os adolescentes improvisam uma comédia,
que é entusiasticamente bem recebida pela platéia.
VIII - "Nenhum, nenhuma".
Uma criança, não se sabe se em sonho ou realidade, passa férias numa fazenda, em
companhia de um casal de noivos, de um homem triste e de uma velha velhíssima, de
quem a noiva cuidava.
O casal interrompe o noivado, e o menino, que conhecera o Amor observando-os, volta
para a casa paterna. Lá chegando, explode sua fúria diante dos pais ao notar que eles se
suportavam, pois tinham transformado seu casamento num desastre confortável.
IX - "Fatalidade".
Zé Centeralfe procura o delegado de uma cidadezinha, queixando-se de que Herculinão
Socó vivia cantando sua esposa. A situação tornara-se tão insuportável que o casal
mudara de arraial. Não adiantou: o Herculinão foi atrás.
O delegado, misto de filósofo, justiceiro e poeta, depois de ouvir pacientemente a queixa,
procura o conquistador e, sem a mínima hesitação, mata-o, justificando o fato como
necessário, em nome da paz e do bem-estar do universo.
X - "Seqüência".
Uma vaca fugitiva retorna a sua fazenda de origem. Decidido a resgatá-la, um vaqueiro
persegue-a com incomum denodo. Ao chegar à fazenda para onde a vaca retornara, o
vaqueiro descobre que havia outro motivo para sua determinação: a filha do fazendeiro,
com quem o rapaz se casa.
XI - "O espelho".
Um sujeito se coloca diante de um espelho, procurando reeducar seu olhar. apagando as
imagens do seu rosto externo. A progressão desses exercícios lhe permite, daí a algum
tempo, conhecer sua fisionomia mais pura, a que revela a imagem de sua essência.
XII - "Nada e a nossa condição".
O fazendeiro Tio Man 'Antônio, com a morte da esposa e o casamento das filhas, sente-se
envelhecido e solitário. Decide vender o gado, distribuindo o dinheiro entre as filhas e
genros.
A seguir, divide sua fazenda em lotes e os distribui entre os empregados, estipulando em
testamento uma condição que só deveria ser revelada quando morresse. Quando o fato
27. ocorre, os empregados colocam seu corpo na mesa da sala da casa-grande e incendeiam
a casa: a insólita cerimônia de cremação era seu último desejo.
XIII - "O cavalo que bebia cerveja".
Giovânio era um velho italiano de hábitos excêntricos: comia caramujo e dava cerveja para
cavalo. Isso o tornara alvo da atenção do delegado e de funcionários do Consulado, que
convocam o empregado da chácara de "seo Giovânio", Reivalino, para um interrogatório.
Notando que o empregado ficava cada vez mais ressabiado e curioso, o italiano resolve
então abrir a sua casa para Reivalino e para o delegado: dentro havia um cavalo branco
empalhado.
Passado um tempo, outra surpresa: Giovânio leva Reivalino até a sala, onde o corpo de
seu irmão Josepe, desfigurado pela guerra, jazia no chão. Reivalino é incumbido de
enterrá-lo, conforme a tradição cristã. Com isso, afeiçoa-se cada vez mais ao patrão, a
ponto de ser nomeado seu herdeiro quando o italiano morre.
XIV - "Um moço muito branco".
Os habitantes de Serro Frio, numa noite de novembro de 1872, têm a impressão de que
um disco voador atravessou o espaço, depois de um terremoto. Após esses eventos,
aparece na fazenda de Hilário Cordeiro um moço muito branco, portando roupas
maltrapilhas.
Com seu ar angelical, impõe-se como um ser superior, capaz de prodígios: os negócios de
Hilário Cordeiro, o fazendeiro que o acolheu, têm uma guinada espantosamente positiva.
Depois de fatos igualmente miraculosos, o moço desaparece do memo modo que chegara.
XV - "Luas-de-mel".
Joaquim Norberto e Sa- Maria Andreza recebem em sua fazenda um casal fugitivo, versão
sertaneja de Romeu e Julieta. Certos de que os capangas do pai da moça virão resgatá-la,
todos se preparam para um enfrentamento: a casa da fazenda transforma-se num castelo
fortificado.
É nesse clima de tensão que se celebra o casamento dos jovens, a que se segue a lua-de-
mel, que acontece em dose dupla: dos noivos e do velho casal de anfitriões, cujo amor
fora reavivado com o fato. Na manhã seguinte, a expectativa se esvazia com a chegada do
irmão da donzela, que propõe solução satisfatória para o caso.
Clarice Lispector o primeiro Beijo
Cerca de 1 frases e pensamentos: clarice lispector o primeiro beijo
O PRIMEIRO BEIJO
Os dois mais murmuravam que conversavam: havia pouco iniciara-se o namoro e
ambos andavam tontos, era o amor. Amor com o que vem junto: ciúme.
28. - Está bem, acredito que sou a sua primeira namorada, fico feliz com isso. Mas me
diga a verdade, só a verdade: você nunca beijou uma mulher antes de me beijar? Ele
foi simples:
- Sim, já beijei antes uma mulher.
- Quem era ela? perguntou com dor.
Ele tentou contar toscamente, não sabia como dizer.
O ônibus da excursão subia lentamente a serra. Ele, um dos garotos no meio da
garotada em algazarra, deixava a brisa fresca bater-lhe no rosto e entrar-lhe pelos
cabelos com dedos longos, finos e sem peso como os de uma mãe. Ficar às vezes
quieto, sem quase pensar, e apenas sentir - era tão bom. A concentração no sentir era
difícil no meio da balbúrdia dos companheiros.
E mesmo a sede começara: brincar com a turma, falar bem alto, mais alto que o
barulho do motor, rir, gritar, pensar, sentir, puxa vida! como deixava a garganta seca.
E nem sombra de água. O jeito era juntar saliva, e foi o que fez. Depois de reunida na
boca ardente engulia-a lentamente, outra vez e mais outra. Era morna, porém, a
saliva, e não tirava a sede. Uma sede enorme maior do que ele próprio, que lhe
tomava agora o corpo todo.
A brisa fina, antes tão boa, agora ao sol do meio dia tornara-se quente e árida e ao
penetrar pelo nariz secava ainda mais a pouca saliva que pacientemente juntava.
E se fechasse as narinas e respirasse um pouco menos daquele vento de deserto?
Tentou por instantes mas logo sufocava. O jeito era mesmo esperar, esperar. Talvez
minutos apenas, enquanto sua sede era de anos.
Não sabia como e por que mas agora se sentia mais perto da água, pressentia-a mais
próxima, e seus olhos saltavam para fora da janela procurando a estrada, penetrando
entre os arbustos, espreitando, farejando.
O instinto animal dentro dele não errara: na curva inesperada da estrada, entre
arbustos estava... o chafariz de onde brotava num filete a água sonhada. O ônibus
parou, todos estavam com sede mas ele conseguiu ser o primeiro a chegar ao chafariz
de pedra, antes de todos.
De olhos fechados entreabriu os lábios e colou-os ferozmente ao orifício de onde
jorrava a água. O primeiro gole fresco desceu, escorrendo pelo peito até a barriga. Era
a vida voltando, e com esta encharcou todo o seu interior arenoso até se saciar. Agora
podia abrir os olhos.
Abriu-os e viu bem junto de sua cara dois olhos de estátua fitando-o e viu que era a
estátua de uma mulher e que era da boca da mulher que saía a água. Lembrou-se de
que realmente ao primeiro gole sentira nos lábios um contato gélido, mais frio do que a
água.
E soube então que havia colado sua boca na boca da estátua da mulher de pedra. A
vida havia jorrado dessa boca, de uma boca para outra.
Intuitivamente, confuso na sua inocência, sentia intrigado: mas não é de uma mulher
que sai o líquido vivificador, o líquido germinador da vida... Olhou a estátua nua.
29. Ele a havia beijado.
Sofreu um tremor que não se via por fora e que se iniciou bem dentro dele e tomou-lhe
o corpo todo estourando pelo rosto em brasa viva. Deu um passo para trás ou para
frente, nem sabia mais o que fazia. Perturbado, atônito, percebeu que uma parte de
seu corpo, sempre antes relaxada, estava agora com uma tensão agressiva, e isso
nunca lhe tinha acontecido.
Estava de pé, docemente agressivo, sozinho no meio dos outros, de coração batendo
fundo, espaçado, sentindo o mundo se transformar. A vida era inteiramente nova, era
outra, descoberta com sobressalto. Perplexo, num equilíbrio frágil.
Até que, vinda da profundeza de seu ser, jorrou de uma fonte oculta nele a verdade.
Que logo o encheu de susto e logo também de um orgulho antes jamais sentido: ele...
Ele se tornara homem.
(In "Felicidade Clandestina" - Ed. Rocco - Rio de Janeiro, 1998)