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Diante da LeiFranz Kafka (01)
Diante da Lei está um guarda. Vem um homem do campo e pede para entrar na Lei. Mas
oguarda diz-lhe que, por enquanto, não pode autorizar-lhe a entrada. O homem considera e
pergunta depoisse poderá entrar mais tarde. – ”É possível” – diz o guarda. – ”Mas não agora!”.
O guardaafasta-se então da porta da Lei, aberta como sempre, e o homem curva-se para olhar
lá dentro. Ao ver tal, o guarda ri-se e diz. – ”Se tanto te atrai, experimenta entrar, apesar da
minha proibição.Contudo, repara, sou forte. E ainda assim sou o último dos guardas. De sala
para sala estão guardas cada vez mais fortes, de tal modo que não posso sequer suportar o
olhar do terceiro depois de mim”.O homem do campo não esperava tantas dificuldades. A Lei
havia de ser acessível a toda a gente e sempre, pensa ele. Mas, ao olhar o guarda envolvido
no seu casaco forrado de peles, o narizagudo, a barba à tártaro, longa, delgada e negra,
prefere esperar até que lhe seja concedida licença para entrar. O guarda dá-lhe uma banqueta
e manda-o sentar ao pé da porta, um pouco desviado. Ali fica, dias e anos. Faz diversas
diligências para entrar e com as suas súplicas acaba por cansar o guarda. Este faz-lhe, de
vez em quando, pequenos interrogatórios, perguntando-lhe pela pátria e por muitas outras
coisas, mas são perguntas lançadas com indiferença, à semelhança dos grandes senhores,
no fim, acaba sempre por dizer que não pode ainda deixá-lo entrar. O homem, que seprovera
bem para a viagem, emprega todos os meios custosos para subornar o guarda. Esse aceita
tudo mas diz sempre: – ”Aceito apenas para que te convenças que nada omitiste”.Durante
anos seguidos, quase ininterruptamente, o homem observa o guarda. Esquece os outros e
aquele afigura ser-lhe o único obstáculo à entrada na Lei.
Nos primeiros anos diz mal da sua sorte,em alto e bom som e depois, ao envelhecer, limita-
se a resmungar entre dentes. Torna-se infantil e como, ao fim de tanto examinar o guarda
durante anos lhe conhece até as pulgas das peles que ele veste, pede também às pulgas que
o ajudem a demover o guarda. Por fim, enfraquece-lhe a vista e acaba por não saber se está
escuro em seu redor ou se os olhos o enganam. Mas ainda apercebe, nomeio da escuridão,
um clarão que eternamente cintila por sobre a porta da Lei. Agora a morte está próxima. Antes
de morrer, acumulam-se na sua cabeça as experiências de tantos anos, que vão todas
culminar numa pergunta que ainda não fez ao guarda. Faz-lhe um pequeno sinal, pois não
pode mover o seu corpo já arrefecido. O guarda da porta tem de se inclinar até muito baixo
porque a diferença de alturas acentuou-se ainda mais em detrimento do homem do campo. –
”Que queres tu saber ainda?”, pergunta o guarda. – ”És insaciável”.– ”Se todos aspiram a Lei”,
disse o homem. – ”Como é que, durante todos esses anos, ninguém mais, senão eu, pediu
para entrar?”. O guarda da porta, apercebendo-se de que o homem estava no fim, grita-lhe ao
ouvido quase inerte: – ”Aqui ninguém mais, senão tu, podia entrar, porque só parati era feita
esta porta. Agora vou-me embora e fecho-a”.
Parábola que faz parte do livro “O Processo”Obtenha outros e-books na secção Biblioteca do
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Casa tomada (TEXTO 02)
Julio Cortázar
Gostávamos da casa porque, além de ser espaçosa e antiga (as casas antigas de hoje sucumbem às mais
vantajosas liquidações dos seus materiais), guardava as lembranças de nossos bisavós, do avô paterno, de
nossos pais e de toda a nossa infância.
Acostumamo-nos Irene e eu a persistir sozinhos nela, o que era uma loucura, pois nessa casa poderiam viver
oito pessoas sem se estorvarem. Fazíamos a limpeza pela manhã, levantando-nos às sete horas, e, por volta
das onze horas, eu deixava para Irene os últimos quartos para repassar e ia para a cozinha. O almoço era ao
meio-dia, sempre pontualmente; já que nada ficava por fazer, a não ser alguns pratos sujos. Gostávamos de
almoçar pensando na casa profunda e silenciosa e em como conseguíamos mantê-la limpa. Às vezes
chegávamos a pensar que fora ela a que não nos deixou casar. Irene dispensou dois pretendentes sem motivos
maiores, eu perdi Maria Esther pouco antes do nosso noivado. Entramos na casa dos quarenta anos com a
inexpressada ideia de que o nosso simples e silencioso casamento de irmãos era uma necessária clausura da
genealogia assentada por nossos bisavós na nossa casa. Ali morreríamos algum dia, preguiçosos e toscos
primos ficariam com a casa e a mandariam derrubar para enriquecer com o terreno e os tijolos; ou melhor, nós
mesmos a derrubaríamos com toda justiça, antes que fosse tarde demais.
Irene era uma jovem nascida para não incomodar ninguém. Fora sua atividade matinal, ela passava o resto do
dia tricotando no sofá do seu quarto. Não sei por que tricotava tanto, eu penso que as mulheres tricotam quando
consideram que essa tarefa é um pretexto para não fazerem nada. Irene não era assim, tricotava coisas sempre
necessárias, casacos para o inverno, meias para mim, xales e coletes para ela. Às vezes tricotava um colete e
depois o desfazia num instante porque alguma coisa lhe desagradava; era engraçado ver na cestinha aquele
monte de lã encrespada resistindo a perder sua forma anterior. Aos sábados eu ia ao centro para comprar lã;
Irene confiava no meu bom gosto, sentia prazer com as cores e jamais tive que devolver as madeixas. Eu
aproveitava essas saídas para dar uma volta pelas livrarias e perguntar em vão se havia novidades de literatura
francesa. Desde 1939 não chegava nada valioso na Argentina. Mas é da casa que me interessa falar, da casa e
de Irene, porque eu não tenho nenhuma importância. Pergunto-me o que teria feito Irene sem o tricô. A gente
pode reler um livro, mas quando um casaco está terminado não se pode repetir sem escândalo. Certo dia
encontrei numa gaveta da cômoda xales brancos, verdes, lilases, cobertos de naftalina, empilhados como num
armarinho; não tive coragem de lhe perguntar o que pensava fazer com eles. Não precisávamos ganhar a vida,
todos os meses chegava dinheiro dos campos que ia sempre aumentando. Mas era só o tricô que distraía Irene,
ela mostrava uma destreza maravilhosa e eu passava horas olhando suas mãos como puas prateadas, agulhas
indo e vindo, e uma ou duas cestinhas no chão onde se agitavam constantemente os novelos. Era muito bonito.
Como não me lembrar da distribuição da casa! A sala de jantar, lima sala com gobelins, a biblioteca e três quartos
grandes ficavam na parte mais afastada, a que dá para a rua Rodríguez Pena. Somente um corredor com sua
maciça porta de mogno isolava essa parte da ala dianteira onde havia um banheiro, a cozinha, nossos quartos
e o salão central, com o qual se comunicavam os quartos e o corredor. Entrava-se na casa por um corredor de
azulejos de Maiorca, e a porta cancela ficava na entrada do salão. De forma que as pessoas entravam pelo
corredor, abriam a cancela e passavam para o salão; havia aos lados as portas dos nossos quartos, e na frente
o corredor que levava para a parte mais afastada; avançando pelo corredor atravessava -se a porta de mogno e
um pouco mais além começava o outro lado da casa, também se podia girar à esquerda justamente antes da
porta e seguir pelo corredor mais estreito que levava para a cozinha e para o banheiro. Quando a porta estava
aberta, as pessoas percebiam que a casa era muito grande; porque, do contrário, dava a impressão de ser um
apartamento dos que agora estão construindo, mal dá para mexer-se; Irene e eu vivíamos sempre nessa parte
da casa, quase nunca chegávamos além da porta de mogno, a não ser para fazer a limpeza, pois é incrível como
se junta pó nos móveis. Buenos Aires pode ser uma cidade limpa; mas isso é graças aos seus habitantes e não
a outra coisa. Há poeira demais no ar, mal sopra uma brisa e já se apalpa o pó nos mármores dos consoles e
entre os losangos das toalhas de macramê; dá trabalho tirá-lo bem com o espanador, ele voa e fica suspenso no
ar um momento e depois se deposita novamente nos móveis e nos pianos.
Lembrarei sempre com toda a clareza porque foi muito simples e sem circunstâncias inúteis. Irene estava
tricotando no seu quarto, por volta das oito da noite, e de repente tive a ideia de colocar no fogo a chaleira para
o chimarrão. Andei pelo corredor até ficar de frente à porta de mogno entreaberta, e fazia a curva que levava
para a cozinha quando ouvi alguma coisa na sala de jantar ou na biblioteca. O som chegava impreciso e surdo,
como uma cadeira caindo no tapete ou um abafado sussurro de conversa. Também o ouvi, ao mesmo tempo ou
um segundo depois, no fundo do corredor que levava daqueles quartos até a porta. Joguei-me contra a parede
antes que fosse tarde demais, fechei-a de um golpe, apoiando meu corpo; felizmente a chave estava colocada
do nosso lado e também passei o grande fecho para mais segurança.
Entrei na cozinha, esquentei a chaleira e, quando voltei com a bandeja do chimarrão, falei para Irene:
— Tive que fechar a porta do corredor. Tomaram a parte dos fundos.
Ela deixou cair o tricô e olhou para mim com seus graves e cansados olhos.
— Tem certeza?
Assenti.
— Então — falou pegando as agulhas — teremos que viver deste lado.
Eu preparava o chimarrão com muito cuidado, mas ela demorou um instante para retornar à sua tarefa. Lembro -
me de que ela estava tricotando um colete cinza; eu gostava desse colete.
Os primeiros dias pareceram-nos penosos, porque ambos havíamos deixado na parte tomada muitas coisas de
que gostávamos. Meus livros de literatura francesa, por exemplo, estavam todos na biblioteca. Irene pensou
numa garrafa de Hesperidina de muitos anos. Frequentemente (mas isso aconteceu somente nos primeiros dias)
fechávamos alguma gaveta das cômodas e nos olhávamos com tristeza.
— Não está aqui.
E era mais uma coisa que tínhamos perdido do outro lado da casa.
Porém também tivemos algumas vantagens. A limpeza simplificou-se tanto que, embora levantássemos bem
mais tarde, às nove e meia por exemplo, antes das onze horas já estávamos de braços cruzados. Irene foi se
acostumando a ir junto comigo à cozinha para me ajudar a preparar o almoço. Depois de pensar muito, decidimos
isto: enquanto eu preparava o almoço, Irene cozinharia os pratos para comermos frios à noite. Ficamos felizes,
pois era sempre incômodo ter que abandonar os quartos à tardinha para cozinhar. Agora bastava pôr a mesa no
quarto de Irene e as travessas de comida fria.
Irene estava contente porque sobrava mais tempo para tricotar. Eu andava um pouco perdido por causa dos
livros, mas, para não afligir minha irmã, resolvi rever a coleção de selos do papai, e isso me serviu para matar o
tempo. Divertia-nos muito, cada um com suas coisas, quase sempre juntos no quarto de Irene que era o mais
confortável. Às vezes Irene falava:
— Olha esse ponto que acabei de inventar. Parece um desenho de um trevo?
Um instante depois era eu que colocava na frente dos seus olhos um quadradinho de papel para que olhasse o
mérito de algum selo de Eupen e Malmédy. Estávamos muito bem, e pouco a pouco começamos a não pensar.
Pode-se viver sem pensar.
(Quando Irene sonhava em voz alta eu perdia o sono. Nunca pude me acostumar a essa voz de estátua ou
papagaio, voz que vem dos sonhos e não da garganta. Irene falava que meus sonhos consistiam em grandes
sacudidas que às vezes faziam cair o cobertor ao chão. Nossos quartos tinham o salão no meio, mas à noite
ouvia-se qualquer coisa na casa. Ouvíamos nossa respiração, a tosse, pressentíamos os gestos que
aproximavam a mão do interruptor da lâmpada, as mútuas e frequentes insônias.
Fora isso tudo estava calado na casa. Durante o dia eram os rumores domésticos, o roçar metálico das agulhas
de tricô, um rangido ao passar as folhas do álbum filatélico. A porta de mogno, creio já tê-lo dito, era maciça. Na
cozinha e no banheiro, que ficavam encostados na parte tomada, falávamos em voz mais alta ou Irene cantava
canções de ninar. Numa cozinha há bastante barulho da louça e vidros para que outros sons irrompam nela.
Muito poucas vezes permitia-se o silêncio, mas, quando voltávamos para os quartos e para o salão, a casa ficava
calada e com pouca luz, até pisávamos devagar para não incomodar-nos. Creio que era por isso que, à noite,
quando Irene começava a sonhar em voz alta, eu ficava logo sem sono.)
É quase repetir a mesma coisa menos as consequências. Pela noite sinto sede, e antes de ir para a cama eu
disse a Irene que ia até a cozinha pegar um copo d'água. Da porta do quarto (ela tricotava) ouvi barulho na
cozinha ou talvez no banheiro, porque a curva do corredor abafava o som. Chamou a atenção de Irene minha
maneira brusca de deter-me, e veio ao meu lado sem falar nada. Ficamos ouvindo os ruídos, sentindo claramente
que eram deste lado da porta de mogno, na cozinha e no banheiro, ou no corredor mesmo onde começava a
curva, quase ao nosso lado.
Sequer nos olhamos. Apertei o braço de Irene e a fiz correr comigo até a porta cancela, sem olhar para trás. Os
ruídos se ouviam cada vez mais fortes, porém surdos, nas nossas costas. Fechei de um golpe a cancela e
ficamos no corredor. Agora não se ouvia nada.
— Tomaram esta parte — falou Irene. O tricô pendia das suas mãos e os fios chegavam até a cancela e se
perdiam embaixo da porta. Quando viu que os novelos tinham ficado do outro lado, soltou o tricô sem olhar para
ele.
— Você teve tempo para pegar alguma coisa? — perguntei-lhe inutilmente.
Não, nada.
Estávamos com a roupa do corpo. Lembrei-me dos quinze mil pesos no armário do quarto. Agora já era tarde.
Como ainda ficara com o relógio de pulso, vi que eram onze da noite. Enlacei com meu braço a cintura de Irene
(acho que ela estava chorando) e saímos assim à rua. Antes de partir senti pena, fechei bem a porta da entrada
e joguei a chave no ralo da calçada. Não fosse algum pobre-diabo ter a idéia de roubar e entrar na casa, a essa
hora e com a casa tomada.
Filho de pai diplomata, Julio Cortázar nasceu por acaso em Bruxelas, no ano de 1914. Com quatro anos de
idade foi para a Argentina. Com a separação de seus pais, o escritor foi criado pela mãe, uma tia e uma avó.
Com o título de professor normal em Letras, iniciou seus estudos na Faculdade de Filosofia e Letras, que teve
que abandonar logo em seguida, por problemas financeiros. Para poder viver, deu aulas e diversos colégios do
interior daquele país. Por não concordar com a ditadura vigente na Argentina, mudou-se para Paris, em 1951.
Autor de contos considerados como os mais perfeitos no gênero, podemos citar entre suas obras mais
reconhecidas “Bestiário” (1951), “Las armas secretas” (1959), ), “Rayuela”, (1963), “Todos los fuegos el fuego”
(1966), “Ultimo round” (1969), “Octaedro” (1974), “Pameos y Meopas” (1971), “Queremos tanto a Glenda (1980),
“Salvo el crepúsculo” — póstumo (1984) e "Papéis inesperados" — póstumo (2010). O escritor morreu em Paris,
de leucemia, em 1984.
O texto acima foi publicado originalmente em "Bestiario" e extraído do livro "Contos Latino-Americanos Eternos",
Bom Texto Editora, Rio de Janeiro — 2005, pág. 09, organização e tradução de Alicia Ramal.
O Afogado Mais Bonito do Mundo (TEXTO 3)
(GABRIEL GARCIA MARQUES)
Os primeiros meninos que viram o volume escuro e silencioso que se aproximava pelo mar
imaginaram que era um barco inimigo. Depois viram que não trazia bandeiras nem
mastreação, e pensaram que fosse uma baleia. Quando, porém, encalhou na praia, tiraram-
lhe os matos de sargaços, os filamentos de medusas e os restos de cardumes e naufrágios
que trazia por cima, e só então descobriram que era um afogado.Tinham brincado com ele
toda a tarde, enterrando-o e o desenterrando na areia, quando alguém os viu por acaso e deu
o alarme no povoado. Os homens que o carregaram à casa mais próxima notaram que pesava
mais que todos os mortos conhecidos, quase tanto quanto um cavalo, e disseram que talvez
tivesse estado muito tempo à deriva e a água penetrara-lhe os ossos. Quando o estenderam
no chão viram que fora muito maior que todos os homens, pois mal cabia na casa, mas
pensaram que talvez a capacidade de continuar crescendo depois da morte estava na
natureza de certos afogados. Tinha o cheiro do mar e só a forma permitia supor que fosse o
cadáver de um ser humano, porque sua pele estava revestida de uma couraça de rêmora e
de lodo. Não tiveram que limpar seu rosto para saber que era um morto estranho. O povoado
tinha apenas umas vinte casas de tábuas, com pátios de pedra sem flores, dispostas no fim
de um cabo desértico. A terra era tão escassa que as mães andavam sempre com medo de
que o vento levasse os meninos, e os poucos mortos que os anos iam causando tinham que
atirar das escarpas. Mas o mar era manso e pródigo, e todos os homens cabiam em sete
botes. Assim, quando encontraram o afogado, bastou-lhes olhar uns aos outros para perceber
que nenhum faltava. Naquela noite não foram trabalhar no mar. Enquanto os homens
verificavam se não faltava alguém nos povoados vizinhos, as mulheres foram cuidando do
afogado. Tiraram-lhe o lodo com escovas de esparto, desembaraçaram-lhe os cabelos dos
abrolhos submarinos e rasparam a rêmora com ferros de descamar peixes. À medida que o
faziam, notaram que a vegetação era de oceanos remotos e de águas profundas; e que suas
roupas estavam em frangalhos, como se houvesse navegado entre labirintos de corais.
Notaram também que carregava a morte com altivez, pois não tinha o semblante solitário dos
outros afogados do mar, nem tampouco a catadura sórdida e indigente dos afogados dos rios.
Somente, porém, quando acabaram de limpá-lo tiveram consciência da classe de homens que
era, e então ficaram sem respiração. Não era só o mais alto, o mais forte, o mais viril e o mais
bem servido que jamais tinham visto, senão que embora o estivessem vendo, não lhes cabia
na imaginação.
Não encontraram no povoado uma cama bastante grande para estendê-lo, nem uma mesa
bastante sólida para velá-lo. Não lhe serviram as calças de festa dos homens mais altos, nem
as camisas de domingo dos mais corpulentos, nem os sapatos do maior tamanho. Fascinadas
por sua desproporção e sua beleza, as mulheres decidiram então fazer-lhe umas calças com
um bom pedaço de vela carangueja e uma camisa de cretone de noiva, para que pudesse
continuar sua morte com dignidade. Enquanto costuravam, sentadas em círculo,
contemplando o cadáver entre ponto e ponto, parecia-lhes que o vento não fora nunca tão
tenaz nem o Caribe estivera tão ansioso quanto naquela noite, e supunham que essas
mudanças tinham algo a ver com o morto. Pensavam que, se aquele homem magnífico tivesse
vivido no povoado, sua casa teria as portas mais largas, o teto mais alto e o piso mais firme,
e o estrado de sua cama seria de cavernas mestras com pernas de ferro, e sua mulher seria
a mais feliz. Pensavam que tivera tanta autoridade que poderia tirar os peixes do mar só os
chamando por seus nomes, e pusera tanto empenho no trabalho que fizera brotar mananciais
entre as pedras mais áridas, e semear flores nas escarpas. Compararam-no, em segredo,
com seus homens, pensando que não seriam capazes de fazer, em toda uma vida, o que
aquele era capaz de fazer numa noite, e acabaram por repudiá-los, no fundo de seus
corações, como os seres mais fracos e mesquinhos da terra. Andavam perdidas por esses
labirintos de fantasia, quando a mais velha das mulheres, que por ser a mais velha
contemplara o afogado com menos paixão que compaixão, suspirou: __ Tem cara de se
chamar Estêvão. Era verdade. À maioria bastou olhá-lo outra vez para compreender que não
podia ter outro nome. As mais teimosas, que eram as mais jovens, mantiveram-se com a ilusão
de que, ao vesti-lo, estendido entre flores e com uns sapatos de verniz, pudesse chamar-se
Lautaro. Mas foi uma ilusão vã. O lençol ficou curto, mal cortadas e pior costuradas, ficaram
apertadas e as forças ocultas de seu coração faziam saltar os botões da camisa. Depois da
meia noite diminuíram os assobios do vento e o mar caiu na sonolência da quarta feira. O
silêncio pôs fim às últimas dúvidas: era Estêvão. As mulheres que o vestiram, as que o
pentearam, as que lhe cortaram as unhas e barbearam não puderam reprimir um
estremecimento de compaixão quando tiveram de resignar-se a deixá-lo estendido no chão.
Foi então quando compreenderam quanto devia ter sido infeliz com aquele corpo descomunal,
se até depois de morto o estorvava. Viram-no condenado em vida a passar de lado pelas
portas, a ferir-se nos tetos, a permanecer de pé nas visitas, sem fazer o que fazer com suas
ternas e rosadas mãos de boi marinho, enquanto a dona da casa procurava a cadeira mais
resistente e suplicava-lhe, morta de medo, sente-se aqui Estêvão, faça-me o favor, e ele
encostado nas paredes, sorrindo, não se preocupe senhora, estou bem assim, com os
calcanhares em carne viva e as costas abrasando de tanto repetir o mesmo, em todas as
visitas, não se preocupe senhora, estou bem assim, só para não passar pela vergonha de
destruir a cadeira, e talvez sem ter sabido nunca que aquele que lhe diziam não se vá,
Estêvão, espere pelo menos até que aqueça o café, eram os mesmos que, depois,
sussurravam já se foi o bobo grande, que bom, já se foi o bobo bonito. Isto pensavam as
mulheres diante do cadáver um pouco antes do amanhecer.
Mais tarde, quando lhe cobriram o rosto com um lenço para que não o maltratasse a luz, viram-
no tão morto para sempre, tão indefeso, tão parecido com seus homens, que se abriram as
primeiras gretas de lágrimas nos seus corações. Foi uma das mais jovens que começou a
soluçar. As outras, consolando-se entre si, passaram dos suspiros aos lamentos, e enquanto
mais soluçavam, mais vontade sentiam de chorar, porque o afogado estava se tornando cada
vez mais Estevão, até que o choraram tanto que ficou sendo o homem mais desvalido da
Terra, o mais manso, o mais serviçal, o pobre Estêvão. Assim que, quando os homens
voltaram com a notícia de que o afogado também não era dos povoados vizinhos, elas
sentiram um vazio de júbilo entre as lágrimas. __ Bendito seja Deus __ suspiraram: __ é
nosso! Os homens acreditaram que aqueles exageros não eram mais que frivolidades de
mulher. Cansados das demoradas averiguações da noite, a única coisa que queriam era
descartar-se deu ma vez do estorvo do intruso, antes que acendesse o sol bravo daquele dia
árido e sem vento. Improvisaram umas padiolas com restos de traquetes e espichas, e as
amarraram com carlingas de altura, para que resistissem ao peso do corpo até as escarpas.
Quiseram prender-lhe aos tornozelos uma ancora de navio mercante para que ancorasse,
sem tropeços, nos mares mais profundos, onde os peixes são cegos e os búzios morrem de
saudade, de modo que as más correntes não o devolvessem à margem, como acontecera
com outros corpos. Porém, quanto mais se apressavam, mais coisas as mulheres lembraram
para perder tempo. Andavam como galinhas assustadas, bicando amuletos do mar nas arcas,
umas estorvando aqui porque queriam pôr no afogado os escapulários do bom vento, outras
estorvando lá para abotoar-lhe uma pulseira de orientação; e depois de tanto sai daí mulher,
ponha-se onde não estorve, olhe que quase me faz cair sobre o defunto, aos fígados dos
homens subiram as suspeitas e eles começaram a resmungar, para que tanta bugiganga de
altar-mor para um forasteiro, se por muitos cravos e caldeirinhas que levasse em cima os
tubarões iam mastigá-lo, mas elas continuavam ensacando suas relíquias de quinquilharia,
levando e trazendo, tropeçando, enquanto gastavam em suspiros o que poupavam em
lágrimas, tanto que os homens acabaram por se zangar, desde quando aqui semelhante
alvoroço por um morto ao léu, um afogado de nada, um presunto de merda. Uma das
mulheres, mortificada por tanta insensibilidade, tirou o lenço do rosto do cadáver e também os
homens perderam a respiração.Era Estêvão. Não foi preciso repeti-lo para que o
reconhecessem. Se lhe tivessem chamado Sir Walter Raleigh, talvez, até eles ter-se-iam
impressionado com seu sotaque de gringo, com sua arara no ombro, com seu arcabuz de
matar canibais, mas Estêvão só podia ser único no mundo e ali estava atirado, como um peixe
inútil, sem polainas, com umas calças que não lhe cabiam e umas unhas cheias de barro, que
só se podia cortar à faca. Bastou que lhe tirassem o lenço do rosto para perceber que estavam
envergonhado, de que não tinha culpa de ser tão grande, nem tão pesado, nem tão bonito, e
se soubesse que isso ia acontecer, teria procurado um lugar mais discreto para afogar-se, de
verdade, me amarraria eu mesmo uma âncora de galeão no pescoço e teria tropeçado como
quem não que nada nas escarpas, para não andar agora estorvando comeste morto de quarta-
feira, como vocês chamam, para não molestar ninguém com esta porcaria de presunto que
nada tem a ver comigo. Havia tanta verdade no seu modo de estar que até os homens mais
desconfiados, os que achavam amargas as longas noites no mar, temendo que suas mulheres
se cansassem de sonhar com eles para sonhar com os afogados, até esses, e outros mais
empedernidos, estremeceram até a medula com a sinceridade de Estêvão.
Foi por isso que lhe fizeram os funerais mais esplêndidos que se podiam conceber para um
afogado considerado enjeitado. Algumas mulheres, que tinham ido buscar flores nos
povoados vizinhos, voltaram com outras que não acreditavam no que lhes contavam, e estas
foram buscar mais flores quando viram o morto, e levaram mais e mais, até que houve tantas
flores e tanta gente que mal se podia caminhar. Na última hora, doeu-lhes devolvê-lo órfão às
águas, e lhe deram um pai e uma mãe dentre os melhores, e outros se fizerem seus irmãos,
tios e primos, de tal forma que, através dele, todos os habitantes do povoado acabaram por
ser parentes entre si.Alguns marinheiros que ouviram o choro à distância perderam a
segurança do rumo, e se soube de que um se fez amarrar ao mastro maior, recordando antigas
fábulas de sereias. Enquanto se disputavam o privilégio de carregá-lo nos ombros, pelo declive
íngreme das escarpas, homens e mulheres perceberam, pela primeira vez, a desolação de
suas ruas, a aridez de seus pátios, a estreiteza de seus sonhos, diante do esplendor e da
beleza do seu afogado. Jogaram-no sem âncora, para que voltasse se quisesse, e quando o
quisesse, e todos prenderam a respiração durante a fração de séculos que demorou a queda
do corpo até o abismo. Não tiveram necessidade de olhar-se uns aos outros para perceber
que já não estavam todos, nem voltariam a estar jamais. Mas também sabiam que tudo seria
diferente desde então, que suas casas teriam as portas mais largas, os tetos mais altos, os
pisos mais firmes, para que a lembrança de Estevão pudesse andar por toda parte, sem bater
nas traves, e que ninguém se atrevesse a sussurrar no futuro já morreu o bobo grande, que
pena, já morreu o bobo bonito, porque eles iam pintar as fachadas de cores alegres para
eternizar a memória de Estêvão, e iriam quebrar a espinha cavando mananciais nas pedras
e semeando flores nas escarpas para que, nas auroras dos anos venturosos,os passageiros
dos grandes navios despertassem sufocados por um perfume de jardins em alto-mar, e o
capitão tivesse que baixar do seu castelo de proa, em uniforme de gala, astrolábio, estrela
polar e sua enfiada de medalhas de guerra, e, apontando o promontório de rosas no horizonte
doCaribe, dissesse em catorze línguas, olhem lá, onde o vento é agora tão manso que dorme
debaixo das camas, lá, onde o sol brilha tanto que os girassóis não sabem para onde girar,
sim, lá é o povoado de Estêvão.
O travesseiro de penas – Horacio Quiroga (TEXTO 4)
Sua lua-de-mel foi um longo calafrio. Loura, angelical e tímida, o temperamento sisudo do
marido lhe gelou as sonhadas fantasias de noiva. E no entanto ela o amava muito, às vezes
com um ligeiro estremecimento quando, à noite, voltando juntos para casa, dava uma furtiva
olhadela à alta estatura de Jordán, que na última hora não pronunciara uma só palavra. Ele
também a amava muito, profundamente, mas sobre isso não dizia nada.
Durante os três meses – casaram-se em abril – viveram uma felicidade peculiar. Certamente
ela teria desejado menos sobriedade nesse rígido céu de amor, uma ternura mais expansiva
e menos controlada. Mas o impassível semblante do marido sempre a refreava.
A casa onde moravam também contribuía para seus calafrios. A brancura do pátio silencioso
– frisos, colunas, estátuas de mármore – produzia a outonal impressão de uma palácio
encantado. Dentro, o brilho glacial do estuque, sem uma única e superficial fissura nas altas
paredes, corroborava a desconfortável sensação de frio. Na passagem de uma peça para
outra, os passos ecoavam por toda a casa, como se um longo abandono lhe tivesse aguçado
a ressonância.
Nesse singular ninho de amor, Alícia passou todo o outono. Lançara um véu sobre os antigos
sonhos e vivia como dormecida na casa hostil, sem querer pensar em nada até a hora em que
chegasse o marido.
Não surpreendia que emagrecesse. Teve um ligeiro ataque de influenza que acabou se
arrastando, insidiosamente, por dias e dias. Não melhorava nunca. Num fim de tarde pôde ir
ao jardim, apoiada no braço do marido. Olhava para um lado e outro, indiferente. Jordán, com
ternura passou-lhe a mão na cabeça, e Alícia pôs-se a chorar, pendurada em seu pescoço.
Chorou longamente todo seu espanto calado, redobrando o pranto à mínima carícia. Depois
os soluços foram diminuindo e ela continuou abraçada nele, sem mover-se e sem nada dizer.
Foi esse o último dia em que Alícia se levantou. No dia seguinte amanheceu prostrada. O
médico de Jordán veio vê-la e recomendou repouso absoluto.
– Não sei o que ela tem – disse a Jordán em voz baixa, já na porta da rua. – É uma fraqueza
que não entendo. Sem vômitos, sem nada
Se amanhã despertar como hoje, manda me chamar.
No outro dia Alícia estava pior. Veio o médico e constatou uma anemia em progresso
acelerado, completamente inexplicável.
Alícia não teve mais desmaios, mas era visível que caminhava para o fim. Durante o dia todo
o quarto permanecia com a luz acesa e em silêncio. Corriam as horas sem que se ouvisse o
menor ruído. Ela dormitava.
Jordán passava o dia na sala, também com todas as luzes acesas. Andava sem cessar de um
lado para outro, com incansável obstinação, o carpete abafando-lhe os passos. De vez em
quando entrava no quarto e continuava em seu mudo vaivém ao longo da cama, detendo-se
um instante em cada extremo a olhar para a mulher.
Em seguida Alícia começou a ter alucinações. A princípio eram confusas, variadas, depois se
fixaram no chão do quarto. Com os olhos desmesuradamente abertos, não fazia outra coisa
senão fitar o tapete dos dois lados da cabeceira da cama. Uma noite, com o olhar fixo, abriu
a boca para gritar, com as narinas e os lábios perlando suor.
– Jordán! Jordán! – clamou, por fim, rígida de espanto e sem deixar de vigiar o tapete.
Jordán acudiu e Alícia, ao vê-lo, deu um grito.
– Sou eu, Alícia, sou eu!
Ela olhou como perdida, logo para o tapete, tornou a olhar para o marido e, depois de um
momento de de atônita confrontação, acalmou-se. Sorriu e, tomando entre as suas a mão de
Jordán, acariciou-a por uma longa meia hora, sempre tremendo.
Entre suas alucinações mais pertinazes, houve uma que era a de um antropóide no tapete,
erguendo-se na ponta dos dedos e com o olhar cravado nela.
Os médicos voltaram a examiná-la, sempre em vão. Era uma vida que se acabava, dia a dia
se desangrando, hora a hora, sem que soubessem como e por que aquilo acontecia. Na última
consulta, Alícia jazia em estupor enquanto lhe verificavam o pulso, um passando ao outro
aquele braço inerte. Demoradamente a observaram em silêncio e depois passaram à sala.
– É um caso gravíssimo – e o médico de Jordán balançou a cabeça, desalentado. – Pouco ou
nada se pode fazer.
– Era só o que faltava – desabafou Jordán, dedos tamborilando na mesa com violência.
Alícia se esvaía em subdelírios de anemia. Nas primeiras horas da tarde seu mal se atenuava,
agravando-se com a chegada da noite. A doença parecia não avançar durante o dia, mas no
dia seguinte ela amanhecia lívida, quase em síncope. Parecia mesmo que que tão-só durante
a noite sua vida escorria em novas vagas de sangue. Ao despertar, tinha a sensação de estar
esmagada na cama por um milhão de quilos. Desde o terceiro dia essa prostração não mais
a abandonara. Mal podia mover a cabeça e não quis que trocassem os lençóis e a fronha.
Seus terrores crepusculares avançavam agora sob a forma de monstros que se arrastavam
até a cama e subiam laboriosamente pela colcha.
Perdeu a consciência. Nos dois dias finais delirou sem cessar à meia voz. As luzes
continuavam funebremente acesas no quarto e na sala. No silêncio agônico da casa, ouviam-
se apenas o delírio monótono que vinha da cama e os surdos passos de Jordán.
Alícia morreu por fim. A criada, entrando mais tarde no quarto para arrumar a cama vazia,
olhou intrigada para o travesseiro.
– Senhor – chamou em voz baixa. – No travesseiro há manchas que parecem de sangue.
Jordán aproximou-se rapidamente. De fato, na fronha, em ambos os lados da concavidade
deixada pela cabeça de Alicia, viam-se manchas escuras.
– Parecem picadas – murmurou a criada, depois de um instante de atenta observação.
– Traz a lâmpada para cá.
A criada levantou o travesseiro e logo o deixou cair, pálida, trêmula. Sem saber por quê,
Jordán sentiu que seus cabelos se eriçavam.
– O que houve? – perguntou, rouco.
– Pesa muito – gaguejou a criada,sem deixar de tremer.
Jordán o ergueu. Pesava demais. Levaram-no para a mesa da sala e ali Jordán cortou a fronha
e o envoltório interno. As penas à superfície voaram, e a criada, com a boca escancarada,
deu um grito de pavor, levando as mãos crispadas aos bandós. No fundo, entre as penas,
movendo lentamente as patas peludas, havia um animal monstruoso vivente e viscosa. Estava
tão inchado que quase não se distinguia sua boca.
Noite a noite, desde que Alicia ficara acamada, aplicara aquela boca – aquela tromba, melhor
dito – às têmporas dela, para sugar-lhe o sangue. A picada era quase imperceptível. A
mudança diária da fronha havia impedido, a princípio, seu desenvolvimento, mas desde que
a moça não pudera mais mover-se, a sucção fora vertiginosa. Em cinco dias e cinco noites
ele esvaziara Alicia.
Esses parasitas das aves, diminuto no meio habitual, chegam a adquirir proporções enormes
em certas condições. O sangue humano parece lhes ser especialmente favorável e não é raro
que sejam encontrados em travesseiros de penas.
.
(Em A Galinha Degolae Outros Contos, seguido de Heroísmos: Biografias exemplares, L&PM
POCKET, 2002), tradução: Sergio Faraco.
Um artista no trapézio, de Kafka (texto 5)
Um artista do trapézio – como se sabe, esta arte que se pratica no alto das cúpulas dos
grandes circos é uma das mais difíceis entre todas as exequíveis ao homem – tinha
organizado sua vida de tal maneira – primeiro por afã profissional de perfeição, depois por
costume que se tornara tirânico – que, enquanto trabalhava na mesma empresa, permanecia
dia e noite no trapézio. Todas as suas necessidades – por outro lado muito pequenas – eram
satisfeitas por criados que se revezavam em intervalos e vigiavam em baixo. Tudo o que se
precisava em cima subiam e baixavam em cestinhos construídos por acaso. Desta maneira
de viver não se deduziam para o trapezista dificuldades especiais com o resto do mundo.
Apenas era um tanto incomodo durante os outros números do programa, porque como não se
podia esconder que ele permanecera lá em cima, ainda que permanecesse quieto, sempre
algum olhar do publico se desviava para ele. Mas os diretores perdoavam-no, porque era um
artista extraordinário, insubstituível. Além disso era sabido que não vivia assim por capricho e
de que apenas daquela maneira podiaestar sempre treinando e conservar a extrema perfeição
de sua arte. Além do mais, lá em cima estava muito bem. Quando nos dias quentes de verão,
se abriam as janelas laterais que corriam ao redor da cúpula e o sol e o ar irrompiam no âmbito
crepuscular do circo, era até belo. Seu trato humano estava muito limitado, naturalmente.
Alguma vez subia pela corda de ascensão algum colega de exibições, sentava-se ao seu lado
do trapézio, apoiado um na corda da direita, outra na da esquerda, e conversavam
longamente, ou então os operários que reparavam o teto trocavam com ele algumas palavras
por uma das clarabóias ou o eletricista que comprovava as ligações de luz na galeria mais
alta, lhe gritava algumas palavras respeitosas, se bem que pouco compreensíveis. A não ser
nessas oportunidades, estava sempre solitário. Alguma vez um empregado transitava
cansadamente nas horas de sesta pelo circo vazio, erguia seu olhar à quase atraente altura,
onde o trapezista descansava ou se exercitava em sua arte sem saber que era observado.
Assim teria podido viver tranquilo o artista do trapézio, a não ser, pelas inevitáveis viagens de
um certo lugar para outro que o molestavam sumamente. Certo é que o empresário cuidava
de que este sofrimento não se prolongasse demasiado. O trapezista saía para a estação em
um automóvel de corridas que corria, pela madrugada, pelas ruas desertas, com máxima
velocidade; muito lenta, contudo para sua nostalgia do trapézio. No trem, estava preparado
um apartamento somente para ele, onde encontrava, em cima, na redezinha das equipagens,
uma substituição mesquinha – mas de algum modo equivalente – de sua maneira de viver. No
local de destino já estava arrumado o trapézio, muito antes de sua chegada, quando ainda
não se tinham fechado as taboas nem colocado as portas. Mas para o empresário era o
instante mais agradável aquele em que o trapezista se apoiava na corda e subia e em um
átimo se encarapitava de novo sobre o seu trapézio. Apesar de todas as precauções, as
viagens perturbavam gravemente os nervos do trapezista, de modo que por muitos felizes que
fossem economicamente para o empresário, sempre lhe eram penosas. Uma vez em que
viajavam, o artista na redezinha como sonhando, e o empresário recostado no canto da janela,
lendo um livro, o homem do trapézio apostrofou-o suavemente. E lhe disse, mordendo os
lábios, que dali em diante, necessitava para o seu viver, não de um trapézio, como até então,
mas dois, dois trapézios, um em frente ao outro. O empresário concordou logo. Mas o
trapezista, como se quisesse mostrar que a aceitação do empresário não tinha mais
importância do que a sua oposição, acrescentou que nunca mais, em nenhuma ocasião,
trabalharia unicamente sobre um trapézio. Parecia horrorizar-se ante a ideia de que isso
pudesse vir acontecer-lhe alguma vez. O empresário, detendo-se e observando o seu artista,
declarou novamente sua absoluta concordância. Dois trapézios são melhor do que um só.
Além disso, os novos trapézios seriam mais variados e vistosos. Mas o artista, de súbito, se
pôs a chorar. O empresário, profundamente comovido, ergueu-se de um salto e perguntou-
lhe o que lhe acontecia, e como não recebesse nenhuma resposta, subiu ao acento, acariciou
e abraçou e estreitou seu rosto contra o seu, até sentir as lagrimas em sua pele. Depois de
muitas perguntas e palavras carinhosas, o trapezista exclamou, soluçando: - Apenas com uma
barra nas mãos como poderia eu viver! Então, foi muito fácil ao empresário consolá-lo.
Prometeu-lhe que na primeira estação, na primeira parada e hospedaria, telegrafaria para que
instalassem o segundo trapézio. Enfim, deu-lhe os agradecimentos por ter-lhe feito observar
por fim aquela omissão imperdoável. Desse modo, pode o empresário tranquilizar o artista e
tornar a seu canto. Em troca, ele não estava tranquilo, com grave preocupação espiava, às
furtadelas, por cima do livro, ao trapezista. se semelhantes pensamentos tinham começado a
atormentá-lo, poderiam já cessar por completo? Não continuariam aumentando dia por dia?
Não ameaçariam sua existência? E o empresário alarmado, acreditou ver naquele sono
aparentemente tranquilo, em que tinha terminado os choros, começar a desenhar a primeira
ruga na lisa fronte infantil do artista do trapézio.

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Contos

  • 1. Diante da LeiFranz Kafka (01) Diante da Lei está um guarda. Vem um homem do campo e pede para entrar na Lei. Mas oguarda diz-lhe que, por enquanto, não pode autorizar-lhe a entrada. O homem considera e pergunta depoisse poderá entrar mais tarde. – ”É possível” – diz o guarda. – ”Mas não agora!”. O guardaafasta-se então da porta da Lei, aberta como sempre, e o homem curva-se para olhar lá dentro. Ao ver tal, o guarda ri-se e diz. – ”Se tanto te atrai, experimenta entrar, apesar da minha proibição.Contudo, repara, sou forte. E ainda assim sou o último dos guardas. De sala para sala estão guardas cada vez mais fortes, de tal modo que não posso sequer suportar o olhar do terceiro depois de mim”.O homem do campo não esperava tantas dificuldades. A Lei havia de ser acessível a toda a gente e sempre, pensa ele. Mas, ao olhar o guarda envolvido no seu casaco forrado de peles, o narizagudo, a barba à tártaro, longa, delgada e negra, prefere esperar até que lhe seja concedida licença para entrar. O guarda dá-lhe uma banqueta e manda-o sentar ao pé da porta, um pouco desviado. Ali fica, dias e anos. Faz diversas diligências para entrar e com as suas súplicas acaba por cansar o guarda. Este faz-lhe, de vez em quando, pequenos interrogatórios, perguntando-lhe pela pátria e por muitas outras coisas, mas são perguntas lançadas com indiferença, à semelhança dos grandes senhores, no fim, acaba sempre por dizer que não pode ainda deixá-lo entrar. O homem, que seprovera bem para a viagem, emprega todos os meios custosos para subornar o guarda. Esse aceita tudo mas diz sempre: – ”Aceito apenas para que te convenças que nada omitiste”.Durante anos seguidos, quase ininterruptamente, o homem observa o guarda. Esquece os outros e aquele afigura ser-lhe o único obstáculo à entrada na Lei. Nos primeiros anos diz mal da sua sorte,em alto e bom som e depois, ao envelhecer, limita- se a resmungar entre dentes. Torna-se infantil e como, ao fim de tanto examinar o guarda durante anos lhe conhece até as pulgas das peles que ele veste, pede também às pulgas que o ajudem a demover o guarda. Por fim, enfraquece-lhe a vista e acaba por não saber se está escuro em seu redor ou se os olhos o enganam. Mas ainda apercebe, nomeio da escuridão, um clarão que eternamente cintila por sobre a porta da Lei. Agora a morte está próxima. Antes de morrer, acumulam-se na sua cabeça as experiências de tantos anos, que vão todas culminar numa pergunta que ainda não fez ao guarda. Faz-lhe um pequeno sinal, pois não pode mover o seu corpo já arrefecido. O guarda da porta tem de se inclinar até muito baixo porque a diferença de alturas acentuou-se ainda mais em detrimento do homem do campo. – ”Que queres tu saber ainda?”, pergunta o guarda. – ”És insaciável”.– ”Se todos aspiram a Lei”, disse o homem. – ”Como é que, durante todos esses anos, ninguém mais, senão eu, pediu para entrar?”. O guarda da porta, apercebendo-se de que o homem estava no fim, grita-lhe ao ouvido quase inerte: – ”Aqui ninguém mais, senão tu, podia entrar, porque só parati era feita esta porta. Agora vou-me embora e fecho-a”. Parábola que faz parte do livro “O Processo”Obtenha outros e-books na secção Biblioteca do Esquerda.net
  • 2. Casa tomada (TEXTO 02) Julio Cortázar Gostávamos da casa porque, além de ser espaçosa e antiga (as casas antigas de hoje sucumbem às mais vantajosas liquidações dos seus materiais), guardava as lembranças de nossos bisavós, do avô paterno, de nossos pais e de toda a nossa infância. Acostumamo-nos Irene e eu a persistir sozinhos nela, o que era uma loucura, pois nessa casa poderiam viver oito pessoas sem se estorvarem. Fazíamos a limpeza pela manhã, levantando-nos às sete horas, e, por volta das onze horas, eu deixava para Irene os últimos quartos para repassar e ia para a cozinha. O almoço era ao meio-dia, sempre pontualmente; já que nada ficava por fazer, a não ser alguns pratos sujos. Gostávamos de almoçar pensando na casa profunda e silenciosa e em como conseguíamos mantê-la limpa. Às vezes chegávamos a pensar que fora ela a que não nos deixou casar. Irene dispensou dois pretendentes sem motivos maiores, eu perdi Maria Esther pouco antes do nosso noivado. Entramos na casa dos quarenta anos com a inexpressada ideia de que o nosso simples e silencioso casamento de irmãos era uma necessária clausura da genealogia assentada por nossos bisavós na nossa casa. Ali morreríamos algum dia, preguiçosos e toscos primos ficariam com a casa e a mandariam derrubar para enriquecer com o terreno e os tijolos; ou melhor, nós mesmos a derrubaríamos com toda justiça, antes que fosse tarde demais. Irene era uma jovem nascida para não incomodar ninguém. Fora sua atividade matinal, ela passava o resto do dia tricotando no sofá do seu quarto. Não sei por que tricotava tanto, eu penso que as mulheres tricotam quando consideram que essa tarefa é um pretexto para não fazerem nada. Irene não era assim, tricotava coisas sempre necessárias, casacos para o inverno, meias para mim, xales e coletes para ela. Às vezes tricotava um colete e depois o desfazia num instante porque alguma coisa lhe desagradava; era engraçado ver na cestinha aquele monte de lã encrespada resistindo a perder sua forma anterior. Aos sábados eu ia ao centro para comprar lã; Irene confiava no meu bom gosto, sentia prazer com as cores e jamais tive que devolver as madeixas. Eu aproveitava essas saídas para dar uma volta pelas livrarias e perguntar em vão se havia novidades de literatura francesa. Desde 1939 não chegava nada valioso na Argentina. Mas é da casa que me interessa falar, da casa e de Irene, porque eu não tenho nenhuma importância. Pergunto-me o que teria feito Irene sem o tricô. A gente pode reler um livro, mas quando um casaco está terminado não se pode repetir sem escândalo. Certo dia encontrei numa gaveta da cômoda xales brancos, verdes, lilases, cobertos de naftalina, empilhados como num armarinho; não tive coragem de lhe perguntar o que pensava fazer com eles. Não precisávamos ganhar a vida, todos os meses chegava dinheiro dos campos que ia sempre aumentando. Mas era só o tricô que distraía Irene, ela mostrava uma destreza maravilhosa e eu passava horas olhando suas mãos como puas prateadas, agulhas indo e vindo, e uma ou duas cestinhas no chão onde se agitavam constantemente os novelos. Era muito bonito. Como não me lembrar da distribuição da casa! A sala de jantar, lima sala com gobelins, a biblioteca e três quartos grandes ficavam na parte mais afastada, a que dá para a rua Rodríguez Pena. Somente um corredor com sua maciça porta de mogno isolava essa parte da ala dianteira onde havia um banheiro, a cozinha, nossos quartos e o salão central, com o qual se comunicavam os quartos e o corredor. Entrava-se na casa por um corredor de azulejos de Maiorca, e a porta cancela ficava na entrada do salão. De forma que as pessoas entravam pelo corredor, abriam a cancela e passavam para o salão; havia aos lados as portas dos nossos quartos, e na frente o corredor que levava para a parte mais afastada; avançando pelo corredor atravessava -se a porta de mogno e um pouco mais além começava o outro lado da casa, também se podia girar à esquerda justamente antes da porta e seguir pelo corredor mais estreito que levava para a cozinha e para o banheiro. Quando a porta estava aberta, as pessoas percebiam que a casa era muito grande; porque, do contrário, dava a impressão de ser um apartamento dos que agora estão construindo, mal dá para mexer-se; Irene e eu vivíamos sempre nessa parte da casa, quase nunca chegávamos além da porta de mogno, a não ser para fazer a limpeza, pois é incrível como se junta pó nos móveis. Buenos Aires pode ser uma cidade limpa; mas isso é graças aos seus habitantes e não a outra coisa. Há poeira demais no ar, mal sopra uma brisa e já se apalpa o pó nos mármores dos consoles e entre os losangos das toalhas de macramê; dá trabalho tirá-lo bem com o espanador, ele voa e fica suspenso no ar um momento e depois se deposita novamente nos móveis e nos pianos. Lembrarei sempre com toda a clareza porque foi muito simples e sem circunstâncias inúteis. Irene estava tricotando no seu quarto, por volta das oito da noite, e de repente tive a ideia de colocar no fogo a chaleira para o chimarrão. Andei pelo corredor até ficar de frente à porta de mogno entreaberta, e fazia a curva que levava para a cozinha quando ouvi alguma coisa na sala de jantar ou na biblioteca. O som chegava impreciso e surdo, como uma cadeira caindo no tapete ou um abafado sussurro de conversa. Também o ouvi, ao mesmo tempo ou
  • 3. um segundo depois, no fundo do corredor que levava daqueles quartos até a porta. Joguei-me contra a parede antes que fosse tarde demais, fechei-a de um golpe, apoiando meu corpo; felizmente a chave estava colocada do nosso lado e também passei o grande fecho para mais segurança. Entrei na cozinha, esquentei a chaleira e, quando voltei com a bandeja do chimarrão, falei para Irene: — Tive que fechar a porta do corredor. Tomaram a parte dos fundos. Ela deixou cair o tricô e olhou para mim com seus graves e cansados olhos. — Tem certeza? Assenti. — Então — falou pegando as agulhas — teremos que viver deste lado. Eu preparava o chimarrão com muito cuidado, mas ela demorou um instante para retornar à sua tarefa. Lembro - me de que ela estava tricotando um colete cinza; eu gostava desse colete. Os primeiros dias pareceram-nos penosos, porque ambos havíamos deixado na parte tomada muitas coisas de que gostávamos. Meus livros de literatura francesa, por exemplo, estavam todos na biblioteca. Irene pensou numa garrafa de Hesperidina de muitos anos. Frequentemente (mas isso aconteceu somente nos primeiros dias) fechávamos alguma gaveta das cômodas e nos olhávamos com tristeza. — Não está aqui. E era mais uma coisa que tínhamos perdido do outro lado da casa. Porém também tivemos algumas vantagens. A limpeza simplificou-se tanto que, embora levantássemos bem mais tarde, às nove e meia por exemplo, antes das onze horas já estávamos de braços cruzados. Irene foi se acostumando a ir junto comigo à cozinha para me ajudar a preparar o almoço. Depois de pensar muito, decidimos isto: enquanto eu preparava o almoço, Irene cozinharia os pratos para comermos frios à noite. Ficamos felizes, pois era sempre incômodo ter que abandonar os quartos à tardinha para cozinhar. Agora bastava pôr a mesa no quarto de Irene e as travessas de comida fria. Irene estava contente porque sobrava mais tempo para tricotar. Eu andava um pouco perdido por causa dos livros, mas, para não afligir minha irmã, resolvi rever a coleção de selos do papai, e isso me serviu para matar o tempo. Divertia-nos muito, cada um com suas coisas, quase sempre juntos no quarto de Irene que era o mais confortável. Às vezes Irene falava: — Olha esse ponto que acabei de inventar. Parece um desenho de um trevo? Um instante depois era eu que colocava na frente dos seus olhos um quadradinho de papel para que olhasse o mérito de algum selo de Eupen e Malmédy. Estávamos muito bem, e pouco a pouco começamos a não pensar. Pode-se viver sem pensar. (Quando Irene sonhava em voz alta eu perdia o sono. Nunca pude me acostumar a essa voz de estátua ou papagaio, voz que vem dos sonhos e não da garganta. Irene falava que meus sonhos consistiam em grandes sacudidas que às vezes faziam cair o cobertor ao chão. Nossos quartos tinham o salão no meio, mas à noite ouvia-se qualquer coisa na casa. Ouvíamos nossa respiração, a tosse, pressentíamos os gestos que aproximavam a mão do interruptor da lâmpada, as mútuas e frequentes insônias. Fora isso tudo estava calado na casa. Durante o dia eram os rumores domésticos, o roçar metálico das agulhas de tricô, um rangido ao passar as folhas do álbum filatélico. A porta de mogno, creio já tê-lo dito, era maciça. Na cozinha e no banheiro, que ficavam encostados na parte tomada, falávamos em voz mais alta ou Irene cantava canções de ninar. Numa cozinha há bastante barulho da louça e vidros para que outros sons irrompam nela. Muito poucas vezes permitia-se o silêncio, mas, quando voltávamos para os quartos e para o salão, a casa ficava calada e com pouca luz, até pisávamos devagar para não incomodar-nos. Creio que era por isso que, à noite, quando Irene começava a sonhar em voz alta, eu ficava logo sem sono.)
  • 4. É quase repetir a mesma coisa menos as consequências. Pela noite sinto sede, e antes de ir para a cama eu disse a Irene que ia até a cozinha pegar um copo d'água. Da porta do quarto (ela tricotava) ouvi barulho na cozinha ou talvez no banheiro, porque a curva do corredor abafava o som. Chamou a atenção de Irene minha maneira brusca de deter-me, e veio ao meu lado sem falar nada. Ficamos ouvindo os ruídos, sentindo claramente que eram deste lado da porta de mogno, na cozinha e no banheiro, ou no corredor mesmo onde começava a curva, quase ao nosso lado. Sequer nos olhamos. Apertei o braço de Irene e a fiz correr comigo até a porta cancela, sem olhar para trás. Os ruídos se ouviam cada vez mais fortes, porém surdos, nas nossas costas. Fechei de um golpe a cancela e ficamos no corredor. Agora não se ouvia nada. — Tomaram esta parte — falou Irene. O tricô pendia das suas mãos e os fios chegavam até a cancela e se perdiam embaixo da porta. Quando viu que os novelos tinham ficado do outro lado, soltou o tricô sem olhar para ele. — Você teve tempo para pegar alguma coisa? — perguntei-lhe inutilmente. Não, nada. Estávamos com a roupa do corpo. Lembrei-me dos quinze mil pesos no armário do quarto. Agora já era tarde. Como ainda ficara com o relógio de pulso, vi que eram onze da noite. Enlacei com meu braço a cintura de Irene (acho que ela estava chorando) e saímos assim à rua. Antes de partir senti pena, fechei bem a porta da entrada e joguei a chave no ralo da calçada. Não fosse algum pobre-diabo ter a idéia de roubar e entrar na casa, a essa hora e com a casa tomada. Filho de pai diplomata, Julio Cortázar nasceu por acaso em Bruxelas, no ano de 1914. Com quatro anos de idade foi para a Argentina. Com a separação de seus pais, o escritor foi criado pela mãe, uma tia e uma avó. Com o título de professor normal em Letras, iniciou seus estudos na Faculdade de Filosofia e Letras, que teve que abandonar logo em seguida, por problemas financeiros. Para poder viver, deu aulas e diversos colégios do interior daquele país. Por não concordar com a ditadura vigente na Argentina, mudou-se para Paris, em 1951. Autor de contos considerados como os mais perfeitos no gênero, podemos citar entre suas obras mais reconhecidas “Bestiário” (1951), “Las armas secretas” (1959), ), “Rayuela”, (1963), “Todos los fuegos el fuego” (1966), “Ultimo round” (1969), “Octaedro” (1974), “Pameos y Meopas” (1971), “Queremos tanto a Glenda (1980), “Salvo el crepúsculo” — póstumo (1984) e "Papéis inesperados" — póstumo (2010). O escritor morreu em Paris, de leucemia, em 1984. O texto acima foi publicado originalmente em "Bestiario" e extraído do livro "Contos Latino-Americanos Eternos", Bom Texto Editora, Rio de Janeiro — 2005, pág. 09, organização e tradução de Alicia Ramal.
  • 5. O Afogado Mais Bonito do Mundo (TEXTO 3) (GABRIEL GARCIA MARQUES) Os primeiros meninos que viram o volume escuro e silencioso que se aproximava pelo mar imaginaram que era um barco inimigo. Depois viram que não trazia bandeiras nem mastreação, e pensaram que fosse uma baleia. Quando, porém, encalhou na praia, tiraram- lhe os matos de sargaços, os filamentos de medusas e os restos de cardumes e naufrágios que trazia por cima, e só então descobriram que era um afogado.Tinham brincado com ele toda a tarde, enterrando-o e o desenterrando na areia, quando alguém os viu por acaso e deu o alarme no povoado. Os homens que o carregaram à casa mais próxima notaram que pesava mais que todos os mortos conhecidos, quase tanto quanto um cavalo, e disseram que talvez tivesse estado muito tempo à deriva e a água penetrara-lhe os ossos. Quando o estenderam no chão viram que fora muito maior que todos os homens, pois mal cabia na casa, mas pensaram que talvez a capacidade de continuar crescendo depois da morte estava na natureza de certos afogados. Tinha o cheiro do mar e só a forma permitia supor que fosse o cadáver de um ser humano, porque sua pele estava revestida de uma couraça de rêmora e de lodo. Não tiveram que limpar seu rosto para saber que era um morto estranho. O povoado tinha apenas umas vinte casas de tábuas, com pátios de pedra sem flores, dispostas no fim de um cabo desértico. A terra era tão escassa que as mães andavam sempre com medo de que o vento levasse os meninos, e os poucos mortos que os anos iam causando tinham que atirar das escarpas. Mas o mar era manso e pródigo, e todos os homens cabiam em sete botes. Assim, quando encontraram o afogado, bastou-lhes olhar uns aos outros para perceber que nenhum faltava. Naquela noite não foram trabalhar no mar. Enquanto os homens verificavam se não faltava alguém nos povoados vizinhos, as mulheres foram cuidando do afogado. Tiraram-lhe o lodo com escovas de esparto, desembaraçaram-lhe os cabelos dos abrolhos submarinos e rasparam a rêmora com ferros de descamar peixes. À medida que o faziam, notaram que a vegetação era de oceanos remotos e de águas profundas; e que suas roupas estavam em frangalhos, como se houvesse navegado entre labirintos de corais. Notaram também que carregava a morte com altivez, pois não tinha o semblante solitário dos outros afogados do mar, nem tampouco a catadura sórdida e indigente dos afogados dos rios. Somente, porém, quando acabaram de limpá-lo tiveram consciência da classe de homens que era, e então ficaram sem respiração. Não era só o mais alto, o mais forte, o mais viril e o mais bem servido que jamais tinham visto, senão que embora o estivessem vendo, não lhes cabia na imaginação. Não encontraram no povoado uma cama bastante grande para estendê-lo, nem uma mesa bastante sólida para velá-lo. Não lhe serviram as calças de festa dos homens mais altos, nem as camisas de domingo dos mais corpulentos, nem os sapatos do maior tamanho. Fascinadas por sua desproporção e sua beleza, as mulheres decidiram então fazer-lhe umas calças com um bom pedaço de vela carangueja e uma camisa de cretone de noiva, para que pudesse continuar sua morte com dignidade. Enquanto costuravam, sentadas em círculo, contemplando o cadáver entre ponto e ponto, parecia-lhes que o vento não fora nunca tão tenaz nem o Caribe estivera tão ansioso quanto naquela noite, e supunham que essas mudanças tinham algo a ver com o morto. Pensavam que, se aquele homem magnífico tivesse vivido no povoado, sua casa teria as portas mais largas, o teto mais alto e o piso mais firme, e o estrado de sua cama seria de cavernas mestras com pernas de ferro, e sua mulher seria a mais feliz. Pensavam que tivera tanta autoridade que poderia tirar os peixes do mar só os chamando por seus nomes, e pusera tanto empenho no trabalho que fizera brotar mananciais entre as pedras mais áridas, e semear flores nas escarpas. Compararam-no, em segredo, com seus homens, pensando que não seriam capazes de fazer, em toda uma vida, o que aquele era capaz de fazer numa noite, e acabaram por repudiá-los, no fundo de seus
  • 6. corações, como os seres mais fracos e mesquinhos da terra. Andavam perdidas por esses labirintos de fantasia, quando a mais velha das mulheres, que por ser a mais velha contemplara o afogado com menos paixão que compaixão, suspirou: __ Tem cara de se chamar Estêvão. Era verdade. À maioria bastou olhá-lo outra vez para compreender que não podia ter outro nome. As mais teimosas, que eram as mais jovens, mantiveram-se com a ilusão de que, ao vesti-lo, estendido entre flores e com uns sapatos de verniz, pudesse chamar-se Lautaro. Mas foi uma ilusão vã. O lençol ficou curto, mal cortadas e pior costuradas, ficaram apertadas e as forças ocultas de seu coração faziam saltar os botões da camisa. Depois da meia noite diminuíram os assobios do vento e o mar caiu na sonolência da quarta feira. O silêncio pôs fim às últimas dúvidas: era Estêvão. As mulheres que o vestiram, as que o pentearam, as que lhe cortaram as unhas e barbearam não puderam reprimir um estremecimento de compaixão quando tiveram de resignar-se a deixá-lo estendido no chão. Foi então quando compreenderam quanto devia ter sido infeliz com aquele corpo descomunal, se até depois de morto o estorvava. Viram-no condenado em vida a passar de lado pelas portas, a ferir-se nos tetos, a permanecer de pé nas visitas, sem fazer o que fazer com suas ternas e rosadas mãos de boi marinho, enquanto a dona da casa procurava a cadeira mais resistente e suplicava-lhe, morta de medo, sente-se aqui Estêvão, faça-me o favor, e ele encostado nas paredes, sorrindo, não se preocupe senhora, estou bem assim, com os calcanhares em carne viva e as costas abrasando de tanto repetir o mesmo, em todas as visitas, não se preocupe senhora, estou bem assim, só para não passar pela vergonha de destruir a cadeira, e talvez sem ter sabido nunca que aquele que lhe diziam não se vá, Estêvão, espere pelo menos até que aqueça o café, eram os mesmos que, depois, sussurravam já se foi o bobo grande, que bom, já se foi o bobo bonito. Isto pensavam as mulheres diante do cadáver um pouco antes do amanhecer. Mais tarde, quando lhe cobriram o rosto com um lenço para que não o maltratasse a luz, viram- no tão morto para sempre, tão indefeso, tão parecido com seus homens, que se abriram as primeiras gretas de lágrimas nos seus corações. Foi uma das mais jovens que começou a soluçar. As outras, consolando-se entre si, passaram dos suspiros aos lamentos, e enquanto mais soluçavam, mais vontade sentiam de chorar, porque o afogado estava se tornando cada vez mais Estevão, até que o choraram tanto que ficou sendo o homem mais desvalido da Terra, o mais manso, o mais serviçal, o pobre Estêvão. Assim que, quando os homens voltaram com a notícia de que o afogado também não era dos povoados vizinhos, elas sentiram um vazio de júbilo entre as lágrimas. __ Bendito seja Deus __ suspiraram: __ é nosso! Os homens acreditaram que aqueles exageros não eram mais que frivolidades de mulher. Cansados das demoradas averiguações da noite, a única coisa que queriam era descartar-se deu ma vez do estorvo do intruso, antes que acendesse o sol bravo daquele dia árido e sem vento. Improvisaram umas padiolas com restos de traquetes e espichas, e as amarraram com carlingas de altura, para que resistissem ao peso do corpo até as escarpas. Quiseram prender-lhe aos tornozelos uma ancora de navio mercante para que ancorasse, sem tropeços, nos mares mais profundos, onde os peixes são cegos e os búzios morrem de saudade, de modo que as más correntes não o devolvessem à margem, como acontecera com outros corpos. Porém, quanto mais se apressavam, mais coisas as mulheres lembraram para perder tempo. Andavam como galinhas assustadas, bicando amuletos do mar nas arcas, umas estorvando aqui porque queriam pôr no afogado os escapulários do bom vento, outras estorvando lá para abotoar-lhe uma pulseira de orientação; e depois de tanto sai daí mulher, ponha-se onde não estorve, olhe que quase me faz cair sobre o defunto, aos fígados dos homens subiram as suspeitas e eles começaram a resmungar, para que tanta bugiganga de altar-mor para um forasteiro, se por muitos cravos e caldeirinhas que levasse em cima os tubarões iam mastigá-lo, mas elas continuavam ensacando suas relíquias de quinquilharia, levando e trazendo, tropeçando, enquanto gastavam em suspiros o que poupavam em lágrimas, tanto que os homens acabaram por se zangar, desde quando aqui semelhante
  • 7. alvoroço por um morto ao léu, um afogado de nada, um presunto de merda. Uma das mulheres, mortificada por tanta insensibilidade, tirou o lenço do rosto do cadáver e também os homens perderam a respiração.Era Estêvão. Não foi preciso repeti-lo para que o reconhecessem. Se lhe tivessem chamado Sir Walter Raleigh, talvez, até eles ter-se-iam impressionado com seu sotaque de gringo, com sua arara no ombro, com seu arcabuz de matar canibais, mas Estêvão só podia ser único no mundo e ali estava atirado, como um peixe inútil, sem polainas, com umas calças que não lhe cabiam e umas unhas cheias de barro, que só se podia cortar à faca. Bastou que lhe tirassem o lenço do rosto para perceber que estavam envergonhado, de que não tinha culpa de ser tão grande, nem tão pesado, nem tão bonito, e se soubesse que isso ia acontecer, teria procurado um lugar mais discreto para afogar-se, de verdade, me amarraria eu mesmo uma âncora de galeão no pescoço e teria tropeçado como quem não que nada nas escarpas, para não andar agora estorvando comeste morto de quarta- feira, como vocês chamam, para não molestar ninguém com esta porcaria de presunto que nada tem a ver comigo. Havia tanta verdade no seu modo de estar que até os homens mais desconfiados, os que achavam amargas as longas noites no mar, temendo que suas mulheres se cansassem de sonhar com eles para sonhar com os afogados, até esses, e outros mais empedernidos, estremeceram até a medula com a sinceridade de Estêvão. Foi por isso que lhe fizeram os funerais mais esplêndidos que se podiam conceber para um afogado considerado enjeitado. Algumas mulheres, que tinham ido buscar flores nos povoados vizinhos, voltaram com outras que não acreditavam no que lhes contavam, e estas foram buscar mais flores quando viram o morto, e levaram mais e mais, até que houve tantas flores e tanta gente que mal se podia caminhar. Na última hora, doeu-lhes devolvê-lo órfão às águas, e lhe deram um pai e uma mãe dentre os melhores, e outros se fizerem seus irmãos, tios e primos, de tal forma que, através dele, todos os habitantes do povoado acabaram por ser parentes entre si.Alguns marinheiros que ouviram o choro à distância perderam a segurança do rumo, e se soube de que um se fez amarrar ao mastro maior, recordando antigas fábulas de sereias. Enquanto se disputavam o privilégio de carregá-lo nos ombros, pelo declive íngreme das escarpas, homens e mulheres perceberam, pela primeira vez, a desolação de suas ruas, a aridez de seus pátios, a estreiteza de seus sonhos, diante do esplendor e da beleza do seu afogado. Jogaram-no sem âncora, para que voltasse se quisesse, e quando o quisesse, e todos prenderam a respiração durante a fração de séculos que demorou a queda do corpo até o abismo. Não tiveram necessidade de olhar-se uns aos outros para perceber que já não estavam todos, nem voltariam a estar jamais. Mas também sabiam que tudo seria diferente desde então, que suas casas teriam as portas mais largas, os tetos mais altos, os pisos mais firmes, para que a lembrança de Estevão pudesse andar por toda parte, sem bater nas traves, e que ninguém se atrevesse a sussurrar no futuro já morreu o bobo grande, que pena, já morreu o bobo bonito, porque eles iam pintar as fachadas de cores alegres para eternizar a memória de Estêvão, e iriam quebrar a espinha cavando mananciais nas pedras e semeando flores nas escarpas para que, nas auroras dos anos venturosos,os passageiros dos grandes navios despertassem sufocados por um perfume de jardins em alto-mar, e o capitão tivesse que baixar do seu castelo de proa, em uniforme de gala, astrolábio, estrela polar e sua enfiada de medalhas de guerra, e, apontando o promontório de rosas no horizonte doCaribe, dissesse em catorze línguas, olhem lá, onde o vento é agora tão manso que dorme debaixo das camas, lá, onde o sol brilha tanto que os girassóis não sabem para onde girar, sim, lá é o povoado de Estêvão.
  • 8. O travesseiro de penas – Horacio Quiroga (TEXTO 4) Sua lua-de-mel foi um longo calafrio. Loura, angelical e tímida, o temperamento sisudo do marido lhe gelou as sonhadas fantasias de noiva. E no entanto ela o amava muito, às vezes com um ligeiro estremecimento quando, à noite, voltando juntos para casa, dava uma furtiva olhadela à alta estatura de Jordán, que na última hora não pronunciara uma só palavra. Ele também a amava muito, profundamente, mas sobre isso não dizia nada. Durante os três meses – casaram-se em abril – viveram uma felicidade peculiar. Certamente ela teria desejado menos sobriedade nesse rígido céu de amor, uma ternura mais expansiva e menos controlada. Mas o impassível semblante do marido sempre a refreava. A casa onde moravam também contribuía para seus calafrios. A brancura do pátio silencioso – frisos, colunas, estátuas de mármore – produzia a outonal impressão de uma palácio encantado. Dentro, o brilho glacial do estuque, sem uma única e superficial fissura nas altas paredes, corroborava a desconfortável sensação de frio. Na passagem de uma peça para outra, os passos ecoavam por toda a casa, como se um longo abandono lhe tivesse aguçado a ressonância. Nesse singular ninho de amor, Alícia passou todo o outono. Lançara um véu sobre os antigos sonhos e vivia como dormecida na casa hostil, sem querer pensar em nada até a hora em que chegasse o marido. Não surpreendia que emagrecesse. Teve um ligeiro ataque de influenza que acabou se arrastando, insidiosamente, por dias e dias. Não melhorava nunca. Num fim de tarde pôde ir ao jardim, apoiada no braço do marido. Olhava para um lado e outro, indiferente. Jordán, com ternura passou-lhe a mão na cabeça, e Alícia pôs-se a chorar, pendurada em seu pescoço. Chorou longamente todo seu espanto calado, redobrando o pranto à mínima carícia. Depois os soluços foram diminuindo e ela continuou abraçada nele, sem mover-se e sem nada dizer. Foi esse o último dia em que Alícia se levantou. No dia seguinte amanheceu prostrada. O médico de Jordán veio vê-la e recomendou repouso absoluto. – Não sei o que ela tem – disse a Jordán em voz baixa, já na porta da rua. – É uma fraqueza que não entendo. Sem vômitos, sem nada Se amanhã despertar como hoje, manda me chamar. No outro dia Alícia estava pior. Veio o médico e constatou uma anemia em progresso acelerado, completamente inexplicável. Alícia não teve mais desmaios, mas era visível que caminhava para o fim. Durante o dia todo o quarto permanecia com a luz acesa e em silêncio. Corriam as horas sem que se ouvisse o menor ruído. Ela dormitava. Jordán passava o dia na sala, também com todas as luzes acesas. Andava sem cessar de um lado para outro, com incansável obstinação, o carpete abafando-lhe os passos. De vez em quando entrava no quarto e continuava em seu mudo vaivém ao longo da cama, detendo-se um instante em cada extremo a olhar para a mulher. Em seguida Alícia começou a ter alucinações. A princípio eram confusas, variadas, depois se fixaram no chão do quarto. Com os olhos desmesuradamente abertos, não fazia outra coisa
  • 9. senão fitar o tapete dos dois lados da cabeceira da cama. Uma noite, com o olhar fixo, abriu a boca para gritar, com as narinas e os lábios perlando suor. – Jordán! Jordán! – clamou, por fim, rígida de espanto e sem deixar de vigiar o tapete. Jordán acudiu e Alícia, ao vê-lo, deu um grito. – Sou eu, Alícia, sou eu! Ela olhou como perdida, logo para o tapete, tornou a olhar para o marido e, depois de um momento de de atônita confrontação, acalmou-se. Sorriu e, tomando entre as suas a mão de Jordán, acariciou-a por uma longa meia hora, sempre tremendo. Entre suas alucinações mais pertinazes, houve uma que era a de um antropóide no tapete, erguendo-se na ponta dos dedos e com o olhar cravado nela. Os médicos voltaram a examiná-la, sempre em vão. Era uma vida que se acabava, dia a dia se desangrando, hora a hora, sem que soubessem como e por que aquilo acontecia. Na última consulta, Alícia jazia em estupor enquanto lhe verificavam o pulso, um passando ao outro aquele braço inerte. Demoradamente a observaram em silêncio e depois passaram à sala. – É um caso gravíssimo – e o médico de Jordán balançou a cabeça, desalentado. – Pouco ou nada se pode fazer. – Era só o que faltava – desabafou Jordán, dedos tamborilando na mesa com violência. Alícia se esvaía em subdelírios de anemia. Nas primeiras horas da tarde seu mal se atenuava, agravando-se com a chegada da noite. A doença parecia não avançar durante o dia, mas no dia seguinte ela amanhecia lívida, quase em síncope. Parecia mesmo que que tão-só durante a noite sua vida escorria em novas vagas de sangue. Ao despertar, tinha a sensação de estar esmagada na cama por um milhão de quilos. Desde o terceiro dia essa prostração não mais a abandonara. Mal podia mover a cabeça e não quis que trocassem os lençóis e a fronha. Seus terrores crepusculares avançavam agora sob a forma de monstros que se arrastavam até a cama e subiam laboriosamente pela colcha. Perdeu a consciência. Nos dois dias finais delirou sem cessar à meia voz. As luzes continuavam funebremente acesas no quarto e na sala. No silêncio agônico da casa, ouviam- se apenas o delírio monótono que vinha da cama e os surdos passos de Jordán. Alícia morreu por fim. A criada, entrando mais tarde no quarto para arrumar a cama vazia, olhou intrigada para o travesseiro. – Senhor – chamou em voz baixa. – No travesseiro há manchas que parecem de sangue. Jordán aproximou-se rapidamente. De fato, na fronha, em ambos os lados da concavidade deixada pela cabeça de Alicia, viam-se manchas escuras. – Parecem picadas – murmurou a criada, depois de um instante de atenta observação. – Traz a lâmpada para cá.
  • 10. A criada levantou o travesseiro e logo o deixou cair, pálida, trêmula. Sem saber por quê, Jordán sentiu que seus cabelos se eriçavam. – O que houve? – perguntou, rouco. – Pesa muito – gaguejou a criada,sem deixar de tremer. Jordán o ergueu. Pesava demais. Levaram-no para a mesa da sala e ali Jordán cortou a fronha e o envoltório interno. As penas à superfície voaram, e a criada, com a boca escancarada, deu um grito de pavor, levando as mãos crispadas aos bandós. No fundo, entre as penas, movendo lentamente as patas peludas, havia um animal monstruoso vivente e viscosa. Estava tão inchado que quase não se distinguia sua boca. Noite a noite, desde que Alicia ficara acamada, aplicara aquela boca – aquela tromba, melhor dito – às têmporas dela, para sugar-lhe o sangue. A picada era quase imperceptível. A mudança diária da fronha havia impedido, a princípio, seu desenvolvimento, mas desde que a moça não pudera mais mover-se, a sucção fora vertiginosa. Em cinco dias e cinco noites ele esvaziara Alicia. Esses parasitas das aves, diminuto no meio habitual, chegam a adquirir proporções enormes em certas condições. O sangue humano parece lhes ser especialmente favorável e não é raro que sejam encontrados em travesseiros de penas. . (Em A Galinha Degolae Outros Contos, seguido de Heroísmos: Biografias exemplares, L&PM POCKET, 2002), tradução: Sergio Faraco.
  • 11. Um artista no trapézio, de Kafka (texto 5) Um artista do trapézio – como se sabe, esta arte que se pratica no alto das cúpulas dos grandes circos é uma das mais difíceis entre todas as exequíveis ao homem – tinha organizado sua vida de tal maneira – primeiro por afã profissional de perfeição, depois por costume que se tornara tirânico – que, enquanto trabalhava na mesma empresa, permanecia dia e noite no trapézio. Todas as suas necessidades – por outro lado muito pequenas – eram satisfeitas por criados que se revezavam em intervalos e vigiavam em baixo. Tudo o que se precisava em cima subiam e baixavam em cestinhos construídos por acaso. Desta maneira de viver não se deduziam para o trapezista dificuldades especiais com o resto do mundo. Apenas era um tanto incomodo durante os outros números do programa, porque como não se podia esconder que ele permanecera lá em cima, ainda que permanecesse quieto, sempre algum olhar do publico se desviava para ele. Mas os diretores perdoavam-no, porque era um artista extraordinário, insubstituível. Além disso era sabido que não vivia assim por capricho e de que apenas daquela maneira podiaestar sempre treinando e conservar a extrema perfeição de sua arte. Além do mais, lá em cima estava muito bem. Quando nos dias quentes de verão, se abriam as janelas laterais que corriam ao redor da cúpula e o sol e o ar irrompiam no âmbito crepuscular do circo, era até belo. Seu trato humano estava muito limitado, naturalmente. Alguma vez subia pela corda de ascensão algum colega de exibições, sentava-se ao seu lado do trapézio, apoiado um na corda da direita, outra na da esquerda, e conversavam longamente, ou então os operários que reparavam o teto trocavam com ele algumas palavras por uma das clarabóias ou o eletricista que comprovava as ligações de luz na galeria mais alta, lhe gritava algumas palavras respeitosas, se bem que pouco compreensíveis. A não ser nessas oportunidades, estava sempre solitário. Alguma vez um empregado transitava cansadamente nas horas de sesta pelo circo vazio, erguia seu olhar à quase atraente altura, onde o trapezista descansava ou se exercitava em sua arte sem saber que era observado. Assim teria podido viver tranquilo o artista do trapézio, a não ser, pelas inevitáveis viagens de um certo lugar para outro que o molestavam sumamente. Certo é que o empresário cuidava de que este sofrimento não se prolongasse demasiado. O trapezista saía para a estação em um automóvel de corridas que corria, pela madrugada, pelas ruas desertas, com máxima velocidade; muito lenta, contudo para sua nostalgia do trapézio. No trem, estava preparado um apartamento somente para ele, onde encontrava, em cima, na redezinha das equipagens, uma substituição mesquinha – mas de algum modo equivalente – de sua maneira de viver. No local de destino já estava arrumado o trapézio, muito antes de sua chegada, quando ainda não se tinham fechado as taboas nem colocado as portas. Mas para o empresário era o instante mais agradável aquele em que o trapezista se apoiava na corda e subia e em um átimo se encarapitava de novo sobre o seu trapézio. Apesar de todas as precauções, as viagens perturbavam gravemente os nervos do trapezista, de modo que por muitos felizes que fossem economicamente para o empresário, sempre lhe eram penosas. Uma vez em que viajavam, o artista na redezinha como sonhando, e o empresário recostado no canto da janela, lendo um livro, o homem do trapézio apostrofou-o suavemente. E lhe disse, mordendo os lábios, que dali em diante, necessitava para o seu viver, não de um trapézio, como até então, mas dois, dois trapézios, um em frente ao outro. O empresário concordou logo. Mas o trapezista, como se quisesse mostrar que a aceitação do empresário não tinha mais importância do que a sua oposição, acrescentou que nunca mais, em nenhuma ocasião, trabalharia unicamente sobre um trapézio. Parecia horrorizar-se ante a ideia de que isso
  • 12. pudesse vir acontecer-lhe alguma vez. O empresário, detendo-se e observando o seu artista, declarou novamente sua absoluta concordância. Dois trapézios são melhor do que um só. Além disso, os novos trapézios seriam mais variados e vistosos. Mas o artista, de súbito, se pôs a chorar. O empresário, profundamente comovido, ergueu-se de um salto e perguntou- lhe o que lhe acontecia, e como não recebesse nenhuma resposta, subiu ao acento, acariciou e abraçou e estreitou seu rosto contra o seu, até sentir as lagrimas em sua pele. Depois de muitas perguntas e palavras carinhosas, o trapezista exclamou, soluçando: - Apenas com uma barra nas mãos como poderia eu viver! Então, foi muito fácil ao empresário consolá-lo. Prometeu-lhe que na primeira estação, na primeira parada e hospedaria, telegrafaria para que instalassem o segundo trapézio. Enfim, deu-lhe os agradecimentos por ter-lhe feito observar por fim aquela omissão imperdoável. Desse modo, pode o empresário tranquilizar o artista e tornar a seu canto. Em troca, ele não estava tranquilo, com grave preocupação espiava, às furtadelas, por cima do livro, ao trapezista. se semelhantes pensamentos tinham começado a atormentá-lo, poderiam já cessar por completo? Não continuariam aumentando dia por dia? Não ameaçariam sua existência? E o empresário alarmado, acreditou ver naquele sono aparentemente tranquilo, em que tinha terminado os choros, começar a desenhar a primeira ruga na lisa fronte infantil do artista do trapézio.