DeClara n.º 75 Abril 2024 - O Jornal digital do Agrupamento de Escolas Clara ...
Desmatamento e desenvolvimento: mitos e realidades
1. E C O N O M I A
Desenvolvimento e meio
ambiente: uma falsa
incompatibilidade
Uma idéia muitas vezes apregoada é a de que as políticas ambientais impedem
ou prejudicam o crescimento econômico, desestimulando a implantação
de indústrias ou impedindo a derrubada de florestas para abrir espaço para
a agropecuária. Estudos recentes, porém, revelam que não há uma relação estatística
entre o desmatamento e indicadores econômicos, e que a industrialização no país,
fortemente apoiada em setores de elevado potencial poluidor, não proporcionou
um crescimento sustentado, que trouxesse benefícios para toda a população.
Carlos Eduardo Frickmann Young
Instituto de Economia,
Universidade Federal do Rio de Janeiro
As questões do crescimento econômico e, em particular, diversos mitos sobre a incompatibilidade entre de-
da geração de empregos são, sem dúvida, preocu- senvolvimento econômico e preservação do meio
pações fundamentais para a sociedade brasileira. ambiente não se sustentam em uma análise mais
Nossa economia passou por grandes dificuldades rigorosa. Questões como a justiça social e a preser-
nos últimos anos e, embora tenha sido mantida a vação ambiental, ignoradas ou minoradas no pas-
estabilidade de preços, o baixíssimo nível de ati- sado, impõem atualmente exigências maiores aos
vidades, combinado com alto desemprego, tem processos de transformação produtiva. Enfim, para
gerado um clima de frustração e desânimo. os países periféricos, não se trata ‘apenas’ de cres-
Na busca por culpados para essa falta de dina- cer a taxas acima da média mundial. É preciso
mismo, as políticas ambientais são com freqüên- ainda responder a questões mais profundas: Onde
cia responsabilizadas pelas restrições à expansão crescer? Para quem crescer? Por que crescer? Como
da economia. Nas áreas industrial e energética, crescer?
argumenta-se que as normas de licenciamento am-
biental são excessivamente rigorosas e/ou lentas,
o que desestimularia os empresários. Na área agrí- DESMATAMENTO E DESENVOLVIMENTO
cola, uma velha queixa dos proprietários rurais é
a de que o Código Florestal imobiliza áreas consi- O debate sobre o papel das florestas no processo de
deráveis, o que reduziria a produção e o emprego desenvolvimento brasileiro está repleto de mitos
no setor. comumente aceitos sem a adequada sustentação
Mas até que ponto esses argumentos têm funda- teórica ou empírica. Entre tais mitos, destacam-se
mentação? O objetivo deste texto é mostrar que o de que (1) o maior fator de pressão sobre o des-
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2. E C O N O M I A
matamento é o crescimento demográfico nas áreas Há, porém, limites para a capacidade de obter
rurais, e o de que (2) o desmatamento é necessário excedentes ‘naturais’ de terra e assim acomodar os
para o crescimento econômico, a geração de em- problemas sociais brasileiros. O uso das terras de
prego e a garantia de melhores condições de vida fronteira está longe de ser uma solução definitiva.
da população rural. Por trás disso está a idéia de que as florestas são
A origem desses mitos está ligada a uma visão improdutivas, têm baixo valor e pouco contribuem
histórica de que a perda de áreas florestadas é para o desenvolvimento do país. Assim, projetos de
inerente à ocupação territorial e ao modo de produ- colonização consomem o restante das áreas de flo-
ção estabelecidos no Brasil rural desde a era co- resta, mas sem dar solução ao problema. A crise se
lonial. Nessa ótica, apesar da alternância da mer- dá quando não há mais áreas florestadas: sem a
cadoria básica em cada ciclo da economia colo- possibilidade de adiamento, os conflitos de terra
nial (e, depois, imperial), percebe-se um padrão eclodem com maior intensidade.
de ‘auge e crise’ a partir da exploração direta ou A esses fatores estruturais somam-se alguns
indireta dos recursos: a abundância do recurso conjunturais. A mecanização agrícola crescente e
provoca sua rápida exploração predatória, o que os ciclos especulativos de apreciação da terra são
leva ao declínio de longo prazo – pela escassez novos motores do desmatamento. A mecanização,
crescente do recurso antes farto ou pela deprecia- ao reduzir a demanda de mão-de-obra, induz ao
ção do seu preço em função do aumento abrupto êxodo rural e, portanto, à ocupação das regiões de
de oferta. fronteira agrícola, com derrubada de florestas. A
Portanto, pode-se construir uma teoria comum maior produtividade eleva o preço da terra, e às
aos ciclos econômicos históricos (pau-brasil, açú- vezes surgem ainda ‘bolhas’ especulativas, estimu-
car, gado, ouro e café), apesar das enormes diferen- lando a venda de pequenas propriedades (de pro-
ças nas formas de produção e distribuição desses dução familiar) e, assim, contribuindo para a re-
produtos. Tais ciclos apoiavam-se no uso predató- dução do pessoal ocupado na agricultura.
rio de recursos naturais, com graves danos ambien- Em suma, apesar da significativa expansão da
tais, e não eram formas sustentáveis que permitis- produção agropecuária, o número de pessoas em-
sem superar as contradições econômicas e sociais pregadas no setor vem caindo sistematicamente,
da Colônia ou do Império. segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia
Esse modelo de ocupação territorial prevaleceu e Estatística (IBGE) (figura 1).
na República, agora combinando força de trabalho O mito de aceitação mais imediata – e o menos
livre, concentração fundiária e monocultivo ou validado pelas estatísticas – é o que associa desma-
pecuária extensiva. O resultado foi a geração de tamento ao tamanho da população rural. De fato,
excedentes de mão-de-obra no campo, e a válvula o desmatamento foi intenso nas áreas de domínio
de escape para acomodar a pressão social dos da mata atlântica, que tiveram grande crescimen-
chamados ‘sem-terra’ é a expansão da fronteira to demográfico nos últimos 200 anos (hoje concen-
agrícola em áreas de floresta.
Assim, inicialmente a mata a-
tlântica, depois o cerrado e hoje PESSOAL OCUPADO NA AGROPECUÁRIA NO BRASIL
a floresta amazônica têm sido
ANO TOTAL EMPREGADOR EMPREGADO TRABALHADOR TABALHADOR
reduzidos para acomodar os con- POR CONTA PRÓPRIA NÃO-REMUNERADO
flitos de terra sem que uma re-
1990 14.911.400 4.000 5.135.200 115.200 9.657.000
forma agrária seja efetuada nas
áreas já ocupadas. Como esse 1991 15.268.200 3.800 5.098.700 119.200 10.046.500
mesmo padrão de concentração 1992 15.642.100 3.600 5.063.500 123.300 10.451.700
fundiária repete-se nas novas 1993 15.571.600 3.300 4.923.400 120.200 10.524.700
áreas ocupadas, após algum tem- 1994 15.365 300 3.300 4.849.600 121.500 10.390.900
po são recriadas as condições
1995 15.163.000 3.300 4.778.100 122.800 10.258.800
para novo avanço sobre áreas de
FONTE: IBGE, SISTEMA DE CONTAS NACIONAIS
1996 13.905.800 2.700 4.502.800 115.400 9.284.900
floresta.
1997 13.679.000 3.000 4.468.100 121.900 9.086.000
1998 13.292.900 2.900 4.301.600 120.000 8.868.400
1999 13.292.900 2.900 4.301.600 120.000 8.868.400
Figura 1. Pessoal ocupado 2000 13.496.100 3.000 4.735.300 117.400 8.640.400
na agropecuária em todo 2001 12.166.100 3.000 4.388.300 111.000 7.663.800
o Brasil, por posição 2002 12.508.400 2.600 4.307.400 112.700 8.085.700
na ocupação, de 1990 a 2002
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3. E C O N O M I A
tram mais de dois terços da população brasileira). de mata atlântica nos estados do Rio Grande do
Mas se a relação entre crescimento populacional e Sul, Santa Catarina, Paraná, São Paulo, Rio de Ja-
desmatamento fosse automática, seria esperada neiro e Espírito Santo, usando os dados dos Censos
também uma redução na perda de florestas quan- Agropecuários do IBGE (1985 e 1996) e os resulta-
do a taxa demográfica desacelerasse e, mais ainda, dos do Atlas da Evolução dos Remanescentes Flo-
quando se tornasse negativa. restais e Ecossistemas Associados da Mata Atlân-
Infelizmente, isso não acontece. Dados sobre a tica, da Fundação SOS Mata Atlântica, do Instituto
população rural do Sudeste e do Sul do Brasil Nacional de Pesquisas Espaciais e do Instituto
revelam nitidamente o esvaziamento do campo. Socioambiental (períodos 1985-1990 e 1990-1995).
Essa população diminui desde os anos 60 nos es- Em primeiro lugar foram estabelecidos ran-
tados do Sudeste, e desde os anos 70 nos estados kings de performance de cada um dos municípi-
do Sul (figura 2). A perda absoluta de população os, considerando as variações na atividade
rural nos últimos 40 anos chegou a mais de 7,5 agropecuária (pessoal ocupado no setor, uso das
milhões de pessoas, mas o desmatamento em todos terras para lavouras e pastagens, e efetivo de
esses estados continuou a aumentar nesse período. bovinos) e a perda de remanescentes de mata
Apenas de 1985 a 1995, a perda acumulada de atlântica. Os resultados mostraram claramente que
floresta no Sudeste e no Sul superou 1 milhão de inexiste uma associação positiva entre desma-
hectares (figura 3). Conclui-se, portanto, que a tamento e geração de empregos – em geral, muni-
pressão demográfica, por si só, não explica o cípios com maiores níveis de desmatamento apre-
declínio da mata atlântica, pois há muito tempo a sentaram desempenho agrícola medíocre, e os de
população rural vem diminuindo, mas o desma- melhor performance econômica exibiram baixo
tamento continua. desmatamento.
Outro mito que envolve o desmatamento é o de Um segundo estágio, mais sofisticado, testou a
que este seria necessário para gerar empregos e mesma hipótese através de duas técnicas de esta-
garantir melhores condições de vida à população tística multivariada (análises ‘de grupamento’ e
que se instala nas áreas de floresta convertidas à ‘de discriminante’). Na dissertação do economista
agropecuária. No entanto, ainda tomando como base Marcos T. Andrade (orientada pelo autor), os da-
os estados do Sul e do Sudeste, as estatísticas não dos dos municípios de Santa Catarina, Paraná e
comprovam essa relação: houve redução de 2,4 Rio Grande do Sul foram reunidos em apenas uma
milhões de postos de trabalho na agropecuária entre base de dados, e de novo desmentiu-se a relação
1985 e 1996, apesar do já citado aumento de mais entre o emprego e a perda de floresta: os municí-
de 1 milhão de hectares de áreas desmatadas. pios com mais altas médias de desmatamento tam-
Um possível contra-argumento é o de que a bém mostraram baixa geração de empregos. Já os
redução de emprego rural seria inevitável, mas o municípios com maior conversão de terras em la-
desmatamento teria arrefecido essa tendência. Ou voura são justamente aqueles com menor desflores-
seja, a redução do emprego deveria ser menor em tamento. Além disso, os municípios de grande
municípios com maior desmatamento. Tal questão desmatamento são, em geral, os que têm maiores
foi examinada no projeto de pesquisa ‘Sinais da médias em aumento do número de tratores. Como
Mata Atlântica’, uma cooperação entre o Grupo de se espera que isso ocorra em propriedades maiores
Economia do Meio Ambiente (Instituto de Econo- (com maior capacidade de investir em maquina-
mia, Universidade Federal do Rio de Janeiro) e a ria), há um indicativo de que o desmatamento
Fundação SOS Mata Atlântica. O estudo analisou seria mais extenso onde é maior a concentração
dados de 1.121 municípios inseridos no domínio fundiária.
VARIAÇÃO DA POPULAÇÃO RURAL NO SUDESTE E NO SUL
ESTADO 1960 A 1970 1970 A 1980 1980 A 1991 1991 A 2000
ESPÍRITO SANTO -147.583 -161.849 -39.538 -42.323
FONTE: CENSOS DEMOGRÁFICOS DO IBGE
RIO DE JANEIRO -225.042 -181.571 -299.020 -39.009
MINAS GERAIS -390.615 -1.111.062 -359.794 -744.761
SÃO PAULO -1.283.720 -715.872 -505.773 163.321
Figura 2. Variação da população
PARANÁ 1.463.256 -1.268.225 -906.583 -473.386 rural (em número de indivíduos)
SANTA CATARINA 214.797 -199.644 -122.590 -197.460 nos estados de mata atlântica
(Sudeste e Sul), em diferentes
RIO GRANDE DO SUL 135.505 -608.375 -361.382 -273.322 períodos
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Um mito correlato é o de que
FONTE: RELATÓRIO ATLAS DA MATA ATLÂNTICA
ÁREA DESMATADA NO SUDESTE E NO SUL
a conversão da floresta para uso ESTADO ÁREA ÁREA REMANESCENTES
agropecuário é necessária para a DESMATADA DESMATADA (% DA ÁREA
melhoria das condições de vida (1985-1990) (1990-1995) ORIGINAL)
da população. Nesse caso, a per- ESPÍRITO SANTO -22.484 -28.696 10,3%
da da floresta poderia ser social- RIO DE JANEIRO -165.454 -22.484 11,0%
mente justificada mesmo em um MINAS GERAIS -69.168 -92.938 3,9%
cenário de esvaziamento demo-
SÃO PAULO -75.711 -63.740 9,0%
gráfico, se ocorressem ganhos em
PARANÁ -156.687 -79.026 10,5%
outras esferas sociais: na renda,
na educação e na habitação (me- SANTA CATARINA -106.312 -59.397 21,4%
nos gente, mas vivendo melhor). RIO GRANDE DO SUL -57.003 -48.793 6,7%
Mas é essa a realidade?
Para avaliar a questão, a eco- Figura 3. Área desmatada (em hectares) em diferentes períodos
e percentuais de área de remanescentes de mata atlântica
nomista Fernanda C. Santos, em
em relação à área original desse bioma, nos estados das regiões
outra dissertação (também ori- Sudeste e Sul
entada pelo autor), comparou os
municípios de maior e menor
perda de floresta e a evolução do respectivo índice tes, já que essas fronteiras ainda estão ‘abertas’.
de desenvolvimento humano (IDH), que permite Chama atenção, porém, a pouca demanda de mão-
medir a qualidade de vida, entre 1990 e 2000. As de-obra na atual expansão agrícola no Centro-oes-
conclusões repetem as anteriores: na maior parte te, e já se nota leve tendência de queda dos preços
dos municípios de maior desmatamento o IDH da soja em função do excesso de oferta. Ou seja,
piorou ou manteve-se constante, em termos relati- após os ganhos extraordinários pela incorporação
vos. Também foi usada a técnica de ‘análise de de áreas de fronteira agrícola, não há porque espe-
regressão’ para avaliar a mesma correlação e o re- rar resultados diferentes dos vistos nas demais
sultado foi igual: tomando-se o desmatamento co- regiões do país: êxodo rural e destruição contínua
mo variável explicativa e a melhoria das condi- das áreas de vegetação nativa.
ções de vida como variável explicada, não foi obti- Fica, portanto, a mensagem: as alterações pro-
da uma relação estatisticamente significativa en- postas no Código Florestal, visando reduzir as
tre ambos. áreas de conservação, irão resultar em ganhos eco-
Enfim, os resultados desses trabalhos são claros: nômicos pífios, apesar do grande dano que pode-
não há uma relação estatística entre redução das rão trazer aos ecossistemas afetados. É provável,
áreas de floresta e aumento da atividade agro- inclusive, que ocorra o contrário: o maior desma-
pecuária em áreas do domínio de mata atlântica. tamento poderá reduzir o alcance dos serviços
Em grande parte dos municípios onde o desmata- ambientais prestados pelos remanescentes flores-
mento foi mais acentuado no período 1985-1995/ tais, resultando em perda de produção e emprego
1996, observa-se um desemprego acima da média nas áreas rurais brasileiras.
na agropecuária. Relação semelhante, embora
menos acentuada, também foi observada para ou-
tros indicadores de performance econômica, como INDUSTRIALIZAÇÃO E MEIO AMBIENTE
a área de lavouras (ou pastagens) e o tamanho do
rebanho bovino. Conflitos entre a expansão industrial e o meio am-
É claro que importantes exceções ocorreram: biente também costumam ser apontados nas áreas
em certos municípios, a perda de floresta foi acom- industrial e energética. De fato, a industrialização
panhada por aumento em algum indicador econô- brasileira baseou-se em padrões tecnológicos de
mico, em especial os ligados à expansão da pecuá- uso intensivo de recursos naturais e energia – prin-
ria. Entretanto, quando isso ocorre, o ganho em um cipalmente por meio da queima de combustíveis
indicador econômico (área de pastagens ou reba- fósseis e carvão mineral. Essa base energética está
nho, por exemplo) costuma ser acompanhado por associada a problemas de poluição em nível global
perda em outro indicador (área de lavouras), su- (aumento do efeito estufa e degradação da camada
gerindo que o efeito de substituição entre usos da de ozônio), transfronteiriços (como as chuvas áci-
terra já desmatada foi significativamente maior das) e locais (degradação da qualidade dos solos,
que o ganho de área por desmatamento. das águas e da atmosfera).
Nos biomas cerrado e floresta amazônica, essa Assim, para produzir e exportar commodities
análise pode, hoje, apresentar resultados destoan- industriais (e primárias) de baixo valor agregado,
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industrial diversificada, mas tal avanço calcou-se
FOTO MARCELO SAYÃO/AGÊNCIA O GLOBO
SUGESTÕES no uso indireto de recursos naturais (energia e
PARA LEITURA matérias-primas baratas – mais intensivas em emis-
sões), e não no aumento da capacidade de gerar ou
ANDRADE, M.T.N.
‘É preciso absorver tecnologia (a chave do crescimento sus-
desmatar para tentado), que ficou restrita a algumas áreas. Isso
crescer? –
Evidências
resultou, em especial a partir do 2º Plano Nacional
empíricas para de Desenvolvimento, em forte expansão de indús-
a região Sul do trias de grande potencial poluidor (como as dos
Brasil’ (Monografia
de conclusão de complexos metalúrgico e químico/petroquímico),
curso – orientador: sem controle e tratamento dessas emissões – con-
C.E.F. Young).
Rio de Janeiro,
cluíram os dois economistas.
Instituto de Se o processo de industrialização prevalecente
Economia (UFRJ), até os anos 80 foi insuficiente para promover pro-
2003.
SANTOS, F.C. gresso técnico e consumo de massa (levando a um
‘Desenvolvimento crescimento sem dependência de mão-de-obra e
econômico,
pobreza e recursos naturais baratos), a situação se agravou
desmatamento ainda mais com as políticas liberais adotadas nos
no Brasil:
anos 90. Diversos estudos recentes apontam o re-
Evidências
empíricas para trocesso da estrutura produtiva brasileira, com a
as regiões Sul redução da importância relativa das atividades de
e Sudeste nas
décadas de 80 maior conteúdo tecnológico, o retorno à pauta ex-
e 90’ (monografia portadora primária e aumento do desemprego nos
de conclusão de
curso – orientador:
setores de maior conteúdo tecnológico.
C.E.F. Young). Não surpreende, portanto, que os setores in-
Rio de Janeiro, dustriais com melhor desempenho nos anos 90
Instituto de
Economia (UFRJ), sejam os de maior potencial poluidor – e que os
2004. de menor risco ambiental apresentem a pior
YOUNG, C.E.F.
‘Desmatamento
performance. Talvez mais importante seja a
e o mito da constatação de que essa diferença de compor-
geração de A derrubada de florestas para abrir novas áreas
agrícolas não traz, no longo prazo, a melhoria das tamento se acentuou ao longo dos anos 90, refor-
emprego rural:
uma análise para condições de vida da população çando os argumentos dos que identificam uma
a Mata Atlântica’, forte tendência de redivisão internacional do tra-
in MILANO, M.S.
e outros (org.), balho, com o deslocamento gradual para a peri-
Unidades de passou-se a conviver com elevados níveis de polui- feria das atividades ‘indesejáveis’, gerando confli-
conservação: ção. Tal ‘progresso’ instala uma dupla exclusão. A tos com o bem-estar das comunidades afetadas
atualidades e
tendências 2004, primeira vem da distribuição desigual dos seus pela poluição.
Curitiba, Ed. frutos: as camadas mais abastadas ficam com a
Curitiba/Fundação
O Boticário de maior parte da renda e da riqueza geradas, e ainda
Proteção à têm um padrão de consumo mais elevado e mais O QUE ESPERAR NO FUTURO?
Natureza, 2004.
YOUNG, C.E.F. e
intensivo em emissões. A segunda é a ambiental:
LUSTOSA, M.C.J. as camadas excluídas são as que mais sofrem os O cenário futuro tem que ser necessariamente pes-
‘Meio ambiente e efeitos da poluição (ver ‘Padrão de consumo e de- simista? Até agora, a questão ambiental tem sido
competitividade
da indústria gradação ambiental no Brasil’, nesta edição). apresentada como um entrave ao crescimento.
brasileira’, in Essa distorção resultou em uma especialização Ignora-se, porém, que garantir melhores condições
Revista de
Economia
relativa em produtos de baixo dinamismo tecno- de vida (ou seja, ambiente melhor) não é só uma
Contemporânea . lógico, que não rompeu o desequilíbrio fundamen- condição fundamental de garantir cidadania (ou
Rio de Janeiro, tal em termos da inserção do país no comércio seja, desenvolvimento) às camadas mais carentes
v. 5, Ed. especial,
2001. internacional. Como apontaram o autor e Maria da população. É também uma forma de gerar ren-
YOUNG, C.E.F. Cecília Lustosa, em 2001, o processo de industria- da e empregos. Obras de saneamento básico, por
e LUSTOSA, M.C.J.
‘A questão lização por substituição de importações baseou-se exemplo, são grandes geradoras de emprego e qua-
ambiental na idéia de que uma economia periférica não po- lidade de vida. Para isso, no entanto, é preciso um
no esquema deria crescer sustentada apenas por produtos dire- novo modelo de política econômica, que abando-
centro-periferia’,
in Economia, tamente dependentes de recursos naturais (extra- ne as metas de estabilização de curto prazo e en-
Niterói, v. 4, ção mineral, agricultura ou outras). Esse processo foque o verdadeiro objetivo do desenvolvimento:
nº 2, 2003.
possibilitou a implantação no país de uma base uma vida melhor para todos. ■
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Padrão de consumo
e degradação
ambiental no Brasil
A pressão de degradação ambiental gerada pelos ricos é certamente mais alta,
devido a seus níveis de consumo mais altos. Por outro lado, eles tendem a consumir
uma parcela menor de sua renda, o que leva a uma redução relativa nessa
degradação. O presente estudo é uma tentativa de tratar, no contexto da economia
brasileira, de questões como os níveis de degradação gerados por cada classe
de renda, a concentração desses níveis no país e o que aconteceria com os padrões
atuais de degradação se a desigualdade de renda fosse alterada.
Ronaldo Seroa da Motta
Coordenação de Estudos de Regulação,
Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (RJ)
Níveis de renda mais altos podem levar a padrões de consumo Tem sido bastante analisada, na literatura cien-
ambientalmente mais limpos, o que induz um de- tífica, a relação renda/degradação ambiental com-
senvolvimento tecnológico em que a degradação parando países em diferentes estágios de renda
associada ao consumo é menos intensa. Quando, à (deve-se observar que essa análise pode não captar
medida que sobe o padrão de vida, a taxa de au- a evolução temporal da relação entre degradação e
mento da degradação ambiental torna-se menor que renda). Entretanto, são raras as análises sobre a
a do crescimento da renda, a degradação total dimi- pressão de degradação originada em diferentes
nui, em termos relativos, apesar do maior consumo. grupos de renda dentro de um mesmo país. Embo-
Se essa premissa estiver certa, espera-se que o ra, na maior parte dos problemas ambientais, o
crescimento do consumo faça aumentar o nível de emprego de novas tecnologias afete indistintamen-
degradação só até um certo nível de renda per te a intensidade da degradação de todas as classes
capita. A partir desse limite, a atividade econômi- (o que reduz a possibilidade de se determinar um
ca já tem efeito menor no nível de degradação. nível limite de renda), o padrão e a quantidade de
Assim, a relação entre renda e degradação am- consumo em cada classe certamente variam e afe-
biental pode ser representada, em um gráfico, por tam diretamente o seu impacto ambiental.
uma curva em forma de ‘U’ invertido. Essa curva Se a pressão de degradação dos ricos é certa-
é chamada, na literatura científica, de curva am- mente mais alta devido a seus níveis de consumo
biental de Kuznets, em referência aos estudos pu- mais altos, eles também tendem a usar uma par-
blicados em 1955 pelo economista norte-america- cela menor de sua renda (menor propensão a con-
no Simon Kuznets (1901-1985). Isto é, a taxa de sumir), o que reduz aquela pressão. Assim, é plau-
degradação cresce junto com a renda até que esta sível esperar que, em um mesmo país, as mudan-
atinge um valor limite, e começa a diminuir a ças na intensidade de degradação dependam mais
partir daí. da distribuição de renda e da propensão ao consu-
dezembro de 2004 • CIÊNCIA HOJE • 35
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Os padrões mo do que de fatores tecnológicos – com isso, a
de consumo curva em ‘U’ invertido pode não se manifestar.
dos ricos
e dos pobres Conhecer a tendência e a magnitude da relação
têm efeitos renda/degradação torna-se portanto um parâmetro-
distintos sobre chave para analisar as questões do uso eqüitati-
a degradação vo dos recursos ambientais que não podem ser
ambiental resolvidas no desenho e na aplicação das políti-
no Brasil
cas ambientais, especialmente nos países em
desenvolvimento.
RICOS, POBRES E DEGRADAÇÃO NO BRASIL
O presente estudo – parte do projeto ‘Macroeco-
nomic Policies for Sustainable Growth’ (‘Políticas
Macroeconômicas para o Crescimento Sustentável’),
do Banco Mundial – é uma tentativa de tratar das
seguintes questões no contexto da economia brasi-
leira: Quais são os níveis de degradação gerados
por cada classe de renda? Quão concentrados estão
esses níveis? Quais serão as mudanças nesses ní- água e energia) e a renda familiar. Ou seja, o quanto
FOTO FÁBIO GUIMARÃES/AGÊNCIA O GLOBO
veis se a desigualdade de renda for alterada? de degradação é gerado por unidade monetária de
Para analisar os padrões de consumo para os consumo. Para chegar a essas estimativas, nas di-
grupos de renda urbana no Brasil, calculamos a ferentes fontes, foram utilizados dados estatísticos
propensão a degradar para várias fontes de degra- sobre uso de água e energia, produção de resíduos
dação e para 10 classes de renda urbana – de e de esgoto de diversas fontes e dados sobre gastos
acordo com a classificação da Pesquisa de Orça- domiciliares da Pesquisa de Orçamento Familiar
mento Familiar do Instituto Brasileiro de Geogra- (POF). Já a propensão a degradar foi calculada, em
fia e Estatística para 1995-1996, baseada no salá- cada uma das classes de renda, multiplicando-se a
rio mínimo legal (faixas de 0-2, 2-3, 3-5, 5-6, 6- intensidade de degradação em cada fonte pela
8, 8-10, 10-15, 15-20, 20-30 e >30) da época. propensão a consumir (ou seja, o percentual médio
Os efeitos totais estudados foram estimados so- da renda que cada classe de fato consome, tam-
mando-se os efeitos ambientais das fases agrícolas bém com base nos dados da POF). Multiplicando
e industriais de produção aos efeitos do consumo a propensão a degradar (em cada classe de renda)
direto de bens e serviços. A poluição industrial e pela renda média familiar (da respectiva classe),
a agrícola são realizadas para produzir bens que obtivemos o nível de degradação total de cada do-
irão para o consumo direto – logo, cada unidade de micílio e, em seguida, esse nível em toda a classe.
consumo direto tem sua poluição direta, mas tam- Os resultados mostraram que, no Brasil, não há
bém a indireta (das fases de produção industrial e evidências de uma curva em ‘U’ invertido para as
agrícola). relações de degradação e consumo, considerando
Devido aos dados disponíveis, a análise limitou- os níveis de pressão de degradação por classe de
se a duas fontes de produção (industrial e agríco- renda. O estudo mostrou que, em geral, a intensi-
la), relacionadas com três fontes de consumo dire- dade de degradação por domicílio tende a dimi-
to da população (transporte pessoal e coletivo, água nuir à medida que a renda domiciliar cresce.
e esgoto), e ainda a cinco principais efeitos am- Encontramos apenas uma exceção – não na
bientais: 1. poluição industrial da água por maté- intensidade de degradação, mas na propensão a
ria orgânica e inorgânica e poluição do ar por dió- degradar. Essa propensão, no caso do transporte
xido de enxofre (SO2) e particulados; 2. poluição urbano, apresentou uma curva em ‘U’ invertido,
agrícola pelo uso de fertilizantes; 3. poluição do em especial devido à grande redução nos níveis de
transporte domiciliar por emissões de monóxido emissão dos carros novos, adquiridos quase sem-
de carbono (CO), hidrocarbonetos (HC) e óxido de pre por pessoas mais ricas. Porém, em todos os
nitrogênio (NOx); 4. consumo domiciliar de água; casos (inclusive no transporte urbano) identifi-
e 5. descarga domiciliar de esgoto. camos uma relação positiva contínua entre o nível
A intensidade de degradação é a razão entre a de degradação total do domicílio e a renda. Isso
degradação gerada em cada fonte (como emissões significa que a grande concentração de renda com-
para a atmosfera, lançamento de efluentes e uso de pensa as taxas declinantes de propensão a consu-
36 • C I Ê N C I A H O J E • v o l . 3 6 • n º 2 1 1
8. E C O N O M I A
gressiva a diminui. Em ambos os casos, porém, en-
contramos que, nas fontes industriais e de transpor-
te, a variação da renda transferida é maior que a
variação resultante da degradação total. Já nos casos
de água e esgoto ocorre, como esperado, o inverso.
A alta concentração da pressão de degradação a
partir do padrão de consumo das pessoas ricas acres-
centa outro aspecto negativo à distribuição desigual
da renda no Brasil. Em suma, os resultados de nossos
estudos suscitam sérias questões distributivas para
as políticas ambientais no Brasil, a saber:
1. Embora o nível de consumo das pessoas po-
bres não seja, no seu conjunto, a principal fonte de
degradação na economia brasileira, são essas famí-
lias menos privilegiadas que sofrem a maior parte
dos impactos negativos da degradação, por sua bai-
xa capacidade de realizar gastos médicos, habitar
regiões menos poluídas e ter acesso a saneamento.
2. Como a pressão total da degradação se deve
principalmente ao padrão de consumo das classes
mir e a degradar que surgem quando a renda do- de renda mais alta, o relaxamento no controle
miciliar aumenta. Ou seja, as famílias que têm ambiental cria indiretamente um subsídio para o
maiores rendas tendem a consumir e a degradar consumo dos ricos, às custas dos pobres.
menos, mas, no Brasil, as diferenças de rendi- Entretanto, como as taxas de concentração da
mento entre essas famílias e as de classes mais degradação são mais baixas do que as taxas de
baixas são tão significativas que mais do que com- concentração da renda, quando o controle da de-
pensam essa tendência, implicando o aumento da gradação se tornar mais severo, as pessoas pobres
degradação. tenderão a pagar mais por esse controle (por uni-
Usando nossas estimativas da propensão a de- dade monetária de consumo) se esses custos forem
gradar para cada fonte e classe de renda, medimos repassados através dos preços.
como a pressão de degradação se concentra divi- Embora esses resultados ofereçam algumas indi-
dindo a pressão de degradação total calculada para cações a respeito dos aspectos distributivos da de-
os 10% mais ricos pela pressão calculada para os gradação urbana no Brasil, esse é um tema que irá
50% mais pobres. Exceto no caso da água tratada exigir mais esforços de pesquisa, no sentido não só
e do esgoto coletado, serviços concentrados nos de melhorar o detalhamento da base de dados (in- SUGESTÕES
PARA LEITURA
domicílios ricos, encontramos para cada fonte ta- cluindo mais grupos de renda e outras fontes de
xas de concentração acima de 0,2. Isso demonstra degradação), mas também de analisar os efeitos KUTZNETS, S.
que os 10% da sociedade brasileira que habita os multiplicadores de cenários de distribuição de ren- ‘Economic growth
and income
domicílios de classes de renda mais alta tendem da que afetem os padrões de consumo. Ou ainda, inequality’,
(em conjunto) a degradar mais, em termos relati- com mais rigor, trabalhar os dados domiciliares de in American
Economic Review,
vos, do que os 50% mais pobres. forma econométrica, testando estatisticamente cada
v. 45(1),
uma das estimativas obtidas nos estudos. 1955.
As implicações do controle ambiental sobre a SEROA DA MOTTA, R.
(ed.), Environmental
DISTRIBUIÇÃO DE RENDA distribuição de renda, aqui apontadas, são cru- Economics and
E DEGRADAÇÃO ciais para a elaboração de políticas ambientais Policy Making
in Developing
que visem reduzir a pressão de degradação no Countries, Edward
Por último, analisamos de que modo a pressão de Brasil. Para que tais implicações sejam minimi- Elgar Publishing,
degradação iria variar se a distribuição de renda zadas, as políticas ambientais devem incluir me- Cheltenhan,
2001.
fosse alterada no Brasil. Para isso, desenvolvemos didas compensatórias para a população mais po- SEROA DA MOTTA, R.
dois cenários com base na renda transferida entre bre. Sob essa perspectiva, a tributação sobre a de- Padrão de
Consumo,
classes para medir as mudanças na pressão de de- gradação ambiental pode vir a ser uma opção, Distribuição
gradação total. O cenário progressivo supõe a trans- pois sua aplicação reduz os custos de controle de Renda e o
ferência de renda dos ricos para os pobres e o social e gera, ao mesmo tempo, receitas fiscais Meio Ambiente
no Brasil,
regressivo supõe o oposto. que podem ser recicladas na economia para criar Texto para
Como esperado, a transferência regressiva au- espaço para as políticas compensatórias direcio- Discussão 856,
Ipea-Rio, 2002.
menta a degradação, enquanto a transferência pro- nadas aos pobres. ■
d e z e m b r o d e 2 0 0 4 • C I Ê N C I A H O J E • 37
9. C L I M A T O L O G I A
O aquecimento global
e o papel do Brasil
A superfície da Terra está cerca de 0,6°C mais quente hoje do que há 100 anos.
É muito provável que a maior parte desse aquecimento seja decorrente da emissão,
por atividades humanas (queima de combustíveis fósseis, desmatamento e outras),
de gases que retêm radiação térmica – o chamado ‘efeito estufa’. Se não houver
um gigantesco esforço para reduzir essa emissão, é quase certo que o clima
do planeta venha a se alterar, com aumento da ocorrência de fenômenos climáticos
extremos, o que pode ter drásticas conseqüências para todos os seres vivos.
O Brasil pode contribuir para esse esforço adotando e tornando efetivas políticas
públicas que reduzam queimadas e desmatamentos, nossa maior fonte de emissões,
em especial na Amazônia.
Carlos A. Nobre
Centro de Previsão de Tempo
e Estudos Climáticos,
Instituto Nacional
de Pesquisas Espaciais (SP) A preocupação mundial com a concentração do
dióxido de carbono decorre do que se sabe, desde
o final do século 19, sobre as propriedades físicas
da atmosfera. As moléculas de alguns gases que
têm baixíssimas concentrações na atmosfera –
dióxido de carbono, vapor d’água (H2O), metano
(CH4), óxido nitroso (N2O), ozônio (O3) – interagem
com a radiação eletromagnética na faixa do espec-
Uma das atividades do Ano Geofísico Internacional, trans- tro conhecida como infravermelho termal e com
corrido durante 1957 e 1958, foi a instalação de isso dificultam a perda para o espaço da radiação
uma estação para monitorar a concentração de térmica, aquecendo a superfície do planeta. É o
dióxido de carbono (CO2) na atmosfera. Isso foi chamado ‘efeito estufa’.
feito no Havaí (Estados Unidos), em Mauna Loa, Esses gases são fundamentais para manter o
montanha vulcânica situada no meio do oceano equilíbrio climático e condições ambientais ade-
Pacífico e, portanto, longe de qualquer fonte de quadas para a vida na Terra – temperaturas que
poluição. As primeiras medições revelaram um permitam a existência de água na forma líquida
teor de cerca de 315 partes por milhão em volume (essencial à vida) e gasosa (essencial ao ciclo
(ppmv) de gás carbônico da atmosfera (0,0315% hidrológico). Até o início da Revolução Industrial,
da massa total desta). Esse valor chamou a atenção no final do século 18, as concentrações de CO2 na
da comunidade científica à época, pois se sabia atmosfera flutuaram entre 180 e 280 ppmv duran-
que, no século 19, a concentração desse gás era de te cerca de 20 milhões de anos. Bolhas de ar apri-
cerca de 280 ppmv. Desde então, a concentração sionadas nas geleiras da Antártida, que permitem
de CO2 não parou de crescer: chegou a 376 ppmv estudar como era a atmosfera da Terra nos últimos
no final de 2003 e continua subindo entre 1,5 e 800 mil anos, revelam que nesse longo período o
2,5 ppmv por ano. teor desse gás não ultrapassou 300 ppmv.
38 • CIÊNCIA HOJE • vol. 36 • nº 211
10. C L I M A T O L O G I A
O atual crescimento dessa concentração deriva estar ‘represando’ parte do aquecimento, já que se
da injeção na atmosfera, por ano, de cerca de 8 a assume que seu efeito é o de resfriar a superfície,
9 bilhões de toneladas de carbono (na forma de embora restem incertezas a esse respeito. Como os
CO2), pela queima de combustíveis fósseis, produ- aerossóis são associados à poluição urbana e a efei-
ção de cimento e mudanças nos usos da terra, tos nocivos à saúde, a tendência global é a redução
principalmente os desmatamentos das florestas de sua emissão, o que removeria esse ‘represa-
tropicais, além da emissão de outros gases de efei- mento’. O efeito de aquecimento dos gases, então,
to estufa. Do total injetado, cerca de 3,2 bilhões de poderá se intensificar.
toneladas permanecem na atmosfera e o resto é A menos que ações globais de controle das
reabsorvido pelos oceanos e pelas plantas. A con- emissões de gases do efeito estufa sejam efetivadas
centração atmosférica de outros gases do efeito nas próximas décadas, a demanda futura de ener-
estufa, como metano e óxido nitroso, também vem gia, em especial nos países em desenvolvimento
crescendo, até mais rapidamente que a do CO2. (na medida de sua expansão econômica), ocasiona-
Outro gás de efeito estufa importantíssimo é o rá alterações climáticas significativas, como um
vapor d’água, mas seu teor na atmosfera é essen- aumento das temperaturas entre 1,5°C e 4,5°C até
cialmente controlado pela temperatura na superfí- o final do século, acompanhado de fortes e pertur-
cie. Entretanto, o progressivo aumento da tempe- badoras mudanças no ciclo hidrológico em todo o
ratura na baixa troposfera está aumentando a pro- planeta. As emissões teriam que diminuir cerca
dução de vapor d’água, criando um forte mecanis- de 60% para estabilizar as concentrações dos gases
mo de retroalimentação positiva do efeito estufa: em níveis menos perigosos para o clima.
maiores temperaturas implicam maior quantidade Os países em desenvolvimento, historicamente
de vapor d’água, que induz efeito estufa adicional menos capazes de responder à variação natural do
e, daí, aquecimento, reiniciando o ciclo. clima, são os mais vulneráveis às futuras altera-
Alguns dos gases que aquecem a superfície têm ções. O Brasil, sem dúvida, pode ser duramente
vida muito longa na atmosfera. A vida média do atingido, já que sua economia é fortemente depen-
CO2, por exemplo, supera os 100 anos, e 15% desse dente de recursos naturais ligados diretamente ao
gás perduram por até cinco milênios na atmosfera. clima, como na agricultura e na geração de ener-
Por outro lado, a maioria dos agentes que resfriam gia hidrelétrica. Mudanças climáticas afetariam
a superfície (tipicamente partículas de aerossóis ainda vastas parcelas das populações de menor
resultantes de poluição urbana e industrial de sul- renda, como as do semi-árido nordestino ou as que
fatos ou da queima de biomassa, que refletem parte vivem em área de risco de deslizamentos, enxur-
da radiação solar) é rapidamente eliminada da at- radas e inundações nas grandes cidades.
mosfera, tendo vida média entre cinco e 15 dias. O
longo tempo de vida do CO2 na atmosfera traz mais
preocupações. Mesmo se o teor atual desse gás na O BRASIL NO ESFORÇO
atmosfera fosse ‘congelado’, ele ainda afetaria o DE REDUÇÃO DAS EMISSÕES
sistema climático por muitos séculos, e o aqueci-
mento continuaria. Nessa hipótese, estima-se que o Qual poderia ser a contribuição brasileira ao en-
aquecimento seria de 0,6°C a 0,8°C até o final do frentamento da questão? Pode-se ter desenvolvi-
atual milênio, sendo que metade ocorreria até o mento social, econômico e ambientalmente susten-
final deste século, provocando até 2100 um aumen- tável e ao mesmo tempo reduzir as emissões dos
to de até 8 cm no nível do mar. gases de efeito estufa?
A temperatura média global na superfície do Ainda que o Brasil, segundo a Convenção das
planeta elevou-se de 0,6°C a 0,7°C nos últimos 100 Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas, não
anos, com acentuado aumento desde os anos 60. tenha compromissos quantitativos de redução des-
Os três anos mais quentes dos últimos mil anos da sas emissões, está, como todos os demais países sig-
história da Terra aconteceram na última década. natários, comprometido com a estabilização dos ga-
Hoje, as análises sistemáticas do Painel Intergo- ses do efeito estufa em níveis que assegurem a ha-
vernamental de Mudanças Climáticas (IPCC), que bitabilidade do planeta. O IPCC, em seu relatório
sintetizam o conhecimento científico sobre o sis- de 2001, estima de modo subjetivo que a Terra es-
tema climático, levam a um razoável consenso de taria em condições ‘climaticamente seguras’ en-
que o aquecimento global observado nos últimos quanto a temperatura global à superfície não au-
50 anos é explicado principalmente pelas emis- mentar 2°C em relação ao nível anterior à acele-
sões humanas de gases de efeito estufa e de aerossóis ração das emissões humanas desses gases.
e não por eventual variabilidade natural do clima. As emissões brasileiras atuais de CO2 concen-
Os aerossóis de origem humana podem mesmo tram-se em dois setores: (1) na queima de combus-
dezembro de 2004 • CIÊNCIA HOJE • 39
11. C L I M A T O L O G I A
A derrubada
FOTO MARCELO SAYAO/AGÊNCIA O GLOBO
tíveis fósseis, que libera por ano de 80 a 90 milhões
de florestas, de toneladas de carbono; e (2) na alteração dos usos
muitas vezes
da terra, principalmente a substituição de flores-
seguida por
queimadas, tas e savanas por agricultura e pastagem, que libe-
responde por ra anualmente de 200 a 250 milhões de toneladas
até três quartos de carbono. O segundo setor responde por 65% a
das emissões 75% das emissões totais brasileiras de CO2, que
brasileiras
tornam o país responsável por algo em torno de 4%
de gases-estufa
das emissões globais. É um percentual pequeno, em
comparação com os principais países emissores
desse gás (Estados Unidos, Rússia, China e Japão),
mas ainda assim há claras possibilidades de redu-
ção dessas emissões.
SUGESTÕES
PARA LEITURA Como visto, desmatamentos são a principal causa
das emissões brasileiras. Sabe-se que muitas ati- mínimo, 10%. Já que o aumento anual de desma-
HOUGHTON, J.T.; DING, vidades que direta ou indiretamente contribuem tamento na Amazônia brasileira ficou entre 1,8 e
Y.; GRIGGS, D.J.;
NOGUER, M. ; VAN na derrubada da vegetação nativa são ilegais. A 2,3 milhões de hectares nos últimos cinco anos,
DER LINDEN, P.J. & maioria dos desmatamentos e queimadas que ocor- uma diminuição de 10% faria com que as emissões
XIAOSU, D. (eds.).
rem todos os anos na Amazônia, por exemplo, brasileiras anuais de carbono caíssem em cerca de
Climate Change: the
scientific basis – não tem autorização dos órgãos de meio ambiente 30 milhões de toneladas. Reduzindo os desma-
Contribution of (federal ou estaduais). O mesmo acontece na ex- tamentos na Amazônia, apenas pela aplicação das
Working Group I to
the ThIrd ploração predatória de madeira. A aplicação efe- leis florestais e ambientais, o Brasil se engajaria de
Assessment Report tiva e sistemática da legislação teria um efeito pro- modo construtivo ao objetivo maior da Convenção
of the
Intergovernamental
fundo, reduzindo a área desmatada e, assim, di- sobre Mudanças Climáticas, de estabilizar as con-
Panel on Climate minuindo muito as emissões brasileiras. centrações dos gases do efeito estufa em níveis que
Change (IPCC), A posição da diplomacia brasileira nas nego- não sejam perigosos ao sistema climático da Terra.
Cambridge
University Press, ciações referentes à Convenção sobre as Mudanças Esse posicionamento é totalmente coerente com
2001. Climáticas e a seu Protocolo de Kyoto tem coloca- os planos governamentais para a Amazônia (Plano
MCCARTHY, J.J.;
CANZIANI, O.F.;
do grande peso em (corretamente) responsabilizar Amazônia Sustentável, Plano de Combate ao Des-
LEARY, N.A.; os países desenvolvidos pelas emissões históricas e matamento, Br-163 Sustentável e outros), todos pre-
DOKKEN, D.J. & presentes e cobrar destes compromissos de redu- conizando grande redução dos desmatamentos e
WHITE, K.S (eds.).
Climate Change: ção significativa de suas emissões. Entretanto, se- queimadas ilegais através de políticas públicas
impacts, adaptation ria interessante o país assumir um papel autôno- voltadas para o maior cumprimento das leis (inclu-
& vulnerability –
Contribution of mo relevante na questão da mitigação, criando con- sive com uma massiva regularização fundiária) e
Working Group II to dições para reduzir as emissões brasileiras, onde para a exploração sustentável dos produtos flores-
the Third
isso fosse possível, sem afetar o desenvolvimento tais. Tecnologias de aproveitamento desses produ-
Assessment Report
of the de melhores condições econômicas e sociais para tos, das mais simples até a biotecnologia, podem
Intergovernamental a população, que exigirá aumento do consumo de agregar valor a uma economia de base florestal,
Panel on Climate
Change (IPCC), energia per capita. reduzindo a pressão sobre a floresta primária.
Cambridge No reflorestamento, uma das modalidades in- Sistemas agroflorestais ainda fornecem outros ser-
University Press,
2001.
cluídas entre os Mecanismos de Desenvolvimento viços ambientais, além de estocar e seqüestrar
METZ, B.; DAVIDSON, Limpo, previstos no Protocolo de Kyoto, o Brasil carbono, como manter a qualidade da água, esta-
O.; SWART, R. & PAN, exibe gigantesco potencial, bastando utilizar áreas bilizar o ciclo hidrológico, reduzir a erosão, man-
J. (eds.). Climate
Change: mitigation degradadas e marginais para criar ‘sumidouros’ de ter uma variedade de polinizadores úteis à agricul-
– Contribution of gases do efeito estufa, principalmente CO2 (que tura e moderar os extremos climáticos.
Working Group III to
the Third
seria assimilado pelas florestas em crescimento, Em suma, a diminuição dos desmatamentos e
Assessment Report através da fotossíntese). Seriam necessários, no en- queimadas ilegais na Amazônia acrescenta um
of the tanto, projetos de reflorestamento cobrindo enormes novo componente aos já conhecidos benefícios de
Intergovernamental
Panel on Climate extensões (dezenas de milhares de quilômetros qua- preservação da qualidade ambiental e qualidade de
Change (IPCC), drados) para retirar da atmosfera uma quantidade vida das populações locais: uma importante con-
Cambridge
University Press, significativa de carbono. tribuição brasileira ao esforço mundial de redução
2001. Em comparação, políticas públicas que impo- das emissões de gases de efeito estufa visando re-
(Os três textos acima
nham o cumprimento mais eficaz da legislação duzir o perigo das mudanças climáticas. Por mais
estão disponíveis
em http:// atual, principalmente o Código Florestal e os árduo que seja o caminho para atingir essa meta,
www.ipcc.ch/pub/ Zoneamentos Ecológico-Econômicos, podem por uma atitude assim somente teria vencedores: a
reports.htm)
si só reduzir as taxas de reflorestamento em, no população, o país e o planeta. ■
40 • CIÊNCIA HOJE • vol. 36 • nº 211
12. C L I M A T O L O G I A
Gases de efeito estufa
em hidrelétricas da Amazônia
Os chamados gases-estufa, entre os quais se destacam o dióxido de carbono
e o metano (também conhecido como ‘gás do pântano’), dificultam a dissipação
da radiação refletida pela Terra. Embora a discussão sobre as reais conseqüências
do aumento da concentração desses gases na atmosfera seja polêmica, é provável –
caso as emissões se mantenham nos níveis atuais – que no futuro o planeta enfrente
catástrofes ocasionadas por mudanças climáticas. Ao apresentar neste artigo dados
sobre o lançamento de gases-estufa por hidrelétricas da Amazônia brasileira,
o autor traz importante contribuição para um debate imparcial do tema.
Philip M. Fearnside
Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia
Quem abre uma garrafa de refrigerante vê minúsculas bolhas emer- rada à pressão no fundo do reservatório de uma
girem do líquido. Nesse caso, o gás carbônico (CO2) hidrelétrica. A 34,6 m (profundidade das tomadas
está dissolvido na água, que compõe a maior parte d’água das turbinas na hidrelétrica de Tucuruí), a
da bebida. A solubilidade do gás é mais alta sob pressão é alta (aproximadamente três atmosferas).
pressão na garrafa fechada do que quando ela é A 10 m há uma estratificação da água em camadas
aberta, de acordo com o princípio químico conheci- de temperaturas diferentes: a água mais fria das
do como Lei de Henry, que estabelece que a solu- camadas baixas não se mistura com a água mais
bilidade de um gás em um líquido é diretamente quente das camadas superiores, impedindo o mo-
proporcional à pressão parcial do gás. Os mergulha- vimento do CH4 (metano) para a superfície.
dores, vale lembrar, estão familiarizados com o
fato de que a queda súbita de pressão pode liberar
bolhas de nitrogênio no sangue, pondo em risco a O METANO
vida daqueles que sobem rapidamente à superfí-
cie da água. À medida que a profundidade aumenta na coluna
No caso da água que emerge do fundo de uma d’água, a concentração de CH4 também aumenta
hidrelétrica, o efeito da pressão age em conjunto (figura 1). No reservatório de Tucuruí, a concen-
com o efeito da temperatura (segundo o Princípio tração desse gás a 30 m de profundidade era, em
de Le Châtelier, o aquecimento da água também março de 1989, de 6 mg por litro de água (mg/l),
reduz a solubilidade dos gases nela dissolvidos). uma estimativa conservadora para a concentração
O efeito causado pela liberação da pressão é gran- nessa época do ano a 34,6 m. O valor sobe para 7,5
de e imediato, mas requer um curto período de mg/l após ajuste para o ciclo anual, com base em
tempo para que o Princípio de Le Châtelier se medidas tomadas pela equipe de Corinne Galy-La-
estabeleça e a temperatura se reequilibre. caux na represa de Petit Saut (Guiana Francesa).
A diferença de pressão entre uma garrafa de Os dados desse reservatório, onde se tomam
refrigerante fechada e aberta é pequena se compa- medidas ao longo de todo o ano, são mais comple-
dezembro de 2004 • CIÊNCIA HOJE • 41
13. C L I M A T O L O G I A
FONTE J.G.TUNDISI
zada em pequenas gotas. No vertedouro da hidre-
létrica de Tucuruí, a água sai em um jato a partir
de uma fenda horizontal estreita a 20 m de pro-
fundidade. Nessa profundidade a água tem uma
carga significativa de metano: 3,1 mg/l, em média,
ao longo do ano.
Em forma de salto de esqui, o vertedouro foi
projetado para maximizar a oxigenação do rio a
jusante da barragem (figura 2). Em conseqüência,
o metano presente na água é imediatamente libe-
rado. Considerando que 353,6 trilhões de litros
d’água, em média, passam anualmente pelas tur-
binas e vertedouros da barragem de Tucuruí, ve-
rifica-se que a quantidade de CH4 exportada por
Figura 1. Perfil da concentração de metano (CH4) essas estruturas é tremenda.
na usina hidrelétrica de Tucuruí em março de 1989,
com ajuste para um ciclo anual Levando-se em conta as suposições relativas às
percentagens de CH4 liberadas dessa água, em 1991
foi lançado um total de 0,7-1,2 milhão de tonela-
tos que os relativos às hidrelétricas da Amazônia das de CH4 em Tucuruí, o equivalente a 4-7,1
brasileira. Embora os dados de Petit Saut possam milhões de toneladas de carbono na forma de CO2,
ser usados para ajustar valores pontuais brasilei- computado com base no potencial de aquecimento
ros, com base em números relativos (percentagens), global de 21, adotado para o metano pelo Protocolo
não se pode lançar mão de valores absolutos por de Kyoto – isso significa que cada tonelada de CH4
causa da diferença de idade entre os reservatórios. tem, sobre o aquecimento global, o impacto de 21
Logo que a água emerge das turbinas, a pressão toneladas de CO2. A equivalência é conservadora,
cai até o nível de uma atmosfera, e a maior parte do já que cálculos atuais do Painel Intergovernamental
gás nela dissolvido é imediatamente liberada. A água de Mudanças Climáticas indicam um valor de 23
colhida no fundo de um reservatório e trazida até a para o potencial de aquecimento global do metano,
superfície em um frasco de amostragem espuma o que aumentaria o impacto da emissão desse gás
feito refrigerante quando ele é aberto. Gases assim pelas hidrelétricas em 12% em relação aos valores
liberados incluem o CO2 e o CH4. Embora presente adotados pelo Protocolo de Kyoto. Há propostas al-
na água em menor quantidade que o CO2, o CH4 é ternativas para o cálculo da equivalência entre os
que torna as hidrelétricas uma preocupação no que diferentes gases, mas os cálculos aqui apresentados
se refere ao aumento do efeito estufa. se baseiam na metodologia adotada pelo Protocolo
O metano também é liberado no percurso da de Kyoto, por ser internacionalmente aceita.
água pelo vertedouro, onde a liberação de gás é A pressão parcial do CH4 na atmosfera é muito
causada não só pela mudança de pressão e tempe- baixa: 1,5 × 10-6 (em cada milhão de moléculas
ratura, mas também pela provisão súbita de uma presentes no ar, apenas 1,5, em média, é de me-
vasta área da superfície, quando a água é pulveri- tano). Dada a constante da Lei de Henry para o me-
tano, o equilíbrio de CH4 à pressão de uma atmos-
fera e à temperatura de 25oC é de apenas 0,035
mg/l. Quando a água emerge das turbinas de Tu-
curuí com uma concentração de 7,5 mg de metano
por litro, 99,5% se perdem em razão do efeito
combinado da queda da pressão, até o nível de
uma atmosfera, e da elevação da temperatura, até
cerca de 25oC. O papel da temperatura nesse pro-
cesso pode ser visto a partir da relação entre a
temperatura e a solubilidade de CH4: um aumento
na temperatura de 15oC para 25oC, por exemplo,
reduz a solubilidade de CH4 na água em 18,3%.
FOTOS P.M. FEARNSIDE
Figura 2. Em forma de salto de esqui,
o vertedouro da hidrelétrica de Tucuruí oxigena
a água mas simultaneamente libera metano
42 • C I Ê N C I A H O J E • v o l . 3 6 • n º 2 1 1
14. C L I M A T O L O G I A
Algumas estimativas do impacto de hidrelétri-
cas consideram desprezíveis as emissões de gases
pelas turbinas e vertedouros, com base na medida
do fluxo de gases na superfície da água, feitas de
várias centenas de metros a várias dezenas de
quilômetros a jusante da barragem. Infelizmente
para o ambiente, a liberação de gás da água que
emerge das turbinas ocorre em questão de segun-
dos. O fato de que pouco ou nenhum metano seja
liberado rio abaixo é irrelevante. A quantidade de
CH4 liberado nas turbinas e no vertedouro é ade-
quadamente calculada por meio da diferença en-
tre a concentração de CH4 na água à profundidade
da tomada d’água das turbinas atrás da barragem
e a concentração na água do rio a jusante da bar-
ragem. Como o novo equilíbrio é alcançado rapi-
damente, logo que a água emerge das turbinas, não
há tempo para as bactérias reduzirem o CH4 a CO2
antes de o gás ganhar a atmosfera.
Com o sobe-e-desce do nível de água, inundan-
do e expondo grandes áreas de terra ao redor da
margem, as represas se tornam verdadeiras fábri-
cas de metano. A vegetação cresce depressa na Figura 3. Vista parcial do lago da hidrelétrica
lama exposta e se decompõe em condições anae- de Samuel, em Rondônia, 13 anos após o fechamento
róbicas no fundo do reservatório quando a água da barragem. Partes de árvores mortas permanecem
volta a subir. Isso converte gás carbônico atmosfé- acima da água, e a decomposição dessa biomassa
rico em metano, com um impacto muito maior libera CO2, sobretudo na primeira década após
a formação da represa
sobre o efeito estufa do que o CO2 retirado da
atmosfera por ação das plantas (21 vezes mais por
tonelada de gás ou 7,6 vezes mais por tonelada de solo erodido e de carbono orgânico dissolvido que
carbono). A emissão natural desse gás ao longo de alcança o rio a partir do lençol freático. O carbono
um rio sem barragens é pequena se comparada à de CO2 derivado da fotossíntese no reservatório é
emissão de um reservatório. apenas reciclado da atmosfera; o proveniente da
terra firme está sujeito a decomposição aeróbica.
O carbono da represa que não é oxidado pode
depositar-se em sumidouros (como os sedimentos
O DIÓXIDO DE CARBONO
do fundo do reservatório), a jusante (na várzea ou
A emissão de gás carbônico de reservatórios é bas- foz) ou em sedimentos oceânicos, podendo ainda
tante diferente da emissão de metano no que se permanecer como carbono orgânico dissolvido por
refere ao impacto líquido sobre o efeito estufa. um longo período. A remoção de carbono por de-
Diferente do metano, só uma porção do gás car- posição no reservatório não pode ser vista como
bônico emitido pode ser considerada impactante, benefício, uma vez que o carbono dos sedimentos
pois grande parte do fluxo de CO2 é cancelada por provavelmente ter-se-ia acumulado em outros su-
meio de absorções que ocorrem no reservatório. O midouros na ausência de barragens.
metano não entra em processos fotossintéticos, No cálculo do impacto líquido causado por re-
embora seja reduzido lentamente a CO2, que pode servatórios, deve-se levar em conta o CO2 liberado
ser removido na fotossíntese. Durante os cerca de pela decomposição de partes das árvores inunda-
10 anos que cada molécula de metano permanece das que se projetam para fora d’água (figura 3).
na atmosfera, o efeito estufa que isso causa deve ser Após o enchimento do reservatório, a quantidade
considerado um impacto líquido da represa. de carbono envolvida é significativa na primeira
O CO2 liberado na superfície do reservatório, década. Uma estimativa das emissões dessa fonte
bem como o CO2 liberado em turbinas e verte- feita pelo autor deste artigo durante o ano de 1990
douros, não pode ser considerado emissão líquida. indicou um total de 10 milhões de toneladas de
O carbono desse CO2 terá entrado na água a partir carbono para as represas da Amazônia brasilei-
de fontes de fotossíntese no reservatório, como ra: 2,55 em Tucuruí; 6,43 em Balbina; 1,13 em
fitoplâncton e macrófitas, de material orgânico e Samuel; e 0,01 em Curuá-Una.
dezembro de 2004 • CIÊNCIA HOJE • 43
15. C L I M A T O L O G I A
GÁS FONTE DE EMISSÃO C EQUIVALENTE A CO2 CONTRIBUIÇÃO
*
(MILHÕES DE T) RELATIVA (%)
CENÁRIO CENÁRIO CENÁRIO CENÁRIO
‘ALTO’ ‘BAIXO’ ‘ALTO’ ‘BAIXO’
CH4 EBULIÇÃO + DIFUSÃO 0,537 0,537 5% 8%
DECOMPOSIÇÃO ACIMA D’ÁGUA 0,003 0,003 0,03% 0,04%
PERDA DE SUMIDOUROS NO SOLO DA FLORESTA 0,001 0,001 0,01% 0,01%
PERDA DE CUPINS DA FLORESTA -0,015 -0,015 -0,15% -0,22%
TURBINAS 4,023 0,945 40% 13%
VERTEDOURO 3,066 3,066 30% 44%
CH 4 TOTAL 7,61 4,54 75% 64%
SUGESTÕES CO2 DECOMPOSIÇÃO ACIMA D’ÁGUA** 2,55 2,55 25% 36%
PARA LEITURA DECOMPOSIÇÃO ABAIXO D’ÁGUA 0,03 0,03 0,30% 0,43%
PERDA DE ABSORÇÃO DA FLORESTA 0,06 0,06 1% 1%
FEARNSIDE, P.M.
‘Greenhouse CO2 TOTAL 2,64 2,64 26% 38%
gas emissions
from Amazonian N2O*** PERDA DE FONTES NO SOLO DA FLORESTA -0,14 -0,14 -1% -2%
hydroelectric
TOTAL 10,11 7,03 100% 100%
reservoirs:
The example *Potencial de aquecimento global de CH 4 = 21; N 2O = 310.
of Brazil’s Tucuruí **Baseada na decomposição acima do solo, em área de floresta derrubada para implantação de atividades agropecuárias.
Dam as compared ***Óxido nitroso.
to fossil fuel
alternatives’, in
Environmental
Conservation,
24 : 64-75, Figura 4. Emissões de gases-estufa na hidrelétrica
HIDRELÉTRICAS E OUTRAS FONTES de Tucuruí em 1990. Os componentes são de anos
1997.
FEARNSIDE, P.M. DE ENERGIA: UMA COMPARAÇÃO diferentes: áreas de hábitat e níveis de água
‘Greenhouse gas (1988); emissão por unidade de área por ebulição
emissions from Emissões de várias fontes se concentram no início e difusão (1996-1997); fluxos de água das turbinas
a hydroelectric
reservoir (Brazil’s
da vida de uma hidrelétrica, e o efeito estufa que e do vertedouro (1991); conteúdo de CH4 na água
Tucuruí Dam) and provoca para gerar energia tem um perfil temporal (1989); emissões de decomposição (1990)
the energy policy bem diferente do perfil das emissões causadas pela
implications’,
in Water, produção da mesma quantidade de energia a partir
Air and Soil de combustíveis fósseis. As emissões em uma bar-
Pollution,
133: 69-96, ragem ocorrem até vários anos antes de ela começar Em Tucuruí, o impacto total das emissões e
2002. a produzir energia, resultando também da fabrica- sumidouros dos diferentes gases de efeito estufa
FEARNSIDE, P.M.
ção de cimento e aço empregados na sua constru- somava em 1990 (seis anos após o fechamento da
‘Greenhouse gas
emissions from ção. A liberação de CO2 pela decomposição de ár- barragem) o equivalente a 7-10,1 milhões de tone-
hydroelectric dams: vores mortas acima da água e do CH4 resultante da ladas de carbono de CO2. Um cenário ‘alto’ e outro
controversies
provide a decomposição das partes macias da vegetação ini- ‘baixo’ refletem uma larga faixa de incerteza, que
springboard for cial e das macrófitas é mais alta nos primeiros anos, se deve sobretudo às suposições acerca da percen-
rethinking a
supposedly “clean”
após o enchimento do reservatório. Qualquer pon- tagem de CH4 liberada pelas turbinas (figura 4).
energy source’, deração das emissões por tempo (atualmente não A magnitude dessa emissão pode ser entendida
in Climatic incluídas no Protocolo de Kyoto) favoreceria a alter- por comparação com a que se verifica na cidade
Change (no prelo).
GALY-LACAUX, C., nativa dos combustíveis fósseis, em comparação com de São Paulo. Em 1990, o Brasil emitiu 53 milhões
DELMAS, R., a geração de energia hidrelétrica. de toneladas de carbono de combustíveis fósseis,
KOUADIO, J.,
RICHARD, S., &
Mesmo sem considerar as emissões decorrentes segundo cálculos do especialista em energia Emí-
GOSSE, P. da construção da barragem e as ponderações acer- lio La Rovere, da Universidade Federal do Rio de
‘Long-term ca do tempo, é expressiva a emissão de gases de Janeiro. Portanto, a emissão de 7-10,1 milhões de
greenhouse gas
emissions from efeito estufa por hidrelétricas amazônicas. Isso se toneladas de carbono equivalente a CO2 de Tucuruí
hydroelectric aplica não só a barragens com potência muito baixa em 1990 representava de 13% a 19% da emissão
reservoirs
in tropical forest por área inundada, como Balbina e Samuel (ver de combustível fóssil produzida na época pela po-
regions’, “Balbina: lições trágicas na Amazônia”, em Ciên- pulação do país (170 milhões de habitantes). A
in Global
cia Hoje no 64), mas também a barragens como emissão de Tucuruí era de 1,3 a 1,9 vezes maior
Biogeochemical
Cycles, Tucuruí, cuja potência por metro quadrado inun- que a do combustível fóssil queimado pelos 17
13: 503-517, dado é superior à média das barragens planejadas milhões de habitantes da área metropolitana
1999.
na Amazônia em geral. de São Paulo (10% da população brasileira). ■
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