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70 C r e s C e r o u t u b r o 2 0 0 8
anencefaliaanencefalia
Havia à época um desconforto inexplicável. Não era
físico. Não havia dor. Mas ainda hoje, dois anos depois,
Ana Lúcia Alves de Souza, 30, funcionária pública, não
consegue nomear o que sentia durante sua gravidez. A
sensação, que a acompanhou até o quinto mês de ges-
tação, passou de uma preocupação natural com a saúde
do bebê para uma revelação que devasta os sentimentos
de quem se prepara para ser mãe. Seu segundo filho – o
primeiro do atual relacionamento – teve diagnosticada
anencefalia, uma malformação cerebral incompatível
com a vida do feto fora do útero.
O drama de gerar um filho anencéfalo, que hoje Ana
tenta lembrar o menos possível, foi reavivado com o
debate no Supremo Tribunal Federal sobre o direito ao
abortodefetoscomaanomalia (oresultadodadiscussão
deveseranunciadoatéofinaldoano).Apesardosorriso
com que nos recebeu em sua casa, percebia-se no olhar
o desalento vivido naqueles dias.
Ela relembra quando soube da notícia como se esti-
vesse revivendo-a ali, naquele instante. Ana e Peterson
Ferreira de Souza, 29 anos, seu companheiro, abriram
o resultado do ultra-som, mas não entenderam o que
“ausência de abóbada craniana, anencéfalo” significava.
Quando se encontrou com seu médico, a dúvida foi sa-
nada, a seco. “Você já viu alguém nascer e viver sem cé-
rebro? A partir de hoje você não é mais minha paciente,
vou encaminhá-la a um especialista em medicina fetal.”
Especialistas ouvidos pela CRESCER disseram que a
conduta do obstetra feriu o código de ética por tê-la
dispensado sem amparo e informações concretas. Isso,
para dizer o mínimo.
O casal se perdeu no caminho de volta para casa.
Quando chegaram, acessaram a internet em busca das
informações que ainda não tinham. Ali, depararam-se
com o pior. Descobriram que o filho não tinha chances
de vida. Ana caiu em um choro sem fim. Custou a acre-
ditar no que lia. O casal procurou outro médico. Em vez
de esclarecer sobre os riscos e explicar as opções legais
para o caso dela, que incluem prosseguir com a gesta-
ção ou tentar uma autorização judicial para abortar, ele
internou-anohospitalecomeçouoprocessodeindução
doparto.Aessaaltura,Anajánãotinhadúvidasdequea
melhoropçãoeraoaborto.Nohospital,dividiuoquarto
com gestantes que iam dar à luz. Enquanto as mulheres
saíam com seus filhos nos braços, Ana esperava, em si-
lêncio, para perder o seu.
A situação perdurou até que um outro médico a des-
cobriu lá, sem autorização judicial, três dias depois. O
remédio para a indução do parto não havia tido efei-
to. O médico explicou que a situação dela era irregular e
P o r T h a i s L a z z e r i
F o T o s a n d r é s P i n o L a e C a s T r o
P r o d u ç ã o C i n T h i a P e r G o L a
“Só queria
o direito de
escolha” A história de uma mulher
que se descobre grávida
de um feto anencéfalo no
quinto mês e sai em busca
de autorização judicial
para fazer o aborto
CF179_p70a73.indd 70 23/9/2008 21:11:24
71c r e s c e r . g l o b o . c o m
Ana lúcia,,
30 anos, conta30 anos, conta
como sua vidacomo sua vida
mudou ao sabermudou ao saber
que esperava umque esperava um
bebê sem cérebrobebê sem cérebro
CF179_p70a73.indd 71 23/9/2008 21:11:26
72 C r e s C e r o u t u b r o 2 0 0 8
que não poderia permanecer no hospital. Quando soube
que estava desamparada pela Justiça, Ana foi em busca da
autorização. Muitas mulheres, grávidas de anencéfalos,
passam a gestação à espera de uma resposta judicial, que
pode demorar até três meses ou ser negativa. O ministro
daSaúde,JoséGomesTemporão,recentementedefendeu
o direito de escolha das grávidas nesses casos.
Ana foi beneficiada com uma liminar rapidamente.
Na maioria das vezes, após fazer o diagnóstico, o médico
orienta a paciente se ela deseja ou não fazer o aborto. Se
sim, ela precisa do diagnóstico de mais dois médicos pa-
ra pedir a autorização judicial. A mulher deve ir àra pedir a autorização judicial. A mulher deve ir à
defensoriapúblicaouàprocuradoriadaassistênciadefensoriapúblicaouàprocuradoriadaassistência
judiciáriaemestadosquenãoapresentamdefenso-
ria. O defensor faz o pedido para o juiz, que ouve
também o representante do Ministério Público e
comunica sua decisão. Aqui no Brasil, metade das
decisões costuma ser favorável.
Passou-se um mês do momento em que AnaPassou-se um mês do momento em que Ana
descobriu sobre a anencefalia até o momento do
aborto. Foram dias de angústia. Ela não se lembraaborto. Foram dias de angústia. Ela não se lembra
do que aconteceu com Peterson ou como Thaina,
suafilhade13anos,foiparaaescola.Nãosabeco-
mofoiaprovadanafaculdadequecursava.“Entrei
em depressão. Só pensava que um dia ia acordar
para enterrar meu filho.” O irmão de Ana, que
faz parte de um grupo religioso contra o aborto,
tentou dissuadi-la.
Enquanto relembra esse trecho da história,
Peterson senta-se ao lado de Ana. Ele acabou de
fechar a oficina que mantém na frente da casa.
Timidamente, começa a falar do caso depois de
um silêncio de mais de um ano. A voz engasga.
Eletambémsofreu.Eraseuprimeirofilho.“Naquelemo-
mento a prioridade era a vida da minha mulher”, diz. E
voltamos ao dia da internação para o aborto.
O tamanho da dor
Comaautorizaçãoemmãos,Anaregressouaohospital
na companhia do marido e da mãe. Foram três dias de
internação, sem comer ou beber, esperando o remédio
que induz o parto fazer efeito. Os médicos disseram que
o caso dela era o primeiro naquela maternidade.
Ana,poruminstante,páradefalar.Temdificuldadepa-
ra dimensionar o tamanho da perda. Olha para Peterson,
echora.“Acheiquefossemorrer.Adoreratantaquenão
podiamaisagüentar.Deramatémorfina.Delirando,pedi
que me deixassem ver a Thaina, minha filha mais velha.”
Quando o bebê nasceu, não se ouviu choro. Como o feto
tinha menos de 350 g, não foi preciso fazer o enterro. O
casal não viu a criança. Eles não queriam essa lembrança
do filho que nasceu para morrer.
Ana e Peterson não são pró-aborto. Eles defendem o
direito da mulher escolher. “Como pode um juiz decidir
o tamanho da dor de uma família? Quem passa pela si-
tuação é quem deveria escolher entre prosseguir ou não
com a gravidez”, diz o marido.com a gravidez”, diz o marido.
Thaina, a filha, entra na sala. Ela chega no instante em
que Ana conta quando decidiu recomeçar. “Estava ainda
namaternidade.Acordei,tomeiumbanho,coloqueiuma
roupa limpa e senti um alívio”, diz. É mesmo um bom
momento para a família. Ana está grávida, novamente.
No dia da entrevista (no início de setembro), ela estava
de oito semanas. Para o bebê que vai nascer, ainda não
comprou nada. Só tem o enxoval que guardou do filho
quenãochegou.Nome,obebêtambémnãotem.Elatem
medo de criar muitas expectativas e se decepcionar. Seu
maior desejo, que ela repete a toda hora, é fazer o ultra-
som no terceiro mês de gestação para saber se este filho
tem chances de viver. Ana não desistiu.
thaina e
Peterson torcemtorcem
pela 3pela 3aa
gravidezgravidez
de Anade Ana
Mãe:vestidoM.Officer;Pai:camisetaYMan;Filha:Ellus;
Maquiagem:CarolAlmeida;Assistentedeprodução:TetéGuardia
CF179_p70a73.indd 72 23/9/2008 21:11:29
73c r e s c e r . g l o b o . c o m
De lados diferentes
Contra Afavor
Dois médicos contam por que têm opiniões contrárias sobre o direito de a mulher
decidir se aborta ou não um feto com anencefalia
entenda a anencefalia
Alice teixeira Ferreira,
professora de biofísica da
universidade Federal de são Paulo
l O que é uma malformação cerebral
incompatível com a vida fora do útero. É
letal em 100% dos casos. o brasil é o 4o
país na lista com maior incidência de fetos
anencéfalos – nasce 1 para cada 1.000.
l Causa A ciência desconhece o porquê da
malformação. Há pesquisas não-conclusivas
sobre fatores que, associados, poderiam
aumentar as chances. são eles: genética,
nutrição inadequada, febre durante a
gravidez, infecção, alguns medicamentos de
uso psiquiátrico, obesidade, tabaco.
l Diagnóstico o ultra-som morfológico
no 3o
mês dá o resultado com exatidão.
os bebês que não morrem antes do parto
falecem horas depois do nascimento.
l Prevenção tomar ácido fólico 3 meses
antes de engravidar e no 1o
trimestre da
gestação ajuda a prevenir malformações.
Quem teve um anencéfalo deve fazer
aconselhamento genético, para ver se há
risco de ter outro nas mesmas condições, e
acompanhar a nova gravidez com cuidado.
l Lei Hoje, a mulher pode fazer o aborto
de um feto anencéfalo se a decisão do
juiz for favorável a seu caso. com a lei,
que pode ser aprovada até o fim do ano, a
grávida não precisaria mais da autorização,
pois teria seu direito já garantido. bastaria
o diagnóstico médico para fazer a opção.
Por que você é a favor do direito ao aborto?
Nenhumamulherengravidapensandoemabortar.todossomospela
vida. A anencefalia é a gestação de um filho sem viabilidade extra-
uterina. Não tem cérebro, consciência. Nada. É 100% letal.
Há registros de crianças que sobreviveram mais de um ano...
eles têm o tronco cerebral, por isso demonstram alguns estímulos.
mas não sentem nada. e essas crianças podem carregar outras
malformações associadas, como problemas cardíacos. o caso da
marcela* não serve de exemplo, porque ela não era anencéfala.
A mulher corre riscos?
ela pode ter aumento do líquido amniótico e deslocamento de pla-
centa. um estudo mostrou que em 5% dos partos foi preciso retirar
oúteroeem4%fez-setransfusãodesangue.levaragravidezdeum
anencéfalo contra a vontade da mulher é análogo à tortura.
Como deve ser a abordagem do médico em caso de anencefalia?
Édeverdomédicoinformarapacientedaspossibilidadesqueelatêm.
e respeitar a decisão da pessoa.
A Constituição diz que é possível a doação de órgãos quando há
morte cerebral. ela também é possível em casos de anencéfalos?
sim. A legislação diz que em morte cerebral os parentes podem ser
consultados para doação de órgãos. um feto anencéfalo está na
mesma condição, ele não tem atividade cerebral.
Por que você é contra o direito ao aborto nesses casos?
oanencéfaloéumacriançadoenteenãoéporissoquevamosante-
cipar a sua morte. ela tem o direito de viver. Veja o caso marcela* (de
Jesus, que faleceu com 1 ano e 8 meses). os médicos se recusaram a
acompanhar a gravidez da mãe. como você pode definir a quanti-
dade de cérebro que tem para justificar matar uma criança?
está provado que a criança não vai ter uma vida saudável, não
vai sentir, não terá emoções. ela não tem chances. É letal...
Não é injusto matar um condenado à morte? A mulher que está es-
perandoumbebêanencéfalotemqueenxergarcomoquemtemum
filho doente terminal. cerca de 30% das leucemias levam à morte.
também é incurável. Você vai matar um paciente condenado?
Como garantir que a saúde da mulher não seja posta em risco?
o que pode acontecer é o aumento do líquido amniótico. Você pode
fazer uma pulsão para retirar. Não há risco.
e a liberdade de escolha?
A mulher precisa é de assistência de saúde melhor, que evite que ela
sofra desnecessariamente.
Mas a mulher sofre um abalo psicológico grande...
Você não tem como prever o destino da criança. ela pode nascer e
morrer logo em seguida, e era saudável. concordo que é muito triste.
mas matar intencionalmente é mais triste ainda.
cristião rosas,
ginecologista e obstetra, integrante da
Federação brasileira de ginecologia e obstetrícia
Fontes:LuizCláudiodeSilvaBussamra,chefedosetordemedicinafetaldaFaculdadede
CiênciasMédicasdaSantaCasadeSãoPaulo(SP);CarlaFerreiraQueiroz,advogada
*NãoháconsensoentreacomunidademédicaseMarcelaeraounãoanencéfala.
© 1 Stela Murgel / Unifesp
© 1© 1
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Só queria o direito de escolha - A história de uma mulher que descobre uma gravidez de feto anencéfalo

  • 1. 70 C r e s C e r o u t u b r o 2 0 0 8 anencefaliaanencefalia Havia à época um desconforto inexplicável. Não era físico. Não havia dor. Mas ainda hoje, dois anos depois, Ana Lúcia Alves de Souza, 30, funcionária pública, não consegue nomear o que sentia durante sua gravidez. A sensação, que a acompanhou até o quinto mês de ges- tação, passou de uma preocupação natural com a saúde do bebê para uma revelação que devasta os sentimentos de quem se prepara para ser mãe. Seu segundo filho – o primeiro do atual relacionamento – teve diagnosticada anencefalia, uma malformação cerebral incompatível com a vida do feto fora do útero. O drama de gerar um filho anencéfalo, que hoje Ana tenta lembrar o menos possível, foi reavivado com o debate no Supremo Tribunal Federal sobre o direito ao abortodefetoscomaanomalia (oresultadodadiscussão deveseranunciadoatéofinaldoano).Apesardosorriso com que nos recebeu em sua casa, percebia-se no olhar o desalento vivido naqueles dias. Ela relembra quando soube da notícia como se esti- vesse revivendo-a ali, naquele instante. Ana e Peterson Ferreira de Souza, 29 anos, seu companheiro, abriram o resultado do ultra-som, mas não entenderam o que “ausência de abóbada craniana, anencéfalo” significava. Quando se encontrou com seu médico, a dúvida foi sa- nada, a seco. “Você já viu alguém nascer e viver sem cé- rebro? A partir de hoje você não é mais minha paciente, vou encaminhá-la a um especialista em medicina fetal.” Especialistas ouvidos pela CRESCER disseram que a conduta do obstetra feriu o código de ética por tê-la dispensado sem amparo e informações concretas. Isso, para dizer o mínimo. O casal se perdeu no caminho de volta para casa. Quando chegaram, acessaram a internet em busca das informações que ainda não tinham. Ali, depararam-se com o pior. Descobriram que o filho não tinha chances de vida. Ana caiu em um choro sem fim. Custou a acre- ditar no que lia. O casal procurou outro médico. Em vez de esclarecer sobre os riscos e explicar as opções legais para o caso dela, que incluem prosseguir com a gesta- ção ou tentar uma autorização judicial para abortar, ele internou-anohospitalecomeçouoprocessodeindução doparto.Aessaaltura,Anajánãotinhadúvidasdequea melhoropçãoeraoaborto.Nohospital,dividiuoquarto com gestantes que iam dar à luz. Enquanto as mulheres saíam com seus filhos nos braços, Ana esperava, em si- lêncio, para perder o seu. A situação perdurou até que um outro médico a des- cobriu lá, sem autorização judicial, três dias depois. O remédio para a indução do parto não havia tido efei- to. O médico explicou que a situação dela era irregular e P o r T h a i s L a z z e r i F o T o s a n d r é s P i n o L a e C a s T r o P r o d u ç ã o C i n T h i a P e r G o L a “Só queria o direito de escolha” A história de uma mulher que se descobre grávida de um feto anencéfalo no quinto mês e sai em busca de autorização judicial para fazer o aborto CF179_p70a73.indd 70 23/9/2008 21:11:24
  • 2. 71c r e s c e r . g l o b o . c o m Ana lúcia,, 30 anos, conta30 anos, conta como sua vidacomo sua vida mudou ao sabermudou ao saber que esperava umque esperava um bebê sem cérebrobebê sem cérebro CF179_p70a73.indd 71 23/9/2008 21:11:26
  • 3. 72 C r e s C e r o u t u b r o 2 0 0 8 que não poderia permanecer no hospital. Quando soube que estava desamparada pela Justiça, Ana foi em busca da autorização. Muitas mulheres, grávidas de anencéfalos, passam a gestação à espera de uma resposta judicial, que pode demorar até três meses ou ser negativa. O ministro daSaúde,JoséGomesTemporão,recentementedefendeu o direito de escolha das grávidas nesses casos. Ana foi beneficiada com uma liminar rapidamente. Na maioria das vezes, após fazer o diagnóstico, o médico orienta a paciente se ela deseja ou não fazer o aborto. Se sim, ela precisa do diagnóstico de mais dois médicos pa- ra pedir a autorização judicial. A mulher deve ir àra pedir a autorização judicial. A mulher deve ir à defensoriapúblicaouàprocuradoriadaassistênciadefensoriapúblicaouàprocuradoriadaassistência judiciáriaemestadosquenãoapresentamdefenso- ria. O defensor faz o pedido para o juiz, que ouve também o representante do Ministério Público e comunica sua decisão. Aqui no Brasil, metade das decisões costuma ser favorável. Passou-se um mês do momento em que AnaPassou-se um mês do momento em que Ana descobriu sobre a anencefalia até o momento do aborto. Foram dias de angústia. Ela não se lembraaborto. Foram dias de angústia. Ela não se lembra do que aconteceu com Peterson ou como Thaina, suafilhade13anos,foiparaaescola.Nãosabeco- mofoiaprovadanafaculdadequecursava.“Entrei em depressão. Só pensava que um dia ia acordar para enterrar meu filho.” O irmão de Ana, que faz parte de um grupo religioso contra o aborto, tentou dissuadi-la. Enquanto relembra esse trecho da história, Peterson senta-se ao lado de Ana. Ele acabou de fechar a oficina que mantém na frente da casa. Timidamente, começa a falar do caso depois de um silêncio de mais de um ano. A voz engasga. Eletambémsofreu.Eraseuprimeirofilho.“Naquelemo- mento a prioridade era a vida da minha mulher”, diz. E voltamos ao dia da internação para o aborto. O tamanho da dor Comaautorizaçãoemmãos,Anaregressouaohospital na companhia do marido e da mãe. Foram três dias de internação, sem comer ou beber, esperando o remédio que induz o parto fazer efeito. Os médicos disseram que o caso dela era o primeiro naquela maternidade. Ana,poruminstante,páradefalar.Temdificuldadepa- ra dimensionar o tamanho da perda. Olha para Peterson, echora.“Acheiquefossemorrer.Adoreratantaquenão podiamaisagüentar.Deramatémorfina.Delirando,pedi que me deixassem ver a Thaina, minha filha mais velha.” Quando o bebê nasceu, não se ouviu choro. Como o feto tinha menos de 350 g, não foi preciso fazer o enterro. O casal não viu a criança. Eles não queriam essa lembrança do filho que nasceu para morrer. Ana e Peterson não são pró-aborto. Eles defendem o direito da mulher escolher. “Como pode um juiz decidir o tamanho da dor de uma família? Quem passa pela si- tuação é quem deveria escolher entre prosseguir ou não com a gravidez”, diz o marido.com a gravidez”, diz o marido. Thaina, a filha, entra na sala. Ela chega no instante em que Ana conta quando decidiu recomeçar. “Estava ainda namaternidade.Acordei,tomeiumbanho,coloqueiuma roupa limpa e senti um alívio”, diz. É mesmo um bom momento para a família. Ana está grávida, novamente. No dia da entrevista (no início de setembro), ela estava de oito semanas. Para o bebê que vai nascer, ainda não comprou nada. Só tem o enxoval que guardou do filho quenãochegou.Nome,obebêtambémnãotem.Elatem medo de criar muitas expectativas e se decepcionar. Seu maior desejo, que ela repete a toda hora, é fazer o ultra- som no terceiro mês de gestação para saber se este filho tem chances de viver. Ana não desistiu. thaina e Peterson torcemtorcem pela 3pela 3aa gravidezgravidez de Anade Ana Mãe:vestidoM.Officer;Pai:camisetaYMan;Filha:Ellus; Maquiagem:CarolAlmeida;Assistentedeprodução:TetéGuardia CF179_p70a73.indd 72 23/9/2008 21:11:29
  • 4. 73c r e s c e r . g l o b o . c o m De lados diferentes Contra Afavor Dois médicos contam por que têm opiniões contrárias sobre o direito de a mulher decidir se aborta ou não um feto com anencefalia entenda a anencefalia Alice teixeira Ferreira, professora de biofísica da universidade Federal de são Paulo l O que é uma malformação cerebral incompatível com a vida fora do útero. É letal em 100% dos casos. o brasil é o 4o país na lista com maior incidência de fetos anencéfalos – nasce 1 para cada 1.000. l Causa A ciência desconhece o porquê da malformação. Há pesquisas não-conclusivas sobre fatores que, associados, poderiam aumentar as chances. são eles: genética, nutrição inadequada, febre durante a gravidez, infecção, alguns medicamentos de uso psiquiátrico, obesidade, tabaco. l Diagnóstico o ultra-som morfológico no 3o mês dá o resultado com exatidão. os bebês que não morrem antes do parto falecem horas depois do nascimento. l Prevenção tomar ácido fólico 3 meses antes de engravidar e no 1o trimestre da gestação ajuda a prevenir malformações. Quem teve um anencéfalo deve fazer aconselhamento genético, para ver se há risco de ter outro nas mesmas condições, e acompanhar a nova gravidez com cuidado. l Lei Hoje, a mulher pode fazer o aborto de um feto anencéfalo se a decisão do juiz for favorável a seu caso. com a lei, que pode ser aprovada até o fim do ano, a grávida não precisaria mais da autorização, pois teria seu direito já garantido. bastaria o diagnóstico médico para fazer a opção. Por que você é a favor do direito ao aborto? Nenhumamulherengravidapensandoemabortar.todossomospela vida. A anencefalia é a gestação de um filho sem viabilidade extra- uterina. Não tem cérebro, consciência. Nada. É 100% letal. Há registros de crianças que sobreviveram mais de um ano... eles têm o tronco cerebral, por isso demonstram alguns estímulos. mas não sentem nada. e essas crianças podem carregar outras malformações associadas, como problemas cardíacos. o caso da marcela* não serve de exemplo, porque ela não era anencéfala. A mulher corre riscos? ela pode ter aumento do líquido amniótico e deslocamento de pla- centa. um estudo mostrou que em 5% dos partos foi preciso retirar oúteroeem4%fez-setransfusãodesangue.levaragravidezdeum anencéfalo contra a vontade da mulher é análogo à tortura. Como deve ser a abordagem do médico em caso de anencefalia? Édeverdomédicoinformarapacientedaspossibilidadesqueelatêm. e respeitar a decisão da pessoa. A Constituição diz que é possível a doação de órgãos quando há morte cerebral. ela também é possível em casos de anencéfalos? sim. A legislação diz que em morte cerebral os parentes podem ser consultados para doação de órgãos. um feto anencéfalo está na mesma condição, ele não tem atividade cerebral. Por que você é contra o direito ao aborto nesses casos? oanencéfaloéumacriançadoenteenãoéporissoquevamosante- cipar a sua morte. ela tem o direito de viver. Veja o caso marcela* (de Jesus, que faleceu com 1 ano e 8 meses). os médicos se recusaram a acompanhar a gravidez da mãe. como você pode definir a quanti- dade de cérebro que tem para justificar matar uma criança? está provado que a criança não vai ter uma vida saudável, não vai sentir, não terá emoções. ela não tem chances. É letal... Não é injusto matar um condenado à morte? A mulher que está es- perandoumbebêanencéfalotemqueenxergarcomoquemtemum filho doente terminal. cerca de 30% das leucemias levam à morte. também é incurável. Você vai matar um paciente condenado? Como garantir que a saúde da mulher não seja posta em risco? o que pode acontecer é o aumento do líquido amniótico. Você pode fazer uma pulsão para retirar. Não há risco. e a liberdade de escolha? A mulher precisa é de assistência de saúde melhor, que evite que ela sofra desnecessariamente. Mas a mulher sofre um abalo psicológico grande... Você não tem como prever o destino da criança. ela pode nascer e morrer logo em seguida, e era saudável. concordo que é muito triste. mas matar intencionalmente é mais triste ainda. cristião rosas, ginecologista e obstetra, integrante da Federação brasileira de ginecologia e obstetrícia Fontes:LuizCláudiodeSilvaBussamra,chefedosetordemedicinafetaldaFaculdadede CiênciasMédicasdaSantaCasadeSãoPaulo(SP);CarlaFerreiraQueiroz,advogada *NãoháconsensoentreacomunidademédicaseMarcelaeraounãoanencéfala. © 1 Stela Murgel / Unifesp © 1© 1 CF179_p70a73.indd 73 23/9/2008 21:11:30