Uma mulher grávida de 5 meses descobre que seu feto tem anencefalia, uma malformação cerebral fatal. Após receber informações inadequadas do médico, ela procura outro para entender melhor a condição. Posteriormente, ela busca autorização judicial para realizar um aborto, o que é concedido. O documento descreve a experiência dolorosa da mulher durante esse processo.
Só queria o direito de escolha - A história de uma mulher que descobre uma gravidez de feto anencéfalo
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anencefaliaanencefalia
Havia à época um desconforto inexplicável. Não era
físico. Não havia dor. Mas ainda hoje, dois anos depois,
Ana Lúcia Alves de Souza, 30, funcionária pública, não
consegue nomear o que sentia durante sua gravidez. A
sensação, que a acompanhou até o quinto mês de ges-
tação, passou de uma preocupação natural com a saúde
do bebê para uma revelação que devasta os sentimentos
de quem se prepara para ser mãe. Seu segundo filho – o
primeiro do atual relacionamento – teve diagnosticada
anencefalia, uma malformação cerebral incompatível
com a vida do feto fora do útero.
O drama de gerar um filho anencéfalo, que hoje Ana
tenta lembrar o menos possível, foi reavivado com o
debate no Supremo Tribunal Federal sobre o direito ao
abortodefetoscomaanomalia (oresultadodadiscussão
deveseranunciadoatéofinaldoano).Apesardosorriso
com que nos recebeu em sua casa, percebia-se no olhar
o desalento vivido naqueles dias.
Ela relembra quando soube da notícia como se esti-
vesse revivendo-a ali, naquele instante. Ana e Peterson
Ferreira de Souza, 29 anos, seu companheiro, abriram
o resultado do ultra-som, mas não entenderam o que
“ausência de abóbada craniana, anencéfalo” significava.
Quando se encontrou com seu médico, a dúvida foi sa-
nada, a seco. “Você já viu alguém nascer e viver sem cé-
rebro? A partir de hoje você não é mais minha paciente,
vou encaminhá-la a um especialista em medicina fetal.”
Especialistas ouvidos pela CRESCER disseram que a
conduta do obstetra feriu o código de ética por tê-la
dispensado sem amparo e informações concretas. Isso,
para dizer o mínimo.
O casal se perdeu no caminho de volta para casa.
Quando chegaram, acessaram a internet em busca das
informações que ainda não tinham. Ali, depararam-se
com o pior. Descobriram que o filho não tinha chances
de vida. Ana caiu em um choro sem fim. Custou a acre-
ditar no que lia. O casal procurou outro médico. Em vez
de esclarecer sobre os riscos e explicar as opções legais
para o caso dela, que incluem prosseguir com a gesta-
ção ou tentar uma autorização judicial para abortar, ele
internou-anohospitalecomeçouoprocessodeindução
doparto.Aessaaltura,Anajánãotinhadúvidasdequea
melhoropçãoeraoaborto.Nohospital,dividiuoquarto
com gestantes que iam dar à luz. Enquanto as mulheres
saíam com seus filhos nos braços, Ana esperava, em si-
lêncio, para perder o seu.
A situação perdurou até que um outro médico a des-
cobriu lá, sem autorização judicial, três dias depois. O
remédio para a indução do parto não havia tido efei-
to. O médico explicou que a situação dela era irregular e
P o r T h a i s L a z z e r i
F o T o s a n d r é s P i n o L a e C a s T r o
P r o d u ç ã o C i n T h i a P e r G o L a
“Só queria
o direito de
escolha” A história de uma mulher
que se descobre grávida
de um feto anencéfalo no
quinto mês e sai em busca
de autorização judicial
para fazer o aborto
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Ana lúcia,,
30 anos, conta30 anos, conta
como sua vidacomo sua vida
mudou ao sabermudou ao saber
que esperava umque esperava um
bebê sem cérebrobebê sem cérebro
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que não poderia permanecer no hospital. Quando soube
que estava desamparada pela Justiça, Ana foi em busca da
autorização. Muitas mulheres, grávidas de anencéfalos,
passam a gestação à espera de uma resposta judicial, que
pode demorar até três meses ou ser negativa. O ministro
daSaúde,JoséGomesTemporão,recentementedefendeu
o direito de escolha das grávidas nesses casos.
Ana foi beneficiada com uma liminar rapidamente.
Na maioria das vezes, após fazer o diagnóstico, o médico
orienta a paciente se ela deseja ou não fazer o aborto. Se
sim, ela precisa do diagnóstico de mais dois médicos pa-
ra pedir a autorização judicial. A mulher deve ir àra pedir a autorização judicial. A mulher deve ir à
defensoriapúblicaouàprocuradoriadaassistênciadefensoriapúblicaouàprocuradoriadaassistência
judiciáriaemestadosquenãoapresentamdefenso-
ria. O defensor faz o pedido para o juiz, que ouve
também o representante do Ministério Público e
comunica sua decisão. Aqui no Brasil, metade das
decisões costuma ser favorável.
Passou-se um mês do momento em que AnaPassou-se um mês do momento em que Ana
descobriu sobre a anencefalia até o momento do
aborto. Foram dias de angústia. Ela não se lembraaborto. Foram dias de angústia. Ela não se lembra
do que aconteceu com Peterson ou como Thaina,
suafilhade13anos,foiparaaescola.Nãosabeco-
mofoiaprovadanafaculdadequecursava.“Entrei
em depressão. Só pensava que um dia ia acordar
para enterrar meu filho.” O irmão de Ana, que
faz parte de um grupo religioso contra o aborto,
tentou dissuadi-la.
Enquanto relembra esse trecho da história,
Peterson senta-se ao lado de Ana. Ele acabou de
fechar a oficina que mantém na frente da casa.
Timidamente, começa a falar do caso depois de
um silêncio de mais de um ano. A voz engasga.
Eletambémsofreu.Eraseuprimeirofilho.“Naquelemo-
mento a prioridade era a vida da minha mulher”, diz. E
voltamos ao dia da internação para o aborto.
O tamanho da dor
Comaautorizaçãoemmãos,Anaregressouaohospital
na companhia do marido e da mãe. Foram três dias de
internação, sem comer ou beber, esperando o remédio
que induz o parto fazer efeito. Os médicos disseram que
o caso dela era o primeiro naquela maternidade.
Ana,poruminstante,páradefalar.Temdificuldadepa-
ra dimensionar o tamanho da perda. Olha para Peterson,
echora.“Acheiquefossemorrer.Adoreratantaquenão
podiamaisagüentar.Deramatémorfina.Delirando,pedi
que me deixassem ver a Thaina, minha filha mais velha.”
Quando o bebê nasceu, não se ouviu choro. Como o feto
tinha menos de 350 g, não foi preciso fazer o enterro. O
casal não viu a criança. Eles não queriam essa lembrança
do filho que nasceu para morrer.
Ana e Peterson não são pró-aborto. Eles defendem o
direito da mulher escolher. “Como pode um juiz decidir
o tamanho da dor de uma família? Quem passa pela si-
tuação é quem deveria escolher entre prosseguir ou não
com a gravidez”, diz o marido.com a gravidez”, diz o marido.
Thaina, a filha, entra na sala. Ela chega no instante em
que Ana conta quando decidiu recomeçar. “Estava ainda
namaternidade.Acordei,tomeiumbanho,coloqueiuma
roupa limpa e senti um alívio”, diz. É mesmo um bom
momento para a família. Ana está grávida, novamente.
No dia da entrevista (no início de setembro), ela estava
de oito semanas. Para o bebê que vai nascer, ainda não
comprou nada. Só tem o enxoval que guardou do filho
quenãochegou.Nome,obebêtambémnãotem.Elatem
medo de criar muitas expectativas e se decepcionar. Seu
maior desejo, que ela repete a toda hora, é fazer o ultra-
som no terceiro mês de gestação para saber se este filho
tem chances de viver. Ana não desistiu.
thaina e
Peterson torcemtorcem
pela 3pela 3aa
gravidezgravidez
de Anade Ana
Mãe:vestidoM.Officer;Pai:camisetaYMan;Filha:Ellus;
Maquiagem:CarolAlmeida;Assistentedeprodução:TetéGuardia
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