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casoextraordinário
capítulo1
a rua deserta
Rua Caminho do Imperador é um dos mui-
tos endereços em Petrópolis,cidade da região
serrana do Rio de Janeiro,que homenageiam
a família real. Ali os monarcas fizeram sua
residência de veraneio.“Petrópolis é o lugar
da Terra que talvez melhor mereça,do que qualquer outro,
ser intitulada de paraíso terrestre”, escreveu o francês
Carlos Augusto Taunay, que chegou ao Rio com 20 e pou-
cos anos, em 1816, e fez-se um dos nomes da história da
cidade.Contam os moradores que o Caminho era parte do
trajeto de Dom Pedro II até um poço, onde se banhava. O
local foi também a escolha de uma dezena de famílias para
ser seu caminho de casa.As primeiras chegaram ao Cami-
nho há 30 anos. A beleza do cenário com que depararam
era muito parecida à que fora encontrada pela realeza, e
que ainda pode ser admirada nos quadros do Museu
Imperial,no centro da cidade.De um lado,encostas íngre-
mes. Do outro, abismo. A rua era só um caminho estreito
de terra cortando a Mata Atlântica. Com o tempo e os
moradores, a via ganhou cascalho, sacos de areia e s
Thais Lazzeri, de Petrópolis (RJ)
depois
da chuva
A história de uma rua fantasma em
Petrópolis, no Estado do Rio, resume o drama
dos brasileiros que vivem em áreas de risco:
para onde ir depois de uma tragédia?
a
casoextraordinário
40 I época I 3 de março de 2014
EP822p040_046.indd 40 26/02/2014 23:06:34
sem destino
maria José
carvalho (de rosa)
e sua família, da
casa 150. apesar
das mortes, eles
permanecem
na rua
Foto: Ana Carolina Fernandes/ÉPOCA
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42 I época I 3 de março de 2014
casoextraordinário
terra para conter a erosão.O asfalto nunca chegou.Do alto
do morro, os moradores viam Niterói pegar no sono e
ouviam o canto dos pássaros ser encoberto pela algazarra
das cigarras. Depois de um tromba-d’água, em 17 de mar-
ço de 2013, o Caminho do Imperador deixou de ser cami-
nho para a maioria dos moradores.Na tragédia que alcan-
çou a rua, oito pessoas morreram. Restaram no Caminho
duas famílias, uma senhora com problemas psiquiátricos
(que recolhe lixo para decorar a própria casa) e uma porção
de casas interditadas pela Defesa Civil. A primeira casa da
rua não deixa ninguém esquecer o mar de lama que desceu
a encosta e invadiu a vida das pessoas naquele domingo à
noite. Do que já foi um quarto, restou parte das paredes.A
lama abriu um buraco no 2o andar do sobrado. Na janela,
permanece debruçado o colchão envolto numa colcha cor-
de-rosa. Logo após o almoço, com o sol no alto, o cheiro
de urina invade a rua.As casas destruídas pelo barro,dizem
os moradores,tornaram-se ponto de uso de drogas.À noi-
te, o abandono é acentuado pelos poucos postes que emi-
tem luz. Hoje, a rua é chamada de cemitério.
capítulo2
a casa 150
Das muitas afirmações que se fazem sobre Maria José
Carvalho, uma, por certo, é mentira. Ela não é teimosa.
Ganhou essa fama por não arredar do Caminho. Ela sente
que não tem alternativa. Não é a casa que Maria José não
quer deixar para trás. É a história de uma vida inteira. É a
lembrança de sua mãe,que ficava na janela todas as manhãs
e a quem pedia bênção antes de ir trabalhar. São as irmãs,
com quem dividia o dia a dia.Um ditado comum na região
é:“O mato cresce,o povo esquece”.Maria José faz a memó-
ria da rua resistir em meio à solidão que calou o Caminho.
A casa dela é uma das últimas da rua,no número 150,numa
das muitas esquinas que contornam um morro do bairro
Independência.Acompanhada do marido,do filho e de um
afilhado, Maria José ali permaneceu. Deu abrigo a um so-
brinho,que vive de favor numa casa anexa a sua.Ela passou
sem luz os três primeiros meses após a chuva. Teve de pu-
lar a lama e o poste caído,que interrompeu a energia.Com-
prava gelo para acomodar o que a geladeira não podia
resfriar. A casa dela foi interditada pela Defesa Civil – o
imóvel anexo ao seu, não. Se tivesse saído, talvez hoje rece-
besse o aluguel social, uma ajuda de custo de R$ 500. O
aluguel social é destinado a famílias removidas de áreas de
risco ou desabrigadas, cuja renda familiar total não ultra-
passe cinco salários mínimos. No país, há 15 localidades
(entre municípios e Estados) beneficiadas. Maria José diz
que o problema não é apenas que os R$ 500 sejam insufi-
cientes para alugar uma casa como a dela,com três quartos,
sala,cozinha,banheiro e uma varanda.“Isto aqui é meu.Se
eu quiser pôr um prego na parede, posso. Sairia daqui se
pudesse comprar uma casa para mim.(A prefeitura) deixou
eu morar aqui por 30 anos e agora vem dizer que não pode?”
rua fantasma
o que sobrou
das casas do
caminho do
imperador.
interditadas em
2013, se tornaram
ponto de drogas
Nodia17demarçode2013,MariaJosécomemoroucom
umdiadeantecedênciaseuaniversário.Ofereceuotradicio-
nal churrasco na laje aos mais chegados – e são muitos os
chegadosdeTiaZé,comoéconhecida.Naqueledia,elacon-
tou que a chuva começou a cair com o avanço da tarde.Pio-
roucomofimdaluzdodia.Aocontráriodealgunsvizinhos,
quediziamobservaromorroparanãosersurpreendidospor
deslizamentos,Maria José dormiu.O barulho da chuva for-
te se misturava ao som distante da sirene instalada pela De-
fesa Civil no bairro Independência em 2011, depois da tra-
gédia que vitimou mais de 900 pessoas na região serrana.
Quando a sirene toca, as pessoas devem se dirigir para o
abrigo mais próximo. Os moradores do Caminho contam
que não saíram de casa porque não sabiam que ali era uma
área de risco. Todos repetem a mesma versão da história:
nunca ninguém da prefeitura ou da Defesa Civil informou
que o local oferecia risco. O secretário de Proteção e Defesa
Civil, Rafael Simão, diz que a prefeitura colocará, neste ano,
mapas nos bairros da cidade que ilustram as áreas de risco.
As construções do Caminho, como em tantos locais do
país, não têm autorização da prefeitura. Surgiram com o
formigueiro que costuma reger urbanização do Brasil. A
mudança do campo para a cidade aconteceu com tamanha
velocidade a partir da década de 1940,que as pessoas foram
construindo moradias onde podiam. Famílias como a de
Maria José alcançaram as encostas ou as beiras de rios – im-
próprias para habitação, pelos riscos de desastres naturais.
Hoje,contam-se no Brasil 500 áreas de risco de deslizamen-
to e 300 de inundações.Em 2011,o governo divulgou que 5
Foto: Ana Carolina Fernandes/ÉPOCA
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3 de março de 2014 I época I 43
O último trabalho de Douglas, que abandonou a escola
depois do ensino médio, foi como caseiro. Talvez por isso,
ele diga que vai roçar com a naturalidade que jovens da
mesma idade falam em baladas. Laís estudou até o 6o
ano
e também está desempregada. Douglas é veterano das en-
chentes. Foi salvo de um deslizamento por um vizinho em
1988, quando tudo o que sobrou da casa onde vivia foram
os pais. No dia da tragédia no Caminho, ele teve sorte, de
novo.A família e ele não estavam em casa. Douglas voltou
para resgatar a irmã, isolada com outros moradores pelo
barro que tomava a rua.Hoje,Douglas tenta salvar Munay
das águas. Eles se cadastraram no site da Defesa Civil para
receber mensagens, no celular, de alertas contra chuvas.
Criar um sistema de alerta contra desastres naturais é um
compromisso recente dos governos, em todas as esferas.
Douglas diz que,se a mensagem chega,ou se ele e a mulher
acreditam que vai chover, pegam a filha, uma mala com
algumas peças de roupas e vão para a casa da mãe dele.São
15 minutos a pé.Antes de sair,trancam a máquina de lavar
roupa na cozinha.Desde que a rua foi abandonada,saques
tornaram-se rotineiros.Se a tempestade vem na madruga-
da ou se cai granizo, a qualquer hora do dia, fogem com
Munay embrulhada num cobertor.
capítulo4
a casa 136
A primeira lição que Maximiliana Correia Carvalho
Mendonça, de 35 anos, aprendeu sobre as chuvas foi com
a mãe, Sônia de Fátima Carvalho, antes de completar 10
anos. Por ordem da mãe, Maxi deixava na porta de casa,
permanentemente, sua bicicleta e uma mala com uma
muda de roupa.Se chovesse forte,ela deveria usar a bicicleta
para fugir do temporal. Maxi nunca imaginou que a lição
voltaria a ser parte de sua vida.Naquele dia 17,ela estava em
casa comemorando seu aniversário de casamento.Preparou
um jantar especial na cozinha, revestida de azulejos de
pastilhas verdes e brancas.Às 22 horas,a luz acabou.A casa
de Maxi foi tomada pela água da chuva, represada na laje
em construção.Maxi pediu socorro à mãe.Os vizinhos,diz
ela,começaram a gritar que a terra cedia.Maxi encaminhou
todos para a casa da tia Maria José.Ela mesma não saiu em
busca de abrigo.Por ser estudante de enfermagem,pensou
que era seu dever ajudar no resgate de vizinhos soterrados
pela lama. Maxi coordenou a tentativa de resgate, que
durou toda a madrugada. O primeiro bombeiro chegou
ao Caminho por volta das 10 da manhã.
Essa é uma das lembranças que Maxi tem quando volta
para casa.Por isso,tem evitado ir ao sobrado que construía
com o marido, Marcio Machado Mendonça, de 35 anos.
Maxi diz ter comprado o terreno há seis anos. Conta que
pagou R$ 4 mil e que investiu R$ 60 mil na construção da
casa de três andares,ao lado do número 136,onde morava
sua avó.A escada íngreme dá acesso aos andares.O último,
onde ficariam os quartos,não foi finalizado.A sala,no 1o s
milhões de brasileiros viviam nessas áreas. A ocupação, a
falta de planejamento do Poder Público para habitação, o
desmatamento e as mudanças climáticas extremas aumen-
taram os riscos – e a quantidade de atingidos. Todo ano, o
resultado dessa conta toma as redes de notícias.Neste verão,
a tragédia chegou primeiro ao Espírito Santo e a Santa Ca-
tarina,depois se mudou para a Região Norte.No ano passa-
do, Petrópolis foi uma das cidades atingidas. No Caminho,
quemnãofugiudalamadecarrooudemotobuscouabrigo
na casa de Maria José.
capítulo3
a casa 151
SeMariaJosétivessedeixadoseular,osobrinho,Douglas
Carvalho Leal,de 28 anos,não teria onde morar com a mu-
lher,Lais da Costa Mattos,de 22,e a filha Munay,de 1 ano e
7 meses. O nome Munay, de origem indígena, foi escolhido
pela avó paterna, descendente de alemães. Significa amor
eterno. Na época da tragédia, Douglas construía uma casa
noterrenodamãe.Comoacasadeleeacasadamãedividiam
a mesma entrada,conta Douglas,a Defesa Civil fez um lau-
do, como se ali morasse uma única família. Por isso, a mãe
deDouglasrecebeuauxílioparaoaluguel,masDouglasnão.
“E por isso tenho de morar na rua?”,diz ele.O casal e a filha
vivem na casa 151, de quatro cômodos, numa espécie de 2o
andar da casa da tia. Os cobertores estão espalhados, bem
como peças de roupa.O casal dorme com a filha no quarto,
na mesma cama. Munay nunca quis dormir em berço.
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44 I época I 3 de março de 2014
casoextraordinário
andar, transmite a sensação de que alguém ainda vive ali.
Talvez pelo par de chinelos de Marcio em cima do tapete.
No sofá, está o quadro com uma foto do casamento, com
assinaturas de amigos e parentes. Na parede, um painel de
cortiça com imagens do casal.Ao lado,o calendário do ano
de 2013. A casa está lá, interditada pela prefeitura.
Maxi é uma entre as 1.536 famílias de Petrópolis que
dependem do aluguel social.Apesar de ter feito o cadastro
na Secretaria de Trabalho, Assistência Social e Cidadania
(Setrac), como as vizinhas Carla da Silva e Rosiane dos
Santos, cujas casas também foram interditadas, Maxi não
recebeu o benefício logo após a tragédia. Ela e outras
11 famílias precisaram recorrer à Defensoria Pública
do município. Para Maxi, a ajuda de custo chegou sete
meses depois. Os moradores dizem que o secretário
da Setrac, Jorge Maia, não queria conceder o aluguel
social. Contam que Maia visitou as casas interditadas e
garantiu que os moradores poderiam morar lá, porque
as estruturas eram boas. ÉPOCA tentou conversar
pessoalmente com ele. Maia desmarcou a entrevista, e
sua assessoria informou que ele responderia por e-mail.
Na resposta, disse apenas que a decisão sobre aluguel
social é de responsabilidade da Defesa Civil.
Maxi é uma mulher alta, loira, de pele morena do
sol. Está sempre maquiada, unhas feitas e o cabelo
impecável, cujos fios resistem, esvoaçantes, às altas
temperaturas fluminenses. Maxi formou-se como técnica
em enfermagem no mesmo mês em que recebeu o aluguel
social pela primeira vez. De março até outubro, diz ela,
acordava sem saber onde passaria a noite. Passou a viver
na casa de amigos e parentes. O estresse acumulado, nas
palavras de Maxi, marcou feito cicatriz.“Parece que você
nasce de novo para viver outra vida”, diz. Ela desenvolveu
estresse pós-traumático, e calombos pipocaram em seu
corpo. Se chovesse, entrava em pânico. O casamento,
fruto de um relacionamento de nove anos, balançou. Por
fim, Maxi não consegue engravidar. Desde dezembro de
2012, parou de se proteger. Os exames não mostraram
nenhum impedimento. A obstetra que a acompanha diz
que o trauma bloqueou a fertilidade, mas que um ano
tentando é normal. O fato de Maxi já ter 35 anos também
pode ser uma dificuldade. Para ela, a culpa é da tragédia.
capítulo5
a casa 165
O costureiro Edson Manuel dos Santos Silva,de 27 anos,
morava no Caminho, sozinho, havia quatro anos. Sua avó,
a caseira Maria do Carmo Santos, de 63, deu a casa, no
número 165, para ele morar. Edson imaginou que a maior
mudança em sua vida seria abandonar baladas e viagens
para receber o primeiro filho, Yam. Não foi bem assim.
Na noite do dia 17, Edson e sua mulher, grávida de sete
meses, fugiram da lama. Apenas o enxoval de Yam não se
perdeu. Os moradores do Caminho não sabiam, mas o
vida
improvisada
maximiliana
correia e o
marido, marcio
mendonça, da
casa 136. eles
ficaram sete
meses sem ter
onde morar
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3 de março de 2014 I época I 45
bairro Independência tem um dos cinco maiores índices
pluviométricos da cidade,segundo levantamento realizado
pela prefeitura em 2007. Há muito tempo a prefeitura
sabe do poder da chuva naquela área. Os moradores só
descobriram quando a lama desceu sobre suas vidas.
Agora, Edson vive na rua ao lado à de sua antiga casa,
interditada. Seu novo endereço é na Rua Caminho do
Príncipe,uma ladeira tão íngreme que exige de quem sobe
várias paradas para manter o fôlego. Edson mora no 2o
andar de um sobrado. Aparece na varanda carregando o
filho, com 7 meses. Por dentro, o imóvel é espaçoso, mas
conta pouco a história da família. Enquanto tenta fazer o
filho dormir – e ao mesmo tempo sintoniza uma rádio
de notícias –, Edson mostra os laudos da Defesa Civil.
Um, de março de 2013, em seu nome. O outro é de agosto
do mesmo ano. Edson diz que pediu um segundo laudo
para apressar o pagamento do aluguel social. Até hoje,
não foi beneficiado. Ganha R$ 870 líquidos e paga R$ 400
no aluguel. Sua mulher está desempregada. Sobrevivem
com a ajuda da avó dele, Maria do Carmo, que cuida das
despesas com o bebê, e da sogra dele, que paga algumas
das contas do mês. A assessoria da Secretaria de Trabalho,
Asssitência Social e Cidadania de Petrópolis, responsável
pelo pagamento do aluguel social, disse a ÉPOCA que
Edson não procurou ajuda depois da tragédia, mas que a
Secretaria o procuraria.
capítulo6
a casa 120
Um visitante desavisado pode imaginar que o terreno
baldio no Caminho sempre foi apenas um terreno baldio.
O mato crescido esconde pedaços de concreto. Quem faz
a visita guiada por um morador antigo descobre a pior
tragédia que alcançou a rua. No abismo, do outro lado,
notam-se potes de mantimentos, brinquedos e até partes
de móveis. Sinais de que já houve vida ali. Elsa Santos
Oliveira, de 43 anos, pouco sabe sobre a brutalidade da
terra e da chuva que acabou com sua casa e sua família.
No dia 17 de março, Elsa não estava em casa. Os celulares,
afirmam os moradores, também não funcionaram por
falta de sinal.Elsa descobriu,no dia 18,que a sua foi a única
casa completamente destruída na rua. O sobrado, com
duas lajes, foi empurrado pela barreira de lama. Se fosse
apenas isso, diz ela, conseguiria ir em frente. Foi muito
pior. Ela participou de oito velórios em 15 dias. “Deitei
com uma referência de vida e acordei sem ter ninguém”,
diz Elsa. Na casa em que ela não estava, moravam filhos
e netos. No andar de baixo, ela vivia com os filhos mais
novos, Diego e Jéssica. No 2o piso, como é costume em
construções desse tipo, moravam o filho mais velho,
Rodrigo, a mulher dele, Drucelaine, e os filhos Rodrigo
Junior e João Vitor, de 4 e 2 anos. Os vizinhos contam
que a família de Elsa não fugiu, porque considerava a
casa segura.Lembram também que Rodrigo,parcialmente
soterrado, pediu ajuda e deu a localização exata de cada
um na casa. As crianças dormiam no sofá, e a mulher
dele estava prensada, contra a geladeira, com dificuldade
para respirar. Os irmãos estavam acompanhados dos
respectivos namorados.Foram achados perto da porta,diz
uma moradora – um sinal de que tentavam fugir quando
a casa desabou. Drucelaine e Rodrigo foram resgatados
no dia 18. Drucelaine morreu três dias depois, quando os
corpos de seus filhos foram encontrados. Rodrigo resistiu
por duas semanas. Elsa afirma que pediu a uma amiga da
filha caçula que imprimisse fotos de cada um dos mortos.
Colou-as em cima de cada caixão lacrado.
Quem a conheceu fala de uma Elsa que não existe
mais. A morte da família arrancou-lhe a vaidade, a
capacidade de dormir e acordar sem remédios e até um
pouco da fé. Na época do desastre, a prefeitura ofereceu
atendimento psicológico. Elsa não gostou do tratamento.
“Os profissionais não estavam preparados para lidar com
situações extremas.” Uma psicóloga ofereceu tratamento
gratuito, que ela faz até hoje. Elsa diz que não é justo
que só ela tenha sobrevivido. “Eu tinha de estar lá”, diz.
Na mão direita, leva o anel de namoro que a filha usava.
Desempregada, tenta conseguir no Instituto Nacional
do Seguro Social (INSS) a pensão do filho Diego, que
ela diz que trabalhava com carteira assinada. Conseguiu
quatro testemunhas, fez uma carta de próprio punho
contando tudo o que lhe foi tirado, mas o INSS pede
outros documentos que a lama levou. s
sonho alagado
a cabeleireira rosa
maria soares
(de blusa preta), da casa
126. o novo salão não
comporta suas clientes
Fotos: Ana Carolina Fernandes/ÉPOCA
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46 I época I 3 de março de 2014
casoextraordinário
O prefeito de Petrópolis, Rubens Bomtempo, do PSB,
comanda a cidade pela terceira vez. Ele fora barrado pela
Lei da Ficha Limpa. Por causa de uma liminar do Tribunal
Superior Eleitoral, em 2012, Bomtempo pôde concorrer
– ainda que suas contas na administração da prefeitura
de 2001 e 2008 tivessem sido rejeitadas pelo Tribunal de
Contas do Estado. Nesta terceira gestão, transformou a
Coordenadoria da Defesa Civil em Secretaria, para dar
mais autonomia à Pasta. A Defesa Civil é fundamental
para os municípios lidarem com os desastres naturais. Em
menos da metade dos municípios, a Defesa é organizada.
No ano passado,ela formou 400 voluntários em Petrópolis
para atuar nos primeiros instantes da tragédia ou até o
socorro chegar. Se o treinamento tivesse chegado aos
moradores do Caminho, talvez a história de Elsa tivesse
outro final.
capítulo7
a casa 126
O futuro tem um sabor amargo para a cabeleireira e
manicure Rosa Maria Afonso Soares, de 45 anos. Rosa é
batalhadora. Fala das agruras da vida enquanto faz mãos
e pés de uma cliente. Saiu de Paraíba do Sul, uma cidade
pequena da região serrana, para construir família e car-
reira em Petrópolis. Em fevereiro de 2013, realizou o so-
nho de ter o próprio salão de beleza, depois de oito anos
colocando cada pedrinha na parede,como ela diz.O salão,
segundo Rosa, tinha capacidade para 20 atendimentos
simultâneos. Oferecia depilação e cuidados para noivas e
madrinhas. Lá, trabalhava junto do marido, Rogério, de
49 anos, e da filha do meio, Tainara, de 20.Ainda faltavam
piso e tinta nas paredes. Rosa diz que conseguia almoçar
e jantar em casa, além de poupar o dinheiro do aluguel
do antigo salão, onde os três trabalhavam juntos. Sem
tristeza no olhar, ela conta como a chuva de março de
2013 acabou com seus sonhos.
Naquele fim de domingo, com a lama entrando pelas
frestas da casa do número 126, Rosa, aos berros, pediu
que todos corressem quanto pudessem. Sua mãe, que se
recuperava de uma cirurgia em casa, foi carregada nas
costas do namorado de uma das filhas e levada, de moto,
para longe da lama. A família de Rosa buscou abrigo na
casa de Maria José. Quando foram resgatados pelos bom-
beiros, Rosa descobriu que os amigos do bairro pensa-
ram que ela e a família tivessem morrido. Rosa soube
ainda que a família de Elsa, sua vizinha, cujos netos en-
traram na casa de Rosa na manhã do dia 17, comemo-
rando por ter comprado biscoitos recheados, estava
destruída. Rosa diz que ficou boba, que perdeu a noção
de tempo por uma semana. Depois, mesmo sob efeito
do trauma, teve de voltar a trabalhar. Começou atenden-
do na casa das pessoas. Diz que teve vontade de aban-
donar seu passado e construir uma nova história em
outro lugar. Mas e as filhas, que construíam família no
bairro? E a mãe, que precisava de cuidados especiais? E
os vizinhos e amigos, que ela considera da família? E a
clientela que conquistara nestes anos? Rosa não podia
perder tudo isso. Ficou.
Ainda hoje, ela não sabe nem de quem são as roupas
que usa. Da casa dela, no Caminho, pouco sobrou.“Nem
lembro por quanto tempo fiquei andando com saco de
roupa para cima e para baixo. Não quero mais saco na
minha vida”, diz ela. As filhas mais velhas, Tainara e Ta-
tiana, de 25 anos, planejavam casar no mesmo dia, em 12
de outubro de 2013, para dividir os custos da igreja. Dian-
te da nova situação financeira da família, Tainara desistiu.
Rosa mudou para uma casa menor. O aluguel social de
R$ 500 não paga todo o valor do aluguel, de R$ 550.
O novo salão onde Rosa atende é minúsculo. Nele cabem
seis pessoas, contando ela e Tainara. O marido, também
cabeleireiro, teve de arrumar outro espaço. Além dos R$
250 com aluguel, Rosa agora gasta com almoço e jantar.
Ela diz que o faturamento caiu, porque as clientes não
têm mais onde esperar e porque não há espaço para
fazer depilação. Rosa abre o salão às 7 horas e fecha às
22 horas, de quarta-feira a sábado. Na segunda e na terça-
-feira, atende em domicílio. Ela não acredita mais que
conseguirá ter casa própria novamente. O secretário de
Defesa do Município, Simão, diz que dar moradias para
todos os desabrigados ou moradores de área de risco é
impossível. Como os moradores do Caminho do Impe-
rador, outras 16 mil famílias vivem em área de risco em
Petrópolis, à espera. u
sozinha
elsa santos
oliveira, da
casa 120.
ela perdeu a
família toda
na tragédia
Foto: Ana Carolina Fernandes/ÉPOCA
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CHUVA,

  • 1. casoextraordinário capítulo1 a rua deserta Rua Caminho do Imperador é um dos mui- tos endereços em Petrópolis,cidade da região serrana do Rio de Janeiro,que homenageiam a família real. Ali os monarcas fizeram sua residência de veraneio.“Petrópolis é o lugar da Terra que talvez melhor mereça,do que qualquer outro, ser intitulada de paraíso terrestre”, escreveu o francês Carlos Augusto Taunay, que chegou ao Rio com 20 e pou- cos anos, em 1816, e fez-se um dos nomes da história da cidade.Contam os moradores que o Caminho era parte do trajeto de Dom Pedro II até um poço, onde se banhava. O local foi também a escolha de uma dezena de famílias para ser seu caminho de casa.As primeiras chegaram ao Cami- nho há 30 anos. A beleza do cenário com que depararam era muito parecida à que fora encontrada pela realeza, e que ainda pode ser admirada nos quadros do Museu Imperial,no centro da cidade.De um lado,encostas íngre- mes. Do outro, abismo. A rua era só um caminho estreito de terra cortando a Mata Atlântica. Com o tempo e os moradores, a via ganhou cascalho, sacos de areia e s Thais Lazzeri, de Petrópolis (RJ) depois da chuva A história de uma rua fantasma em Petrópolis, no Estado do Rio, resume o drama dos brasileiros que vivem em áreas de risco: para onde ir depois de uma tragédia? a casoextraordinário 40 I época I 3 de março de 2014 EP822p040_046.indd 40 26/02/2014 23:06:34
  • 2. sem destino maria José carvalho (de rosa) e sua família, da casa 150. apesar das mortes, eles permanecem na rua Foto: Ana Carolina Fernandes/ÉPOCA EP822p040_046.indd 41 26/02/2014 23:06:37
  • 3. 42 I época I 3 de março de 2014 casoextraordinário terra para conter a erosão.O asfalto nunca chegou.Do alto do morro, os moradores viam Niterói pegar no sono e ouviam o canto dos pássaros ser encoberto pela algazarra das cigarras. Depois de um tromba-d’água, em 17 de mar- ço de 2013, o Caminho do Imperador deixou de ser cami- nho para a maioria dos moradores.Na tragédia que alcan- çou a rua, oito pessoas morreram. Restaram no Caminho duas famílias, uma senhora com problemas psiquiátricos (que recolhe lixo para decorar a própria casa) e uma porção de casas interditadas pela Defesa Civil. A primeira casa da rua não deixa ninguém esquecer o mar de lama que desceu a encosta e invadiu a vida das pessoas naquele domingo à noite. Do que já foi um quarto, restou parte das paredes.A lama abriu um buraco no 2o andar do sobrado. Na janela, permanece debruçado o colchão envolto numa colcha cor- de-rosa. Logo após o almoço, com o sol no alto, o cheiro de urina invade a rua.As casas destruídas pelo barro,dizem os moradores,tornaram-se ponto de uso de drogas.À noi- te, o abandono é acentuado pelos poucos postes que emi- tem luz. Hoje, a rua é chamada de cemitério. capítulo2 a casa 150 Das muitas afirmações que se fazem sobre Maria José Carvalho, uma, por certo, é mentira. Ela não é teimosa. Ganhou essa fama por não arredar do Caminho. Ela sente que não tem alternativa. Não é a casa que Maria José não quer deixar para trás. É a história de uma vida inteira. É a lembrança de sua mãe,que ficava na janela todas as manhãs e a quem pedia bênção antes de ir trabalhar. São as irmãs, com quem dividia o dia a dia.Um ditado comum na região é:“O mato cresce,o povo esquece”.Maria José faz a memó- ria da rua resistir em meio à solidão que calou o Caminho. A casa dela é uma das últimas da rua,no número 150,numa das muitas esquinas que contornam um morro do bairro Independência.Acompanhada do marido,do filho e de um afilhado, Maria José ali permaneceu. Deu abrigo a um so- brinho,que vive de favor numa casa anexa a sua.Ela passou sem luz os três primeiros meses após a chuva. Teve de pu- lar a lama e o poste caído,que interrompeu a energia.Com- prava gelo para acomodar o que a geladeira não podia resfriar. A casa dela foi interditada pela Defesa Civil – o imóvel anexo ao seu, não. Se tivesse saído, talvez hoje rece- besse o aluguel social, uma ajuda de custo de R$ 500. O aluguel social é destinado a famílias removidas de áreas de risco ou desabrigadas, cuja renda familiar total não ultra- passe cinco salários mínimos. No país, há 15 localidades (entre municípios e Estados) beneficiadas. Maria José diz que o problema não é apenas que os R$ 500 sejam insufi- cientes para alugar uma casa como a dela,com três quartos, sala,cozinha,banheiro e uma varanda.“Isto aqui é meu.Se eu quiser pôr um prego na parede, posso. Sairia daqui se pudesse comprar uma casa para mim.(A prefeitura) deixou eu morar aqui por 30 anos e agora vem dizer que não pode?” rua fantasma o que sobrou das casas do caminho do imperador. interditadas em 2013, se tornaram ponto de drogas Nodia17demarçode2013,MariaJosécomemoroucom umdiadeantecedênciaseuaniversário.Ofereceuotradicio- nal churrasco na laje aos mais chegados – e são muitos os chegadosdeTiaZé,comoéconhecida.Naqueledia,elacon- tou que a chuva começou a cair com o avanço da tarde.Pio- roucomofimdaluzdodia.Aocontráriodealgunsvizinhos, quediziamobservaromorroparanãosersurpreendidospor deslizamentos,Maria José dormiu.O barulho da chuva for- te se misturava ao som distante da sirene instalada pela De- fesa Civil no bairro Independência em 2011, depois da tra- gédia que vitimou mais de 900 pessoas na região serrana. Quando a sirene toca, as pessoas devem se dirigir para o abrigo mais próximo. Os moradores do Caminho contam que não saíram de casa porque não sabiam que ali era uma área de risco. Todos repetem a mesma versão da história: nunca ninguém da prefeitura ou da Defesa Civil informou que o local oferecia risco. O secretário de Proteção e Defesa Civil, Rafael Simão, diz que a prefeitura colocará, neste ano, mapas nos bairros da cidade que ilustram as áreas de risco. As construções do Caminho, como em tantos locais do país, não têm autorização da prefeitura. Surgiram com o formigueiro que costuma reger urbanização do Brasil. A mudança do campo para a cidade aconteceu com tamanha velocidade a partir da década de 1940,que as pessoas foram construindo moradias onde podiam. Famílias como a de Maria José alcançaram as encostas ou as beiras de rios – im- próprias para habitação, pelos riscos de desastres naturais. Hoje,contam-se no Brasil 500 áreas de risco de deslizamen- to e 300 de inundações.Em 2011,o governo divulgou que 5 Foto: Ana Carolina Fernandes/ÉPOCA EP822p040_046.indd 42 26/02/2014 23:06:45
  • 4. 3 de março de 2014 I época I 43 O último trabalho de Douglas, que abandonou a escola depois do ensino médio, foi como caseiro. Talvez por isso, ele diga que vai roçar com a naturalidade que jovens da mesma idade falam em baladas. Laís estudou até o 6o ano e também está desempregada. Douglas é veterano das en- chentes. Foi salvo de um deslizamento por um vizinho em 1988, quando tudo o que sobrou da casa onde vivia foram os pais. No dia da tragédia no Caminho, ele teve sorte, de novo.A família e ele não estavam em casa. Douglas voltou para resgatar a irmã, isolada com outros moradores pelo barro que tomava a rua.Hoje,Douglas tenta salvar Munay das águas. Eles se cadastraram no site da Defesa Civil para receber mensagens, no celular, de alertas contra chuvas. Criar um sistema de alerta contra desastres naturais é um compromisso recente dos governos, em todas as esferas. Douglas diz que,se a mensagem chega,ou se ele e a mulher acreditam que vai chover, pegam a filha, uma mala com algumas peças de roupas e vão para a casa da mãe dele.São 15 minutos a pé.Antes de sair,trancam a máquina de lavar roupa na cozinha.Desde que a rua foi abandonada,saques tornaram-se rotineiros.Se a tempestade vem na madruga- da ou se cai granizo, a qualquer hora do dia, fogem com Munay embrulhada num cobertor. capítulo4 a casa 136 A primeira lição que Maximiliana Correia Carvalho Mendonça, de 35 anos, aprendeu sobre as chuvas foi com a mãe, Sônia de Fátima Carvalho, antes de completar 10 anos. Por ordem da mãe, Maxi deixava na porta de casa, permanentemente, sua bicicleta e uma mala com uma muda de roupa.Se chovesse forte,ela deveria usar a bicicleta para fugir do temporal. Maxi nunca imaginou que a lição voltaria a ser parte de sua vida.Naquele dia 17,ela estava em casa comemorando seu aniversário de casamento.Preparou um jantar especial na cozinha, revestida de azulejos de pastilhas verdes e brancas.Às 22 horas,a luz acabou.A casa de Maxi foi tomada pela água da chuva, represada na laje em construção.Maxi pediu socorro à mãe.Os vizinhos,diz ela,começaram a gritar que a terra cedia.Maxi encaminhou todos para a casa da tia Maria José.Ela mesma não saiu em busca de abrigo.Por ser estudante de enfermagem,pensou que era seu dever ajudar no resgate de vizinhos soterrados pela lama. Maxi coordenou a tentativa de resgate, que durou toda a madrugada. O primeiro bombeiro chegou ao Caminho por volta das 10 da manhã. Essa é uma das lembranças que Maxi tem quando volta para casa.Por isso,tem evitado ir ao sobrado que construía com o marido, Marcio Machado Mendonça, de 35 anos. Maxi diz ter comprado o terreno há seis anos. Conta que pagou R$ 4 mil e que investiu R$ 60 mil na construção da casa de três andares,ao lado do número 136,onde morava sua avó.A escada íngreme dá acesso aos andares.O último, onde ficariam os quartos,não foi finalizado.A sala,no 1o s milhões de brasileiros viviam nessas áreas. A ocupação, a falta de planejamento do Poder Público para habitação, o desmatamento e as mudanças climáticas extremas aumen- taram os riscos – e a quantidade de atingidos. Todo ano, o resultado dessa conta toma as redes de notícias.Neste verão, a tragédia chegou primeiro ao Espírito Santo e a Santa Ca- tarina,depois se mudou para a Região Norte.No ano passa- do, Petrópolis foi uma das cidades atingidas. No Caminho, quemnãofugiudalamadecarrooudemotobuscouabrigo na casa de Maria José. capítulo3 a casa 151 SeMariaJosétivessedeixadoseular,osobrinho,Douglas Carvalho Leal,de 28 anos,não teria onde morar com a mu- lher,Lais da Costa Mattos,de 22,e a filha Munay,de 1 ano e 7 meses. O nome Munay, de origem indígena, foi escolhido pela avó paterna, descendente de alemães. Significa amor eterno. Na época da tragédia, Douglas construía uma casa noterrenodamãe.Comoacasadeleeacasadamãedividiam a mesma entrada,conta Douglas,a Defesa Civil fez um lau- do, como se ali morasse uma única família. Por isso, a mãe deDouglasrecebeuauxílioparaoaluguel,masDouglasnão. “E por isso tenho de morar na rua?”,diz ele.O casal e a filha vivem na casa 151, de quatro cômodos, numa espécie de 2o andar da casa da tia. Os cobertores estão espalhados, bem como peças de roupa.O casal dorme com a filha no quarto, na mesma cama. Munay nunca quis dormir em berço. EP822p040_046.indd 43 26/02/2014 23:06:46
  • 5. 44 I época I 3 de março de 2014 casoextraordinário andar, transmite a sensação de que alguém ainda vive ali. Talvez pelo par de chinelos de Marcio em cima do tapete. No sofá, está o quadro com uma foto do casamento, com assinaturas de amigos e parentes. Na parede, um painel de cortiça com imagens do casal.Ao lado,o calendário do ano de 2013. A casa está lá, interditada pela prefeitura. Maxi é uma entre as 1.536 famílias de Petrópolis que dependem do aluguel social.Apesar de ter feito o cadastro na Secretaria de Trabalho, Assistência Social e Cidadania (Setrac), como as vizinhas Carla da Silva e Rosiane dos Santos, cujas casas também foram interditadas, Maxi não recebeu o benefício logo após a tragédia. Ela e outras 11 famílias precisaram recorrer à Defensoria Pública do município. Para Maxi, a ajuda de custo chegou sete meses depois. Os moradores dizem que o secretário da Setrac, Jorge Maia, não queria conceder o aluguel social. Contam que Maia visitou as casas interditadas e garantiu que os moradores poderiam morar lá, porque as estruturas eram boas. ÉPOCA tentou conversar pessoalmente com ele. Maia desmarcou a entrevista, e sua assessoria informou que ele responderia por e-mail. Na resposta, disse apenas que a decisão sobre aluguel social é de responsabilidade da Defesa Civil. Maxi é uma mulher alta, loira, de pele morena do sol. Está sempre maquiada, unhas feitas e o cabelo impecável, cujos fios resistem, esvoaçantes, às altas temperaturas fluminenses. Maxi formou-se como técnica em enfermagem no mesmo mês em que recebeu o aluguel social pela primeira vez. De março até outubro, diz ela, acordava sem saber onde passaria a noite. Passou a viver na casa de amigos e parentes. O estresse acumulado, nas palavras de Maxi, marcou feito cicatriz.“Parece que você nasce de novo para viver outra vida”, diz. Ela desenvolveu estresse pós-traumático, e calombos pipocaram em seu corpo. Se chovesse, entrava em pânico. O casamento, fruto de um relacionamento de nove anos, balançou. Por fim, Maxi não consegue engravidar. Desde dezembro de 2012, parou de se proteger. Os exames não mostraram nenhum impedimento. A obstetra que a acompanha diz que o trauma bloqueou a fertilidade, mas que um ano tentando é normal. O fato de Maxi já ter 35 anos também pode ser uma dificuldade. Para ela, a culpa é da tragédia. capítulo5 a casa 165 O costureiro Edson Manuel dos Santos Silva,de 27 anos, morava no Caminho, sozinho, havia quatro anos. Sua avó, a caseira Maria do Carmo Santos, de 63, deu a casa, no número 165, para ele morar. Edson imaginou que a maior mudança em sua vida seria abandonar baladas e viagens para receber o primeiro filho, Yam. Não foi bem assim. Na noite do dia 17, Edson e sua mulher, grávida de sete meses, fugiram da lama. Apenas o enxoval de Yam não se perdeu. Os moradores do Caminho não sabiam, mas o vida improvisada maximiliana correia e o marido, marcio mendonça, da casa 136. eles ficaram sete meses sem ter onde morar EP822p040_046.indd 44 26/02/2014 23:06:55
  • 6. 3 de março de 2014 I época I 45 bairro Independência tem um dos cinco maiores índices pluviométricos da cidade,segundo levantamento realizado pela prefeitura em 2007. Há muito tempo a prefeitura sabe do poder da chuva naquela área. Os moradores só descobriram quando a lama desceu sobre suas vidas. Agora, Edson vive na rua ao lado à de sua antiga casa, interditada. Seu novo endereço é na Rua Caminho do Príncipe,uma ladeira tão íngreme que exige de quem sobe várias paradas para manter o fôlego. Edson mora no 2o andar de um sobrado. Aparece na varanda carregando o filho, com 7 meses. Por dentro, o imóvel é espaçoso, mas conta pouco a história da família. Enquanto tenta fazer o filho dormir – e ao mesmo tempo sintoniza uma rádio de notícias –, Edson mostra os laudos da Defesa Civil. Um, de março de 2013, em seu nome. O outro é de agosto do mesmo ano. Edson diz que pediu um segundo laudo para apressar o pagamento do aluguel social. Até hoje, não foi beneficiado. Ganha R$ 870 líquidos e paga R$ 400 no aluguel. Sua mulher está desempregada. Sobrevivem com a ajuda da avó dele, Maria do Carmo, que cuida das despesas com o bebê, e da sogra dele, que paga algumas das contas do mês. A assessoria da Secretaria de Trabalho, Asssitência Social e Cidadania de Petrópolis, responsável pelo pagamento do aluguel social, disse a ÉPOCA que Edson não procurou ajuda depois da tragédia, mas que a Secretaria o procuraria. capítulo6 a casa 120 Um visitante desavisado pode imaginar que o terreno baldio no Caminho sempre foi apenas um terreno baldio. O mato crescido esconde pedaços de concreto. Quem faz a visita guiada por um morador antigo descobre a pior tragédia que alcançou a rua. No abismo, do outro lado, notam-se potes de mantimentos, brinquedos e até partes de móveis. Sinais de que já houve vida ali. Elsa Santos Oliveira, de 43 anos, pouco sabe sobre a brutalidade da terra e da chuva que acabou com sua casa e sua família. No dia 17 de março, Elsa não estava em casa. Os celulares, afirmam os moradores, também não funcionaram por falta de sinal.Elsa descobriu,no dia 18,que a sua foi a única casa completamente destruída na rua. O sobrado, com duas lajes, foi empurrado pela barreira de lama. Se fosse apenas isso, diz ela, conseguiria ir em frente. Foi muito pior. Ela participou de oito velórios em 15 dias. “Deitei com uma referência de vida e acordei sem ter ninguém”, diz Elsa. Na casa em que ela não estava, moravam filhos e netos. No andar de baixo, ela vivia com os filhos mais novos, Diego e Jéssica. No 2o piso, como é costume em construções desse tipo, moravam o filho mais velho, Rodrigo, a mulher dele, Drucelaine, e os filhos Rodrigo Junior e João Vitor, de 4 e 2 anos. Os vizinhos contam que a família de Elsa não fugiu, porque considerava a casa segura.Lembram também que Rodrigo,parcialmente soterrado, pediu ajuda e deu a localização exata de cada um na casa. As crianças dormiam no sofá, e a mulher dele estava prensada, contra a geladeira, com dificuldade para respirar. Os irmãos estavam acompanhados dos respectivos namorados.Foram achados perto da porta,diz uma moradora – um sinal de que tentavam fugir quando a casa desabou. Drucelaine e Rodrigo foram resgatados no dia 18. Drucelaine morreu três dias depois, quando os corpos de seus filhos foram encontrados. Rodrigo resistiu por duas semanas. Elsa afirma que pediu a uma amiga da filha caçula que imprimisse fotos de cada um dos mortos. Colou-as em cima de cada caixão lacrado. Quem a conheceu fala de uma Elsa que não existe mais. A morte da família arrancou-lhe a vaidade, a capacidade de dormir e acordar sem remédios e até um pouco da fé. Na época do desastre, a prefeitura ofereceu atendimento psicológico. Elsa não gostou do tratamento. “Os profissionais não estavam preparados para lidar com situações extremas.” Uma psicóloga ofereceu tratamento gratuito, que ela faz até hoje. Elsa diz que não é justo que só ela tenha sobrevivido. “Eu tinha de estar lá”, diz. Na mão direita, leva o anel de namoro que a filha usava. Desempregada, tenta conseguir no Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) a pensão do filho Diego, que ela diz que trabalhava com carteira assinada. Conseguiu quatro testemunhas, fez uma carta de próprio punho contando tudo o que lhe foi tirado, mas o INSS pede outros documentos que a lama levou. s sonho alagado a cabeleireira rosa maria soares (de blusa preta), da casa 126. o novo salão não comporta suas clientes Fotos: Ana Carolina Fernandes/ÉPOCA EP822p040_046.indd 45 26/02/2014 23:06:56
  • 7. 46 I época I 3 de março de 2014 casoextraordinário O prefeito de Petrópolis, Rubens Bomtempo, do PSB, comanda a cidade pela terceira vez. Ele fora barrado pela Lei da Ficha Limpa. Por causa de uma liminar do Tribunal Superior Eleitoral, em 2012, Bomtempo pôde concorrer – ainda que suas contas na administração da prefeitura de 2001 e 2008 tivessem sido rejeitadas pelo Tribunal de Contas do Estado. Nesta terceira gestão, transformou a Coordenadoria da Defesa Civil em Secretaria, para dar mais autonomia à Pasta. A Defesa Civil é fundamental para os municípios lidarem com os desastres naturais. Em menos da metade dos municípios, a Defesa é organizada. No ano passado,ela formou 400 voluntários em Petrópolis para atuar nos primeiros instantes da tragédia ou até o socorro chegar. Se o treinamento tivesse chegado aos moradores do Caminho, talvez a história de Elsa tivesse outro final. capítulo7 a casa 126 O futuro tem um sabor amargo para a cabeleireira e manicure Rosa Maria Afonso Soares, de 45 anos. Rosa é batalhadora. Fala das agruras da vida enquanto faz mãos e pés de uma cliente. Saiu de Paraíba do Sul, uma cidade pequena da região serrana, para construir família e car- reira em Petrópolis. Em fevereiro de 2013, realizou o so- nho de ter o próprio salão de beleza, depois de oito anos colocando cada pedrinha na parede,como ela diz.O salão, segundo Rosa, tinha capacidade para 20 atendimentos simultâneos. Oferecia depilação e cuidados para noivas e madrinhas. Lá, trabalhava junto do marido, Rogério, de 49 anos, e da filha do meio, Tainara, de 20.Ainda faltavam piso e tinta nas paredes. Rosa diz que conseguia almoçar e jantar em casa, além de poupar o dinheiro do aluguel do antigo salão, onde os três trabalhavam juntos. Sem tristeza no olhar, ela conta como a chuva de março de 2013 acabou com seus sonhos. Naquele fim de domingo, com a lama entrando pelas frestas da casa do número 126, Rosa, aos berros, pediu que todos corressem quanto pudessem. Sua mãe, que se recuperava de uma cirurgia em casa, foi carregada nas costas do namorado de uma das filhas e levada, de moto, para longe da lama. A família de Rosa buscou abrigo na casa de Maria José. Quando foram resgatados pelos bom- beiros, Rosa descobriu que os amigos do bairro pensa- ram que ela e a família tivessem morrido. Rosa soube ainda que a família de Elsa, sua vizinha, cujos netos en- traram na casa de Rosa na manhã do dia 17, comemo- rando por ter comprado biscoitos recheados, estava destruída. Rosa diz que ficou boba, que perdeu a noção de tempo por uma semana. Depois, mesmo sob efeito do trauma, teve de voltar a trabalhar. Começou atenden- do na casa das pessoas. Diz que teve vontade de aban- donar seu passado e construir uma nova história em outro lugar. Mas e as filhas, que construíam família no bairro? E a mãe, que precisava de cuidados especiais? E os vizinhos e amigos, que ela considera da família? E a clientela que conquistara nestes anos? Rosa não podia perder tudo isso. Ficou. Ainda hoje, ela não sabe nem de quem são as roupas que usa. Da casa dela, no Caminho, pouco sobrou.“Nem lembro por quanto tempo fiquei andando com saco de roupa para cima e para baixo. Não quero mais saco na minha vida”, diz ela. As filhas mais velhas, Tainara e Ta- tiana, de 25 anos, planejavam casar no mesmo dia, em 12 de outubro de 2013, para dividir os custos da igreja. Dian- te da nova situação financeira da família, Tainara desistiu. Rosa mudou para uma casa menor. O aluguel social de R$ 500 não paga todo o valor do aluguel, de R$ 550. O novo salão onde Rosa atende é minúsculo. Nele cabem seis pessoas, contando ela e Tainara. O marido, também cabeleireiro, teve de arrumar outro espaço. Além dos R$ 250 com aluguel, Rosa agora gasta com almoço e jantar. Ela diz que o faturamento caiu, porque as clientes não têm mais onde esperar e porque não há espaço para fazer depilação. Rosa abre o salão às 7 horas e fecha às 22 horas, de quarta-feira a sábado. Na segunda e na terça- -feira, atende em domicílio. Ela não acredita mais que conseguirá ter casa própria novamente. O secretário de Defesa do Município, Simão, diz que dar moradias para todos os desabrigados ou moradores de área de risco é impossível. Como os moradores do Caminho do Impe- rador, outras 16 mil famílias vivem em área de risco em Petrópolis, à espera. u sozinha elsa santos oliveira, da casa 120. ela perdeu a família toda na tragédia Foto: Ana Carolina Fernandes/ÉPOCA EP822p040_046.indd 46 26/02/2014 23:07:04