1. ANAIS
IX Congresso Internacional de História
“História da América em debate: fronteiras, ensino e
ecologia”
Universidade Estadual de Maringá
UEM
Maringá – 2019
2. Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP)
(Biblioteca Central - UEM, Maringá – PR., Brasil)
Congresso Internacional de História (9. : 2019 out.
07-09 : Maringá, PR)
C749a Anais do 9º Congresso Internacional de História : “História
da América em debate: fronteiras, ensino e ecologia”/
organizador Luiz Felipe Viel Moreira. –- Maringá, PR: UEM/DHI,
2019.
Disponível em: <https://npd.uem.br/eventos/ev/IXCIH>
ISSN 2575-6910 (impresso)
ISSN 2175-6627 (CD-ROM)
ISSN 2175-4446 (on-line)
1. História - Congresso. 2. Historiografia – Congresso. 3.
Fronteiras – Congresso. 4. América – Congresso. 5. Idade Média –
Congresso. I. Moreira, Luiz Felipe Viel, org. II. Universidade
Estadual de Maringá. Departamento de História. III. Título: 9º
Congresso Internacional de História : 7-9 de outubro de 2019.
IV. Título: História da América em debate: fronteiras, ensino e
ecologia.
CDD 23.ed. 900
Márcia Regina Paiva de Brito – CRB-9/1267
3. APRESENTAÇÃO
Entre os dias 07 e 09 de outubro de 2019 tivemos o nosso IX Congresso Internacional de História -
“História da América em debate: fronteiras, ensino e ecologia”. Como resultado do mesmo
publicamos agora os Anais do evento, fruto das atividades que transcorreram em 41 (quarenta e um)
simpósios temáticos, ao longo das três tardes. Para constar, a programação geral do congresso foi a
que segue:
07 de outubro (segunda-feira)
Manhã: Credenciamento – 10 horas Palestra com o Prof. Dr. Márcio Ronaldo Santos Fernandes
(Unicentro – Secretário Geral ICA 2021): “A América e suas fronteiras: múltiplas vozes, múltiplos
encontros”
Noite: Palestra de abertura. Prof. Dr. Héctor Perez Brignoli (Universidad de Costa Rica – Costa
Rica): “Historia Global de America Latina”
08 de outubro (terça-feira)
Manhã: Mesa Redonda: História Ambiental Americana
-Prof. Dr. Anthony Goebel MacDermott (Universidad de Costa Rica – Costa Rica): “Ecosistemas
forestales y regímenes ambientales. Hacia una historia ambiental de Centroamérica en perspectiva
global: la explotación forestal como estúdio de caso, siglos XVIII al XX”
-Profa. Dra. Lise Sedrez (UFRJ): “Natureza urbana: um prazer e um desafio para os historiadores
ambientais”
-Prof. Dr. Gilmar Arruda (UEL): “Desafios políticos da história ambiental na era da devastação”
-Eng. Agr. João Berdu Garcia Jr.: “O Vale da Seda na Bacia Hidrográfica do Rio Pirapó: crédito de
carbono, sustentabilidade e impacto ambiental”
Noite: Mesa Redonda: Ensino de História na América Latina
-Profa. Pesquisadora Ana Montserrat Barreto Valinotti (Universidad del Norte – Paraguai): “¿Y
donde están las mujeres? Avances y desafios para enseñar una historia con perspectiva de género en
el Paraguay”
-Prof. Dr. Fernando Cerri (UEPG): “Desafios do Ensino de História para os jovens da era da pós-
verdade”
-Profa. Dra. Isabel Cristina Rodrigues (UEM): “O Ensino de História Indígena no Brasil na
Educação Básica”
09 de outubro (quarta-feira)
Manhã: Mesa Redonda: Fronteiras e História na América Latina
-Prof. Dr. Ronald Soto-Quirós (Université de Bordeaux Montaigne – França): “Cerrando fronteras
en América Central: biopolítica y migración (fines del siglo XIX – 1940)”
-Prof. Dr. Micael Alvino Silva (Unila): “As relações internacionais e a tríplice fronteira Brasil –
Argentina – Paraguai)”
-Prof. Dr. Lúcio Tadeu Mota (UEM): “Fronteiras étnicas no Guairá Colonial”
Noite: Palestra de encerramento: “O estudo da História da América no Paraguai e na França”: Profa.
Pesquisadora Ana Montserrat Barreto Valinotti (Universidad del Norte – Paraguai) e Prof. Dr.
Ronald Soto-Quirós (Université de Bordeaux Montaigne – França).
4. COORDENAÇÃO GERAL
Luiz Felipe Viel Moreira
VICE-COORDENAÇÃO
Isabel Cristina Rodrigues
SECRETARIA GERAL
Igor Marconi
COMISSÃO ORGANIZADORA
Solange Ramos de Andrade
Márcia Elisa Teté Ramos
Hudson Siqueira Amaro
Inês Aparecida de Souza
Sônia Regina Luciano
COMISSÃO CIENTÍFICA
José Henrique Rollo Gonçalves
Hector Pérez Brignoli
Lúcio Tadeu Mota
Anthony Goebel MacDermott
Márcio Roberto do Prado
Ronald Soto-Quirós
Leandro Brunelo
Ana Montserrat Barreto Valinotti
6. ST 01: “A IDADE MÉDIA EM DEBATE: ESTUDO DAS FONTES”
Coordenação: Prof. Dr. Jaime Estevão dos Reis (UEM)
Resumo: Os estudos sobre a Idade Média têm se firmado no Brasil nas últimas décadas. Desde
1996, com a criação da ABREM –Associação Brasileira de Estudos Medievais, vários congressos
nacionais e internacionais são realizados em diversas regiões do país. Cabe destacar a existência de
laboratórios de pesquisas dedicadas à Idade Média e o grande número de Dissertações de Mestrado
e Teses de Doutorado defendidas nos Programas de Pós-Graduação em História, Letras, Educação e
outros cursos espalhados pelo Brasil. O número de edições cada vez crescente de fontes e
bibliografia, bem como a disponibilidade de obras na internet têm fortalecido os estudos. As
publicações acadêmicas são outro fator que atestam a solidez das pesquisas desenvolvidas.
Podemos dizer, seguramente, que somos reconhecidos internacionalmente pelo nível das pesquisas
desenvolvidas no país. Este Simpósio Temático tem por objetivo reunir pesquisadores para debater,
a partir das fontes, a Idade Média, e promover, deste modo, uma maior integração entre
pesquisadores brasileiros e estrangeiros.
Palavras-chave: Idade Média; Fontes; Historiografia.
6
7. O Manual de Confissão de Martín Pérez
Elizandro Chaves de Oliveira – PPH/LEM-UEM
ST 01 – A Idade Média em debate: estudo das fontes.
Resumo:
A partir do século XII a igreja passa por um intenso movimento de centralização
conduzida pelo Papado. Numerosos concílios foram organizados para sistematizar
os princípios que a deveriam sustentar. Isso significou a produção de um número
considerável de fontes jurídicas e pastorais, como atas conciliares e livros
destinados à orientação dos clérigos e leigos. Dentre estes documentos destacam-
se os Manuais de Confissão, obras destinadas aos fiéis e clérigos acerca dos
procedimentos da confissão auricular anual, instituída pelo IV Concílio de Latrão
em 1215 como obrigatória. Desta tipologia de fontes faz parte o Libro de las
confesiones (1316), obra escrita por um clérigo salamantino que possuía notável
conhecimento dos temas jurídicos e teológicos do período, conhecido como Martín
Pérez. Este manual teve uma influência considerável sobre toda a Península
Ibérica, o que é demonstrado pela grande circulação de seus manuscritos e pela
aparição de numerosas menções a ele em diversas obras jurídicas e literárias nos
séculos que seguiram a sua publicação. Nesta comunicação procuramos destacar
a relação do pensamento de Pérez – expresso no Libro de las confesiones – com
o contexto da cristandade e a historicidade da circulação do Libro pela Península
Ibérica.
Palavras-chave: Idade Média; Manuais; Confissão;
INTRODUÇÃO.
No bojo do desenvolvimento social e econômico que são observáveis
durante e após o século XI e XII na Europa, incluindo a Península Ibérica, construiu-
se uma organização intelectual correspondente. O ambiente urbano e as atividades
7
8. comerciais facilitaram a produção intelectual, a maior circulação de obras e ideias,
bem como a manutenção de instituições dedicadas ao ensino.
Simultaneamente, o conceito de cristandade auxiliava os vigorosos intentos
de expansão do Papado, que em conflito com o império Romano Germânico, passa
a desenvolver instrumentos que atestem sua soberania e justificassem sua atuação
no plano temporal, implicando em uma percepção de universalidade do poder do
Pontífice Romano (GONZALES CRESPO, 2011, p.188).
Dessa forma, uma série de instrumentos intelectuais foram desenvolvidos
em auxílio ao estabelecimento e manutenção da hegemonia papal sobre a cultura
política da cristandade. Dentre estas destacam-se os concílios ecumênicos –
sobretudo os quatro concílios de Latrão – e o desenvolvimento das práticas
compilatórias dos atos e normas religiosas, definidoras do direito canônico
(DUGGAN, 2008, p. 323).
Estes dois processos ficam expressos de forma sintetizada no modo em que
a literatura penitencial, produzida entre os séculos XII e XIV, se apresenta.
O IV concílio de Latrão, realizado em 1215, dispusera em seu 21º cânone a
necessidade de que todos os cristãos se confessassem ao menos uma vez no ano.
A decisão tinha respaldo no desenvolvimento de discussões realizadas
anteriormente ao concílio, as quais discutiam a regulação da prática da confissão
auricular, surgida na Irlanda no século VII e depois difundida pelo continente
europeu (McNEIL; GAMER, 1990, p. 24).
Neste processo destacam-se os manuais de confessores como fontes de
observação. Estas obras estabeleciam uma forma pela qual os clérigos deveriam
receber os penitentes e ponderar sobre seus pecados.
Três tipos de manuais são identificáveis desde o início da Idade Média, até
o contexto do século XIV. Os primeiros são denominados manuais de penitência
tarifada. Esta denominação se vincula a forma rudimentar com que definem uma
equivalência entre atos pecaminosos e uma série de atos a serem praticados pelo
penitente como forma de reconciliação com a igreja. Outro grupo destes manuais
é definido como manuais de confessores, sobretudo pela sua concepção mais
8
9. ampla e complexa acerca dos pecados e dos modos de se exortar os penitentes a
revelá-los (MICHAUD-QUANTIN, 1962, pp. 15-16).
O terceiro tipo de livros penitenciais se relacionam mais diretamente com
todo o contexto eclesiástico e intelectual a que me referi inicialmente. Neles são
perceptíveis os elementos jurídicos e teológicos que se definiram e se instauraram
nas estruturas de pensamento e organização política do ocidente. A centralidade
de suas discussões são o casus, ou seja, uma situação concreta de pecado que já
fora anteriormente tratada por uma autoridade da igreja, cuja decisão serviria de
paradigma para situações análogas (MICHAUD-QUANTIN, 1959, p. 294).
É nesta última categoria destacada que devemos localizar o Libro de las
confesiones, manual escrito por um clérigo salamantino, chamado Martín Pérez,
entre 1312 e 1317.
Dedicado a auxiliar os clérigos de pouco conhecimento sobre o ofício da
confissão, Martín Pérez examina diversas ocasiões em que os pecados se
manifestavam, destacando argumentos das tradicionais fontes do direito canônico
para às avaliar.
Neste procedimento, Martín Pérez traz um amplo retrato das características
da sociedade e das relações socioeconômicas da Europa do período. Os grupos
sociais e profissionais são separados e classificados de acordo com suas práticas
comuns que dão caso as potencialidades de cometimento de pecados. Por
exemplo, os senhores, devido relações de fidelidade as quais estruturam o
ambiente político de que participam, estriam predispostos a cometerem pecados
relacionados a traição, bem como pecados relacionados à violência, devido as
atividades militares, definidoras seu status de garantidores da ordem e da justiça.
Tratando de forma tão completa muitos dos pontos essenciais para a
condução da confissão, a obra de Martín Pérez encontrou uma expressiva
receptividade no ambiente peninsular, atestada pela multiplicidade de seus
manuscritos. Esses se apresentam como derivados de processos de cópia e
transcrição realizadas em diversos momentos distintos. A amplitude do Libro de las
confesiones e das temáticas nele desenvolvidas deu ocasião, também, para que as
suas partes fossem copiadas e circulassem de forma separada.
9
10. DESENVOLVIMENTO
A estrutura do Libro de las confesiones e sua organização
O Libro de las confesiones, escrito por Martín Pérez, está dividido em três
partes. Na primeira parte são destacados os pecados que podem ser cometidos
por todos os cristãos, embora tomem formas diferentes de acordo com o status ou
profissão de cada indivíduo; na segunda parte do libro são definidos os pecados
correspondentes a cada estado social; na terceira parte da obra há uma discussão
sobre os sacramentos, com grande destaque sobre o sacramento da confissão.
A discussão dos pecados acontece pautada no setenário, sistema que se
afirmara, então, como paradigmático para o julgamento das condutas dos cristãos.
Observando que os homens se envolvem com maior frequência nos pecados da
luxuria e da avareza, Martín Pérez inicia por eles. Ao primeiro dedica dois títulos. O
tratamento breve da luxuria deve ser relacionado à sensibilidade nos
questionamentos relativos a ela e à necessidade de cautela do confessor de não
despertar sentimentos e ideias no penitente.
A avareza, por sua vez, ocupa um número considerável do trabalho do
clérigo salamantino. Ela está relacionada a uma gama de transgressões, que se
instituem como categorias deste pecado, como o roubo, o furto, a usura e os ganhos
obtidos com jogos ilegais, os quais o autor descreve em títulos sequenciais ao em
que enunciara o pecado. Não obstante, outras condutas incorretas são destacadas
como correlatas a ele pelo autor, tais como a simonia e os enganos cometidos por
vendedores nos mercados e feiras (MARTÍN PÉREZ, 2002, p. 50).
No título 119 da primeira parte do libro de las confesiones, Martín Pérez
define o pecado da soberba. Este teria o importante aspecto agravante de se
constituir em atos contra os mandamentos divinos. Nesse sentido o autor introduz
os pecados do decálogo, destacando o primeiro – Um deus adorar e aquele sobre
10
11. todas as coisas amar– como fundamento de sua análise sobre os cultos e demais
crenças que se apresentavam aos confessores.
Martín Pérez segue desenvolvendo um diálogo entre os pecados do
setenário e do decálogo. Embora o centro da enunciação do último sejam as ações
de soberba cometidas pelos cristãos, outros pecados capitais se relacionam com
os dez mandamentos, por exemplo, o 7º mandamento – Não furtarás – nos
arremete ao pecado da avareza, destacado anteriormente (MARTÍN PÉREZ, 2002,
p. 175-178).
Mais títulos são dedicados na primeira parte aos pecados da preguiça
(açidia), da ira (saña) e gula (pecados de la lengua), porém, o importante a se
destacar é que as categorias de pecados se entrelaçam e se interpõem, na medida
em que servem ao autor para parametrizar as decisões possíveis do confessor
diante de casos concretos mencionados pelos penitentes.
Como destacado anteriormente, na primeira parte do Livro de las
confesiones são observáveis alguns elementos das relações sociais existentes no
período em que Martín Pérez escrevia, por meio da atribuição de certas condutas
pecaminosas, comuns aos homens de certos grupos em que se aglutinavam.
A descrição do quadro social, porém, se torna mais evidente na segunda
parte da obra. Nela Martín Pérez busca descrever, para o confessor com quem
dialoga, os pecados habitualmente cometidos pelos homens, relacionados com o
estado, ou, profissão que exercem.
Este sistema de categorização da sociedade se apresenta em substituição
ao modelo de sociedade tripartida. Após as grandes transformações que se
manifestam nos aspectos socioeconômicos da Europa do século XII e, sobretudo,
devido à urbanização, a divisão da sociedade entre os que lutam, rezam e
trabalham não apreende de forma satisfatória as realidades dos grupos que se
multiplicam, processo vinculado, especialmente, às transformações no mundo do
trabalho (LE GOFF, 2014, p. 219).
Desse modo, Martín Pérez desenvolve um conjunto de categorias
profissionais, classificadas de acordo com sua potencialidade em oferecer ocasiões
de pecar aos homens que as desempenham.
11
12. Os ofícios são assim classificados: os que são bons e se exercem em prol
das almas dos que o praticam e dos demais cristãos. Esta primeira categoria se
desdobra em duas subcategorias, a dos que são em prol das almas e a dos que
são em prol dos corpos , tais como o dos clérigos, lavradores, senhores e seus
representantes; ofícios maus e com dano de si e dos demais cristãos, tais como o
da prostituição; há ofícios dos quais advêm mais danos do que proveitos, tais como
dos pintores e dos produtores de tecidos (MARTÍN PÉREZ, 2002, p. 443).
Na terceira parte do Libro de las confesiones o autor desenvolve um tratado
acerca dos sacramentos. Iniciando pela discussão acerca das definições desses
na tradição da Igreja cristã, em comparação com suas definições na lei antiga.
São abordadas questões teóricas, como as diferenças entre o sacramento
do batismo e o da circuncisão, que vigorara na lei antiga, e questões práticas,
relativas aos ofícios realizados para a consumação do sacramento, por exemplo, a
escolha dos padrinhos e o seu catecismo antes do batismo.
É bastante revelador o tratamento dispendido por Martín Pérez ao
sacramento da confissão. Apesar de nas partes anteriores ter a discutido de forma
subentendida em diversos aspectos, nesta parte são expostos alguns dos
fundamentos da concepção do autor acerca dela, destacando-se, por exemplo, os
três elementos essenciais para que a confissão tenha efetividade:
Estas son las tres cosas nesçesarias en la penitenlçia cunplida: En
el coraçon, contriçion; de la boca, confesion; e en las obras,
satisfaçion, ca conviene que el pecador que quiere fazer cunplida
la penitençia de los sus pecados, que bien de coraçon se arrepienta
e que los confiese por la boca e que faga emienda dellos por la obra
(MARTÍN PÉREZ, 2002, p. 566).
Martín Pérez faz, também, uma longa exposição acerca das três formas de
pecados existentes: Pecados veniais, pecados mortais e pecados criminais. Os
primeiros são definidos como transgressões que não separam de Deus a alma do
cristão; os pecados mortais, por sua vez, matariam a alma e a separariam D’ele; os
criminais, que embora destacados pelo autor, são uma ramificação dos mortais,
definem-se pelas legislações locais (MARTÍN PÉREZ, 2002, p. 582).
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13. O clérigo salamantino destaca a amplitude desta classificação, entre
pecados veniais e pecados mortais, e a consequente impossibilidade de se fornecer
uma definição mais precisa acerca da sua aplicação durante a audição das
confissões. Desta forma, ele recorre aos doutores da igreja e às suas concepções
mais comuns acerca do problema, desenvolvendo três modos de se definirem os
pecados mortais (MARTÍN PÉREZ, 2002, pp. 582-599).
A circulação do Libro de las confesiones pela Península Ibérica.
Outra característica que distingue a obra de Martín Pérez, para além de seu
volume e complexidade, é a grande receptividade que recebeu nos territórios da
Península Ibérica, sobretudo nos territórios ocidentais da coroa de Castela e em
Portugal.
De Castela existem cerca de 8 manuscritos que contém pelo menos uma
parte do Libro de las confesiones, como indicam os autores da edição espanhola
da obra. Não obstante, contabilizando os textos dos quais se há notícias indiretas
nas obras que o mencionaram, poderíamos indicar a cifra de cerca de 25
manuscritos (MARTÍN PÉREZ, 2002, p. XVI).
Dentre os diversos processos de transcrição pelos quais a obra de Martín
Pérez passou, uma delas foi a de tradução, no ano de 1399, ao português, realizada
pelo monge alcobacense Frei Roque de Thomar. Hoje estes códices são mantidos
na biblioteca nacional portuguesa e estão disponibilizados online e, além disso,
foram utilizados por José Barbosa Machado e Fernando Alberto Torres Moreira
para a confecção de uma edição portuguesa do Libro de las confesiones (MARTÍN
PÉREZ, 2013).
Os manuscritos portugueses nos proporcionam a observação de algumas
problemáticas relativas à sobrevivência e à circulação dos documentos escritos
durante a Idade Média. Na redação do texto original, Martín Pérez se preocupou
em indicar nas bordas das páginas que redigia as fontes do direito canônico e da
teologia sobre os quais embasava seus argumentos. Os códices alcobacenses que
13
14. sobreviveram não têm estas indicações, que podem ser observados nos
manuscritos hispânicos (MARTÍN PÉREZ, 2002, p. XVIII, nota 29).
Dos manuscritos portugueses que se mantêm nenhum deles contém a
segunda parte da obra, em que Martín Pérez discute os pecados de cada estado
social. Contudo, existem evidências de que a segunda parte circulou em Portugal.
O Rei Dom Duarte (1391-1438) a menciona no Leal Conselheiro, em um trecho que
fala sobre os pecados dos senhores:
E porem grandemente e per muyitas partes os senhores erramos e
caymos em el, por que a tantas cousas somos obrigados de bem
fazer, as quaaes leixamos ou bem nom comprymos por seguyr
voontade, vencendonos per fraqueza, e assy obrando outros feitos,
em que nosso tempo ou bees despendemos no que poderíamos
bem scusar, segundo se poderá ver em huu livro que chamam de
Martym Pires, em que toca os pecados que perteecem aos
senhores de mayor e mais somenos estados (DOM DUARTE,
1942, p. 102, apud MARTÍN PÉREZ, 2002, p. XXIII).
Existem ainda dois trechos documentais escritos em português que
mencionam os capítulos 18 e 40 da obra de Martín Pérez. Nestes capítulos se
discutem temas especificamente vinculados à disciplina clerical, acerca da
obrigação de não se tomar os sacramentos eclesiásticos dos clérigos condenados
por simonia ou que vivessem com barregãs (CRUZ, 1968 apud MARTÍN PÉREZ,
2002, p. XXV).
Desta forma as perguntas se direcionam aos motivos da desaparição da
segunda parte do Libro de las confesiones traduzida ao português, já que fica claro
que ela circulou por Portugal.
Não obstante, devemos também nos voltar aos interesses que influenciaram
nesta dinâmica dos manuscritos da obra do clérigo salamantino. Como foi
observado o Libro é uma obra extensa e rica em detalhes. Desse modo o manuseio
da obra em sua totalidade deveria ser difícil, o que motivou o uso em separado das
suas partes.
Temos notícia de uma condensação da obra, o denominado Confessional,
estudado e publicado por Hélène Thieulin-Pardo. Este compêndio é baseado, em
sua maior parte, no libro de las confesiones. Nas observações de Fernando Gómez
14
15. Redondo, no prefácio, temos indicativos importantes sobre o contexto de produção
literária do Libro, vinculando-o ao movimento de reforma religiosa empreendido
pela escola catedralícia toledana e demonstrando a coincidência de seu conteúdo
com a produção catequética vernácula e as discussões sobre o sacramento
penitencial, ligadas com a ideologia do molinismo (THIEULIN-PARDO, 2012).
Da mesma forma, por meio da comparação das obras, sua estrutura e
ambiente político de circulação, podemos especular sobre os interesses vinculados
à produção do Libro de Martín Pérez e sua posterior condensação no
confessionário, sobre o qual o autor nos dá algumas informações:
[…] puesto que la labor de abreviación se realiza ya en otro
contexto, a finales del siglo xv, cuando se está produciendo la
difusión de una materia penitencial más esquemática, ligada a la
autoridad del obispo portugués Andrés de Escobar […] o a la de
Alfonso de Madrigal […], pero conectada, a su vez, a las artes
moriendi como lo demuestra el Arte de bien morir y Breve
confessionario (c. 1479-1484) o la inclusión en el Arte de bien morir
de Rodrigo Fernández de Santaella de una sección penitencial, en
la que este sacramento se convierte en instrumento eficaz para
recibir una buena muerte.
Estes múltiplos dados que atestam uma circulação com múltiplos ritmos e
fatores envolvidos nos permite observar que a obra de Martín Pérez teve reiterado
interesse no espaço e no tempo. Isso a define como uma importante fonte para
compreensão das categorias relativas aos pecados e a ordem social defendidas no
discurso intelectual do período, bem como a sua permanência e difusão por meio
da literatura penitencial e canônica.
REFERENCIAS
FONTES
GARCÍA Y GARCÍA, António; ALONZO RODRÍGUEZ, Bernardo; CANTELAR
RODRÍGUEZ, Francisco. Una radiografía de la sociedad hispana: el libro de las
confesiones de Martín Pérez, BAC, 2002;
15
16. MARTÍN PÉREZ. Livro das confissões. Edição, introdução e notas de José
Barbosa Machado e Fernando Alberto Torres Moreira. 2ª ed., Edições Vercial,
Braga, 2013.
BIBLIOGRAFIA
DUGGAN, Anne J. Conciliar Law 1123–1215: The Legislation of the Four Lateran
Councils. In. HARTMANN, Wilfried; PENNINGTON, Kenneth (Orgs). The History
of Medieval Canon Law in the Classical Period, 1140-1234: From Gratian to the
decretals of Pope Gregory IX. The Cathlic University of America Press, Washngton
D.C., 2008.
LE GOFF, J. Ofício e profissão de acordo com os manuais de confessores da Idade
Média. In. ______. Para uma outra Idade Média: Tempo, trabalho e cultura no
ocidente. Editora Vozes, 3ª edição, Petrópolis – RJ, 2014.
McNeill, John Thomas; GAMER, Helena Margaret. Medieval Handbooks of
Penance: a translation of the principal “libri poenitentiales” and selections from
related documents. Columbia University Press, New York, 1990.
MICHAUD QUANTIN, Pierre.A propos des premières Summae confessorum. In.
Théologie et droit canonique. Recherches de théologie ancienne et médiévale.
Vol. 26 (Juillet-Décembre 1959), pp. 264-306 (43 pages).
MICHAUD-QUANTIN, Pierre. Sommes de casuistique et manuels de
confession au Moyen Age (XII-XVI siècles). Louvain/Lille/Montréal: Analecta
Medievalia Namurcensia, 1962.
MITRE FERNANDEZ, Emilio. El orden social cristiano entre los siglos XI y XIII:
Imágenes, realidades y fronteras. In. MITRE FERNANDEZ, Emilio. Historia del
cristianismo Vol. II. El mundo medieval. 4 vol. Madrid : Trotta : Universidade de
Granada, 2011.
THIEULIN-PARDO, Hélène. Confesionario. Compendio del Libro de las
confesiones de Martín Pérez. EMH-Sorbonne – CLE (Les Livres d’e-Spania «
Sources », 2), 2012, [En línea], Publicado el 23 mayo 2012, consultado el 24
septiembre 2019. URL: http://journals.openedition.org/e-spanialivres/381.
16
17. NOBREZA E CASTELOS NAS SIETE PARTIDAS DE ALFONSO X, O SÁBIO
Fernando Balbino de Araújo – LEM-UEM
ST- 01: A Idade Média em debate: estudo das fontes.
A presente discussão tem como objetivo analisar a nobreza de Castela e Leão e sua
relação com os castelos medievais erguidos na Península Ibérica. Para tanto, utilizarei
o código jurídico denominado “Las Siete Partidas” produzido por Alfonso X, o Sábio,
que foi rei de Castela e Leão entre 1252 a 1284. O monarca dedicou trinta e duas leis
na Partida Segunda à normatização da guarda, manutenção e defesa dos castelos,
bem como à definição das penalidades aplicadas nos casos do não cumprimento das
determinações em relação a eles. Definiu, igualmente, questões relativas à
propriedade e à posse, além do perfil dos responsáveis pela ocupação dessas
edificações. Buscarei identificar a relação entre a nobreza e os castelos reais, de
acordo com as leis impostas no código jurídico citado. Frequentemente atribuídos
como “a imagem da Idade Média”, o castelo medieval foi um marco importante no que
diz respeito a táticas de guerra. Com a chegada de uma construção que combinou os
aspectos militares e residenciais, a forma de batalha teve que ser adaptada, onde a
guerra de cerco passou a adquirir um papel de protagonismo. Tendo em vista sua
importância não somente militar, mas também como forma de manutenção de poder
e território, diversas fortificações foram erguidas na Península Ibérica, mais
especificadamente em Castela e Leão. Tais obras modificaram não somente a
geografia da Península, mas também as relações entre nobres e vassalos, e entre a
nobreza e o rei.
Palavras chave: Castelos; Nobreza; Alfonso X.
Introdução/Justificativa
Neste breve texto, apresentamos as primeiras reflexões acerca do tema que
estamos desenvolvendo em nossa pesquisa de Mestrado junto ao Programa de Pós-
Graduação em História da Universidade Estadual de Maringá, sob orientação do
professor Dr. Jaime Estevão dos Reis. Trata-se da relação entre a nobreza e os
castelos na Idade Média, especificamente, nos reinos de Castela e Leão.
Objeto de curiosidade e admiração, o castelo medieval carrega em suas
estruturas o peso de ter sua imagem atribuída a própria Idade Média. De fato, diversos
pensadores e historiadores, ao mencionarem o período citado, o relacionam com as
17
18. colossais construções de pedra. Definido de forma simples por Conrad Cairns (2010)
como “...uma moradia particular fortificada, desenhada para proteger de qualquer
ataque armado”1 (CAIRNS, 2010, p. 3), ele apresenta várias facetas (algumas
gigantes e imponentes, outras modestas e seguras). Apesar do aspecto militar citado
por Cairns, sua função vai muito além da segurança e proteção.
A construção de um castelo era realizada de acordo com a região a qual o
mesmo seria erguido. Os primeiros castelos originaram-se no topo deu uma colina
(natural ou artificial) utilizando madeira e terra como principais componentes (motte
and bailey), exemplificados pelos castelos de bretões de Dol, Dinant e Rennes. A
construção de fortalezas sofreu diversas alterações com o passar dos séculos, pois a
madeira foi perdendo espaço e foi substituída pela pedra (maior segurança, menor
risco de incêndio e mais resistentes contra inimigos), onde surgiram as magníficas
fortalezas de Rochester e Pembroke, e em lugares onde a pedra era um material
escasso, o homem medieval a substituiu pela alvenaria, erguendo assim imponentes
fortalezas de tijolos (como a fortaleza teutônica de Malbork).
Graças ao castelo, o cenário medieval de grandes batalhas sofreu uma radical
mudança. Além das guerras em campo aberto, onde exércitos se enfrentavam
frontalmente, surgem as guerras de assédio. Como afirma Maurice Keen (2005):
No período entre o ano 800 e 1450 poucas campanhas se
desenvolveram sem que se realizasse o assédio de um, e as vezes
vários, pontos chave, e somente nas sociedades não defendidas por
castelos, como na Irlanda no século XII e em Gales no século XIII, os
assédios permaneceram em segundo plano. Ao longo de todo o
período, os assédios superaram em número as batalhas campais, os
enfrentamentos navais, as expedições de ataque a cavalo e qualquer
outra forma de atividade bélica (KEEN, 2005, p. 212) 2
.
Ou seja, poucas batalhas se desenvolveram na Europa Medieval sem que o
cerco a um castelo fosse necessário, o que configura sua importância militar: a tomada
por vezes era custosa e longa, o que proporcionava oportunidades para o lado
1
“...una vivienda particular fortificada, diseñada para protegerse de cualquier ataque armado” (CAIRNS, 2010, p.
3).
2
En el período entre el año 800 y 1450 pocas campañas se desarrollaron sin que se produjese el asedio de uno, y
as veces varios, puntos clave, y solo en las sociedades no defendidas por castillos, como en Irlanda en el siglo XII
y en Gales en el siglo XIII, los asedios permanecieron en un segundo plano. A lo largo de todo el período, los
asedios sorepasaban en número a las batallas campales, a los enfrentamientos navales, a las expediciones de ataque
a caballo y a cualquier otra forma de actividad bélica (KEEN, 2005, p. 212).
18
19. atacado se reorganizar, assim como seu papel ofensivo, servindo como base de
operações para os homens em terra e como um lugar seguro para as tropas (KEEN,
2005, p. 213). Decisivo em inúmeras batalhas, o castelo se tornou extremamente
importante durante o processo de retomada do território cristão ocupado pelo Islã: a
Reconquista.
Bem definido por Jémerson Q. de Almeida, a Reconquista foi o processo de
batalhas dos cristãos que se identificavam como herdeiros dos povos visigodos contra
muçulmanos para a retomada de território (ALMEIDA, 2014, p. 456-457). Durante seu
processo, os castelos tornaram-se pontos estratégicos, pois algumas fortalezas eram
erguidas não somente com cunho defensivo, mas também para auxiliar no cerco e
tomada de territórios inimigos.
Na Península Ibérica, o processo foi vantajoso para a nobreza em geral, pois
com os primeiros avanços das tropas cristãs, os mesmos obtiveram grandes riquezas,
poder, prestígio militar e político no governo dos novos territórios (MENÉNDEZ PIDAL,
2015, p. 31). Logo, o grupo se firma como personagem importante não apenas durante
as batalhas, mas também na administração e manutenção dos novos territórios.
Aqui configura-se outro aspecto dos castelos: era o símbolo que representava
seu senhor, o centro do poder na Idade Média. Jean-Marie Pesez elucida bem o seu
significado:
O castelo é, antes de tudo, uma casa, uma residência aristocrática que
abriga um homem que é um senhor, um dominus, com sua família,
com as pessoas de sua domus, parentes, oficiais, familiares, criados.
É necessariamente, portanto, uma grande morada: isso já a distingue
das outras. Mas o castelo tem, além disso, o papel de um signo: ele
deve materializar, tornar sensíveis, o lugar e a categoria ocupados por
quem o habita e que é seu senhor. Esse papel é materializado por
suas dimensões, mas também por sua situação geralmente elevada,
dominante, e pela demonstração de poder contida nas fortificações,
torres, portas e ameias. (PESEZ, 2017, p. 173)
Além de sua posição elevada perante a sociedade, o nobre possuía outro fator
de distinção: seu castelo. Aqui, a morada fortificada não é apenas uma fortaleza
protegida: ele torna visível o poder e influência de seu dono.
Estudar a nobreza e sua influência se torna importante para compreendermos
a formação da sociedade no medievo. O nobre é aquele que não se mistura com os
19
20. demais, que possui posição social elevada, bons costumes e advém de boa família.
Nas palavras de Faustino Menéndez Pidal (2015):
Nobre, nobilis, equivale a noscibilis, de gnosco o nosco, conhecido,
destacado, famoso. [O termo] vincula-se também a notabilis, notável,
influente, fora do comum, para o bem ou para o mal. O termo
conservou somente o aspecto positivo: de acordo com seu significado
etimológico, implica seleção, excelência, e supõe, necessariamente,
uma diferenciação, uma elevação sobre os demais. Esta é a ideia
básica da nobreza. A ela se opõe radicalmente o igualitarismo, que se
nega a admitir a diferença e tratar como iguais os que são distintos.
Na igualdade absoluta, não cabe o notável, o nobre (MENÉNDEZ
PIDAL, 2015, p. 17).3
Neste estudo específico, a melhor compreensão da nobreza na Península
Ibérica se faz necessário, e sua principal característica se deve ao embate entre
cristãos e muçulmanos, que serviu como principal nutriente para o crescimento e
desenvolvimento de tal grupo social. Salvador de Moxó (1970) afirma que a nobreza
castelhano-leonesa se configurou em diferentes momentos históricos, onde a
adaptação a novas realidades e seu poder de modificação foram fatores
determinantes para sua afirmação. Graças ao constante estado de guerra, a nobreza
obteve lucros lutando em nome de seu rei, conquistando assim vastos territórios.
Com a conquista de novas fortalezas ou sua construção, o seu controle e
domínio eram atribuídos pelo rei cristão vencedor. Era o papel do rei atribuir os novos
territórios aos nobres que o ajudaram em sua campanha, territórios esses que muitas
vezes eram fruto de uma negociação para conseguir o apoio necessário para tal feito.
Com o aumento dos domínios reais, e também a expansão da nobreza, foram criadas
leis e códigos jurídicos como uma forma de reforçar o poder real, e também normatizar
o processo de transição de posses de castelos e fortalezas, assim como sua
manutenção, defesa e guarda. A obra Las Siete Partidas, escrita por Alfonso X, o
Sábio, dedica um capítulo exclusivo na Partida Segunda sobre o tema.
3
“Noble, nobilis, equivale a noscibilis, de gnosco o nosco, conocido, destacado, famoso. Y también se relaciona
con notabilis, notable, infrecuente, fuera de lo común, para bien o para mal. El término conservó sólo el sentido
positivo: de acuerdo con su significación etimológica, implica selección, excelencia, y supone necesariamente
una diferenciación, un relieve sobre los demás. Esta es la idea básica de la nobleza. A ella se opone radicalmente
el igualitarismo, que se niega a admitir la diferencia y trata como iguales a los que son distintos. En la igualdad
absoluta no cabe lo notable, lo noble" (MENÉNDEZ PIDAL, 2015, p. 17).
20
21. Rei de Castela e Leão (1252-1284), Alfonso X foi um dos monarcas mais
influentes do século XIII. O monarca obteve destaque em várias áreas do
conhecimento humano, onde fez diversas contribuições culturais, especialmente na
elaboração de códigos jurídicos. Como afirma Elaine Cristina Senko, Alfonso
“promoveu um grande incentivo aos trabalhos legislativos durante o seu governo com
o propósito de construir e estimular para si uma imagem de monarca sábio e justo”
(SENKO, 2014, p. 2). Sua produção de obras com caráter literário, histórico, científico,
artístico e jurídico o coloca em lugar de destaque no cenário cultural, e com justa razão
lhe foi atribuída a alcunha de “o Sábio” (REIS, 2007, p. 12).
Buscando sua afirmação como rei e a unificação de seu território, o monarca
dedica-se a construção de códigos jurídicos, criando leis e condutas a serem
seguidas, especialmente nos territórios conquistados. Aqui, damos destaque para Las
Siete Partidas, que como afirma Jaime Estevão dos Reis (2007, p. 183), é considerada
a grande obra jurídica alfonsina.
Escrita por volta de 1256, por diversos intelectuais, sob a supervisão de Alfonso
X, a obra constitui-se como um coletivo de leis, onde eram descritos os mais diversos
assuntos. Como afirma Elaine Cristina Senko (2014):
Disposta em sete partes, como o próprio nome sugere, e subdividida
em Títulos e Leis, o trabalho jurídico desenvolvido em Las Siete
Partidas apresenta ao longo de suas partes os seguintes tópicos
essenciais: 1) La Primera Partida demonstra o significado da Lei,
Direito e sobre a Igreja; 2) La Segunda Partida tem como tema o
significado de rei e imperador; 3) La Tercera Partida trata da justiça;
4) La Cuarta Partida discute o matrimônio e a relação do direito de
família; 5) La Quinta Partida indica as leis do direito de propriedade e
sobre a regularização do comércio; 6) La Sexta Partida trata dos
testamentos e das heranças; 7) La Séptima Partida finaliza com as leis
penais para grupos específicos na sociedade castelhana (SENKO,
2014, p. 2).
Destacaremos no presente estudo a Partida Segunda, que trata de assuntos
que dizem respeito aos reis, imperadores e nobres, especificadamente o título XVIII,
onde aborda as fortalezas e castelos do rei e do reino.
Nobreza e castelos nas Siete Partidas
21
22. O título XVIII da Partida Segunda, “Que o povo deve ser o guardião, abastecer
e defender os castelos, e as fortalezas do rei, e do reino”4, apresenta um conjunto de
leis demonstrando como se deve proteger e abastecer as fortalezas e castelos do rei,
e, por quais motivos o devem fazer. Ainda, apresenta punições para quem deixar de
proteger, ou não manter um castelo da forma especificada nas leis. Observamos
algumas características que remetem a influência da nobreza sobre tal assunto.
A lei I de título “Como deve o povo proteger o rei em seus castelos, e em suas
fortalezas, e que pena merecem os que falharem nesta guarda”5 nos mostra como
deve-se realizar a guarda das fortalezas, assim como as punições aplicadas a quem
desobedecer tal lei. Aqui, vemos quem são os eleitos para tais funções:
“...e este tipo de proteção abrange a todos da comunidade, mas a
outra que é dos homens designados, é dividida de duas maneiras: a
primeira, daquelas para as quais o rei dá os castelos por herança; e o
outro, a quem ele os dá em possessão” (PARTIDA II, p. 260).6
Identificamos na presente passagem que era o rei quem decidia quem
usufruiria do castelo. Vários fatores eram levados em consideração para a tomada de
tal decisão como, por exemplo, fidelidade, ajuda em batalhas ou a família da pessoa
a ser escolhida. A nobreza, graças a sua posição social, estava constantemente
envolvida em tais escolhas.
O responsável pelo zelo, guarda e abastecimento de um castelo era
denominado alcaide (governante de uma cidade ou vila encastelada). A lei VI, de título
“Quem devem ser os alcaides dos castelos, e o que devem fazer por seus pelotões
quando estão de guarda” 7 as características necessárias a um alcaide:
4
“Cuál debe el Pueblo ser em guardar, e em abastecer, e em defender los castillos, e las fortalezas
del rey, e del reino” (PARTIDA II, p.259)
5
“Cómo debe el pueblo guardar al rey en sus castillos, e en sus fortalezas, e qué pena merecen los
que errasen en esta guarda” (PARTIDA II, p.260)
6
“...e esta manera de guarda tañe a todos comunalmente, mas la otra que es de hombres señalados
se parten en dos maneras: la una, de aquellos a que el rey da los castillos por heredamiento; e la otra,
a quien los da por tenencia” (PARTIDA II, p. 260)
7
“Cuáles deben ser los alcaides de los castillos, e que es lo que deben hacer por sus cuerpos en
guarda de ellos” (PARTIDA II, p. 263)
22
23. “... deve ser de boa linhagem de pai e de mãe, pois se assim fosse,
sempre haveria vergonha de fazer mal ao castelo, nem que o mesmo
seja injuriado, nem os seus descendentes” (PARTIDA II, p. 263)8
.
Características estas já observadas na nobreza, onde a linhagem sanguínea
era um fator de distinção entre nobres e plebe em geral. Uma boa linhagem significava
também uma boa educação, o que impediria o alcaide de fazer algo que traria a ruína
do castelo, ou das guarnições sob o seu comando.
Por fim, observamos que a lealdade, traço marcante entre o rei e a nobreza, é
exaltada: a lei II, de título “Como devem ser dados e recebidos os castelos, e de qual
forma”9, onde aborda sobre as concessões dos castelos, apresenta a seguinte
passagem:
“Lealdade é algo que endireita os homens em todas as suas ações,
pois sempre fazer o seu melhor, e por essa razão os espanhóis, que
a tem mais do que todos os outros homens, vendo o grande perigo
que poderia acontecer a seus senhores, e a eles mesmos, se as
fortalezas do reino se perdessem, colocaram quatro coisas para que
fossem melhor protegidas: a primeira, como receber os castelos, e por
quem; a segunda, de como os proteger, a terceira, como os defender,
caso necessário fosse; a quarta, de como entrega-los quando o
pedissem, ou o dever de ser dado por direito” (PARTIDA II, p. 260-
261).10
Identificamos que a lealdade era algo esperado do rei a todos os defensores
de seus castelos e fortalezas, porque homens leais “fazem o seu melhor em todas as
ações”. Não somente em batalhas, como também na manutenção de recursos e
armas. Ou seja, o nobre responsável pelo castelo real deveria manter-se fiel a seu rei
e obedecer suas ordens a qualquer custo.
8
“... debe ser de buen linaje de padre, e de madre; pues si lo fuere siempre habrá vergüenza de hacer
del castillo cosa que le esté mal, ni porque él sea denostado, ni los que del descendieren” (PARTIDA
II, p. 263).
9
Cómo deben ser dados e recibidos los castillos, e em qué manera (PARTIDA II, p. 261)
10
Lealtad es cosa que endereza los hombres en todos sus hechos porque hagan siempre todo lo mejor;
e por esto los españoles, que todavia usaron de ella más que todos los otros hombres, viendo el gran
peligro que podría acaecer a sus señores, e a ellos mismos, si las fortalezas del reino se perdiesen, de
cómo se los diesen cuándo los pidiesen, pusieron cuatro cosas porque fuesen mejor guardadas: la
primera, de cómo recibiesen los castillos, e por quien; la segunda, de cómo los guardasen; la tercera,de
cómo los defendiesen, e los ocorriesen cuando menester fuese; la cuarta, de cómo se los diesen
cuándo los pidiesen, o se los hubiesen a dar por derecho (PARTIDA II, p. 260-261)
23
24. Considerações finais
O nascimento de uma construção que combina os aspectos residenciais e
militares mudou a forma de se fazer guerra na Idade Média. Não somente relacionado
a batalhas, o castelo passa a ocupar posição estratégica também no campo político,
onde sua posse era concedida pelo rei em troca de favores militares ou políticos.
Possuir uma fortaleza se torna importante não somente para defesa de um território,
mas sim para seu senhor demonstrar sua posição de prestígio.
Grupo de destaque na sociedade medieval, a nobreza participou de diversos
acontecimentos históricos e influenciou a vitória e derrota de reis e rainhas. No caso
castelhano-leonês, os nobres passaram por um processo de perda de poder, prestígio
e direitos jurídicos, graças ao Rei Sábio.
Alfonso X, ao produzir Las Siete Partidas, buscou a unificação jurídica de seu
território e sua afirmação real sobre todas as camadas da sociedade. Tal unificação
gerou a fúria da nobreza castelhano-leonesa, pois sentiram-se lesados e ameaçados
com a perda de regalias e vantagens jurídicas. A relação entre a coroa e a nobreza
foi conturbada, onde várias revoltas foram registradas.
No que diz respeito aos castelos e fortalezas, parte importante no cenário de
guerra medieval, Alfonso X procurou normatizar os processos de tomada de um
castelo, assim como sua administração enquanto posse real, sua defesa, sua entrega
e sua manutenção. Os postos mais altos eram atribuídos a nobres, pois a lei estipulava
pessoas com boa linhagem sanguínea, fidelidade à coroa e outras características
facilmente identificadas como sendo da nobreza em geral.
Em Castela e Leão, durante o processo de Reconquista, Alfonso contou com o
apoio da nobreza para vencer batalhas importantes, assim como o apoio necessário
para manter suas fronteiras. Porém, visto que a nobreza era um grupo distinto que
possuía as próprias leis, o Rei Sábio buscou limitar seus poderes, normatizando os
procedimentos para tomada e manutenção dos castelos.
Podemos identificar no título XVIII da Partida Segunda um conjunto de leis
específicas para a manutenção, posse e guarda de castelos e fortalezas. Tais
construções eram atribuídas inteiramente ao rei, e era sua responsabilidade escolher
24
25. quem assumiria determinado castelo, e como o faria. Ao repassar um castelo a um
nobre, o mesmo deveria seguir as leis estabelecidas por ele. Tais leis serviram não
apenas para limitar os direitos da nobreza, mas também firmar deveres para com seu
rei e senhor.
Referências
ALFONSO X EL SABIO. Las Siete Partidas. Madrid: Editorial Reus, 2004.
ALMEIDA, Jemerson Q. de. A Reconquista como missão do príncipe castelhano
segundo a Primera Crónica General de España. Belo Horizonte: Interações –
Cultura e Comunidade, 2014.
CAIRNS, Conrad. Los Castillos Medievales. Madrid: Akal, 2010.
KEEN, Maurice. Historia de la guerra en la Edad Media. Madrid, Machado Libros,
2005.
LE GOFF, Jacques; SCHMITT, Jean-Claude. Dicionário temático do Ocidente
Medieval. São Paulo: EDUSC, 2006.
MENÉNDEZ PIDAL, Faustino. La nobleza en la España: ideas, estructuras,
historia. Madrid: Boletín Oficial del Estado, 2015.
MOXÓ, Salvador de. La nobleza castellano-leonesa en la Edad Media. Madrid:
Instituto Jeránimo Zurita, 1970.
REIS, Jaime Estevão dos. Território, Legislação e Monarquia no Reinado de
Alfonso X, o Sábio (1252-1284). Assis: UNESP, 2007. Tese Doutorado.
SENKO, Elaine Cristina. O projeto político de Alfonso X (1252 – 1284) em seu
trabalho jurídico “Las Siete Partidas”. Disponível em:
25
27. Gesta de Robin Hood
Gabriel Orlando Schile da Costa (DHI/LEM-UEM)
Simpósio Temático: A Idade Média em debate: estudo das fontes (Iniciação
Científica)
A cultura inglesa está repleta de personagens e mitos que retratam muito da história
do povo inglês, muitos destes personagens que se destacaram pelas suas façanhas
e aventuras, foram assimilados pela cultura ocidental, tornando-se símbolos de
valores e tradições específicas de diferentes períodos históricos. No caso, trataremos
da análise da principal balada medieval intitulada Gesta de Robin Hood, escrita no
início do século XVI e que reúne diversos elementos e informações sobre o famoso
fora da lei medieval. Buscaremos entender o que é e como se dá a composição de
uma balada medieval, seu encaixe social e essencialmente sua participação no
período histórico anteriormente mencionado. A fonte utilizada é a própria balada de
Robin Hood, traduzida por J. Rubén Valdés Miyares (2009). Para a análise
contaremos com uma bibliografia relativa à temática, com destaque ao trabalho de
Miguel Alarcão (2001), Príncipe dos Ladrões: Robin Hood na Cultura Inglesa (c. 1377-
1837), que traz um extenso estudo sobre a cultura robiniana, e, paralelamente, do
próprio contexto da Inglaterra medieval demonstrando o surgimento e disseminação
do mito de Robin Hood na cultura inglesa.
Palavras-chave: Robin Hood; Balada; Inglaterra;
Introdução
A literatura inglesa que analisamos em nossa pesquisa possui uma história
intimamente ligada com formação e estabelecimento da sociedade inglesa durante
os séculos XI e XV quando o embate centenário com a França conhecido como
Guerra dos Cem Anos chegou ao fim e deixou a Inglaterra em uma situação social e
politicamente conturbada, além de uma economia travada pelos imensos gastos com
a guerra e uma ação popular e religiosa contra o governo e as práticas consideradas
injustas cometidas pelos homens no poder.
27
28. A partir do século XI, o domínio normando se espalhava pela Inglaterra e
acabou também por substituir majoritariamente a cultura inglesa pela francesa, desde
as bases políticas até as sociais. A preservação da cultura anglo-saxã ficou por conta
de uma camada da população considerada subalterna, que gradualmente simplificou
a língua inglesa em sua estrutura oral e tradicional, enquanto o clero e os aristocratas
utilizavam o francês como língua principal para assuntos mais relevantes ao reino e,
naturalmente, para a tradição católica, utilizavam também o latim.
Este “inglês médio”, simplificado pela população, foi difundido principalmente
através de canções e baladas por trovadores e bardos para uma população que
majoritariamente não possuía a prática ou mesmo a aptidão de leitura. É interessante
destacar que muitas destas folksongs (canções populares) transmitem muitos dados
interessantes e úteis sobre a origem da Inglaterra e do contexto em que foram
produzidas. (SCHÜTZ, 2013, p. 1-7)
Para a população, estas leituras em forma de prosa, canção ou balada, eram
essencialmente uma forma de entretenimento, principalmente por retratarem
histórias de amor ou de aventuras de heróis valentes, a exemplo Robin Hood, uma
versão popular dos cavaleiros que acompanhavam o Rei Arthur.
Os nobres franceses que permaneceram na Inglaterra durante os próximos
séculos tornaram-se cada vez mais ingleses e em meados do século XIV o “inglês
médio” era falado na maior parte do território. Este período medieval é
particularmente marcado por muitas transformações sociais, econômicas e políticas,
a exemplo: A Guerra dos Cem Anos, A Peste Negra, A Revolta dos Camponeses, A
Reforma Religiosa liderada por John Wyclif e o desenvolvimento comercial,
potencializando a vida nas cidades novamente.
Houve de fato, em virtude do aprimoramento das técnicas de agricultura, um
aumento populacional durante os dois séculos anteriores ao século XIV. Barbara W.
Tuchman, aponta que, no entanto, a utilização exaustiva e expansão destas terras
produtivas atingiram seus limites, e com a ausência de uma irrigação e fertilização
adequada, a produção agrícola estagnou e o solo gradualmente tornou-se menos
fértil. As cidades interioranas que estavam habituadas a se abastecerem apenas com
os recursos locais logo ficaram escassas, uma vez que o comércio não estava
preparado para transportar tantos excedentes de produção e a fome tornou-se
comum entre os habitantes (TUCHMAN, 1991, p. 24).
28
29. Tuchman também dá destaque para a ação do crescimento do Estado e seus
meios para buscar tal crescimento. Foi na cobrança insistente de impostos que o
governo centralizado se desenvolvia, de modo a exigir a cobrança de tributos de
todos seus servos. E mesmo que a atividade econômica fosse na maioria dos casos
contraditórios aos ideais da Igreja (muito poderosa na época em questão), muitos
destes homens econômicos, acabaram conciliando seus negócios com o
cristianismo, pois seus feitos eram praticados “Em nome de Deus e do lucro”. Durante
este período acentuou-se a divisão entre ricos e pobres, pois através do controle dos
meios de produção e das matérias-primas, a exploração do camponês e pobre era
tida como comum e o sentimento de injustiça incitava um movimento de revolta
popular (TUCHMAN, 1991, p. 36-37).
O homem comum acabou encontrando nas confrarias ou irmandades de seu
ofício ou aldeia, o consolo de seu desgaste social através de companheiros que
partilhavam entre sí suas opiniões, meios de sobreviver e se habituavam em tolerar
a vida coletivamente. Mantidas por porções da renda dos próprios trabalhadores,
estas fraternidades produziam peças religiosas, apresentações musicais e de atores
e ajudantes, competições esportivas e jogos, distribuíam prêmios e convidavam
oradores ou pregadores em ocasiões específicas. Preparavam doações para a Igreja
e encomendavam coros ou livros com iluminuras, se sentindo satisfeitos por
patrocinar as artes tal qual os nobres e suas ordens cavalheirescas (TUCHMAN,
1991, p. 39).
Então em 1337, após alguns anos de conflitos isolados com a França, Eduardo
III, rei inglês a partir de 1327, conhecido por seus sucessos militares e por
reestabelecer a ordem na administração da coroa inglesa após o não tão bom reinado
de seu pai, Eduardo II. Declarou-se rei do trono Francês e iniciou um embate militar
e político que durou até metade do século XV e ficou conhecido historicamente como
“Guerra dos Cem Anos”.
Baseando-se no conceito de “guerra justa”, Tuchman esclarece os motivos que
permitiram que Eduardo III obtivesse apoio para estabelecer, o que acreditava ser,
seu direito ao trono francês. Basicamente uma “guerra justa”, segundo a autora, toma
como verdadeiro um embate declarado publicamente contra uma atitude “injusta” e
arriscar a vida para combater tal injustiça, dava direito à recompensa desejada, no
caso de Eduardo III, o trono Francês que supostamente o pertencia por direito de
29
30. sangue, já que sua mãe, Isabel da França, era a única filha viva de Filipe IV da
França, rei até 1314, quando faleceu de derrame (TUCHMAN,1991, p. 69-86).
Eduardo III então conquistou o apoio dos senhores de ducados da Bretanha e
da Normandia, uma vez que, no século XIV, a fidelidade ainda não era atrelada às
nações, mas sim a uma pessoa, os senhores tinham a liberdade de fazer alianças
que julgassem benéficas para ambos os lados. Com apoio dentro do território francês,
Eduardo III não teve muitas dificuldades em desembarcar sua infantaria e seus
arqueiros no continente. Fornecendo suporte em troca de fidelidade para os senhores
que dominavam as diferentes regiões entre os dois territórios, ambos monarcas da
França e da Inglaterra, lançaram-se em um embate militar e político que apenas foi
interrompido por outro grande e horrível acontecimento também deste século, a Peste
Negra.
Dos males que afligiram a humanidade, é certo que a Peste Negra, também
conhecida como peste bubônica, foi um dos mais devastadores, uma vez que se
estipula um número próximo ou até maior que 20 milhões de mortes, ou seja, 1/3 da
população europeia nos anos de maior contaminação. Segundo Tuchman, a alta
mortalidade e o rápido contágio, aliados ao desconhecimento de formas de
prevenção e remédios explica o porquê a Peste Negra foi considerada em sua época
uma maldição divina. Com a escassez de mão-de-obra, os campos pararam de ser
cultivados, os animais de criação foram abandonados à própria sorte. Membros do
clero e médicos pereciam aos montes devido à natureza de suas profissões e foi
através destes inclusive, que muitas teorias de infecção surgiram na época, a
exemplo a teoria em que o ar em torno dos doentes e mortos ficava envenenado e
seria fatal para aqueles que estivessem por perto, e outra de que a própria troca de
olhares com o enfermo já seria o suficiente para transmitir a peste (TUCHMAN, 1991,
p. 87-117).
A doença não fazia distinção entre nobres e pobres, Alfonso XI de Castela, foi
o único monarca vítima fatal da peste, mas muitos outros senhores de castelos,
princesas e príncipes pereceram. Aqueles com dinheiro suficiente, fugiam para suas
casas de campo pois, diferente dos povoados rurais, onde a doença aparecia entre
intervalos de 4 a 6 meses, nas cidades com a concentração de pessoas e
consequentemente de sujeira e ratos, a Peste Negra não dava trégua, já o embate
entre França e Inglaterra, foi interrompido no ato pelas numerosas perdas de ambos
30
31. os lados e poupar o dinheiro que estava sendo excessivamente gasto com a guerra
foi de grande ajuda para todos os senhores que participavam.
Quanto mais despesas eram gastas com a guerra, mais da população o
Parlamento inglês retirava para cobrir os custos. Atitude que ficou extremamente
marcada no cotidiano inglês da época e acabou por gerar muitas insatisfações e
movimentos populares contra as altas taxas que pagavam à coroa. Na igreja também
o materialismo e o mundanismo de seus representantes são, segundo Tuchman, o
que levou John Wyclif, teólogo, tradutor e escritor a elaborar uma Reforma na igreja
que conquistaria o pensamento e concordância de muitos na Inglaterra (TUCHMAN,
1991, p. 264-267).
Muitos destes pensamentos religiosos e ideológicos acabaram
complementando as bases de uma das principais revoltas populares da Baixa Idade
Média na história da Inglaterra durante o reinado de Ricardo II em 1381. Também
conhecida como Rebelião de Tyler, o movimento reuniu uma imensa quantidade de
camponeses que também buscavam reformas pelos seus direitos como servos. Uma
vez que possuíam treinamento militar com manuseio do arco e da besta, os
camponeses voltaram-se contra algumas taxações impostas pelo governo como
forma de suprir os gastos com o embate contra a França.
Considerando que a origem da fonte que trabalharemos foi impressa entre
1495 e 1510, é necessário que, antes, busquemos entender suas características.
Como apontado anteriormente, todo este período histórico foi marcado por uma série
de transformações, assim também um novo tipo de movimento criminal surgia em
meio a sociedade, o ladino e o vagabundo, que se misturavam à vida social não se
distinguindo dos cumpridores da lei, a literatura foi adaptando-se e modificando-se
conforme a cultura inglesa o fazia. A “rogue literature” (literatura ladina/criminosa)
surgiu exatamente com essa mudança na cultura do crime como uma expressão
cultural popular e que contribuiu com a idealização de Robin Hood através de muitas
histórias isoladas que foram sendo reunidas e possibilitaram a elaboração dos
elementos de um dos personagens medievais mais famosos da história da Inglaterra
(HERE BEGYNNETH, 2016.).
Os estudos do folclorista Francis James Child (1965) e de David C. Fowler
(1968) a respeito da atividade baladística são referências para o estudo da lenda de
Robin Hood. Child estudou a respeito dos diferentes tipos de baladas, suas
características específicas no momento histórico em que se apresentavam, enquanto
31
32. Fowler preocupou-se com as formas estruturais que as baladas populares adquiriram
no século XVIII.
Miguel Alarcão, ao introduzir o termo “balada” em seu trabalho, expõe como
trata-se de uma elaboração de autores como Francis James Child e David C. Fowler,
sobre espécimes medievais que sobreviveram e possuíam algumas características
literárias peculiares e particulares. O suporte musical que acompanhava o texto ou
parte dele, segundo Alarcão, é identificado na forma da composição e transmissão
destas histórias, pois quando era necessário destacar um momento mais significativo
do enredo, o executante, ou seja, aquele que declamava a balada, utilizava de
acordes sonoros ou sons do ambiente para chamar a atenção do público (ALARCÃO,
2001, p.17).
Alarcão destaca os tipos de baladas que normalmente são encontrados em
diferentes momentos históricos, é importante salientar que estes tipos de baladas
estão associados ao contexto histórico em que surgiram. A princípio, o tipo
“tradicional”, como define o autor, constitui-se em um testemunho, baseado em um
relato muito ligado à realidade e remetendo diretamente aos acontecimentos da
história contada. A oralidade é a ferramenta principal deste tipo de balada, uma vez
que a taxa de analfabetismo era altíssima, sendo o acesso e prática da leitura um
monopólio da Igreja e de leigos que estudaram através das catedrais, abadias ou
mosteiros. Ainda que essa taxa de analfabetos se modificou com o aparecimento das
primeiras escolas e universidades durante o século XII e XIII, a prática da leitura era
voltada para atividades profissionais e religiosas. (ALARCÃO, 2001, p.18).
O segundo tipo histórico de balada, limitando-se ao caso robiniano, durante os
séculos XVII e XVIII surgiram as broadsides ou broadside ballads, que Alarcão define
como uma espécie de literatura de cordel que foram impressas e reimpressas muitas
vezes e acabaram perdendo a qualidade e tornando-se leituras banais. Por último, o
tipo “balada literária” explorada muito na obra de Fowler (Fowler, 1986), trata-se do
texto original, mas que havia sido reformulado em uma métrica específica e utilizava-
se de recursos rimáticos, vocabulares ou retóricos que caracterizaram o que
conhecemos como específicos da estrutura de uma balada literária. (ALARCÃO,
2001, p.19-20).
A gesta, ou seja, “uma forma transicional de poesia que estava se
desenvolvendo no século XV, quando a tradição de romance métrico da Idade Média
tardia se juntou à corrente principal de canções folclóricas para criar um tipo de
32
33. canção narrativa que nós chamamos de balada” (OHLGREN, 2005, p.357). Sua
composição atrelada ao romantismo sugere que seu objetivo é de fato buscar o
entretenimento daqueles que não sabiam ler ou que preferiam voltar sua atenção
para seus canecos de cerveja enquanto ouviam uma boa história.
É uma tarefa muito difícil, retirar fatos históricos deste tipo de fonte, como
apontam os estudos de Jim Bradburry e Thomas Ohlgren, pensar no próprio Robin
Hood como pessoa vivente é algo indeterminado, uma vez que sua “idade” é muito
mais antiga do que a própria escrita da gesta: “Suas origens podem ser encontradas
em algum lugar entre o período 1200 e 1350” (BRADBURY, 1999, p.58). Assim
existem evidências de Robin Hood que nos levam desde o século XI até o XVI pelo
menos.
Uma gesta de Robin Hood foi a mais popular das baladas de Robin Hood,
houve dezenas de edições impressas entre os séculos XVI e XVII. Basicamente trata-
se de uma reunião das principais historietas recolhidas da lenda de Robin Hood. As
edições modernas são baseadas em dois incunábulos, uma espécie de livro impresso
nos primeiros tempos da imprensa a partir de 1501, são as edições de Jan van
Doesbroch, impressa em Antuérpia (Bélgica) em 1510 e outra de Wynkin de Worde,
possivelmente até mais antiga, no entanto com mais erros, utilizada normalmente
para completar a de van Doesbroch durante os estudos (VALDÉS MIYARES, 2009,
p. 98-99).
Possibilidades de análises a partir da obra Gesta de Robin Hood
A Idade Média, ainda sofre com um preconceito histórico devido a muitas
noções fragmentadas e contraditórias que foram e são ainda transmitidas por
diversos meios. Há um abuso constante dos conceitos relativos ao período medieval,
que acaba sendo equivocadamente representado como um momento histórico
flagelado pela Peste e pela opressão das fogueiras da Inquisição. Segundo Barbara
W. Tuchman, é um período repleto de contradições devido as diversas descrições
que surgiram e foram interpretadas de muitas maneiras ao longo do tempo, mas que
fazem parte da vida e do estudo da Idade Média (TUCHMAN,1991, p. xii).
No entanto, segundo Raúl Cesar G. Fernandes, desde os anos 50 houve uma
conquista para os estudiosos e estudiosas medievais do século XX e XXI. Pois o
retrato social, político e cultural, permite o questionamento e reflexão sobre como
33
34. deu-se as transformações do período medieval para o mundo contemporâneo, é
possível também observar quais mudanças sensíveis e bruscas, positivas e/ou
negativas integram a sociedade dos dias atuais em relação a daqueles dias
(FERNANDES, 1999, p.1-6).
Ao estudarmos a literatura medieval encontramos elementos artísticos
relegados a uma época específica e como o contexto histórico da elaboração destas
obras está intimamente conectado a elas, assim sendo, independente da veracidade
dos personagens e acontecimentos presentes nestas literaturas, as informações que
como historiadores filtramos delas são essenciais e ricas em um estudo mais
aprofundado. A Gesta de Robin Hood, reúne além dos principais feitos do famoso
fora-da-lei medieval, uma gama de informações sobre uma sociedade inglesa que
sofreu pela violência da Guerra dos Cem Anos e pelos males da Peste Negra, por
uma revolta ideológica e religiosa que resultou nos primeiros movimentos para o fim
da servidão, uma sociedade transformada e que alcançou a Era Moderna com os
princípios de uma noção de nação e posição dentro da mesma.
Considerações finais
Ainda que ligada a muitos acontecimentos trágicos e até então inéditos para a
sociedade ocidental europeia, a Baixa Idade Média também possuiu uma gama de
renovações do conhecimento e dos princípios da criação de identidades nacionais.
Muitos dos símbolos que associamos à Idade Média culturalmente, são provenientes
deste período que estudamos, a exemplo o monarca em controle absoluto de seu
castelo e súditos, grandes exércitos montados com armaduras e armas mortais, a
Igreja reformulando-se e ainda mais presente na unidade secular, assim como
também diversas tecnologias que possibilitaram o alcance e descoberta de novas
regiões geográficas habitadas por outras sociedades.
Muitos destes elementos foram expressados artisticamente através da
literatura, das canções e do teatro, portanto é possível localizarmos na Gesta de
Robin Hood para além dos elementos que citamos anteriormente deste período
medieval, uma perspectiva histórica do ambiente e da vida cotidiana de pessoas que
não estavam protegidas nas torres de seus castelos e nem abastadas com montantes
de ouros que garantiriam sua alimentação, segurança e conforto. Tratam-se de
pessoas que viviam em muito sob a tutela e exploração de senhores e que utilizaram
de ações peculiares para garantirem sua sobrevivência no meio social medieval e
34
35. também como um meio de expressar a insatisfação com sua situação, Robin Hood
é um símbolo preservado de uma unidade histórica que permaneceu apagada
durante muito tempo pela historiografia tradicional.
Referências
ALARCÃO, Miguel. Principe dos Ladrões: Robin Hood na Cultura Inglesa (c.
1377-1837), Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001.
BRADBURRY, Jim. The Medieval Archer. Woodbridge (Suffolk): The Boydell Press,
1999.
CHILD, Francis James (ed.) The English and Scottish Popular Ballads, New York:
Dover Publications, 1965, 5 vols.
FERNANDES, Raúl Cesar Gouveia. Reflexões sobre o estudo da Idade Média.
Revista Videtur, v. 6, 1999.
FOWLER, David C. A Literary History of the Popular Ballad, Durham, North
Carolina, Duke University Press, 1968.
HERE BEGYNNETH, A.; HOOD, Robin. Curteous Outlaws and Elizabethan Rogues:
The 16th-Century Context of “A Gest of Robyn Hode”. Forthcoming MEMS Festival,
University of Kent, 2016.
OHLGREN, Thomas H. (Ed.). Medieval outlaws: twelve tales in modern English
translation. Parlor Press LLC, 2005.
SCHÜTZ, Ricardo. História da língua inglesa. English Made in Brazil, 2013.
VALDÉS MIYARES, J. Rubén. Baladas de Robin Hood. Madrid, Ediciones Akal,
2009.
TUCHMAN, Barbara Wertheim; DUTRA, Waltensir. Um espelho distante: o terrível
século XIV. José Olympio, 1991.
35
36. O MARAVILHOSO MEDIEVAL: MAGICUS E MIRACULOSUS NO LIVRO
VIAGENS DE JEAN DE MANDEVILLE.
Jorge Luiz Voloski
(PIBIC/DHI/LEM/UEM)
Resumo:
Esta comunicação tem como objetivo discutir as manifestações maravilhosas no livro
Viagens de Jean de Mandeville, focalizando, sobretudo, no magicus e miraculosus.
Buscamos perceber tais expressões como causadoras de admiração, espanto e
fascínio, mas, sem perder de vista o fato de que, para o homem medieval, tais
manifestações eram percebidas como naturais, ou seja, emolduradas ao
funcionamento normal da realidade, tanto para o leitor quanto ao escritor. Além do
mais, buscamos perceber em quais momentos aparecem tais manifestações, bem
como ao que estavam ligadas. Para tal empreitada usaremos o escrito de Jean de
Mandeville, escrito em meados do século XIV, o qual narra o deslocamento do
fictício cavaleiro, por terras orientais. A edição que utilizamos, traduzida por Susani
Silveira Lemos França, é dividido em duas partes, sendo a primeira, a exposição do
caminho da Inglaterra à Jerusalém, enquanto a segunda apresenta a descrição dos
locais posteriores à Terra Santa até o Extremo Oriente. Concluímos, entre outras
coisas, que na primeira parte abundam as maravilhas ligadas ao cristianismo,
miraculosus. Ao contrário da segunda, onde observamos o maior número
relacionado ao paganismo, nesse caso o magicus. Na discussão utilizaremos os
escritos de Jacques Le Goff (1985), Ana María Morales (2003), Claude Kappler
(1986), entre outros.
Palavra Chave: Idade Média; Maravilhoso, Jean de Mandeville.
Financiamento: CNPq.
INTRODUÇÂO
Tradicionalmente, o estudo da problemática histórica relativa às viagens e aos
viajantes na Europa esteve ligado quase exclusivamente ao período moderno e
36
37. contemporâneo, transferindo, desta forma, o medievo ao segundo plano. Isso
ocorreu, segundo Paulo Catarino Lopes, por considerações anteriores que
concluíram à Idade Média, por sua predominância da ruralidade, o quase nulo
deslocamento. Porém, para o autor, estudos contemporâneos estão demonstrando
que na Idade Média, sobretudo após o século XII, sucederam inúmeros
deslocamentos, assim, ―sabemos atualmente que o homem medieval viajou muito
mais do que aquilo que se supunha‖ (LOPES, 2004, p.49).
Entre as motivações das viagens na Idade Média podemos destacar, por
exemplo, diplomacia, peregrinação, evangelização, trocas de mercadorias, busca
por aventuras, fugas por crimes, caçadas. Igual modo às causas para os
deslocamentos, em essência bastante variada, os viajantes constituíam um grupo
heterogêneo formado desde pessoas com grandes riquezas, como reis e nobres, até
camponeses em busca de novas oportunidades de trabalho. Não podemos
negligenciar, entretanto, os movimentos considerados pelos homens
contemporâneos como imaginários, visto que, para a mentalidade daquela época o
entendimento de real e imaginário era diferente.
Assim, partindo de Paul Veyne, não pensamos como suficiente apenas o
apoio na periodização para entender a individualidade do fato histórico, neste caso a
Viagem, pois, creditamos a isso a incapacidade da exposição das reais
singularidades, as quais acabam sendo legadas ao instinto do leitor. Seguindo
Veyne, pensamos que a História impõe a tarefa de ―conceituar, a fim de delimitar a
originalidade das coisas‖ (VEYNE, 1983, p.34-39).
A viagem na Idade Média, portanto, se apresenta de forma ambígua aos
nossos olhos, pois, carrega tanto um significado atemporal, em quanto movimento
existencial até a ordem eterna, como também sentido temporal, seja por objetivos
econômicos, diplomáticos ou religiosos. Diferente da atualidade, o itinerário, no
medievo, não era visto unicamente na forma do deslocamento físico ou espacial,
configurava, além do mais, um quadro simbólico. A busca por salvação, comercio e
conhecimento indica-nos que a percepção de translado abarcava ambos
hibridamente, o físico e o espiritual (CASTRO HERNÁNDEZ, 2013).
Entre as características das viagens medievais destaca-se a irrelevante
distinção entre o factual e a ficção. Isso porque, esses escritos sobre deslocamento,
transmitiam um elevado grau de ficcionalidade, a qual era reforçada tanto pela
37
38. origem subjetiva da experiência do relator, quanto com o submetimento a ideias
preconcebidas sobre o espaço e o tempo (CONDE SILVESTRE, 2011, p.232-233).
Dentre as principais ideias preconcebidas sobre as terras localizadas no
Oriente enfatizamos as ―maravilhas‖, as quais, mesmo tendo origem na Antiguidade
perduraram por toda a Idade Média. Para Jacques Le Goff a mirabilia no medievo,
no âmbito do sobrenatural, é dividida em três partes: mirabilia, maravilhoso pré-
cristão; magicus, sobrenatural maléfico, satânico e; miraculosus, a maravilha cristã,
ou seja, o milagre (LE GOFF, 1985, p.24).
Partindo da separação proposta por LE GOFF (1985) esta comunicação
pretende compreender as mirabilia presentes no livro Viagens de Jean de
Mandeville (2017), traduzido e organizado por Susani Silveira Lemos França,
enfatizando, sobretudo, o magicus e miraculosus.
OBJETIVOS
Constitui objetivo da presente comunicação debater o maravilhoso presente
no livro Viagens de Jean de Mandeville (2017), traduzido e organizado por Susani
Silveira Lemos França, com enfoque no magicus e miraculum. Em tal empreitada
não buscamos apresentar uma categorização que inclua todas as obras de Jean de
Mandeville, muito menos, a inumerável quantidade de fontes, as quais, de certa
forma, se relacionam com a temática proposta. Tencionamos, portanto, perceber os
momentos que no texto aparece os termos ―milagre‖, ―magia‖, ―feitiçaria‖ e
―encantamento‖ e debater com a produção bibliografia produzida a esse respeito,
além, certamente, da ligação dos vocábulos com a concepção medieval de mirabilia.
RESULTADOS
Durante muito tempo os eruditos afiançavam a autoria do livro Viagens de
Jean de Mandeville a um cavaleiro, Jean de Mandeville, nascido em Saint. Albans
que no ano de 1322 realiza uma viagem até as terras do Além-mar, regressando no
ano de 1356 por efeito de uma artrite gotosa. Contudo, a descoberta, no século XIX,
de que a obra poderia refletir um acoplado de outros escritos de viagens fez com
que muitos pesquisadores questionassem o deslocamento do autor, bem como, a
real existência do personagem. Atualmente, é quase unânime entre os estudiosos a
38
39. tese da qual não foi Jean de Mandeville que escreveu a obra, assim como, seu
verdadeiro autor escreveu sem sair de casa.
O fato de ser uma viagem imaginária não impossibilitou a ampla propagação
da obra em seu contexto histórico, visto que, foi um dos livros mais disseminados em
fins da Idade Média e início da Modernidade. Tal fato sucede, em partes, pelo seu
conteúdo conseguir satisfazer o anseio do publico europeu a respeito das coisas
diferentes e estranhas que se encontravam em terras longínquas.
O estranho, também chamado de ―maravilhoso‖, aparece nas duas partes do
livro, ou seja, tanto na descrição das terras da Europa até Jerusalém, quanto nas
localidades além da Terra Santa ao domínio do Preste João.
Atualmente essas manifestações maravilhosas podem ser estudadas como
uma categoria de ideias ou expressões literárias e artísticas. Entretanto, durante a
Idade Média, a mirabilia esteve longe de envolver unicamente as abstrações do
pensamento ou de ser apenas uma categorização das coisas estranhas, ao
contrário, formava um universo real, coexistente com o cotidiano, mesmo que, em
muitos casos, consistisse em seres, lugares e objetos que são extraordinários,
admiráveis, ou, sobrenaturais (ALTAMIRANO MEZA, 2008, p.12).
Pablo Castro Hernández substancialmente define o ―maravilhoso‖ tanto como
um espanto provocado pelo sobrenatural, quanto na admiração da natureza
excepcional dos objetos e fenômenos vislumbrastes. É algo, na opinião do autor,
que rompe com o cotidiano, causando admiração, surpresa e gosto pelo novo e
diferente (CASTRO HERNÁNDEZ, 2005, p.18).
Selma Calasans Rodrigues, buscando melhor demonstrar a ligação entre a
palavra maravilha e a admiração, liga o referido termo a sua raiz etimológica, miror,
a qual, em latim, carregava o significado de fascínio, espanto, para com o ato,
pessoa ou coisa apreciada. A autora afirma, além do mais, que na teoria literária
atual o vocábulo ―maravilha‖ é ―historicizado‖, pois, é usado para designar a
interferência de deuses, quando ligado ao paganismo, ou dos seres sobrenaturais,
como, por exemplo, fadas e anjos, ou, aos milagres, caso ligado ao cristianismo
(RODRIGUES, 1988, p.54-55).
De certa forma categorizando a perspectiva de RODRIGUES (1988), o
pesquisador Jacques LE GOFF em seu livro O maravilhoso e o quotidiano no
Ocidente Medieval (1985), afirma que o maravilhoso no âmbito do sobrenatural é
dividido, após o século XII-XIII, em três domínios: mirabilis, a maravilha com origem
39
40. pré-cristã; magicus, inicialmente usado de forma neutra designando tanto uma
magia ligada á Deus, quanto ao diabo, mas que, em fins do medievo, transportava o
significado do maléfico e satânico; miraculosus, o maravilhoso propriamente cristão,
ou seja, o milagre (LE GOFF, 1985, p.24).
Sobre a relação entre a maravilha e o milagre Axel Rüth, de forma
pragmática, afirma que, nos anos seguintes ao século XII ocorre o início do processo
de uma distinção entre o mirabilia e o miracula1
. Para o autor,
―(...) os dois [termos] têm em comum a invocação do maravilhoso e
assombroso, [mas] a mirabilia [está] em direção as coisas que não
entendemos, [enquanto] miracula significa as ações de Deus ou
contrárias a natureza (ísica/ contra naturam). A maravilha pode ter
diferentes razões enquanto o milagre pode ter apenas uma. A
maravilha é geralmente alguma coisa extraordinária, mas não contra
natura, enquanto um milagre designa uma intervenção de Deus‖
(RÜTH, 2011, p.93)2
.
Ana Borja López parte da raiz etimológica dos termos ―maravilha‖ e ―milagre‖
para demonstrar suas conexões. Assim, a autora afirma que,
―o núcleo lexical mir -, que indicava ‗mirada‘, ‗visualização‘,
‗assombro‘, procede do latim mirári, derivado do adjetivo mirus, que
significava ‗maravilhar-se‘, ‗mirar com maravilha, admiração‘. Mirári
além do mais, é a origem do termo milagro, pelo que é possível
relacionar maravilla e milagro desde um ponto de vista etimológico.
Assim, a voz latina mirus (‗surpreendente‘, ‗estranho‘, ‗maravilhoso‘)
agrupa em suas acepções ambos vocábulos, se bem [que] o
emprego epíteto é pouco comum e esta reservado a mirabilis, que
em latim imperial substitui mirus. Como derivados se
documentavam, assim mesmo, miraris, ‗surpreenderse‘, ‗mirar com
surpresa ou admiração‘ e miraculum ‗coisa surpreendente‘ e, na
1
Importante ressaltar que, para Alex Rüth, ―The distinction between mirabilia and miracula is not only
one between phenomena, but also between textual genres. Although both terms have the same
origin, they belong to different textual traditions, characterized by different conceptions of admiratio,
due to two different attitudes towards nature: admiration in face of the non-understandable in the
mirabilia produces astonishment—not because the order of nature is disturbed but because the
reasons for a phenomenon are unclear, whereas miracula exceptionally abolish the order of nature.
As to the history of knowledge, the wondering of the mirabilia, however ―fabulous‖ these stories and
descriptions might be, belongs to the sphere of curiositas: it is a philosophical wondering.18 The
wondering of the miracula is different: it shall create admiratio of the saint‘s virtue‖ (RÜTH, 2011,
p.94).
2
―(…) both have in common is the evocation of wonder and astonishment, the mirabilia towards
things we do not understand, the miracula towards actions of God beyond or contrary to nature (
ísica/contra naturam). The marvellous can have many different reasons whereas the miraculous can
only have one. A marvel is generally something extraordinary, but not contrary to nature, whereas a
miracle designates an intervention by God‖ (RÜTH, 2011, p.93).
40
41. língua religiosa, ‗ prodígio‘ ou ‗milagre‘, com sentido ‗laudatório‖
(BORJA LÓPEZ, 2016, p.68)3
.
A ligação entre mirabilis e miraculum aparece também no livro Viagens de
Jean de Mandeville. Em um desses momentos, o suposto cavaleiro alega que
pecavam aqueles indivíduos que ocultavam um ―milagre‖, como justificativa o autor
se ampara nas palavras de Davi, para o qual, as mirabilia são testemunhas de Deus
(MANDEVILLE, 2017, p.80).
Em outra ocasião da obra, Jean de Mandeville afirma que a elevação do mar,
em certa localidade, é uma maravilha, em seguida, o autor apresenta uma
passagem do saltério de Davi, o qual utiliza o termo mirabiles para se referir a altura
da água, vocábulo compreendido, pelo suposto cavaleiro, como sinônimo de
maravilha (MANDEVILLE, 2017, p.181). O ponto, contudo, é que depois de
descrever inúmeras regiões o escritor utiliza novamente a palavra mirabile ao relatar
um ―milagre‖ realizado por Deus – a completa escuridão sobre um imperador Persa
que perseguia os Cristãos (MANDEVILLE,2017, p.221). Constatamos, desta forma,
que no livro Viagens de Jean de Mandeville, o autor percebia o milagre de modo da
admiração, ou seja, algo maravilhoso.
Entretanto, há uma diferença entre o ―maravilhoso‖ e o ―milagre‖4
. O primeiro
abrange uma infinidade de manifestações, a título de exemplo, a forma6física dos
seres que habitam em terras longínquas, a forma que os barcos são produzidos,
entre outros. Já o segundo, está exclusivamente ligado a fatos e crenças religiosos,
como, por exemplo, a não entrada de insetos em um mosteiro, rocha marcada pelo
corpo de Moisés, árvore que secou após a morte de Jesus e que florescerá após um
príncipe do Ocidente reconquistar a Terra Prometida, o rápido deslocamento dos
três reis magos até Jerusalém no momento do nascimento de Jesus, entre outros.
3
―El núcleo lexical mir -, que indicaba ‗mirada‘, ‗visualización‘, ‗asombro‘, procede del latín mirári,
derivado del adjetivo mirus, que significaba ‗maravillarse‘, ‗mirar con maravilla, admiración‘, Mirári,
además, es el origen del término milagro,por lo que es posible relacionar maravilla y milagro desde
un punto de vista etimilógico. Así, la voz latina mirus (‗sorprendente‘, ‗extraño‘, ‗maravilloso‘) agrupa
en su acepciones ambos vocablos, si bien el empleo como epíteto es poco común y estáreservado a
mirabilis, que en latín imperial reemplaza a mirus. Como derivados se documentan, asimismo,
miraris, ‗sorprenderse‘, ‗mirar con sorpresa o admiración‘, y miraculum, ‗cosa sorprendente‘ y, en la
lengua religiosa, ‗prodigio‘ o ‗milagro‘, con sentido laudatorio ( BARJA LOPÉZ, 2016, p.68) .
4
A respeito disso destacamos Mercedes Brea, a qual afirma que, ―es posible (aunque puede que
también discutible) que no todas las maravillas sean milagros, pero sí parece seguro que, en mayor
o menor medida, todos los milagros son maravillas, al menos desde el punto de vista etimológico‖ (
BREA, 1993, p.49)
41
42. O aspecto religioso dos milagres não é unicamente associado ao cristianismo,
isso porque, em dois momentos diferentes o encontramos aludido a outras crenças.
Na primeira situação, Jean de Mandeville descreve a entrada de Maomé em uma
ermida, de portas pequenas, mas que, cresce, como um Palácio, após o ingresso do
profeta – ―este foi o primeiro milagre que, segundo os sarracenos, fez Maomé em
sua juventude‖ (MANDEVILLE, 2017, p.139). Na segunda circunstância, o suposto
cavaleiro ao expor as festas realizadas nas terras do Grande Cã, se refere a uma
praticada em comemoração a circunstância que o ―Ídolo começou a falar ou a fazer
milagres‖ (MANDEVILLE, 2017, p.203).
O fato de o Ídolo fazer milagres, por conseguinte, não resulta em sua
automática associação a Deus, ainda que, por meio dele, se expressem os anjos.
Isso ocorre porque existem dois tipos de anjos, os bons e os maus e, ―não é o anjo
bom, mas o mau que está dentro [desses] Ídolos para [enganar os idólatras] e fazer
com que permaneçam em seu engano‖ (MANDEVILLE, 2017, p. 254).
De forma análoga aos anjos maus, Jean de Mandeville descreve os feiticeiros
e encantadores, os quais, por meio de suas ―magias‖, realizam proezas com o
objetivo de enganar. Propósito aproximado, no entanto, não significa associação
integral, visto que, em fins da Idade Média, o milagre (miraculosos) era a antítese
das variadas expressões da magia (magicus) (NEPOMUCENO, 2017, p.8). Tal
oposição é determinada pelo fato de que o magicus, ao necessitar da ajuda
demoníaca para ocorrer exclui a possibilidade de ser entendido como operação
divina ou manifestação normal da natureza (CASTRO HERNÁNDEZ, 2016, p.68-
70).
Deuses, feiticeiros ou encantadores, na obra de Jean de Mandeville, são os
principais parceiros do diabo em suas ações. Existem, no entanto, formas de
proteção contra as empreitadas desses seres, como, por exemplo, o diamante, o
qual, além de proteger os que o carregam, faz voltar os ―malefícios ou
encantamentos‖ contra o atacante (MANDEVILLE, 2017, p.156).
Importante destacar que, mesmo o magicus sendo oposto ao milagre,
resultado de ações demoníacas, ele não é excluído das coisas que causam
admiração e, o suposto cavaleiro, deixa isso claro em dois momentos. Na primeira
situação o autor afirma que os encantadores e pelotiqueiros, que residem na corte
do Grande Cã, fazem muitas ―maravilhas‖, pois podem fazer o sol ou a lua prestar
homenagem ao Imperador (MANDEVILLE, 2017, p.206). Na segunda ocasião, o
42
43. suposto cavaleiro, descreve uma arvoreta a qual cresce até o meio dia, mas depois
somem (MANDEVILLE, 2017, p.231).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao relacionarmos os termos ―milagre‖, ―feitiçaria‖, ―encantamento‖ e ―magia‖,
presentes no livro Viagens de Jean de Mandeville, com a bibliografia referente ao
tema, percebemos que o miraculoso estava ligado ao sobrenatural divino, ou seja, a
presença divina é sempre muito marcante. Isso ocorre até mesmo em momentos
que a palavra ―milagre‖ é usada para designar os feitos de Ídolos e de Maomé, pois,
o primeiro consiste em uma manifestação de anjos maus, e o segundo, mesmo com
algumas diferenças dogmáticas, credita a Jesus e Nossa Senhora a salvação
eterna5
.
Sem embargo, o Magicus não carrega a nula influência do cristianismo, de
outro modo apresenta-se como o sobrenatural que não exige, indispensavelmente, a
presença divina, uma vez que, deuses, feiticeiros e mágicos estão aptos a realizar
referida manifestação.
REFERÊNCIAS
ALTAMIRANO MEZA, Gerardo Román. Lo maravilloso al servicio de la
configuración heróica en el Libro de Alexandre. México, DF: UNAM, 2008. Tésis
de Licenciatura.
5
É no capítulo 15 da obra que encontramos a palavra ―milagre‖ designando os feitos de Maomé,
porém, influi significativa a forma que o suposto cavaleiro descreve a religião dos sarracenos,
sobretudo, ao colocar que os sarracenos ―afirmam que Abraão era amigo de Deus, que Moisés era o
porta-voz de Deus, que Jesus era a palavra e o espírito de Deus e que Maomé era o verdadeiro
mensageiro de Deus. E dizem que dos quatro, Jesus Cristo era o mais digno, o mais magnífico e o
maior. Contudo, apesar de partilharem muitos artigos de nossa fé, sua religião e suas crenças não
são perfeitas como as dos cristãos, mas é fácil que possam converter-se, especialmente os que
tomam conhecimento das escrituras e das profecias, pois têm os Evangelhos, as profecias e a Bíblia
traduzidos em sua língua e reconhecem muito da Sagrada Escritura. O problema é que entendem ao
pé da letra, do mesmo modo que os judeus, pois eles não conseguem compreender a letra
espiritualmente, apenas corporalmente, e por isso, recriminam os verdadeiros sábios que a
interpretam espiritualmente‖ (MANDEVILLE, 2017, p. 138). Desta forma, talvez, em um estudo mais
detalhado da relação de Jean de Mandeville com os sarracenos e sua analise por meio do
entendimento filosófico do milagre em fins da Idade Média pudesse concluir que miraculosus estava
correlacionado com o sobrenatural divino, mas não necessariamente com a vontade de Deus.
43
44. BORJA LÓPEZ, Ana. La maravilla en Il Milione: milagros y elementos diabólicos.
Ámbitos: revista de estudios de ciencias sociales y humanidades, núm. 36 (2016),
pp. 67-74.
BREA, Mercedes. Milagros prodigiosos y hechos maravillosos en las Cantigas de
Santa María. Revista de Literatura medieval, V, 1993, pp.47-61.
CONDE SILVESTRE, Juan Camilo. De la peregrinación medieval al viaje imaginário:
la evolución literaria y estética de un género como prefiguración del hecho turístico.
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45. A LOGÍSTICA DA GUERRA NO REINADO DE FERNANDO III (1217-1252): AS
EXPEDIÇÕES MILITARES
Lucas Vieira dos Santos
DHI/LEM/UEM
Resumo: As guerras medievais, segundo a historiografia do final do século XIX e do
início do século XX, representaram um momento de estagnação militar. Autores do
período afirmavam que as técnicas bélicas utilizadas no decorrer do medievo não
poderiam sequer serem denominadas estratégias. Contudo, as discussões
científicas atuais compreendem que os conflitos travados na época devem ser
estudados de acordo com seu contexto. Este estudo, portanto, pretende elucidar
algumas características da guerra na Idade Média: a logística das batalhas, as
táticas de defesa e ataque e a razão por trás de suas especificidades. Ademais, a
análise será, sobretudo, das expedições militares de Fernando III, rei de Castela e
Leão. O monarca, responsável pela unificação definitiva destes reinos, em 1230, e
pela retomada da maior parte dos territórios da Península Ibérica que estava em
posse dos muçulmanos, realizou diversas campanhas durante seu reinado.
Abordaremos algumas das estratégias do monarca na conquista da cidade de
Córdoba (1236). As fontes utilizadas para o desenvolvimento do projeto foram: a
Crónica Latina de los Reyes de Castilla e a Primera Crónica General de España.
Esses documentos, aliados ao debate historiográfico, serviram de base para análise
da temática em questão.
Palavras-chave: Guerra; Fernando III; Técnicas Militares.
Introdução
As batalhas empreendidas por Fernando III marcaram a história da Península
Ibérica por seu impacto territorial. Os avanços das tropas do monarca castelhano-
leonês foram capazes de garantir o domínio de um vasto campo que estava sob
domínio dos muçulmanos. Antes de discorrer sobre as especificidades da logística
militar dos exércitos de D. Fernando, porém, resgataremos uma breve discussão
sobre a guerra no decorrer da Idade Média.
Ao tratar sobre o período, autores como Clausewitz (2014), especialista em
História Militar e renomado general prussiano, e Charles Oman (1898), também
45
46. historiador militar, afirmavam que era possível verificar uma ausência de estratégia
nos conflitos medievais. A historiografia, sobretudo durante o século XIX, reproduzia
narrativas semelhantes à desses autores; no entanto, estudiosos contemporâneos
apresentam uma nova concepção da guerra medieval. Embora houvesse diferenças
significativas em relação à logística bélica da Antiguidade, a estratégia medieval
deve ser vista, para além das clássicas batalhas campais, nas conquistas graduais
do território (MORETTI JUNIOR, 2015).
É importante ressaltar, portanto, que as estratégias medievais pouco se
relacionam com a imagem reproduzida pelo senso comum de embates realizados
em campo aberto. Como ressalta Jones (1999, p. 163), a guerra no período sofre
profunda alteração. Em parte, a razão da divergência em relação ao passado se
deve ao fortalecimento e difusão das defesas físicas das cidades. De acordo com
Christopher Gravett (1990, p. 4-5), os castelos, representantes desse
desenvolvimento defensivo, se tornam comuns por toda a Europa no século X. Esse
tipo de construção se populariza no continente devido à necessidade de conter
invasores de toda parte, como vikings e muçulmanos.
Nesse contexto, tanto os castelos quanto outros tipos de fortaleza foram um
elemento militar imprescindível também para Castela e Leão durante a fase de
conflitos com o Islã. O alcaide - homem de confiança responsável por guardar um
castelo – portanto, ficava encarregado de fazer sua segurança e reunir mantimentos,
sobretudo em caso de cerco da construção (GARCÍA FÍTZ; AYALA MARTÍNEZ;
ALVIRA CABRER, 2018, p. 65).
Tratando as fortalezas de maneira mais ampla, Helen J. Nicholson (2004, p.
68) afirma que poderiam ser projetadas para permanência ou serem utilizadas em
situações emergenciais, desempenhando uma função temporária. Isto posto, na
Península Ibérica, diante dos conflitos constantes, até mesmo monastérios eram
ocupados como refúgio.
Levando em conta as mais diversas fortificações, é possível observar que a
proposta bélica das tropas medievais organiza-se objetivando a destruição do
aparato defensivo inimigo ou o cerco, com a ideia de conquistar a médio prazo da
região sitiada (JONES, 1999, p. 165). E o balanço perfeito entre estruturas de defesa
e armamentos ofensivos foi o que definiu o sucesso militar no período.
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