SlideShare uma empresa Scribd logo
19
R I O
Domingo, 3 de agosto de 2003 O GLOBO
.
Aforçadamulhercontraotráfico
Pesquisa mostra que apoio de figura feminina impede bandidos de aliciarem menores
De origens parecidas, mas destinos desiguais
Com 13 anos, jovem já é ‘gerente’ de boca-de-fumo. Na Rocinha, rapaz resistiu a recrutamento
l Y. tem 13 anos, menos de 1,5 me-
tro e é “gerente” de uma boca-de-fu-
mo numa favela na Zona Norte.
Acautelado há cerca de uma semana
no Instituto Padre Severino (IPS), ele
não completou nem a 1a- série do en-
sino fundamental. Mas já empunhou
uma pistola 9mm, participou de in-
vasões a favelas e também já matou.
No braço esquerdo, as iniciais de
uma facção criminosa. No direito, o
lema da quadrilha. Inscrições grava-
das por cúmplices na sua pele, com
o cabo quente de uma escova.
O sorriso desfalcado, com den-
tes permanentes ainda nascendo,
não é o único aspecto que revela a
juventude do menor que já subiu
na hierarquia do tráfico.
— Encontrei meu pai algumas
vezes, sim. Ele até já me deu uma
caixa de bombom — contou, quan-
do perguntado se conhecia o pai.
A mãe de Y. morreu há um mês,
vítima de problemas decorrentes
de alcoolismo. O único irmão que
conhece, filho de outro pai, tam-
bém está no IPS por tráfico. Segun-
do Y., a decisão de procurar o trá-
fico foi dele mesmo.
— Eu já tinha uns conhecimen-
tos, amigos na favela. Entrei mais
pelo dinheiro, para comprar rou-
pas de marca — disse o menor,
que mora com o tio.
Do outro lado da cidade, Rafael
Ferreira dos Santos, de 16 anos, mo-
ra na Rocinha com a mãe, o padras-
to e os irmãos. De manhã, cursa a 5a-
série do ensino fundamental e à tar-
de trabalha na Oficina do Tio Lino,
projeto de um ex-morador da favela
para crianças e adolescentes, que
produzem obras de arte a partir de
materiais reciclados. Rafael é volun-
tário do projeto e, além de ensinar a
um grupo de crianças como fazer
maquetes, quadros e outras obras,
produz suas próprias peças, de on-
de tira uma renda mensal.
O jovem diz que já teve uma
oportunidade concreta de ingres-
sar no crime, há dois anos.
— Foi minha mãe que me levou a
optar pela vida que tenho hoje. Ela
quer que eu estude para ir mais
longe que ela, ter pelo menos uma
profissão. E sempre me diz para ter
orgulho de quem sou — afirmou.
Tímido, Rafael pretende seguir
carreira no Exército, por causa da
estabilidade. Ele diz não pensar
em fazer faculdade porque “não
vai sobrar tempo para trabalhar”.
— Mas nunca saí e nem sairia da
escola para trabalhar. Posso achar
bobeira agora, mas sei que mais tar-
de ela vai servir para alguma coisa.
X. NO PADRE Severino: apesar de franzino, ele diz que já matou e invadiu favela RAFAEL COM a mãe: “Foi ela que me levou a optar pela vida que tenho hoje”
Marizilda Cruppe Marcos TristãoIsabel Kopschitz
R
emuneração que pode che-
gar a mais de R$ 2 mil por se-
mana, poder e adoração das
mulheres. Por que os apelos
do tráfico de drogas, que podem ser
tão sedutores aos olhos de adoles-
centes pobres, não conquistam a
maioria dos jovens moradores de fa-
velas do Rio? O segredo da resistên-
cia está na referência moral e no
apoio de uma figura feminina — como
mãe, avó, madrinha e professora — a
quem os jovens não gostariam de de-
cepcionar. É o que revela uma pesqui-
sa conduzida, desde 1999, pelo soció-
logo Dário Sousa e Silva, professor de
ciências sociais da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro (Uerj).
Com sua equipe, ele ouviu 123 jo-
vens com idades entre 16 e 24 anos,
além de parentes e amigos, de quatro
complexos de favelas da Região Me-
tropolitana do Rio. Sob o título “Con-
tra-tendências à incorporação de jo-
vens à economia das drogas no Rio
de Janeiro”, o estudo, que ainda está
em andamento, será apresentado no
Congresso Brasileiro de Sociologia,
no início de setembro. Outros fatores
determinantes para a resistência ao
recrutamento pelo tráfico são a exis-
tência de planos de longo prazo, que
costumam envolver estudos ou ativi-
dades culturais, e a busca de inser-
ção fora da favela e de contato com
jovens de outros grupos sociais.
Segundo o professor, a tentativa
de recrutamento pelo tráfico alcan-
ça quase a totalidade dos jovens de
comunidades de baixa renda.
— É muito raro encontrar alguém
com 15 anos que ainda não tenha si-
do abordado, mesmo que sutilmen-
te — afirma o pesquisador.
A faixa etária de maior vulnerabi-
lidade ao aliciamento, segundo o so-
ciólogo, é entre 10 e 13 anos.
— Nesta fase é mais fácil de se
transferir a obediência que a crian-
ça prestaria a uma figura paterna
para uma facção criminosa.
Bandidos preferem
jovens sem ambição
l Além disso, de acordo com o soció-
logo, as crianças nessa faixa etária
são preferidas porque não estão em
idade penal e são facilmente substi-
tuíveis. Nem todas, no entanto, inte-
ressam ao comércio da droga. Dário
identificou uma espécie de política
de recursos humanos do tráfico. A
criança ideal para servir às quadri-
lhas é aquela que vem de família nu-
merosa, com filhos de pais diferen-
tes. Outra característica comum a es-
sas crianças seria o fascínio pelo
consumo, especialmente por roupas
e tênis de grife. Lealdade à quadrilha,
obediência e coragem são caracterís-
ticas bem aceitas. Já ambição, vaida-
de e covardia, repudiadas.
Convivendo com a possibilidade
constante de perder um filho para o
crime, as mães desenvolveram, nas
favelas, táticas para manter as crian-
ças longe das más companhias e do
chamado “movimento” (tráfico). Uma
regra observada pelos pesquisadores
é que os jovens são proibidos de che-
gar em casa com qualquer objeto
“achado”, um dos primeiros sintomas
de envolvimento com o tráfico.
— Essas mães vivem o drama de
criar os filhos, admitindo a possibi-
lidade constante de se tornarem
bandidos — afirma o sociólogo.
A pesquisa revela também como
pensam os jovens moradores de fa-
velas. Um dado que desafia o senso
comum é a constatação de que mais
de 15% dos que abandonam a esco-
la antes de completar o ensino mé-
dio o fazem por desinteresse, e não
para trabalhar, como se costuma
pensar. Desta forma, eles ficam dis-
poníveis para a melhor oferta. Ape-
sar de terem planos, há contradi-
ções evidentes nas respostas dos jo-
vens sobre projetos de vida. Embo-
ra 66,7% dos entrevistados tenham
como maior aspiração uma profis-
são e afirmem que desejam diversos
objetos, quase metade dos entrevis-
tados revelou não fazer nada para
realizar o sonho de consumo.
— Isso mostra que, apesar da re-
sistência, os planos racionais de
carreira não estão amadurecidos. E
é devido a esta fragilidade que a
oferta do tráfico pode aparecer co-
mo melhor opção — diz Dário.
Segundo dados do IBGE, o muni-
cípio do Rio tem 1.349.474 pessoas
morando em favelas. Não há um nú-
mero oficial preciso das crianças e
dos adolescentes envolvidos no trá-
fico, mas uma estimativa recente do
inglês Luke Dowdney, do Viva Rio, é
de que, somente na capital, entre
cinco mil e seis mil menores fazem
parte de quadrilhas. Este número
representa menos de 0,5% da popu-
lação de favelas da cidade.
Há casos que desafiam a compre-
ensão. Como o de X., de 17 anos,
“gerente-geral” de uma favela da ci-
dade. Seu irmão é o chefe do tráfico
na favela. Levado pela terceira vez
para o Instituto Padre Severino
(IPS) há poucos dias, quando foi en-
contrado com três fuzis e dois qui-
los de maconha, X. se mostra bem
decidido em relação à sua escolha.
— Meu dom é ser traficante. Sou
ligado ao crime desde criança. Meu
pai já me deu emprego, mas não
gostei. Não gosto de ser mandado
— disse X., acrescentando que logo
que sair do IPS, instituição para me-
nores infratores na Ilha do Governa-
dor, vai voltar ao crime.
O menor morava com os pais —
um engenheiro mecânico e uma cos-
tureira, segundo ele — num aparta-
mento próximo a uma favela, mas
sempre quis entrar para o “movi-
mento”. Para ele, o que há de me-
lhor na vida do tráfico é o dinheiro,
o acesso fácil às mulheres e o que
chama de respeito da comunidade.
— Já matei e mataria de novo.
Não tenho medo. Estou consciente
de quem sou e do que pode me
acontecer — afirmou o adolescente,
sem piscar. n
POR QUE O JOVEM ABANDONOU A ESCOLA
Para trabalhar
Por opção/desinteresse
Alegada falta de vagas
Por gravidez
Por guerra no tráfico
(perigo na escola)
10,3%
15,4%
7,7%
7,7%
2,6%
SONHO DE CONSUMO
Casa Cavaquinho
2,6%
Moto
23,1%
Computador
7,7%
Móveis
2,6%
Nada
2,6%
Roupa
5,1%
Carro
15,4%
41%
O QUE FAZ PARA REALIZAR SONHO DE CONSUMO?
Nada Não respondeu
2,6%
Trabalha
17,9%
Procura trabalho
5,1%
Estuda
10,3%
Poupa dinheiro
15,4%
48,7%
Editoria de Arte
Conheçadetalhesdapesquisa

Mais conteúdo relacionado

Destaque (13)

Algunavez
AlgunavezAlgunavez
Algunavez
 
Carta compromiso
Carta compromisoCarta compromiso
Carta compromiso
 
Emos
EmosEmos
Emos
 
Você, eu, confiamos o suficiente
Você, eu, confiamos o suficienteVocê, eu, confiamos o suficiente
Você, eu, confiamos o suficiente
 
CumbieJBDissertation Defense PowerPoint
CumbieJBDissertation Defense PowerPointCumbieJBDissertation Defense PowerPoint
CumbieJBDissertation Defense PowerPoint
 
Grovo - "Data-Based Dollars: How Grovo Spends Smarter with Attribution Models"
Grovo - "Data-Based Dollars: How Grovo Spends Smarter with Attribution Models"Grovo - "Data-Based Dollars: How Grovo Spends Smarter with Attribution Models"
Grovo - "Data-Based Dollars: How Grovo Spends Smarter with Attribution Models"
 
Boletim ensino integral_2014_n25
Boletim ensino integral_2014_n25Boletim ensino integral_2014_n25
Boletim ensino integral_2014_n25
 
Portfolio
PortfolioPortfolio
Portfolio
 
FAO en Venezuela
FAO en VenezuelaFAO en Venezuela
FAO en Venezuela
 
Plano de aula
Plano de aula Plano de aula
Plano de aula
 
Revolusi rusia
Revolusi rusiaRevolusi rusia
Revolusi rusia
 
Responsabilidades de un Molinero
Responsabilidades de un MolineroResponsabilidades de un Molinero
Responsabilidades de un Molinero
 
scrapBook
scrapBookscrapBook
scrapBook
 

Semelhante a AForcadaMulherContraoTrafico

Prostituição infantil
Prostituição infantilProstituição infantil
Prostituição infantil
nany1523
 
Violencianaescola um protesto_contra_a_exclusão_social
Violencianaescola um protesto_contra_a_exclusão_socialViolencianaescola um protesto_contra_a_exclusão_social
Violencianaescola um protesto_contra_a_exclusão_social
Amorim Albert
 
A escola e a violência à criança e ao adolescente
A escola e a violência à criança e ao adolescenteA escola e a violência à criança e ao adolescente
A escola e a violência à criança e ao adolescente
Daiane Andrade
 
Trabalho do curso de direito sobre pedofilia
Trabalho do curso de direito sobre pedofiliaTrabalho do curso de direito sobre pedofilia
Trabalho do curso de direito sobre pedofilia
Ohanny Menezes
 
Texto 03 Instituto Fernand Braudel
Texto 03   Instituto Fernand BraudelTexto 03   Instituto Fernand Braudel
Texto 03 Instituto Fernand Braudel
Fabio Santos
 

Semelhante a AForcadaMulherContraoTrafico (20)

Prostituição infantil
Prostituição infantilProstituição infantil
Prostituição infantil
 
Violencianaescola um protesto_contra_a_exclusão_social
Violencianaescola um protesto_contra_a_exclusão_socialViolencianaescola um protesto_contra_a_exclusão_social
Violencianaescola um protesto_contra_a_exclusão_social
 
A escola e a violência à criança e ao adolescente
A escola e a violência à criança e ao adolescenteA escola e a violência à criança e ao adolescente
A escola e a violência à criança e ao adolescente
 
O nao de_eloa-jagarcia-amigaohinos
O nao de_eloa-jagarcia-amigaohinosO nao de_eloa-jagarcia-amigaohinos
O nao de_eloa-jagarcia-amigaohinos
 
O nao de_eloa
O nao de_eloaO nao de_eloa
O nao de_eloa
 
Saracc
SaraccSaracc
Saracc
 
O nao de_eloa
O nao de_eloaO nao de_eloa
O nao de_eloa
 
O não de Eloá!
O não de Eloá!O não de Eloá!
O não de Eloá!
 
O nao de_eloa
O nao de_eloaO nao de_eloa
O nao de_eloa
 
O não de eloa
O não de eloaO não de eloa
O não de eloa
 
O nao de_eloa
O nao de_eloaO nao de_eloa
O nao de_eloa
 
O nao de Eloá
O nao de EloáO nao de Eloá
O nao de Eloá
 
O nao de_eloa
O nao de_eloaO nao de_eloa
O nao de_eloa
 
Violencia domestica infantil
Violencia domestica infantilViolencia domestica infantil
Violencia domestica infantil
 
-Apresentação_Abuso-Infantil.pptx
-Apresentação_Abuso-Infantil.pptx-Apresentação_Abuso-Infantil.pptx
-Apresentação_Abuso-Infantil.pptx
 
Violencia urbana - Geografia
Violencia urbana - GeografiaViolencia urbana - Geografia
Violencia urbana - Geografia
 
Trabalho do curso de direito sobre pedofilia
Trabalho do curso de direito sobre pedofiliaTrabalho do curso de direito sobre pedofilia
Trabalho do curso de direito sobre pedofilia
 
Mariana Oliveira - Maio Laranja - 8º Ano - Bartolomeu
Mariana Oliveira - Maio Laranja - 8º Ano - BartolomeuMariana Oliveira - Maio Laranja - 8º Ano - Bartolomeu
Mariana Oliveira - Maio Laranja - 8º Ano - Bartolomeu
 
Texto 03 Instituto Fernand Braudel
Texto 03   Instituto Fernand BraudelTexto 03   Instituto Fernand Braudel
Texto 03 Instituto Fernand Braudel
 
O não de eloa
O não de eloaO não de eloa
O não de eloa
 

Mais de Isabel Kopschitz (6)

cuba4
cuba4cuba4
cuba4
 
cuba3
cuba3cuba3
cuba3
 
cuba2
cuba2cuba2
cuba2
 
cuba1
cuba1cuba1
cuba1
 
paulao_sete_cordas
paulao_sete_cordaspaulao_sete_cordas
paulao_sete_cordas
 
ruy_castro
ruy_castroruy_castro
ruy_castro
 

AForcadaMulherContraoTrafico

  • 1. 19 R I O Domingo, 3 de agosto de 2003 O GLOBO . Aforçadamulhercontraotráfico Pesquisa mostra que apoio de figura feminina impede bandidos de aliciarem menores De origens parecidas, mas destinos desiguais Com 13 anos, jovem já é ‘gerente’ de boca-de-fumo. Na Rocinha, rapaz resistiu a recrutamento l Y. tem 13 anos, menos de 1,5 me- tro e é “gerente” de uma boca-de-fu- mo numa favela na Zona Norte. Acautelado há cerca de uma semana no Instituto Padre Severino (IPS), ele não completou nem a 1a- série do en- sino fundamental. Mas já empunhou uma pistola 9mm, participou de in- vasões a favelas e também já matou. No braço esquerdo, as iniciais de uma facção criminosa. No direito, o lema da quadrilha. Inscrições grava- das por cúmplices na sua pele, com o cabo quente de uma escova. O sorriso desfalcado, com den- tes permanentes ainda nascendo, não é o único aspecto que revela a juventude do menor que já subiu na hierarquia do tráfico. — Encontrei meu pai algumas vezes, sim. Ele até já me deu uma caixa de bombom — contou, quan- do perguntado se conhecia o pai. A mãe de Y. morreu há um mês, vítima de problemas decorrentes de alcoolismo. O único irmão que conhece, filho de outro pai, tam- bém está no IPS por tráfico. Segun- do Y., a decisão de procurar o trá- fico foi dele mesmo. — Eu já tinha uns conhecimen- tos, amigos na favela. Entrei mais pelo dinheiro, para comprar rou- pas de marca — disse o menor, que mora com o tio. Do outro lado da cidade, Rafael Ferreira dos Santos, de 16 anos, mo- ra na Rocinha com a mãe, o padras- to e os irmãos. De manhã, cursa a 5a- série do ensino fundamental e à tar- de trabalha na Oficina do Tio Lino, projeto de um ex-morador da favela para crianças e adolescentes, que produzem obras de arte a partir de materiais reciclados. Rafael é volun- tário do projeto e, além de ensinar a um grupo de crianças como fazer maquetes, quadros e outras obras, produz suas próprias peças, de on- de tira uma renda mensal. O jovem diz que já teve uma oportunidade concreta de ingres- sar no crime, há dois anos. — Foi minha mãe que me levou a optar pela vida que tenho hoje. Ela quer que eu estude para ir mais longe que ela, ter pelo menos uma profissão. E sempre me diz para ter orgulho de quem sou — afirmou. Tímido, Rafael pretende seguir carreira no Exército, por causa da estabilidade. Ele diz não pensar em fazer faculdade porque “não vai sobrar tempo para trabalhar”. — Mas nunca saí e nem sairia da escola para trabalhar. Posso achar bobeira agora, mas sei que mais tar- de ela vai servir para alguma coisa. X. NO PADRE Severino: apesar de franzino, ele diz que já matou e invadiu favela RAFAEL COM a mãe: “Foi ela que me levou a optar pela vida que tenho hoje” Marizilda Cruppe Marcos TristãoIsabel Kopschitz R emuneração que pode che- gar a mais de R$ 2 mil por se- mana, poder e adoração das mulheres. Por que os apelos do tráfico de drogas, que podem ser tão sedutores aos olhos de adoles- centes pobres, não conquistam a maioria dos jovens moradores de fa- velas do Rio? O segredo da resistên- cia está na referência moral e no apoio de uma figura feminina — como mãe, avó, madrinha e professora — a quem os jovens não gostariam de de- cepcionar. É o que revela uma pesqui- sa conduzida, desde 1999, pelo soció- logo Dário Sousa e Silva, professor de ciências sociais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). Com sua equipe, ele ouviu 123 jo- vens com idades entre 16 e 24 anos, além de parentes e amigos, de quatro complexos de favelas da Região Me- tropolitana do Rio. Sob o título “Con- tra-tendências à incorporação de jo- vens à economia das drogas no Rio de Janeiro”, o estudo, que ainda está em andamento, será apresentado no Congresso Brasileiro de Sociologia, no início de setembro. Outros fatores determinantes para a resistência ao recrutamento pelo tráfico são a exis- tência de planos de longo prazo, que costumam envolver estudos ou ativi- dades culturais, e a busca de inser- ção fora da favela e de contato com jovens de outros grupos sociais. Segundo o professor, a tentativa de recrutamento pelo tráfico alcan- ça quase a totalidade dos jovens de comunidades de baixa renda. — É muito raro encontrar alguém com 15 anos que ainda não tenha si- do abordado, mesmo que sutilmen- te — afirma o pesquisador. A faixa etária de maior vulnerabi- lidade ao aliciamento, segundo o so- ciólogo, é entre 10 e 13 anos. — Nesta fase é mais fácil de se transferir a obediência que a crian- ça prestaria a uma figura paterna para uma facção criminosa. Bandidos preferem jovens sem ambição l Além disso, de acordo com o soció- logo, as crianças nessa faixa etária são preferidas porque não estão em idade penal e são facilmente substi- tuíveis. Nem todas, no entanto, inte- ressam ao comércio da droga. Dário identificou uma espécie de política de recursos humanos do tráfico. A criança ideal para servir às quadri- lhas é aquela que vem de família nu- merosa, com filhos de pais diferen- tes. Outra característica comum a es- sas crianças seria o fascínio pelo consumo, especialmente por roupas e tênis de grife. Lealdade à quadrilha, obediência e coragem são caracterís- ticas bem aceitas. Já ambição, vaida- de e covardia, repudiadas. Convivendo com a possibilidade constante de perder um filho para o crime, as mães desenvolveram, nas favelas, táticas para manter as crian- ças longe das más companhias e do chamado “movimento” (tráfico). Uma regra observada pelos pesquisadores é que os jovens são proibidos de che- gar em casa com qualquer objeto “achado”, um dos primeiros sintomas de envolvimento com o tráfico. — Essas mães vivem o drama de criar os filhos, admitindo a possibi- lidade constante de se tornarem bandidos — afirma o sociólogo. A pesquisa revela também como pensam os jovens moradores de fa- velas. Um dado que desafia o senso comum é a constatação de que mais de 15% dos que abandonam a esco- la antes de completar o ensino mé- dio o fazem por desinteresse, e não para trabalhar, como se costuma pensar. Desta forma, eles ficam dis- poníveis para a melhor oferta. Ape- sar de terem planos, há contradi- ções evidentes nas respostas dos jo- vens sobre projetos de vida. Embo- ra 66,7% dos entrevistados tenham como maior aspiração uma profis- são e afirmem que desejam diversos objetos, quase metade dos entrevis- tados revelou não fazer nada para realizar o sonho de consumo. — Isso mostra que, apesar da re- sistência, os planos racionais de carreira não estão amadurecidos. E é devido a esta fragilidade que a oferta do tráfico pode aparecer co- mo melhor opção — diz Dário. Segundo dados do IBGE, o muni- cípio do Rio tem 1.349.474 pessoas morando em favelas. Não há um nú- mero oficial preciso das crianças e dos adolescentes envolvidos no trá- fico, mas uma estimativa recente do inglês Luke Dowdney, do Viva Rio, é de que, somente na capital, entre cinco mil e seis mil menores fazem parte de quadrilhas. Este número representa menos de 0,5% da popu- lação de favelas da cidade. Há casos que desafiam a compre- ensão. Como o de X., de 17 anos, “gerente-geral” de uma favela da ci- dade. Seu irmão é o chefe do tráfico na favela. Levado pela terceira vez para o Instituto Padre Severino (IPS) há poucos dias, quando foi en- contrado com três fuzis e dois qui- los de maconha, X. se mostra bem decidido em relação à sua escolha. — Meu dom é ser traficante. Sou ligado ao crime desde criança. Meu pai já me deu emprego, mas não gostei. Não gosto de ser mandado — disse X., acrescentando que logo que sair do IPS, instituição para me- nores infratores na Ilha do Governa- dor, vai voltar ao crime. O menor morava com os pais — um engenheiro mecânico e uma cos- tureira, segundo ele — num aparta- mento próximo a uma favela, mas sempre quis entrar para o “movi- mento”. Para ele, o que há de me- lhor na vida do tráfico é o dinheiro, o acesso fácil às mulheres e o que chama de respeito da comunidade. — Já matei e mataria de novo. Não tenho medo. Estou consciente de quem sou e do que pode me acontecer — afirmou o adolescente, sem piscar. n POR QUE O JOVEM ABANDONOU A ESCOLA Para trabalhar Por opção/desinteresse Alegada falta de vagas Por gravidez Por guerra no tráfico (perigo na escola) 10,3% 15,4% 7,7% 7,7% 2,6% SONHO DE CONSUMO Casa Cavaquinho 2,6% Moto 23,1% Computador 7,7% Móveis 2,6% Nada 2,6% Roupa 5,1% Carro 15,4% 41% O QUE FAZ PARA REALIZAR SONHO DE CONSUMO? Nada Não respondeu 2,6% Trabalha 17,9% Procura trabalho 5,1% Estuda 10,3% Poupa dinheiro 15,4% 48,7% Editoria de Arte Conheçadetalhesdapesquisa