Aspectos Eticos e Deontologicos do Exercicio da Medicina no Sistema Prisional
Conflitos Eticos dos Estudantes de Medicina e Medicos Residentes
1. Desafios e conflitos éticos
dos médicos residentes
Dr. Sami A R J El Jundi, MD, MSc
2. Declaração de conflitos
As idéias, argumentos e opiniões aqui
apresentados ou expressados são de
responsabilidade única e exclusiva do autor,
não representando, sob qualquer forma ou
pretexto, a opinião das entidades ou instituições
às quais seu nome está vinculado publicamente.
O autor não tem conflitos de interesse a
declarar em relação aos temas aqui
desenvolvidos.
3. Ética
“A ética é a teoria ou ciência do
comportamento moral dos homens em
sociedade. Ou seja, é ciência de uma forma
específica de comportamento humano”
Caráter: científico (genérico, racional, objetivo,
sistemático, metódico e, no limite do possível,
comprovável);
Objeto: o mundo moral, constituído por um
tipo peculiar de fatos ou atos humanos.
Vázquez, A.S. Ética. Ed. Civilização Brasileira, 1989.
4. Moral
“Conjunto de normas, aceitas livre e
conscientemente, que regulam o
comportamento individual e social dos
homens”
Caráter: histórico, “de classe”, “evolutivo” ou
“progressista”, social;
Plano normativo ou ideal: moral
Plano fatual, real ou prático: moralidade
Vázquez, A.S. Ética. Ed. Civilização Brasileira, 1989.
5. Estrutura do Ato Moral
Motivo: aquilo que impulsiona a agir ou a procurar alcançar
determinado fim;
Consciência do fim visado: antecipação ideal do resultado que
se pretende alcançar;
Escolha de um fim entre outros: em dadas ocasiões há vários
fins possíveis, mutuamente excludentes;
Decisão de realizá-lo: qualidade de ato voluntário;
Consciência e escolha dos meios;
Emprego dos meios adequados;
Obtenção do resultado: ato moral consumado, do ponto de
vista do agente;
Observação das conseqüências: ato moral consumado, do
ponto de vista da comunidade ou sociedade.
O ato moral é uma totalidade: o subjetivo e o objetivo estão
aqui como as duas faces de uma mesma moeda.
Vázquez, A.S. Ética. Ed. Civilização Brasileira, 1989.
6. Qualidade do ato moral
Singularidade: o ato assume um significado em
relação a uma norma e se apresenta como a solução de
um caso determinado.
A mesma norma enfrenta situações diferentes, com
riscos de resultados diferentes.
O resultado pode ser afastar da intenção originária e o
ato pode adquirir um significado moral negativo.
A casuística, como método de determinar de antemão a
maneira de realizar o ato moral, acarreta um
empobrecimento da vida moral.
Vázquez, A.S. Ética. Ed. Civilização Brasileira, 1989.
7. A avaliação da moral
Os objetos avaliados são os atos humanos. Não
se pode falar em uma “moral” dos atos de
animais, dos irracionais, etc.
Somente podem ser avaliados os atos que, por
seus resultados e conseqüências, afetam a
outros.
O ato moral pretende ser uma realização do
“bom”, isto é, encarnando ou plasmando o valor
da bondade.
Vázquez, A.S. Ética. Ed. Civilização Brasileira, 1989.
8. Mas o que é bom?
O bom como felicidade (eudemonismo):
Aristóteles: exercício da razão (sob condições
concretas).
Sócrates: a “boa vida” (trabalho, amigos,
contemplação)
Iluminismo: felicidade no plano abstrato, ideal, fora
das condições concretas da vida social.
Vázquez, A.S. Ética. Ed. Civilização Brasileira, 1989.
9. Mas o que é bom?
O bom como prazer (hedonismo):
Como sentimento ou estado afetivo agradável (o oposto
de “desprazer”)
Como sensação agradável produzida por estímulos (o
oposto de “dor”)
Todo prazer ou gozo é intrinsecamente bom;
Somente o prazer é intrinsecamente bom;
A bondade de um ato ou experiência depende do
prazer que contém.
Vázquez, A.S. Ética. Ed. Civilização Brasileira, 1989.
10. Mas o que é bom?
O bom como “boa vontade” (formalismo
Kantiano):
O bom deve ser algo absoluto, incondicionado, sem
restrição alguma.
“Nem no mundo nem também, em geral, fora do
mundo é possível conceber alguma coisa que
possa considerar-se boa sem restrições, a não
ser unicamente uma boa vontade”
Kant, I. Fundamentação da metafísica dos costumes, Cap 1.
Deve-se atuar de acordo com o dever e pelo dever.
Vázquez, A.S. Ética. Ed. Civilização Brasileira, 1989.
11. Mas o que é bom?
O bom como útil (utilitarismo):
Útil para quem?
Altruísmo ético x egoísmo ético = “para o maior número
de homens”.
Em que consiste o útil?
Naquilo que tem boas conseqüências, independentemente
do motivo ou da intenção.
Utilitarismo pluralista: o bom não é uma só coisa, mas
várias que podem, ao mesmo tempo, considerar-se boas.
12. Obrigatoriedade moral
O comportamento moral é obrigatório e devido, isto é,
se funda na obrigação do agente a comportar-se de
acordo com uma regra ou norma de ação e a excluir ou
evitar os atos proibidos por ela.
A obrigatoriedade moral impõe deveres.
Toda norma funda um dever.
Inclui a liberdade de escolha (vontade livre) e de ação
do sujeito e que este deve aceitar como fundamentada
e justificada a mesma obrigatoriedade.
A coação externa ou interna destitui o caráter de
moralidade do ato
13. Teorias da obrigação moral
Deontológicas (deón = dever)
A obrigatoriedade de uma ação não se faz depender
exclusivamente das conseqüências da própria ação
ou da norma com a qual se conforma.
“Códigos de Ética Profissional”
Teleológicas (télos = fim)
A obrigatoriedade de uma ação deriva unicamente de
suas conseqüências.
14. Teorias deontológicas
Do ato
O caráter específico de cada situação, ou de cada ato,
impede que possamos apelar para uma norma geral a
fim de decidir o que fazer.
Sartre (existencialismo):
A liberdade é a única fonte de valor
Cada um de nós é absolutamente livre
O que importa é o grau de liberdade com que se escolhe
ou realiza o ato
“Escolhe livremente” ou “decide com plena liberdade”!
15. Teorias deontológicas
Da norma
O dever deve ser determinado por normas que são válidas
independentemente das conseqüências de sua aplicação.
Kant (teoria da obrigatoriedade moral):
O único bom é a boa vontade;
A boa vontade é a vontade de agir por dever;
A ação moralmente boa é aquela se realiza não somente de acordo
com o dever, mas pelo dever;
Conflitos de deveres não encontram solução em Kant, pois se
encontram no mesmo plano.
Principialismo bioético.
16. Deontologia Médica
“Um Código de Ética Médica que não for
sensível às modificações surgidas com a
concepção que se tem da sociedade e do
homem, marcadas pela experiência que as
mudanças produzem a partir da prática
profissional, dos costumes e das idéias, é um
mau Código”
França, G.V. Direito Médico. Fundo Editorial Byk, 2003.
17. Deontologia Médica
Código de Ética Médica (Res. CFM 1.246/1988)
Declaração de princípios (Art. 1-19)
Declaração de direitos (Art. 20-28)
Codificação e sistematização de normas
fundamentais específicas de conduta – vedações
(Art. 29-140)
Código de Processo Ético-Profissional (Res.
CFM 1.897/2009)
Normas processuais
18. Deontologia Médica
Lei 3.268 de 30/09/1957 (Dispõe sobre os
Conselhos de Medicina e dá outras providências)
Penalidades disciplinares
Resoluções e Pareceres do CFM e CRMs
Decisões das Comissões de Ética e Bioética
Objeções de Consciência
19. Relato de caso
Paciente masculino, 65 anos, índio, veio à emergência, trazido
por seu filho e pela enfermeira que presta assistência à tribo de
sua origem, por apresentar dor abdominal há 1 semana, que se
agravou nas últimas 24 horas. Durante sua chegada e toda sua
permanência no serviço de emergência, apresentou-se sempre
acordado, lúcido, comunicando-se com seu filho por
“dialeto” e de aparência calma.
O paciente apresentava quadro clínico de insuficiência renal
grave com elevação nos níveis séricos de uréia (300 mg/dL),
creatinina (13,8 mg/dL), potássio (8,7 mEq/L), PSA (37,40
ng/mL) além de US e TC do abdômen evidenciando volumosa
ascite, alças intestinais dilatadas, bexiga distendida com
paredes espessadas e próstata com aumento de tamanho. O
ECG apresentava alterações gráficas compatíveis com
hiperpotassemia.
20. A equipe de cirurgia indicou necessidade de
exploração cirúrgica após estabilização clínica. Na
avaliação nefrológica, foi visto diante dos exames
obtidos que o paciente tinha indicação naquele
momento de hemodiálise para posterior cirurgia.
Foi então dito à enfermeira e ao filho do paciente para
explicar ao mesmo sobre o quadro clínico e condutas a
serem tomadas. Após tomar conhecimento das
condutas, o paciente negou-se a realizar qualquer
procedimento médico, já que acreditava ter “chegado
sua hora” (conforme contou seu filho).
21. A equipe insistiu em mostrar ao tradutor (filho do
paciente) a importância da conduta médica, onde após
conversar com o pai, resolveu chamar o “pajé” da
tribo para avaliá-lo.
Com a chegada do pajé, acompanhado do “cacique
geral”, como identificou-se, os mesmos conversaram
com o paciente e chegaram à conclusão de que se
tratava de “coisa de Deus branco”, autorizando o
paciente a submeter-se aos procedimentos, o qual após
isso, concordou com todos os atos necessários para
ajudá-lo.
22. Conflitos de normas
Princípios
Beneficência
Não-maleficência
Autonomia
Empowerment: condições concretas para o exercício da
autonomia (incapacidade relativa, norma legal,
aspectos culturais, elementos coercitivos,
impeditivos ou indutivos)
23. Conflitos de normas
“A noção de indivíduo investido de direitos
morais representa... uma construção da
modernidade”
ALMEIDA, J. L. T. Respeito à autonomia do paciente e consentimento livre
e esclarecido: uma abordagem principalista da relação médico-paciente.
“Em pacientes competentes,nunca se pode
interferir em seu próprio benefício sem seu
expresso consentimento, não importando
quanto mal é prevenido e quão pequena é a
violação da regra moral”
T. Beauchamp – “Principles of Biomedical Ethics”(1979)
24. Conflitos de normas
“O pensamento pós-metafísico deve
impor a si próprio uma moderação,
quando se trata de tomar posições
definitivas em relação a questões
substanciais sobre a vida boa ou
não-fracassada”
Habermas,J. O futuro da natureza humana,São Paulo,Martins Fontes,2004
Citado por Siqueira, J. Reflexões éticas sobre a autonomia do paciente. III
CNEM, Brasília, 2009.
25. Modelo ideal
DELIBERATIVO
Comunidade ideal de comunicação;
Moderação justificada;
Vontade racional
autonomia solidária;
ética da deliberação;
decisões sobre conflitos morais
Citado por Siqueira, J. Reflexões éticas sobre a autonomia do paciente. III
CNEM, Brasília, 2009
26.
27. Educação médica
“Médicos são instruídos, treinados e socializados no
interior de uma cultura profissional para a consecução
de um projeto coletivo de poder e mobilidade social...”
“Um longo treinamento especializado e unificado... é o
critério fundamental para a constituição do conceito de
profissão.”
Larson: “produção de médicos”!
Moura, L.C.S A face reversa da educação médica.
AGE Editora, Simers e GEM, 2004.
28. Educação médica
“Medical school is really weird. It is a forced
emotional experience. We handle cadavers,
have feces lab where we examine our own
feces, go to [a mental hospital where we get
locked up] with screaming patients. These
are total experiences, like an occult thing or
boot camp.”
Entrevista de estudante do 2º ano de Harvard, citada por
Moura, L.C.S A face reversa da educação médica.
AGE Editora, Simers e GEM, 2004.
29. “Ao mesmo tempo eles reconhecem que não
são suficientemente experientes para julgar
o que deve ser feito e sentem profundamente
a pressão para demonstrar solidariedade,
para não questionar os atos daqueles
hierarquicamente superiores”
Good, 1994. Traduzido e citado por
Moura, L.C.S A face reversa da educação médica.
AGE Editora, Simers e GEM, 2004.
30. “A submissão a tal programa de treinamento e a
adesão aos seus princípios estruturantes é
condição fundamental para o ajustamento do
estudante ao mundo médico, para a adoção dos
valores profissionais, para a assunção de atitudes
tipicamente médicas que, ao longo do
treinamento, vão se consolidando a partir de sinais
de aprovação ou reprovação dos professores e
instrutores. Este enquadramento... é fator que se
reveste de importância vital para as chances de
sucesso futuro, para o surgimento de
oportunidades de trabalho e colocação e para a
obtenção do respeito dos colegas.”
Moura, L.C.S A face reversa da educação médica.
AGE Editora, Simers e GEM, 2004.
31. A escola médica como introspecção
“De fato, a introspecção – não a reflexão da mente do
homem quanto ao estado de sua alma ou de seu
corpo, mas o mero interesse cognitivo da
consciência em relação ao seu próprio conteúdo –
deve produzir a certeza, pois na introspecção só
está envolvido aquilo que a própria mente
produziu; ninguém interfere, a não ser o produtor
do produto; o homem vê-se diante de nada e de
ninguém a não ser de si mesmo.”
Arendt, Hannah. A condição humana. Forense Universitária, 1981.
32. Dilemas atuais da profissão médica
Especialização e fragmentação dos saberes e das
práticas médicas, com o isolamento de grupos de
especialidades organizados em sociedades distintas;
Institucionalização e burocratização do trabalho
médico, erodindo sua autonomia;
Fragilização do modelo liberal de profissão e
empresariamento dos profissionais, limitando a
autonomia técnica e o domínio do conhecimento global
e implantando a lógica mercantil.
Drumond, J.G.F. O “ethos” médico: a velha e a nova moral médica. Editora
Unimontes, 2005.
33. Dilemas do atual modelo de
educação médica
Modelo “totalizador”, de construção de “ethos” ou habitus
e de hegemonia social:
Onde se estabelece uma clara hierarquia e relações de poder;
Depende da adesão voluntária de seus membros;
Se reproduz de forma continuada e conservadora.
Permeável à realidade social e às mudanças do mercado de
trabalho:
Se submete às mudanças sociais necessárias a sua própria sobrevivência;
Vivencia e reproduz os mesmos dilemas do mercado “externo”;
Agudiza alguns desses dilemas.
Introspectivo:
Constrói certezas sobre si mesmo, alienando-se da realidade “externa”;
Incapaz de produzir auto-crítica consistente, mesmo quando perde espaço
social.
34. Dilemas do atual modelo de
educação médica
Gerador de conflitos de ordem moral que são
substituídos pela pura e simples adesão ou são
submetidos à reprovação hierárquica (e dos que
a ela aderiram) e remetidos à introspecção
individual, onde geram profundo sofrimento ou
final submissão. No futuro, serão reproduzidos
sem auto-crítica e, quando questionados e
sancionados seus atos, dirão que “a disciplina de
ética médica da faculdade era muito fraca” ou
algo semelhante!
35.
36. O nosso dilema
De um lado um profissional formado em um modelo
de adesão / submissão total, irrestrita e acrítica, onde os
conflitos são negados e prevalece a certeza, sem
qualquer perspectiva do “outro”,
De outro um indivíduo / paciente, que engatinha no
exercício de sua própria autonomia, numa situação em
que imperam os conflitos de valores e perspectivas,
eivado de incertezas e sofrimentos, sem qualquer
perspectiva de “si mesmo”,
Qual o diálogo possível???
37. Mudar nossa formação, como meio
de mudar nossa perspectiva
O modelo deliberativo intracorporis:
Deliberação sem deformações internas ou externas
Livre expressão dos argumentos
Acolher argumentações discordantes
Diante de conflitos morais nem sempre é possível atingir-se decisões
consensuais
Habermas,J Teoria de la acción comunicativa,Madrid,Taurus,1987
Espaços formais de solução de conflitos e construção de consensos são
fundamentais, mas de nada adiantam se não vierem acompanhados de
uma atitude compatível, tanto do ponto de vista individual, quanto
institucional.