O autor argumenta que o cinema brasileiro é imaturo e se concentra demais em temas políticos, ao contrário do cinema argentino premiado. Ele aponta que a arte não deve ser necessariamente política e que figuras como Glauber Rocha, apesar de influentes, já estão datadas. Defende que os cineastas brasileiros foquem em contar boas histórias e usar a câmera para expressar visões mais universais ao invés de apenas retratar temas políticos e sociais repetidos.
1. São Paulo, segunda-feira, 29 de março de 2010
LUIZ FELIPE PONDÉ
O olhar da câmera
E por qual razão nós não conseguimos fazer filmes como nossos primos argentinos?
O OSCAR DO filme "O Segredo dos Seus Olhos" foi um prêmio mais do que justo para o
cinema argentino. O cinema de "los hermanos" é melhor do que o nosso. E digo isso com
lágrimas nos olhos porque sou envolvido diretamente na formação de novos cineastas no
Brasil. E por que não conseguimos fazer filmes como nossos primos argentinos?
Resumidamente, eu diria que nosso cinema é, em grande parte, imaturo, sem tradição
estética, obcecado por certos temas monótonos, quase amador em termos de conteúdo, e se
vê como instrumento de transformação social.
Começaria perguntando o seguinte: a arte deve ser política? Não. Muitas vezes isso
atrapalha. E mesmo quando o for, deve ir além desse lero-lero de luta de classes, como no
caso do "Segredo dos Seus Olhos" e o tratamento do ambiente pré-ditadura na Argentina,
que não é foco principal do enredo. A política mata a arte, tornando-a datada como um
panfleto qualquer. A política como tema da arte acaba sempre banal como a política o é na
realidade: arranjos pragmáticos de violência e interesses. Quando ela se faz mais do que
isso, fica mentirosa ou ridícula.
Nosso cinema varia entre cinema político chato e uma verborragia psicanalítica adolescente.
Com exceções.
Outro problema é o culto dispensado a figuras como Glauber Rocha. Se ele foi
"revolucionário" em algum momento, o foi apenas no aspecto formal (ainda que eu o tenha
sempre achado apenas cansativo e presunçoso, e essa coisa de "cinema novo" sempre me
pareceu sobrevalorizada), mas quanto ao conteúdo, acho-o apenas datado e equivocado. Sua
intenção revolucionária banhada em marxismo condenou sua visão de mundo a uma
"historinha" que parece ter sido escrita em centros acadêmicos de gente de 18 anos (nos anos
60 e 70), que pouco revela da vida real e a sangria moral e existencial que ela realmente é.
Lembremos que foi o próprio Glauber que escreveu em meados dos anos 60 que Machado
de Assis seria esquecido porque não captou a luta de classes no período do Segundo Império
2. no Brasil. Meu Deus, tenha piedade dele, porque não sabia a besteira que falava! Machado
de Assis é eterno, enquanto ele, assim que a maioria dos formadores dos jovens cineastas
pararem de idolatrá-lo, poderá ser confundido com a lata de lixo da história do cinema
nacional.
Algumas obsessões de conteúdo, ao meu entender, travam a produção nacional no nível de
cineclube de centro acadêmico estudantil. Nada mais aborrecido do que alunos que acham
que mudam o mundo: normalmente isso nada mais é do que uma forma chique de matar aula
e estudar pouco. Com raras exceções. A força do jovem está no ato de emprestar aos dramas
humanos ancestrais a beleza de seu encantamento, desprendimento, coragem e futuro
desencantamento.
Para além de chanchadas requentadas, o pressuposto de que o cinema seja instrumento de
consciência social, enche o saco de qualquer pessoa que gosta de cinema. Nada mais
monótono do que cinema com consciência social, além do mais, porque sabemos que a
"indústria do bem" não passa de um disfarce. Os agentes de transformação social pela arte
são mero produto, como qualquer outro produto da indústria cultural.
Cinema deve contar histórias, onde o olhar da câmera deve estar no lugar da voz. O
conteúdo deve se alimentar de questões eternas, por isso, melhor se alimentar de temas
morais do que de políticos, quando não for apenas bom entretenimento. E deve falar à alma
e não a pseudodramas políticos de época.
Muitos de nossos futuros cineastas vêm da elite econômica (fazer cinema demanda muito
dinheiro e disponibilidade de tempo), e muitas vezes são torturados com falsos dramas de
consciência justamente porque são membros da elite. Como se devessem se redimir do que
são, dando voz apenas aos pobres, bandidos e miseráveis do país.
E aí vem a repetição: Nordeste, fome, miséria, bandido (como se só por ser bandido, alguém
fosse necessariamente vítima de alguma forma de injustiça, quando na realidade muitos
bandidos o são porque são maus mesmo), ditadura (essa, então, no cinema, é uma enorme
indústria de vítimas bem-sucedidas), favela. E daí, nós recomeçamos: Nordeste, fome,
miséria, bandido, ditadura, favela... Nordeste, fome...
Voltemos a Shakespeare, Dostoiévski, Machado de Assis, deixemos Foucault, Glauber e
Bourdieu "dormirem" um pouco no formol, para ver se eles sobrevivem ao tempo.