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Fonte: Carvalho, A. (2016). Vozes à Solta. Narrativas da Escola. Porto:
Afrontamento, pp. 159-166
UMA PEDAGOGIA DA COMPAIXÃO
José Matias Alves
Tal como relata Habermas, pouco antes do octogésimo aniversário de Marcuse, os
dois interrogavam-se sobre como explicar a base normativa da teoria crítica.
Marcuse só deu a resposta dois dias antes da sua morte:
«Vês? - disse a Habermas - agora sei em que é que se fundamentam os nossos
juízos mais elementares: na compaixão, no nosso sentimento pela dor dos outros».
Para os teóricos da escola de Frankfurt, a piedade e a compaixão constituíram a
arma da crítica. As profundas marcas que neles tinham deixado os mártires dos
campos de concentração tornavam-nos especialmente sensíveis à injustiça e à dor
[Miguel Santos Guerra, Entre Bastidores].
Eu proponho, portanto, que o homem seja definido como uma nova espécie: o
homo compassivus. Àqueles a quem falta a compaixão falta também a qualidade
de humanidade. Não são meus irmãos [Rubem Alves, Gaiolas ou Asas].
Tive o privilégio de conhecer pessoalmente a autora destas histórias que se
organizam em torno dos processos de escolarização. De ser seu amigo. E de ser
agora um autor comovido que escreve tendo como pretexto os fios que nos trazem
a vida na sua múltiplas realidades.
Organizo a minha leitura a partir de sete categorias analíticas que penso pode-
rem ler a generalidade destes textos: o mundo da vida aprisionado pela lógica
surda e absurda dos sistemas; os laços que é preciso tecer para que as aprendi-
zagens sejam possíveis; o outro lado da escola, ora sombrio ora solar; as pessoas
dos alunos e dos professores com as suas irredutíveis singularidades; a hipocri-
sia de um sistema enclausurado na estupidez do faz de conta; e, por fim, algumas
palavras sobre o olhar do sujeito que escreve: sobre os temas que escolhe, as
personagens que convoca e expõe, as narrativas que narra, o estilo que adota,
I59
tendo como denominador comum uma radical compaixão pelos que sofrem, uma
insaciável sede de justiça, fraternidade e dignidade.
A. O MUNDO DA VIDA E O MUNDO DOS SISTEMAS
o binómio do mundo da vida aprisionado pelo mundo dos sistemas é uma cons-
tante deste livro !HabermasJ. A história do Luís que queria construir uma caixa
verdadeira para poder guardar a sua intimidade devassada e destruída, para guar-
dar as résteas de sonhos (imlpossíveis abre-nos para um mundo marcado por uma
brutal desumanidade e gera uma imensa vontade de chorar. Mas também uma
radical vontade de revolta, pois este mundo não pode ser assim, impiedoso e desu-
mano. Não podemos ser cúmplices desta lógica maquinal. Não podemos ficar indi-
ferentes às dores e misérias dos seres humanos.
Este é, talvez, a categoria mais presente e mais insidiosa: a história do portão
a separar uma EB1 lscbrelotadal de uma EB2/3 !infralotada) do mesmo agru-
pamento. E a associação de pais que se dirige ao diretor para que o portão se
abrisse nos intervalos para que as crianças pudessem brincar. E a decisão
absurda: é impossível abrir o portão porque a 1.a
pertence à Câmara e a 2.a
é pro-
priedade do ME. E sendo embora diretor do agrupamento tinha de pedir autori-
zação às ditas tutelas e era um mar de burocracia que não valia a pena tentar.
Triste de quem vive preso na escravidão que constrói.
Ou a história do arboreto. Como refere a autora, as escolas onde se aprende
fazendo são excecionais, mas existem. E era o caso de um arboreto excecional que
foi sendo construído por alunos, professores e pais ao longo de 15 anos. Que con-
tinha exemplares únicos. Que tinha sido palco de aprendizagens que durariam
toda uma vida. E então surge a notícia absurda de que as máquinas iam arrancar
tudo. E isto porque a Parque Escolar ia requalificar os espaços e equipamentos.
Tudo em nome dos alunos e das aprendizagens. Ia ser muito melhor. Houve pro-
testos e indignações. Mas que não havia nada a fazer. Que estava tudo já decidido
por gabinetes de arquitetos e por orientações superiores. A ordem para destruir
legitimada pelos superiores interesses dos alunos era irrevogável. A este propó-
sito, a autora cita Yves Magat [jornalista suíço): «há um problema na vida política
portuguesa e aponto-o com toda a amizade que tenho por este país: a impiedade.
Em cada mudança, seja a nível macro ou a nível micro, a nova equipa que chega ao
poder acha-se na obrigação de anular tudo o que foi feito pela anterior». Ora isto
é um crime público porque se constitui como um atentado contra milhares de
pessoas que se dedicaram de corpo e alma a construir espaços vitais na escola.
Aliás, a história das intervenções da Parque Escolar ainda haverá de ser contada
como um processo de betonização acelerada de amplos espaços escolares ao ar
livre, onde a convivia lida de aberta era possível, o ar respirável. Hoje, de um modo
geral, as escolas intervencionadas pela Parque Escolar são uma enorme concen-
160
tração de betão onde as pessoas, paradoxalmente, não têm onde estar, onde a
dispersão de espaços aumentou o isolamento e a solidão.
Ou ainda a história dos castanheiros. Como confessa a autora: para mim a
escola é um lugar estranho. Havia um professor que tinha um projeto de plantação
de castanheiros. Houve o entusiasmo, a dádiva o envolvimento de alunos e pais.
Mas no ano seguinte, o professor que tinha liderado a aventura dos castanheiros
não estava já na escola. A lotaria dos concursos nacionais tinha-o colocado noutra
escola. Em nome da igualdade de oportunidades e da justiça da graduação profis-
sional. E quem o veio substituir nem percebeu que aqueles tocos eram castanhei-
ros. E milhares foram deitados fora. Sabe, a escola é como um campo de batalha.
Aliás, as histórias de professores que têm de pôr fim a projetos extraordiná-
rios e a assumirem o estatuto de pastores errantes que não podem amar as suas
ovelhas acontecem várias vezes. É o caso de Marta, professora dos mesmos alunos
durante os três primeiros anos de escolaridade. Marta que tinha desenvolvido
práticas pedagógicas extraordinárias e inovadoras e que interpelava o marasmo
dos seus pares. Como já dizia Maquiavel, o inovador cria inimigos em todos os que
prosperam na velha ordem. Na velha ordem da sebenta e da repetição. Do tédio e
do abandono. E por isso, quando o sistema a manda para outro lugar, os colegas
ousam dizer: o que a Marta nos deixou não foi uma herança foi um pesadelo. A Marta
foi um acidente numa escola colonizada e habitada por quem não tem o direito de
ser chamado de professor.
Para finalizar esta visita à insensatez, vejamos a história dos dispensáveis. O
professor L tinha sido colocado numa vaga de História da escola x. Foi uma colo-
cação desgraçada. Quase cego, grau zero de ensino e de autoridade. Grau zero de
aprendizagem. A escola conseguiu uma Junta Médica e a meio do ano, lá se con-
seguiu a mudança de atividade, passando a exercer funções a tempo completo na
biblioteca escolar. E então dá-se o milagre: L revelou-se um hábil investigador, um
extraordinário adjunto dos colegas no desenvolvimento do currículo, um sempre
disponível orientadordas aprendizagens dos alunos que o procuravam. Mas chegou
o final do ano e um dia o vento dos novos concursos levou-o. Não sabemos como
estará na nova escola [mas não nos custa nada imaginar!.
B. OS LAÇOS QUE GERAM A APRENDIZAGEM
Os" laços são outra categoria central destes textos. Porque a Angelina nem
precisaria de ter lido o diálogo entre a raposa e o principezinho: o que é cativar?
Porque ela sabia [também por saber de experiência feito] que a sede de aprender
nasce da atenção, do cuidado, da consideração, da convocação para a aprendiza-
gem. Porque ela sabia que a missão central do professor [vamos usar deliberada-
mente esta palavra missão], que a missão central do professor é procurar con-
tinuamente respostas para os problemas do exílio e do abandono. Ela sabia que
r6r
nenhum aluno estava condenado a desaparecer, nenhum aluno estava condenado
a ficar na margem da aprendizagem, no fundo da sala. Mesmo o Nuno com a Tris-
somia 21. Mesmo ele podia ser chamado a entrar no círculo da aprendizagem.
Mesmo ele podia ser forçado a sair do exilio para onde se tinha remetido. E por isso,
a professora inventa uma conspiração com todos os alunos, e através de uma
brincadeira do lenço gera uma aliança que o faz incluir.
Ou o episódio do canto nono que era proibido e então era por aí que se iria
começar. Ou a história do Sandro e do mapa perfeito. Um aluno CEF por quem nin-
guém dava nada mas a quem foram abertas as portas da aprendizagem porque se
teve a felicidade de colocar o desafio certo - desenhar o mapa de Portugal.
C. O OUTRO LADO DA ESCOLA
Já referimos que estas histórias se relacionam com os processos de escolari-
zação. Com os outros lados da escola. Lados muitas vezes solares, algumas vezes
sombrios onde germina calada a podridão.
É a história de Joana que não encontra a escola com que sempre tinha sonhado.
Joana, a abandonada, a tentar perceber o que se passava no reino do grau zero da
pedagogia, da atenção e do afeto e a aprender o desânimo, a desilusão e o progres-
sivo abandono.
A escola dos olhares dilacerantes. Nada há de atrativo na escola: nem no espaço
físico nem na relação com a maioria dos professores e o motivo para estar ali está tão
longe e distante que são poucos os que fazem do presente a gestação do seu futuro;
as relações entre as matérias ensinadas e as aprendizagens são relações difíceis ou
ténues: o esforço mal percebido, a utilidade pouco clara. Uma catedral de tédio. Ali na
sala, diante de nós, procuramo-los mas não os encontramos, mesmo se dizem sim,
setor. Quantas vezes os procuramos e não os encontramos. Mas ao professor não
se lhe pede que encontre. Não se lhe pede a resposta para os problemas. Não se
lhe pede a solução chave na mão. Pede-se-lhe que procure. Pede-se-lhe que não
desista. Pede-se-lhe que não fique indiferente. Pede-se-lhe atenção e cuidado.
A falsa autoridade que se julga construir através da distância, como no caso
do Obrigado, ó palerma. Do professor, a trabalhar num TEIP, que pensa que a rela-
ção pedagógica se constrói através da indiferença, da afirmação gratuita da supe-
rioridade e da impassibilidade.
A escola que não deixa de ser um espaço produtor de solidões. Mesmo falando
do ato pedagógico não se faz do outro o companheiro da mesma viagem. E na solidão
se combatem os moinhos de vento sem salvar as Dulcineias. E a solidão é sofrimento
quando o esforço, a implicação e o empenhamento são muitas vezes desproporcionais
relativamente aos resultados alcançados. Precisamente. Esta é a escola do excesso
de presença, do excesso do trabalho, do excesso de exigências impossíveis, do
intenso sofrimento que reduz progressivamente a alegria de ensinar.
162
Mas é também a escola como lugar de humanidade que ajuda a Isabel ado-
lescente a dar à luz o filho de Pedro que tinha entretanto morrido num acidente
de mota.
A escola como resposta face ao descalabro familiar e que não pode ficar insen-
sível ao apelo gostava que a professora falasse com o meu homem porque ele não
sabe ser pai, porque ele está a destruir o meu Carlos, porque estamos sós neste
mundo cruel.
A escola da solidariedade, como no caso do Almerindo que queria ser carteiro.
O exame da 4.
a
classe era uma barreira intransponível. Não que não soubesse o
suficiente. Por um misterioso processo de bloqueamento, o chumbo era o destino
recorrente. Então a professora e os únicos cincos alunos que iam a exame deci-
diram que o Almerindo tinha de cumprir o seu sonho, decidiram que tinha de
passar! Esta decisão foi o grande objetivo da turma. Os cinco que íamos a exame,
íamos para que o Almerindo passasse. E colocaram-no entre eles. E ajudaram a
resolver o exame do Almerindo.
D. AS PESSOAS DOS ALUNOS
Antes de tudo, os alunos são pessoas concretas. Não têm número. Têm nome.
Como o Rafael. O caso de Rafael era difícil, disseram-nos. Porque vivia só no mundo.
O pai tinha desaparecido. A mãe na prisão. E na procura de laços, um telefonema
para a prisão e ouvir a mãe: que eu até parece que se me estoira o coração de saudades
de há mais de um ano não ver o meu menino. Rafael. Não quero que ele pense que é uma
criança abandonada. Diz-lhe isso, professora, que não é uma criança abandonada?
Ou como o Rui: a professora que telefona para o n.? de telefone que a diretora
de turma do Rui lhe tinha dado. De casa responde a avó: o Rui tinha ido com a mãe
para o IPO [Instituto Português de Oncologial. Ele é bom, muito bom, disse a avó, só
tem muita revolta. E então a dor da professora vem ao de cima: e não tive coragem
de voltara telefonar: Esmagada pelo peso e pelo grito claro da revolta, digo. Dizemos
que a escola deve ser uma casa de humanidade. Refúgio último dos deserdados
da fortuna, das vítimas da injustiça. Mas terá de se reinventar nos seus modos de
organização. Terá de abdicar de ser uma cadeia de montagem regulada por uma
ordem fabril. E de ser regulada pela parafernália dos exames. A escola do futuro
terá necessariamente de passar por esta reinvenção.
Ou ainda como no caso da Marisa e da diretora de turma do 8.0
ano. Uma turma
complexa. Instabilidade que dificultava a comunicação e o entendimento. Então a DT
(Diretora de turma] decide inserir-se na rede do facebook. E através deste suporte
fica-se a saber que alunos e professores viviam em mundos diferentes. Eles liam
uma escola. Nós, professores, tínhamos lido outra coisa. O caso de Marisa: da inco-
municação para a comunicação. Percebia-se, então, como a intransigência pode
impedir a possibilidade de perscrutar um pouco mais adiante - lá onde, debaixo da
indiscipLina, vive o sofrimento. E foi assim que comecei a ver, quase ouvindo o grito, o
pedido de ajuda da Marisa quando escrevia, para mim e começava: SETOOOOOOORA!
E a história das Vidas das famílias em desagregação. Da Marília que começou
a chegar à escola sem os trabalhos de casa. Do Ricardo que começou a faltar às
primeiras horas do dia. Da Andreia que começou a chegar à escola triste, com
olheiras, cansada e sem as suas respostas rápidas e ágeis de sempre. Do Bruno
que deixou de ser um aluno regular. Da Juliana que começou a faltar intermi-
tentemente ... Vidas em transição devido a um programa global de ajustamento
estrutural imposto pelos senhores do capital. Que é, agora, quem mais ordena.
E. AS PESSOAS DOS PROFESSORES
E as pessoas dos professores também. Já qui falamos de alguns. Mas podemos
falar ainda da professora mesmo fixe que não se importa que a gente a ensine. Que
trabalha com os alunos na horta escolar e que de bom grado aceita ser ensinada
pelos seus alunos. E assim estabelece uma rede de cumplicidade e de afeto que
faz nascer a arte da ensinagem.
A professora que decide oferecer um bolo de aniversário à Vanessa que nunca
na sua vida o tinha tido.
F. A HIPOCRISIA ORGANIZADA
Há, nestes textos, várias evidências de uma hipocrisia organizada que não
pode deixar de ser desmascarada. Neste texto, seja-me permitido destacar duas
situações, uma particularmente dilacerante.
A primeira tem a ver com a destruição do sonho da Teresa. Aluna excecional
que tinha a nota máxima a todas as disciplinas e que queria ir para medicina. Até
que teve um acidente numa aula de educação física. A 1.a
e a 2.a
operações corre-
ram mal. Ficou para sempre incapacitada do braço direito e já não conseguia fazer
lançamentos surpreendentes. E agora o professor classificava-a com 13 porque
educação física era uma disciplina como as outras e quem não executa no máximo não
pode ter o máximo. Este é um caso de fronteira. Dilemático. Mas esta é sobretudo
uma história de uma prática escolar que esqueceu o sentido da sua finalidade e
que se enclausura numa formalidade insustentável.
A outra história tem a ver com a escola a tempo inteiro. Todos os meninos na
escola a fazer Atividades de Entreter Crianças (AEC). A passar tempo. A responder
incessantemente ao what is your name, CarLos, quando ela [a professora] sabia exa-
tamente que me chamava Carlos. Mãe, podes ir/á fa/arcom e/a? Podes ir lá dizer que
deve haver limites para o faz de conta? Podes ir lá dizer que mais valeria mandar-
-nos para o recreio?
G. o OLHAR DO SUJEITO QUE ESCREVE
o olhar do sujeito que escreve está inundado de compaixão. Diria que é a com-
paixão que o guia. E vem-me à memória uma passagem de um romance de Rosa
Montero (História do rei transparente] em que uma personagem quer oferecer a
uma sua amiga a melhor das palavras:
- Compaixão. Que, como sabes, é a capacidade de nos colocarmos na pele do pró-
ximo e de com ele sentir o que ele sente.
- Sim, agrada-me. Mas por que me dizes que é a melhor?
- Porque é a única das grandes palavras em nome da qual não ferimos, não tortura-
mos, não prendemos e não matamos ... Pelo contrário, evita tudo isso. Há outras pala-
vras muito belas: amor, liberdade, honra, justiça ... Mas todas elas, todas, podem ser
manipuladas, podem ser utilizadas como armas de arremesso e causarvítimas. Por
amor ao seu Deus, os cruzados acendem piras, e por um amor aberrante, os aman-
tes ciumentos matam as suas amadas. Os nobres maltratam e abusam barbara-
mente dos seus servos em nome de uma hipotética honra; a liberdade de uns pode
significar prisão e morte para outros e, quanto à justiça, todos julgam tê-la do seu
lado, mesmo os tiranos mais cruéis. Só a compaixão impede estes excessos; é uma
ideia que não pode impor-se aos outros a ferro e fogo, porque nos obriga a fazer
justamente o contrário. Obriga-nos a aproximamo-nos dos outros, a sentir o que
sentem e a compreendê-los ... Lembra-te desta palavra, minha Leola. E, quando te
lembrares, pensa também um pouco em mim.
É assim que vejo o olhar (e a escrita] da Angelina. Porque o que o move é a
sede de justiça. A defesa dos mais fracos, dos deficientes, dos excluídos, dos mais
pobres. O que a move é uma ordem educativa mais fraterna, mais sensível, mais
próxima. O que a move é a vontade de denúncia da indignidade mesmo quando ela
se desenha dentro da classe profissional a que pertence - como no triste caso das
Transgressões ou da Participação. O que a move é uma ordem mais colegial e cola-
borativa que alivie o sofrimento e a solidão dos professores e lhes confira um
sentido mais humano para a ação. O que a move é liberdade de lutar contra a indi-
ferença e a mesmice.
Como Meirieu poderíamos afirmar: Amo a razão. Considero que a razão é um
meio de aumentar a distância em relação à realidade, um instrumento crítico absolu-
tamente necessário e essencial. No entanto, a razão não garante a fuga à barbárie. A
garantia contra a barbárie é a compaixão.
É esta a luz que eu vejo a mão e o coração que escrevem estes magníficos
textos. Porque, num tempo em que se celebra o triunfo da razão, é preciso visitar
a emoção e valorizar uma pedagogia da compaixão.
Compaixão. Sofrer com os que sofrem. Alegrar-se com os que se alegram.
Esperar (e desesperar] com os que esperam. Sentir. As palavras ditas. As palavras
entreditas. O silêncio. Os olhares. Os gestos.
r65
Há uma pedagogia da emoção que é preciso redescobrir no tempo da aridez
tecnocrática. Há uma pedagogia da compaixão que é preciso acender na escuridão
dos formalismos estéreis. Na selva da competição. Na angústia dos exames, das
provas globais, do acesso ao ensino superior. No acesso a coisa nenhuma.
Há uma comunidade de afetos a construir no império sombrio das regras buro-
cráticas que decretam a igualdade formal e a excelência das soluções universais.
São estas as lições de uma vida e de um livro. Que pela minha parte procura-
rei seguir. Termino coma referência antológica de Pierre Bourdieu:
Ensinar não é uma atividade como as outras. Poucas profissões serão causas de
riscos tão graves como os que os maus professores fazem correr aos alunos que
lhes são confiados. Poucas profissões supõem tantas virtudes, generosidade, dedi-
cação e, acima de tudo, talvez entusiasmo e desinteresse. Só uma política inspi-
rada pela preocupação de atrair e de promover os melhores, esses homens e
mulheres de qualidade que todos os sistemas de educação sempre celebraram,
poderá fazer do ofício de educador da juventude o que ele deveria ser, o primeiro
de todos os ofícios.
Angelina sabia isto muito bem. Por isso dedicou toda a sua vida e grande parte
da sua produção escrita a lutar para que o ensino, a educação e a escola fossem
o lugar do cumprimento das promessas de humanidade. Por isso lhe estamos
gratos por continuar a ser uma referência singular.
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Uma pedagogia da compaixão0001

  • 1. Fonte: Carvalho, A. (2016). Vozes à Solta. Narrativas da Escola. Porto: Afrontamento, pp. 159-166 UMA PEDAGOGIA DA COMPAIXÃO José Matias Alves Tal como relata Habermas, pouco antes do octogésimo aniversário de Marcuse, os dois interrogavam-se sobre como explicar a base normativa da teoria crítica. Marcuse só deu a resposta dois dias antes da sua morte: «Vês? - disse a Habermas - agora sei em que é que se fundamentam os nossos juízos mais elementares: na compaixão, no nosso sentimento pela dor dos outros». Para os teóricos da escola de Frankfurt, a piedade e a compaixão constituíram a arma da crítica. As profundas marcas que neles tinham deixado os mártires dos campos de concentração tornavam-nos especialmente sensíveis à injustiça e à dor [Miguel Santos Guerra, Entre Bastidores]. Eu proponho, portanto, que o homem seja definido como uma nova espécie: o homo compassivus. Àqueles a quem falta a compaixão falta também a qualidade de humanidade. Não são meus irmãos [Rubem Alves, Gaiolas ou Asas]. Tive o privilégio de conhecer pessoalmente a autora destas histórias que se organizam em torno dos processos de escolarização. De ser seu amigo. E de ser agora um autor comovido que escreve tendo como pretexto os fios que nos trazem a vida na sua múltiplas realidades. Organizo a minha leitura a partir de sete categorias analíticas que penso pode- rem ler a generalidade destes textos: o mundo da vida aprisionado pela lógica surda e absurda dos sistemas; os laços que é preciso tecer para que as aprendi- zagens sejam possíveis; o outro lado da escola, ora sombrio ora solar; as pessoas dos alunos e dos professores com as suas irredutíveis singularidades; a hipocri- sia de um sistema enclausurado na estupidez do faz de conta; e, por fim, algumas palavras sobre o olhar do sujeito que escreve: sobre os temas que escolhe, as personagens que convoca e expõe, as narrativas que narra, o estilo que adota, I59
  • 2. tendo como denominador comum uma radical compaixão pelos que sofrem, uma insaciável sede de justiça, fraternidade e dignidade. A. O MUNDO DA VIDA E O MUNDO DOS SISTEMAS o binómio do mundo da vida aprisionado pelo mundo dos sistemas é uma cons- tante deste livro !HabermasJ. A história do Luís que queria construir uma caixa verdadeira para poder guardar a sua intimidade devassada e destruída, para guar- dar as résteas de sonhos (imlpossíveis abre-nos para um mundo marcado por uma brutal desumanidade e gera uma imensa vontade de chorar. Mas também uma radical vontade de revolta, pois este mundo não pode ser assim, impiedoso e desu- mano. Não podemos ser cúmplices desta lógica maquinal. Não podemos ficar indi- ferentes às dores e misérias dos seres humanos. Este é, talvez, a categoria mais presente e mais insidiosa: a história do portão a separar uma EB1 lscbrelotadal de uma EB2/3 !infralotada) do mesmo agru- pamento. E a associação de pais que se dirige ao diretor para que o portão se abrisse nos intervalos para que as crianças pudessem brincar. E a decisão absurda: é impossível abrir o portão porque a 1.a pertence à Câmara e a 2.a é pro- priedade do ME. E sendo embora diretor do agrupamento tinha de pedir autori- zação às ditas tutelas e era um mar de burocracia que não valia a pena tentar. Triste de quem vive preso na escravidão que constrói. Ou a história do arboreto. Como refere a autora, as escolas onde se aprende fazendo são excecionais, mas existem. E era o caso de um arboreto excecional que foi sendo construído por alunos, professores e pais ao longo de 15 anos. Que con- tinha exemplares únicos. Que tinha sido palco de aprendizagens que durariam toda uma vida. E então surge a notícia absurda de que as máquinas iam arrancar tudo. E isto porque a Parque Escolar ia requalificar os espaços e equipamentos. Tudo em nome dos alunos e das aprendizagens. Ia ser muito melhor. Houve pro- testos e indignações. Mas que não havia nada a fazer. Que estava tudo já decidido por gabinetes de arquitetos e por orientações superiores. A ordem para destruir legitimada pelos superiores interesses dos alunos era irrevogável. A este propó- sito, a autora cita Yves Magat [jornalista suíço): «há um problema na vida política portuguesa e aponto-o com toda a amizade que tenho por este país: a impiedade. Em cada mudança, seja a nível macro ou a nível micro, a nova equipa que chega ao poder acha-se na obrigação de anular tudo o que foi feito pela anterior». Ora isto é um crime público porque se constitui como um atentado contra milhares de pessoas que se dedicaram de corpo e alma a construir espaços vitais na escola. Aliás, a história das intervenções da Parque Escolar ainda haverá de ser contada como um processo de betonização acelerada de amplos espaços escolares ao ar livre, onde a convivia lida de aberta era possível, o ar respirável. Hoje, de um modo geral, as escolas intervencionadas pela Parque Escolar são uma enorme concen- 160
  • 3. tração de betão onde as pessoas, paradoxalmente, não têm onde estar, onde a dispersão de espaços aumentou o isolamento e a solidão. Ou ainda a história dos castanheiros. Como confessa a autora: para mim a escola é um lugar estranho. Havia um professor que tinha um projeto de plantação de castanheiros. Houve o entusiasmo, a dádiva o envolvimento de alunos e pais. Mas no ano seguinte, o professor que tinha liderado a aventura dos castanheiros não estava já na escola. A lotaria dos concursos nacionais tinha-o colocado noutra escola. Em nome da igualdade de oportunidades e da justiça da graduação profis- sional. E quem o veio substituir nem percebeu que aqueles tocos eram castanhei- ros. E milhares foram deitados fora. Sabe, a escola é como um campo de batalha. Aliás, as histórias de professores que têm de pôr fim a projetos extraordiná- rios e a assumirem o estatuto de pastores errantes que não podem amar as suas ovelhas acontecem várias vezes. É o caso de Marta, professora dos mesmos alunos durante os três primeiros anos de escolaridade. Marta que tinha desenvolvido práticas pedagógicas extraordinárias e inovadoras e que interpelava o marasmo dos seus pares. Como já dizia Maquiavel, o inovador cria inimigos em todos os que prosperam na velha ordem. Na velha ordem da sebenta e da repetição. Do tédio e do abandono. E por isso, quando o sistema a manda para outro lugar, os colegas ousam dizer: o que a Marta nos deixou não foi uma herança foi um pesadelo. A Marta foi um acidente numa escola colonizada e habitada por quem não tem o direito de ser chamado de professor. Para finalizar esta visita à insensatez, vejamos a história dos dispensáveis. O professor L tinha sido colocado numa vaga de História da escola x. Foi uma colo- cação desgraçada. Quase cego, grau zero de ensino e de autoridade. Grau zero de aprendizagem. A escola conseguiu uma Junta Médica e a meio do ano, lá se con- seguiu a mudança de atividade, passando a exercer funções a tempo completo na biblioteca escolar. E então dá-se o milagre: L revelou-se um hábil investigador, um extraordinário adjunto dos colegas no desenvolvimento do currículo, um sempre disponível orientadordas aprendizagens dos alunos que o procuravam. Mas chegou o final do ano e um dia o vento dos novos concursos levou-o. Não sabemos como estará na nova escola [mas não nos custa nada imaginar!. B. OS LAÇOS QUE GERAM A APRENDIZAGEM Os" laços são outra categoria central destes textos. Porque a Angelina nem precisaria de ter lido o diálogo entre a raposa e o principezinho: o que é cativar? Porque ela sabia [também por saber de experiência feito] que a sede de aprender nasce da atenção, do cuidado, da consideração, da convocação para a aprendiza- gem. Porque ela sabia que a missão central do professor [vamos usar deliberada- mente esta palavra missão], que a missão central do professor é procurar con- tinuamente respostas para os problemas do exílio e do abandono. Ela sabia que r6r
  • 4. nenhum aluno estava condenado a desaparecer, nenhum aluno estava condenado a ficar na margem da aprendizagem, no fundo da sala. Mesmo o Nuno com a Tris- somia 21. Mesmo ele podia ser chamado a entrar no círculo da aprendizagem. Mesmo ele podia ser forçado a sair do exilio para onde se tinha remetido. E por isso, a professora inventa uma conspiração com todos os alunos, e através de uma brincadeira do lenço gera uma aliança que o faz incluir. Ou o episódio do canto nono que era proibido e então era por aí que se iria começar. Ou a história do Sandro e do mapa perfeito. Um aluno CEF por quem nin- guém dava nada mas a quem foram abertas as portas da aprendizagem porque se teve a felicidade de colocar o desafio certo - desenhar o mapa de Portugal. C. O OUTRO LADO DA ESCOLA Já referimos que estas histórias se relacionam com os processos de escolari- zação. Com os outros lados da escola. Lados muitas vezes solares, algumas vezes sombrios onde germina calada a podridão. É a história de Joana que não encontra a escola com que sempre tinha sonhado. Joana, a abandonada, a tentar perceber o que se passava no reino do grau zero da pedagogia, da atenção e do afeto e a aprender o desânimo, a desilusão e o progres- sivo abandono. A escola dos olhares dilacerantes. Nada há de atrativo na escola: nem no espaço físico nem na relação com a maioria dos professores e o motivo para estar ali está tão longe e distante que são poucos os que fazem do presente a gestação do seu futuro; as relações entre as matérias ensinadas e as aprendizagens são relações difíceis ou ténues: o esforço mal percebido, a utilidade pouco clara. Uma catedral de tédio. Ali na sala, diante de nós, procuramo-los mas não os encontramos, mesmo se dizem sim, setor. Quantas vezes os procuramos e não os encontramos. Mas ao professor não se lhe pede que encontre. Não se lhe pede a resposta para os problemas. Não se lhe pede a solução chave na mão. Pede-se-lhe que procure. Pede-se-lhe que não desista. Pede-se-lhe que não fique indiferente. Pede-se-lhe atenção e cuidado. A falsa autoridade que se julga construir através da distância, como no caso do Obrigado, ó palerma. Do professor, a trabalhar num TEIP, que pensa que a rela- ção pedagógica se constrói através da indiferença, da afirmação gratuita da supe- rioridade e da impassibilidade. A escola que não deixa de ser um espaço produtor de solidões. Mesmo falando do ato pedagógico não se faz do outro o companheiro da mesma viagem. E na solidão se combatem os moinhos de vento sem salvar as Dulcineias. E a solidão é sofrimento quando o esforço, a implicação e o empenhamento são muitas vezes desproporcionais relativamente aos resultados alcançados. Precisamente. Esta é a escola do excesso de presença, do excesso do trabalho, do excesso de exigências impossíveis, do intenso sofrimento que reduz progressivamente a alegria de ensinar. 162
  • 5. Mas é também a escola como lugar de humanidade que ajuda a Isabel ado- lescente a dar à luz o filho de Pedro que tinha entretanto morrido num acidente de mota. A escola como resposta face ao descalabro familiar e que não pode ficar insen- sível ao apelo gostava que a professora falasse com o meu homem porque ele não sabe ser pai, porque ele está a destruir o meu Carlos, porque estamos sós neste mundo cruel. A escola da solidariedade, como no caso do Almerindo que queria ser carteiro. O exame da 4. a classe era uma barreira intransponível. Não que não soubesse o suficiente. Por um misterioso processo de bloqueamento, o chumbo era o destino recorrente. Então a professora e os únicos cincos alunos que iam a exame deci- diram que o Almerindo tinha de cumprir o seu sonho, decidiram que tinha de passar! Esta decisão foi o grande objetivo da turma. Os cinco que íamos a exame, íamos para que o Almerindo passasse. E colocaram-no entre eles. E ajudaram a resolver o exame do Almerindo. D. AS PESSOAS DOS ALUNOS Antes de tudo, os alunos são pessoas concretas. Não têm número. Têm nome. Como o Rafael. O caso de Rafael era difícil, disseram-nos. Porque vivia só no mundo. O pai tinha desaparecido. A mãe na prisão. E na procura de laços, um telefonema para a prisão e ouvir a mãe: que eu até parece que se me estoira o coração de saudades de há mais de um ano não ver o meu menino. Rafael. Não quero que ele pense que é uma criança abandonada. Diz-lhe isso, professora, que não é uma criança abandonada? Ou como o Rui: a professora que telefona para o n.? de telefone que a diretora de turma do Rui lhe tinha dado. De casa responde a avó: o Rui tinha ido com a mãe para o IPO [Instituto Português de Oncologial. Ele é bom, muito bom, disse a avó, só tem muita revolta. E então a dor da professora vem ao de cima: e não tive coragem de voltara telefonar: Esmagada pelo peso e pelo grito claro da revolta, digo. Dizemos que a escola deve ser uma casa de humanidade. Refúgio último dos deserdados da fortuna, das vítimas da injustiça. Mas terá de se reinventar nos seus modos de organização. Terá de abdicar de ser uma cadeia de montagem regulada por uma ordem fabril. E de ser regulada pela parafernália dos exames. A escola do futuro terá necessariamente de passar por esta reinvenção. Ou ainda como no caso da Marisa e da diretora de turma do 8.0 ano. Uma turma complexa. Instabilidade que dificultava a comunicação e o entendimento. Então a DT (Diretora de turma] decide inserir-se na rede do facebook. E através deste suporte fica-se a saber que alunos e professores viviam em mundos diferentes. Eles liam uma escola. Nós, professores, tínhamos lido outra coisa. O caso de Marisa: da inco- municação para a comunicação. Percebia-se, então, como a intransigência pode impedir a possibilidade de perscrutar um pouco mais adiante - lá onde, debaixo da
  • 6. indiscipLina, vive o sofrimento. E foi assim que comecei a ver, quase ouvindo o grito, o pedido de ajuda da Marisa quando escrevia, para mim e começava: SETOOOOOOORA! E a história das Vidas das famílias em desagregação. Da Marília que começou a chegar à escola sem os trabalhos de casa. Do Ricardo que começou a faltar às primeiras horas do dia. Da Andreia que começou a chegar à escola triste, com olheiras, cansada e sem as suas respostas rápidas e ágeis de sempre. Do Bruno que deixou de ser um aluno regular. Da Juliana que começou a faltar intermi- tentemente ... Vidas em transição devido a um programa global de ajustamento estrutural imposto pelos senhores do capital. Que é, agora, quem mais ordena. E. AS PESSOAS DOS PROFESSORES E as pessoas dos professores também. Já qui falamos de alguns. Mas podemos falar ainda da professora mesmo fixe que não se importa que a gente a ensine. Que trabalha com os alunos na horta escolar e que de bom grado aceita ser ensinada pelos seus alunos. E assim estabelece uma rede de cumplicidade e de afeto que faz nascer a arte da ensinagem. A professora que decide oferecer um bolo de aniversário à Vanessa que nunca na sua vida o tinha tido. F. A HIPOCRISIA ORGANIZADA Há, nestes textos, várias evidências de uma hipocrisia organizada que não pode deixar de ser desmascarada. Neste texto, seja-me permitido destacar duas situações, uma particularmente dilacerante. A primeira tem a ver com a destruição do sonho da Teresa. Aluna excecional que tinha a nota máxima a todas as disciplinas e que queria ir para medicina. Até que teve um acidente numa aula de educação física. A 1.a e a 2.a operações corre- ram mal. Ficou para sempre incapacitada do braço direito e já não conseguia fazer lançamentos surpreendentes. E agora o professor classificava-a com 13 porque educação física era uma disciplina como as outras e quem não executa no máximo não pode ter o máximo. Este é um caso de fronteira. Dilemático. Mas esta é sobretudo uma história de uma prática escolar que esqueceu o sentido da sua finalidade e que se enclausura numa formalidade insustentável. A outra história tem a ver com a escola a tempo inteiro. Todos os meninos na escola a fazer Atividades de Entreter Crianças (AEC). A passar tempo. A responder incessantemente ao what is your name, CarLos, quando ela [a professora] sabia exa- tamente que me chamava Carlos. Mãe, podes ir/á fa/arcom e/a? Podes ir lá dizer que deve haver limites para o faz de conta? Podes ir lá dizer que mais valeria mandar- -nos para o recreio?
  • 7. G. o OLHAR DO SUJEITO QUE ESCREVE o olhar do sujeito que escreve está inundado de compaixão. Diria que é a com- paixão que o guia. E vem-me à memória uma passagem de um romance de Rosa Montero (História do rei transparente] em que uma personagem quer oferecer a uma sua amiga a melhor das palavras: - Compaixão. Que, como sabes, é a capacidade de nos colocarmos na pele do pró- ximo e de com ele sentir o que ele sente. - Sim, agrada-me. Mas por que me dizes que é a melhor? - Porque é a única das grandes palavras em nome da qual não ferimos, não tortura- mos, não prendemos e não matamos ... Pelo contrário, evita tudo isso. Há outras pala- vras muito belas: amor, liberdade, honra, justiça ... Mas todas elas, todas, podem ser manipuladas, podem ser utilizadas como armas de arremesso e causarvítimas. Por amor ao seu Deus, os cruzados acendem piras, e por um amor aberrante, os aman- tes ciumentos matam as suas amadas. Os nobres maltratam e abusam barbara- mente dos seus servos em nome de uma hipotética honra; a liberdade de uns pode significar prisão e morte para outros e, quanto à justiça, todos julgam tê-la do seu lado, mesmo os tiranos mais cruéis. Só a compaixão impede estes excessos; é uma ideia que não pode impor-se aos outros a ferro e fogo, porque nos obriga a fazer justamente o contrário. Obriga-nos a aproximamo-nos dos outros, a sentir o que sentem e a compreendê-los ... Lembra-te desta palavra, minha Leola. E, quando te lembrares, pensa também um pouco em mim. É assim que vejo o olhar (e a escrita] da Angelina. Porque o que o move é a sede de justiça. A defesa dos mais fracos, dos deficientes, dos excluídos, dos mais pobres. O que a move é uma ordem educativa mais fraterna, mais sensível, mais próxima. O que a move é a vontade de denúncia da indignidade mesmo quando ela se desenha dentro da classe profissional a que pertence - como no triste caso das Transgressões ou da Participação. O que a move é uma ordem mais colegial e cola- borativa que alivie o sofrimento e a solidão dos professores e lhes confira um sentido mais humano para a ação. O que a move é liberdade de lutar contra a indi- ferença e a mesmice. Como Meirieu poderíamos afirmar: Amo a razão. Considero que a razão é um meio de aumentar a distância em relação à realidade, um instrumento crítico absolu- tamente necessário e essencial. No entanto, a razão não garante a fuga à barbárie. A garantia contra a barbárie é a compaixão. É esta a luz que eu vejo a mão e o coração que escrevem estes magníficos textos. Porque, num tempo em que se celebra o triunfo da razão, é preciso visitar a emoção e valorizar uma pedagogia da compaixão. Compaixão. Sofrer com os que sofrem. Alegrar-se com os que se alegram. Esperar (e desesperar] com os que esperam. Sentir. As palavras ditas. As palavras entreditas. O silêncio. Os olhares. Os gestos. r65
  • 8. Há uma pedagogia da emoção que é preciso redescobrir no tempo da aridez tecnocrática. Há uma pedagogia da compaixão que é preciso acender na escuridão dos formalismos estéreis. Na selva da competição. Na angústia dos exames, das provas globais, do acesso ao ensino superior. No acesso a coisa nenhuma. Há uma comunidade de afetos a construir no império sombrio das regras buro- cráticas que decretam a igualdade formal e a excelência das soluções universais. São estas as lições de uma vida e de um livro. Que pela minha parte procura- rei seguir. Termino coma referência antológica de Pierre Bourdieu: Ensinar não é uma atividade como as outras. Poucas profissões serão causas de riscos tão graves como os que os maus professores fazem correr aos alunos que lhes são confiados. Poucas profissões supõem tantas virtudes, generosidade, dedi- cação e, acima de tudo, talvez entusiasmo e desinteresse. Só uma política inspi- rada pela preocupação de atrair e de promover os melhores, esses homens e mulheres de qualidade que todos os sistemas de educação sempre celebraram, poderá fazer do ofício de educador da juventude o que ele deveria ser, o primeiro de todos os ofícios. Angelina sabia isto muito bem. Por isso dedicou toda a sua vida e grande parte da sua produção escrita a lutar para que o ensino, a educação e a escola fossem o lugar do cumprimento das promessas de humanidade. Por isso lhe estamos gratos por continuar a ser uma referência singular. 166