O documento discute a construção da identidade do tradicionalista gaúcho no século XX através da apropriação da identidade do gaúcho histórico do século XIX. Analisa como a imagem e representação do gaúcho foram construídas ao longo do tempo por meio de narrativas, escritos, imagens e discursos, e como isso influenciou a criação de uma identidade mítica do tradicionalista baseada no passado gaúcho.
4. DO GAÚCHO AO TRADICIONALISTA: IMAGEM, IDENTIDADE E REPRESENTAÇÃO
APRESENTAÇÃO
O tema central dessa pesquisa é a construção
da identidade do tradicionalista rio-grandense do
século XX. Para isso verifica-se como ele apropria-se
da identidade do gaúcho do século XIX, através de
representações de um passado, exaltando,
heroicizando e ressignifcando seu caráter histórico.
A investigação ocorre tendo por base a história
cultural, onde as noções de identidade, representação,
imagem e apropriação propiciam a fundamentação
teórica da pesquisa. Nesse contexto, é desenvolvida
uma abordagem referente a imagem criada pelos
cronistas que visitam e descrevem a Província do Rio
Grande de São Pedro durante o século XIX e a imagem
criada pelo pintor Jean Baptiste Debret.
Trata-se dos elementos que conduzem a
apropriação dessa identidade. Com isso, destaca-se a
literatura platina, o romantismo brasileiro de José de
Alencar e a expressão dos rio-grandenses Apolinário
Porto Alegre e Simões Lopes Neto.
Outro aspecto está na visão da historiografia
rio-grandense, na polêmica discussão em torno da
matriz do gaúcho rio-grandense x gaucho platino.
Nesse contexto o discurso de Moysés Vellinho, o maior
defensor de um gaúcho lusitano, sobressai.
Verificamos como ocorre a representação do gaúcho
idealizado que, posteriormente será exaltado
constituindo o modelo do tradicionalista.
No entanto, o caráter saudosista na tentativa de
reviver o passado nos parece ser a premissa inicial na
constituição desse movimento. Ocorrendo assim, um
processo de apropriação de uma identidade cultural. O
tradicionalista do século XX tenta reviver o gaúcho do
século XIX em sua totalidade de manifestações através
de um movimento saudosista, doutrinário e
conservador.
JOSÉ AUGUSTO FIORIN 4
5. DO GAÚCHO AO TRADICIONALISTA: IMAGEM, IDENTIDADE E REPRESENTAÇÃO
SUMÁRIO
Introdução..........................................................08
Capítulo I
Noções de cultura na história cultural.................13
As Representações e a Apropriação......................14
A Identidade e a Tradição.....................................26
Capítulo II
Narrativas: escritos e imagéticas ..........................33
Escritos: Arsène, Dreys e Hilaire..........................36
Imagética do Gaúcho: Debret e Molina.................45
Capítulo III
O processo de construção de uma identidade.......67
A Influência Literária: Platina e Brasileira...........71
Primeiras entidades nativistas e o Positivismo.....79
Visão dos historiadores.......................................83
Capítulo IV
A construção da identidade do tradicionalista.......95
Processo histórico na formação............................99
O sentido e o valor do Tradicionalismo................107
A Carta de Princípios..........................................114
Conclusão...........................................................121
Referências.........................................................124
Anexos ...............................................................130
JOSÉ AUGUSTO FIORIN 5
6. DO GAÚCHO AO TRADICIONALISTA: IMAGEM, IDENTIDADE E REPRESENTAÇÃO
INTRODUÇÃO
Na construção de um projeto de modernidade
muitas sociedades visam espelhar-se em um passado
representado como tradicional, cujo espelhamento possa lhe
condicionar os parâmetros necessários a atuação no
cotidiano. Embora hoje, alguns teóricos apontam um
processo de desconstrução dessas identidades, por conta de
uma instância maior, instituída por uma “mundialização da
cultura”, há o antagônico papel desempenhado por aqueles
que visam rememorar o passado, enaltecendo-o, cujo culto
remete a um fator importante de análise.
Com isso, podemos destacar que o Rio Grande do
Sul, por se constituir historicamente em um estado de
fronteira, aponta peculiaridades em suas manifestações
culturais. A cultura possui um significado expressivo nas
manifestações da sociedade rio-grandense. Alguns
habitantes do estado visam identificar-se como
tradicionalistas e buscam no passado elementos que
venham consolidar e justificar essa manifestação.
Hoje, verificamos que houve uma construção
daquilo que tornou-se um dos referenciais da identidade rio-
JOSÉ AUGUSTO FIORIN 6
7. DO GAÚCHO AO TRADICIONALISTA: IMAGEM, IDENTIDADE E REPRESENTAÇÃO
grandense, com a simbologia do gaúcho: seja na sua
imagem ou na expressão gentílica. Esse trabalho visa
analisar se houve a apropriação da identidade do gaúcho
histórico do século XIX pelo tradicionalista do século XX. A
reflexão sobre esse assunto surge na tentativa de
caracterizar e demonstrar a que contexto histórico e modelo
de sociedade gaúcho e tradicionalista pertencem.
Para enfatizar o pressuposto levantado, a
abordagem será constituída pela via da cultura, onde a
ênfase e a discussão serão construídas com base na história
cultural e nos estudos culturais. No entanto, analisar a
construção do gaúcho histórico defrontando-o com o
tradicionalista atual torna possível verificar pontos distintos
entre ambos.
E esse caráter de diferenciação é que nos faz
compreender como o gaúcho é (re)inventado e (re)significado
no transcorrer na história. Seja pelos discursos, seja pela
prática política ou pela literatura.
Ao desenvolver esse trabalho, tomou-se como
preocupação inicial em não desenvolver uma crítica
contundente aos ditames e aos propósitos do movimento
tradicionalista. Isso porque, entendemos que esse possui
uma importante função social e por ser uma manifestação
cultural merece ser respeitado e analisado.
Porém, é justamente nesse contexto de análise
que verificamos como ele se apropria de um passado
inexistente condicionando uma representação da imagem
passada, cujo significado será alterado na sociedade atual. A
criação de uma nova imagem a esse tipo social está
JOSÉ AUGUSTO FIORIN 7
8. DO GAÚCHO AO TRADICIONALISTA: IMAGEM, IDENTIDADE E REPRESENTAÇÃO
correlacionada a necessidade da criação de um elemento
mítico, que venha possuir um papel de significância.
No primeiro capítulo são tratadas questões teóricas
que remete a compreensão de que conceitos serão
abordados na pesquisa. As noções expressas estão
direcionadas a perspectiva geral do trabalho. Com isso,
tentou-se estabelecer determinadas noções de identidade,
cultura, representação e apropriação. Essa conceituação
possui um caráter significado.
É a partir desses pressupostos teóricos, que a
reflexão acerca da identidade, da imagem e da representação
do gaúcho do século XIX se desenvolvem. Assim, dentro da
perspectiva da história cultural buscou-se construir
elementos enfocando o discursos tantos verbais ou
imagéticos que visam representar o tipo social em questão.
Para caracterizar a imagem e a conseqüente
identidade do gaúcho do século XIX, no segundo capítulo
optou-se por realizar uma análise dos escritos que os
viajantes europeus do século XIX desenvolveram sobre o
tipo social do gaúcho, bem como a imagética representada
por Jean Baptiste Debret.
A discussão sobre os discursos de europeus que
visitaram a Província do Rio Grande de São Pedro durante o
século XIX, somado a visão que a pintura de Debret e
Molina expressaram sobre o gaúcho rio-grandense e platino
demonstram e caracterizam um tipo social com atribuições
distintas daquilo que o movimento cultural da segunda
metade do século XX tenta evocar. Assim, nesse capítulo
temos uma dimensão sob a perspectiva dos europeus, sobre
JOSÉ AUGUSTO FIORIN 8
9. DO GAÚCHO AO TRADICIONALISTA: IMAGEM, IDENTIDADE E REPRESENTAÇÃO
o habitante deste território no período delimitado pela
pesquisa.
Para compreender o tipo de identidade criada pelo
tradicionalista do século XX, e, por conseguinte, o próprio
movimento que este irá idolatrar, fez-se necessário enfocar
no capítulo terceiro alguns aspectos que conduzem a
construção dessa identidade tradicional.
Nesse contexto encontramos vários elementos e
manifestações que dão indício e talvez, nos conduzam a
uma compreensão dos condicionantes ao surgimento de um
movimento que visa “preservar a cultura”. Assim tentou-se
compreender aspectos de um processo de transformação do
gaúcho na formulação de um mito romantizado pela
literatura.
A influência literária pode ser considerada um dos
fatores que levam a construção de um outro significado ao
gaúcho. Além disso, o positivismo tão presente na sociedade
rio-grandense durante a República Velha também torna-se
um dos fatores caracterizantes ao culto de uma tradição do
passado.
Além disso, há uma outra equivalência. Trata-se da
construção da identidade regional. Partindo das condições
geradas pela Revolução de 1930 onde sobressai a identidade
do gaúcho, somada a visão que os intelectuais da Revista
Província de São Pedro, principalmente na perspectiva de
Moysés Vellinho, vamos compreender como foi se
construindo outra imagem, aos poucos edificando o sentido
gentílico a expressão: gaúcho rio-grandense.
JOSÉ AUGUSTO FIORIN 9
10. DO GAÚCHO AO TRADICIONALISTA: IMAGEM, IDENTIDADE E REPRESENTAÇÃO
E por fim, buscou-se a constituição de uma
identidade do tradicionalista. No capitulo quarto, há a
tentativa da reconstrução de aspectos importantes da
história do tradicionalismo no Rio Grande do Sul, dando
ênfase às principais linhas de ações, teses e princípios que
norteiam o movimento tradicionalista.
Nesse contexto, optou-se por discutir aspectos
ligados a problemática em questão que se diz respeito a
apropriação ou não da identidade do gaúcho pelo
tradicionalista. Assim, o enfoque veio ao encontro à
identidade do gaúcho histórico do século XIX, pontuando a
representação e a apropriação de uma cultura do passado,
bem como o saudosismo expresso nela.
JOSÉ AUGUSTO FIORIN 10
11. DO GAÚCHO AO TRADICIONALISTA: IMAGEM, IDENTIDADE E REPRESENTAÇÃO
NOÇÕES DE CULTURA
NA HISTÓRIA
CULTURAL
JOSÉ AUGUSTO FIORIN 11
12. DO GAÚCHO AO TRADICIONALISTA: IMAGEM, IDENTIDADE E REPRESENTAÇÃO
AS REPRESENTAÇÕES E A APROPRIAÇÃO
A cultura pode ser entendida como uma mediação
para o mundo. Ela representa as maneiras de sentir e
pensar dos grupos presentes na sociedade. A noção de
cultura é um tema interessante que merece discussão
acentuada. Partindo de seus postulados percebemos a
grande representação que ela possui perpassando pelos
conceitos de unidade e diversidade. A noção de cultura é
construída a partir de nossa diversidade e com isso, constrói
a noção de identidade. A sociedade é então a base para a
existência da cultura, e a cultura só se desenvolve pela
interação social.
A aquisição e a perpetuação da cultura, é uma
processo social, resultante da aprendizagem. Cada
sociedade transmite às novas gerações o patrimônio cultural
que recebeu de seus antepassados. Cada sociedade, elabora
a sua própria cultura ao longo da história e recebe
influências de outras culturas.
Ela pode também ser entendida como um estilo de
vida particular que as sociedades desenvovlvem e que
JOSÉ AUGUSTO FIORIN 12
13. DO GAÚCHO AO TRADICIONALISTA: IMAGEM, IDENTIDADE E REPRESENTAÇÃO
caracterizam cada uma delas. Assim os individuos que
compartilham da mesma cultura apresentam o que se
chamamos de identidade cultural. É essa identidade que faz
com que a pessoa se sinta pertencente ao grupo, é por meio
dela que se desenvolve o sentimento de pertencimento.
A antropologia no Brasil tem dificuldade em definir
o que é cultura brasileira. Pensamos a cultura brasileira
fragmentada, em uma unidade ou em várias culturas? Para
entender como ocorre parte desse processo de constituição
cultural, examinaremos a contrução de uma cultura
apresentada como gaúcha, predominante no estado do Rio
Grande do Sul, cujas origens remetem à identidade platina.
Para isso, fazer-se-á necessário destacar dois
distintos momentos de manifestação cultural. O gaúcho –
que configura na campanha do Rio Grande do Sul nos
séculos XVII e XVIII, e o tradicionalista, criado pelo
Movimento Tradicionalista Gaúcho no transcorrer do século
XX. Assim, é pertinente enfocar como o tradicionalista tenta
apropriar-se da identidade do gaúcho e por conseguinte
construir um movimento de preservação da cultura
passada.
Para preservar a identidade de uma cultura frente
à possível difusão de preceitos de outras culturas surge o
etnocentrismo. E é com esse intuíto que o tradicionalista
visa manter o entendimento e relação com outras culturas,
servindo justamente no sentido de manutenção de sua
identidade cultural. Então, a etnologia, por sua vez, vai
tentar dar uma resposta objetiva à velha questão da
diversidade humana.
JOSÉ AUGUSTO FIORIN 13
14. DO GAÚCHO AO TRADICIONALISTA: IMAGEM, IDENTIDADE E REPRESENTAÇÃO
O etnocentrismo é o termo técnico para esta
visão de coisas onde segundo a qual o nosso
próprio grupo é centro de todas as coisas e
todos os grupos são medidos e avaliados em
relação à ele. Cada grupo apresenta seu
próprio orgulho e vaidade, considera-se
superior, exalta suas próprias divindades e
olha com desprezo às estrangeiras. Cada
grupo pensa que seus próprios costumes
(folkways) são os únicos válidos e ele observa
que os outros grupos têm outros costumes,
encara-os com desdém 1 . (SIMON apud
CUCHE, 2002, p.46)
Considerando que a cultura nas ciências sociais
apresenta-se de uma forma bastante complexa, devemos
nos remeter a noção de cultura no que refere-se à produção
histórica. Para Balandier (1955) se a cultura não é um dado,
uma herança que se transmite imutável de geração em
geração, é porque ela é uma produção histórica, isto é, uma
construção que se inscreve na história, e mais precisamente
na história das relações dos grupos sociais entre si. 2
É importante perceber que o homem em relação ao
social vai construindo essa perspectiva de cultura. O
cultural não pode ser estudado separado do social, pois
ambos possuem caráter de historicidade. Em relação ao
gaúcho e ao tradicionalista, considerando os distintos
momentos históricos que ambos situam-se, devemos partir
da premissa de que nos apropriamos do que é pronto, ou
1SIMON, Pierre-Jean. Ethnocentrisme. Pluriel-recherces, cachier n.1,p.57-
63. apud CUCHE, Denys. A noção de cultura nas ciências sociais.
Tradução de Viviane Ribeiro. 2 ed. Bauru: EDUSC, 2002.
2 BALANDIER, Georges. La nocion de “situation” cloniale. In: Sociologie
actuelle de l’Afrique noire. Paris: PUF, 1955.
JOSÉ AUGUSTO FIORIN 14
15. DO GAÚCHO AO TRADICIONALISTA: IMAGEM, IDENTIDADE E REPRESENTAÇÃO
construímos o que é nos dado? Será que absorvemos a
cultura de geração em geração? Ou ela é imposta pelo grupo
de convívio?
Burke (2000) deixa evidente que a história cultural
ainda não está estabelecida de maneira muito sólida, pelo
menos no sentido institucional. Segundo ele não é fácil
responder à pergunta: o que é cultura? Tudo isso porque a
concepção de cultura para historiadores de meados do
século XIX é de que ela era algo que as sociedades tinham
(ou, mais exatamente, que alguns grupos em algumas
sociedades tinham), embora faltasse a outros 3 .
A concepção universalista de cultura nos remete ao
pensamento de Tylor. Ele enfatiza que a cultura é a
expressão da totalidade da vida social do homem. Ela se
caracteriza por sua dimensão coletiva. Enfim, a cultura é
adquirida e não depende da hereditariedade biológica 4 . Já
Boas vai defender uma concepção particularista da cultura
destacando que ela é uma tentativa de pensar a diferença.
Para ele o fundamental entre os grupos humanos é de
ordem cultural e não racial 5 .
Segundo a afirmação de Peter Burke, de que há
dificuldade ao definir o que é cultura, tentamos trazer aqui a
análise funcionalista da cultura, desenvolvida por
Malinovski. Segundo Cuche (2000), Malinovski se opôs a
qualquer tentativa de escrever a história das culturas de
3 BURKE, Peter. Unidade e variedade na história cultural. In. Variedades
de História Cultural. Trad. Alda Porto. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2000.
4 CUCHE, Denys. A noção de cultura nas ciências sociais. Tradução de
Viviane Ribeiro. 2 ed.Bauru:EDUSC,2002. p.36
5 Idem. p.41.
JOSÉ AUGUSTO FIORIN 15
16. DO GAÚCHO AO TRADICIONALISTA: IMAGEM, IDENTIDADE E REPRESENTAÇÃO
tradição oral. Para ele, é preciso se ater à observação direta
das culturas em seu estado presente, sem buscar a volta de
suas origens, o que representaria um ilusório, pois não
suscetível de prova científica. Com isso, nos remetemos à
funcionalidade do movimento tradicionalista que visa
retornar ao passado para dar sustentabilidade à sua forma
de manifestação cultural no presente.
Para entender como ocorre esta tentativa de
apropriação da identidade do gaúcho pelo tradicionalista,
neste contexto, é fundamental destacar os elementos que os
aproximam. Para isso, partimos do postulado da Nova
História Cultural. Peter Burke 6 (2005) explica a emergência,
a partir da década de 1970, de um modo peculiar de
compreender a história, tomando os aspectos culturais do
comportamento humano como centro privilegiado do
conhecimento histórico. Esta emergência vincula, segundo
ele, ao que chama de “virada cultural”: uma guinada sofrida
pelos estudos históricos, abandonando um esquema teórico
generalizante e movendo-se em direção aos valores de
grupos particulares, em locais e períodos específicos.
A história cultural surge com uma proposta de
pensar novos objetos e paradigmas. Romper com
determinadas postulações também faz parte de suas
proposições, pois Chartier (1990) nos diz que durante esse
período demasiado longo, a história da história foi habitada
por “essas seqüências de conceitos saídos de inteligências
desencarnadas”, denunciadas por Lucien Febvre como o
pior defeito da antiga história das idéias. Não obstante, a
6 BURKE,Peter. O que é História Cultural?Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor 2005, 192p.
JOSÉ AUGUSTO FIORIN 16
17. DO GAÚCHO AO TRADICIONALISTA: IMAGEM, IDENTIDADE E REPRESENTAÇÃO
história cultural surge como “uma outra maneira de pensar
as evoluções e oposições intelectuais”. 7
Então, a possibilidade de se opor ao pensamento
estabelecido pelo Movimento Tradicionalista, principalmente
no que concerne ao que é histórico e o que é tradicional,
torna-se um objeto interessante de estudo. A história
cultural tal como entendemos, tem como principal objeto
identificar o modo como em diferentes lugares e momentos
uma determinada realidade social é construída, pensada,
dada a ler 8 .
É importante destacar o que Burke enfatiza. Segundo
ele, as linhas teóricas defendidas pela Nova História
Cultural não são apenas uma nova moda, mas respostas a
fraquezas palpáveis de paradigmas anteriores 9 . Sobre essa
mesma idéia, Chartier defende que:
O que toda história cultural deve pensar é
portanto, indissociavelmente, a diferença pela
qual todas as sociedades, por meio de figuras
variáveis, separaram. Do quotidiano um
domínio particular da atividade humana, e as
dependências que inscrevem de múltiplas
maneiras a invenção estética e intelectual em
suas condições de possibilidade 10 .
(CHARTIER, 1994, p.8)
7 CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e representações.
Lisboa: Difel; Rio de Janeiro: Bertand do Brasil, 1990. p.16.
8 Idem. p.17.
9 BURKE, Peter. Unidade e variedade na história cultural. In. Variedades
de História Cultural. Trad. Alda Porto. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2000. p.251.
10 CHARTIER, Roger. A história hoje: dúvidas, desafios, propostas. In:
Revista Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 7, n. 13, 1994, p. 97-113.
JOSÉ AUGUSTO FIORIN 17
18. DO GAÚCHO AO TRADICIONALISTA: IMAGEM, IDENTIDADE E REPRESENTAÇÃO
Outro aspecto importante na Nova História
Cultural, que merece ser mencionado é reservado para o
estudo das representações. Este por sua vez, torna-se um
conceito central. Chartier desenvolve a idéia sobre o
deslocamento da história social da cultura para a história
cultural da sociedade, especialmente a partir da década de
1980.
Assim, a idéia da Nova História Cultural, nos
indica algumas indagações. Como são construídas as
representações do gaúcho? Como a tradição é construída
através das idéias e imagens? Certamente essas premissas
nos condicionam a pensar a sociedade rio-grandense no
momento da conquista/disputa do território pelos reinos
Ibéricos. Momento esse em que consolida-se enquanto
individuo social a imagem do gaúcho. No entanto, em
meados do século XX, o movimento tradicionalista, busca a
idéia de (re)construção, com base em um passado,
construindo assim a representação desse gaúcho através do
tradicionalista.
Chartier (1990) deixa explicito que o objeto de uma
história cultural levada a repensar completamente a relação
tradicionalmente postulada entre o social, identificado com
um real bem real, existindo por si próprio, e as
representações supostas como refletido-o ou dele se
desviando. 11
Pensar qual seria a ideologia do grupo de jovens
criadores do Movimento Tradicionalista na década de 1940 é
11 CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e
representações. Lisboa: Difel; Rio de Janeiro: Bertand do Brasil, 1990.
p.27.
JOSÉ AUGUSTO FIORIN 18
19. DO GAÚCHO AO TRADICIONALISTA: IMAGEM, IDENTIDADE E REPRESENTAÇÃO
refletir como se dá a representação do mundo social, pois
Roger Chartier nos diz que essas representações são sempre
determinadas pelos interesses do grupo que as forjam. Neste
caso a representação do tradicionalismo atinge o interesse
de criação e invenção de um grupo de jovens oriundos do
meio rural que buscam na capital do estado, por puro
saudosismo, reviver um passado que não existiu em sua
totalidade.
No Rio Grande do Sul do século XX ocorre o
surgimento um movimento cuja tentativa é a reprodução de
valores forjados pelos antepassados. Devido a isso, a
identidade gaúcha apresenta-se de forma fragmentada, pois
nunca se expressou como uma totalidade. Essa ocorrência é
devido à forma de resgate cultural de um passado presente
no imaginário, porque há a procura da formação de uma
identidade no espaço urbano, cuja construção e
ideologização será de um movimento tradicionalista.
Com isso, ocorrem alguns equívocos na construção
desse paradigma de preservação do passado. A
característica dominante de uma identidade “tradicional” -
em uma sociedade moderna é a diluição da noção de tempo
histórico e do espaço. Onde há a tentativa de viver no núcleo
urbano, a vida ocorrida no campo em um momento onde há
uma reelaboração do passado como o lugar de uma
sociedade tradicional. Entretanto, historicamente, a
sociedade de tipo tradicional nunca existiu no Rio Grande
do Sul.
Na tentativa de construir um modelo tradicional de
preservação dos valores passados, os ideólogos do
movimento buscam a invenção de um lugar - o pago. Isto
JOSÉ AUGUSTO FIORIN 19
20. DO GAÚCHO AO TRADICIONALISTA: IMAGEM, IDENTIDADE E REPRESENTAÇÃO
ocorre, porque visam formar um padrão cultural onde as
bases do passado possam construir uma identidade no
presente. Um paradigma criado pelo Movimento
Tradicionalista. Assim, o tradicionalismo é a expressão de
um dos segmentos da modernidade.
A funcionalidade deste movimento tradicionalista
está enquadrada em determinações que vêm exercer
dominação aos tradicionalistas filiados, onde a adequação
do tradicionalista à um código de ética e princípios
estabelecidos estão inteiramente ligados a uma tradição oral
de respeitabilidade. Isso se dá devido ao discurso proferido e
enaltecido dentro das entidades tradicionalistas, onde o
gaúcho do passado – visto agora como herói – sempre
representou estar dentro dos padrões de conduta da
sociedade. Sobre isso, Chartier (1990) ressalta que esta
investigação sobre as representações supõe como estando
sempre colocadas num campo de concorrências e de
competições cujos desafios se enunciam em termos de poder
e dominação. 12 Segundo ele, para compreender os
mecanismos pelo qual um grupo impõe, ou tenta impor, a
sua concepção de um mundo social, os valores que são seus
e o seu domínio 13 .
Outro aspecto essencial, para compreender como
ocorre essa forma de dominação do movimento
tradicionalista aos seus simpatizantes, está ligado à
simbologia. Vários são os ícones representativos dessa
forma visionária de resgate do passado. Cassier define esta a
função simbólica como:
12 CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e
representações. Lisboa: Difel; Rio de Janeiro: Bertand do Brasil, 1990.
13 Idem. p. 17.
JOSÉ AUGUSTO FIORIN 20
21. DO GAÚCHO AO TRADICIONALISTA: IMAGEM, IDENTIDADE E REPRESENTAÇÃO
...uma função mediadora que informa as
diferentes modalidades de apreensão do real,
quer opere por meio dos signos lingüísticos,
das figuras mitológicas e da religião, ou dos
conceitos do conhecimento cientifico.(...)
forma simbólica todas as categorias e todos os
processo que constroem o mundo como
representação. (CASSIRER, apud CHARTIER
p.19) 14
A idéia de representar um passado que nunca existiu
– funcionalidade do movimento tradicionalista – é
justamente tentar fazer com que o tradicionalista tenha a
imagem de um gaúcho. Mesmo equivocando-se com o tempo
histórico e com o espaço pelo qual a tradição está sendo
cultuada tal movimento expressa-se em uma ideologização
cujo aparato é evocar a representação como algo ausente.
Assim a idéia de representação fica evidente pois
... a representação como dando a ver uma
coisa ausente, o que supõe uma distinção
radical entre aquilo que representa e aquilo
que é representado; por outro lado, a
representação como exibição de uma
presença, como apresentação publica de algo
ou de alguém. A representação é um
instrumento de um conhecimento mediato
que faz por um objeto ausente através de sua
substituição por uma imagem, capaz de
reconstruir em memória e de o figurar tal
como ele é. 15 (CHARTIER, 1990, p. 22)
14 CASSIRER, Ernst. La filosophie desenvolvimento formes symboliques.
Paris: Minuit, 1972. apud. CHARTIER, Roger. A história cultural: entre
práticas e representações. Lisboa: Difel; Rio de Janeiro: Bertand do
Brasil, 1990. p. 19.
15 CHARTIER, Roger. A história cultural: entre práticas e
representações. Lisboa: Difel; Rio de Janeiro: Bertand do Brasil, 1990.
p.22.
JOSÉ AUGUSTO FIORIN 21
22. DO GAÚCHO AO TRADICIONALISTA: IMAGEM, IDENTIDADE E REPRESENTAÇÃO
Assim, a representação é relacionamento de uma
imagem presente e de um objeto ausente. Fato esse que
pode se estender a representação dada ao Movimento
Tradicionalista Gaúcho e ao gaúcho histórico, pois há uma
grande distinção entre representação e representado,
identificado por Chartier como sendo esta distinção algo
fundamental, pois entre signo e significado é pervertida
pelas formas de teatralização da vida social. (...) Todas elas
têm em vista fazer com que a identidade do ser não seja
outra coisa senão a aparência da representação. 16
O Movimento Tradicionalista seria um
condicionante às manifestações de representações coletivas?
Sobre essa perspectiva, em importante artigo intitulado “A
história hoje: dúvidas, desafios, propostas” 17 Chartier
ressaltará que as representações coletivas que incorporam
nos indivíduos as divisões do mundo social e estruturam os
esquemas de percepção e de apreciação a partir dos quais
estes classificam, julgam e agem.
Se por um lado há a evidência do tradicionalista
representar o que o gaúcho constitui, por outro, há a
tentativa de um processo que visa a apropriação da
identidade desse gaúcho. É importante destacar como o
tradicionalista e o próprio Movimento Tradicionalista
orientam suas práticas sociais. Tudo isso porque a
apropriação define o consumo cultural como uma operação
de produção que embora não fabrique nenhum objeto,
16Idem. p.21.
17 CHARTIER, Roger. A história hoje: dúvidas, desafios, propostas. In:
Revista Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 7, n. 13, 1994, p. 97-113.
JOSÉ AUGUSTO FIORIN 22
23. DO GAÚCHO AO TRADICIONALISTA: IMAGEM, IDENTIDADE E REPRESENTAÇÃO
assinala a sua presença a partir de maneiras de utilizar os
produtos que lhe são impostos.
Como um segmento urbano, constituído pelos
tradicionalistas, se apropria da idéia e da imagem do gaúcho
habitante da região da campanha, e cria outro significado?
Conforme Chartier em “O mundo como
representação” 18 , o sentido que Michel Foucault dá ao
conceito, ao tomar "a apropriação social dos discursos"
como um dos procedimentos maiores através dos quais os
discursos são dominados e confiscados pelos indivíduos ou
instituições. Com isso, há uma facilidade maior de um
determinado controle. E o Movimento Tradicionalista, por
suas vez, adotará essas formas de controle de maneira
especifica aos seus filiados e simpatizantes.
De acordo com essa idéia, podemos destacar a
afirmação de Chartier 19 que a apropriação, a nosso ver, visa
uma história social dos usos e das interpretações, referidas
a suas determinações fundamentais e inscritas nas práticas
específicas que as produzem.
Assim, a história que o Movimento Tradicionalista
constrói é uma história voltada às interpretações dos
ideólogos do movimento, que buscam representar, e,
consequentemente apropriar-se somente daquilo que julgam
como válido e significativo no resgate e preservação de uma
identidade. Certamente, não concebem a história como uma
construção coletiva e uma manifestação cultural muito mais
18 CHARTIER, Roger. O mundo como representação. Estudos Avançados,
v.11, n.5,p.173-191,1991.
19 Idem. p. 6.
JOSÉ AUGUSTO FIORIN 23
24. DO GAÚCHO AO TRADICIONALISTA: IMAGEM, IDENTIDADE E REPRESENTAÇÃO
ampla do que seus paradigmas de enaltecimentos heróicos e
desvinculações temporais.
A IDENTIDADE E A TRADIÇÃO
A construção do movimento tradicionalista somente
será possível no momento em que possibilita-se as bases
para essa construção. Para isso, um conceito inicial é o de
que o tradicionalista tem uma idéia centrada, com
elementos cartesianos e modelos pré-estabelecidos. O
tradicionalismo tenta criar uma idéia de unidade para assim
desenvolver um processo que visa construir uma identidade.
Para desenvolvermos tais idéias referentes à
identidade, buscamos em Stuart Hall alguns indicativos,
pois em sua obra “Identidades Culturais na pós-
modernidade” 20 , ele discute a questão da identidade cultural
na chamada modernidade tardia, buscando responder
algumas perguntas como: se há ou não há uma “crise” de
identidade, em que ela consiste e quais suas conseqüências.
Para isso, o autor traz a mudança do conceito de sujeito e
identidade no século XX.
Qual seria a identidade do gaúcho? Os elementos
que constituem a identidade desse habitante histórico do
Rio Grande do Sul seriam os mesmos apresentados pelos
tradicionalistas do século XX? E perante o contexto dessa
modernidade tardia, ou pós-modernidade, qual o lugar da
identidade do tradicionalista no século XXI? Conseguirá
manter pura e genuinamente um conceito de tradição,
20 HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-
modernidade.Tradução:Tomaz Tadeu da Silva, Guaracira Lopes Louro. 4.
ed. Rio de Janeiro:DP&A. 2000.
JOSÉ AUGUSTO FIORIN 24
25. DO GAÚCHO AO TRADICIONALISTA: IMAGEM, IDENTIDADE E REPRESENTAÇÃO
apoiando-se no passado, sem absorver as manifestações
culturais produzidas pela sociedade do presente? Tais
indagações nos remetem a várias reflexões no que diz
respeito às funções históricas e sociológicas desenvolvida
pelo Movimento Tradicionalista no Rio Grande do Sul.
Na tentativa de compreender esse processo,
percebemos a complexidade que é tentar definir identidade.
Para Hall (2001), o conceito de identidade é
demasiadamente complexo, muito pouco desenvolvido e
muito pouco compreendido na ciência social contemporânea
para ser definitivamente posto à prova 21 .
Outro importante aspecto que merece destaque é o
fato que
... a identidade é formada, ao longo do tempo,
através de processos inconscientes, e não algo
inato, existente na consciência do momento
do nascimento. Existe sempre algo tão
“imaginário” ou fantasiado sobre sua unidade.
Ela permanece sempre incompleta, esta
sempre “em processo”, sempre “sendo
formada” 22 . (HALL, 2001,p.38)
Apesar disso, deve-se destacar o alerta que Cuche
faz. Segundo ele, não se pode, pura e simplesmente
confundir as noções de cultura e de identidade cultural
ainda que as duas tenham uma grande ligação 23 . O que
21HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de
Janeiro: DP&A. 2000. p.8.
22 Idem p.38.
23 CUCHE, Denys. A noção de cultura nas ciências
sociais.Bauru:EDUSC,2002. p.176.
JOSÉ AUGUSTO FIORIN 25
26. DO GAÚCHO AO TRADICIONALISTA: IMAGEM, IDENTIDADE E REPRESENTAÇÃO
ocorre no Rio Grande do Sul, na constituição e consolidação
do Movimento Tradicionalista, é justamente essa confusão.
Confundem cultura com identidade. É imposto, pelo
Movimento Tradicionalista Gaúcho, a construção de uma
identidade, com base na cultura gaúcha, tomando como
referência o passado, enaltecendo-o como heróico.
A postura que o movimento tradicionalista adotará
será um postura de dominação. Esse domínio será
estabelecido por conta de seus manuais, teses, leis e códigos
estabelecidos aos tradicionalistas. Ou seja, ao querer
identificar-se como tradicionalista o individuo deverá aceitar
as normas impostas pelo movimento. Para dessa forma,
manter a identidade cultural do gaúcho. Sobre isso é
importante destacar que há uma história das relações de
força simbólicas, uma história da aceitação ou da rejeição
pelos dominados dos princípios inculcados, das identidades
impostas que visam a assegurar e perpetuar sua
dominação 24 .
A identidade permite que o indivíduo se localize
dentro da sociedade. Parece que, para o movimento
tradicionalista a identidade, apresenta-se de uma forma
permanente. Assim, de acordo Cuche, esses tradicionalistas
concebem a identidade como um dado que definiria de uma
vez por todas o individuo e que o marcaria de maneira quase
indelével 25 .
24CHARTIER, Roger. A história hoje, dúvidas, desafios, propostas. In:
Revista Estudos Históricos, Rio de Janeiro, vol. 7, n. 13, 1994, p. 9.
25 CUCHE, Denys. A noção de cultura nas ciências
sociais.Bauru:EDUSC,2002. p.178.
JOSÉ AUGUSTO FIORIN 26
27. DO GAÚCHO AO TRADICIONALISTA: IMAGEM, IDENTIDADE E REPRESENTAÇÃO
Se a identidade define o individuo, como o
tradicionalista visa identificar-se como gaúcho?
A identidade é vista como uma condição
imanente do indivíduo, definindo-o de
maneira estável e definitiva.(...) O individuo é
levado a interiorizar os modelos culturais que
lhe são impostos, até o ponto de se identificar
com seu grupo de origem. (CUCHE, 2002,
p.179)
Talvez, seja importante enfatizar a representação do
mito gaúcho, já que não se pode reivindicar uma identidade
cultural autêntica. Para Stuart Hall, o mito fundacional tem
funcionalidade em uma história que localiza a origem da
nação, do povo e de seu caráter nacional num passado tão
distante que eles perdem nas brumas do tempo, não do
tempo “real”, mas do tempo “mítico” 26 . Além disso, expõe
com muita clareza e propriedade de que não tem qualquer
nação que seja composta de apenas um único povo, uma
única cultura ou etnia. As nações modernas são, todas,
híbridas culturais.
Com isso, percebemos como ocorre a diluição do
tempo histórico. Os tradicionalistas tentam reviver um
passado que não nunca existiu na forma como interpretam.
Assim, ocorre uma série de equívocos na constituição da
identidade do tradicionalista rio-grandense.
Anthony Giddens 27 descreve que há uma expressiva
a distinção entre sociedades tradicionais e modernas. Ou
26 HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de
Janeiro: DP&A. 2000. p.55.
27 GIDDENS, Anthony apud HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-
modernidade. Rio de Janeiro: DP&A. 2000.
JOSÉ AUGUSTO FIORIN 27
28. DO GAÚCHO AO TRADICIONALISTA: IMAGEM, IDENTIDADE E REPRESENTAÇÃO
seja, o gaúcho pertence a uma sociedade tradicional,
enquanto que o tradicionalista pertence a uma sociedade
moderna. Assim, nas sociedades tradicionais, o passado é
venerado e os símbolos são valorizados porque contêm e
perpetuam a experiência de gerações. A tradição é um meio
de lidar com o tempo e com o espaço, inserindo qualquer
atividade ou experiência particular na continuidade do
passado, presente e futuro, os quais por sua vez, são
estruturados por práticas sociais recorrentes.
No Rio Grande do Sul, com o surgimento do
movimento tradicionalista, ocorre o processo de construção
da tradição gaúcha. Essa tradição será exaltada no sentido
de reviver o que já fora vivido. A transmissão de geração à
geração é fator indispensável na construção da tradição.
Burke em “Variedade de História Cultural” nos diz
que a fachada da tradição talvez massacre a inovação e que
é praticamente impossível escrever a história cultural sem
tradição. Contudo está mais do que na hora de se
abandonar o que se pode chamar de noção tradicional de
tradição, modificando-a para levar em consideração à
adaptação assim como o reconhecimento, e recorrendo às
idéias de teoria da recepção 28 .
A idéia de construção da tradição é central para
Hobsbawn e Ranger no livro “A Invenção das Tradições 29 ”.
Livro que ajudou a renovar uma das mais tradicionais
28 BURKE, Peter. Unidade e variedade na história cultural. In. Variedades
de História Cultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. p.240-1
29 HOBSBAWN, E. (org.). A Invenção das tradições. São Paulo: Paz e
Terra, 1997.
JOSÉ AUGUSTO FIORIN 28
29. DO GAÚCHO AO TRADICIONALISTA: IMAGEM, IDENTIDADE E REPRESENTAÇÃO
formas de história cultural, a história da própria tradição.
Provocou grande impacto ao afirmar na introdução que as
tradições “ que parecem ou se apresentam como antigas são
muitas vezes bastante recentes em suas origens, e algumas
vezes são inventadas 30 .”
Seria a tradição gaúcha uma tradição inventada?
Sobre isso, Hobsbawn (1997) contextualiza que “por tradição
inventada entende-se um conjunto de práticas normalmente
reguladas por regras tácita ou abertamente aceitas; tais
práticas, de natureza ritual ou simbólica, visam inculcar
certos valores e normas de comportamento através da
repetição, o que implica automaticamente, uma
continuidade em relação ao passado” 31 .
30 HOBSBAWN, E. (org.). A Invenção das tradições. São Paulo: Paz e
Terra, 1997.p. 8.
31 Ibidem. p.9.
JOSÉ AUGUSTO FIORIN 29
30. DO GAÚCHO AO TRADICIONALISTA: IMAGEM, IDENTIDADE E REPRESENTAÇÃO
NARRATIVAS:
ESCRITOS E
IMAGÉTICAS SOBRE O
GAÚCHO
JOSÉ AUGUSTO FIORIN 30
31. DO GAÚCHO AO TRADICIONALISTA: IMAGEM, IDENTIDADE E REPRESENTAÇÃO
NARRATIVAS: ESCRITOS E IMAGÉTICAS SOBRE O
GAÚCHO
No transcurso do século XV, considerando uma crise
que afetava várias instâncias da sociedade européia, incide
a tentativa da superação desta, com a aventura da
conquista de novos territórios. Nesse contexto ocorre a
chegada dos europeus na América. Evidentemente que o
choque cultural procede de uma forma expressiva,
considerando o antagonismo existente entre europeus e
americanos.
Os Reinos Ibéricos adotam, através de um processo
de exploração das novas colônias, um pacto entre as
colônias americanas e as metrópoles européias. A retirada
das riquezas aqui existentes era fator predominante para
dar sustentabilidade econômica a sociedade européia.
Contudo, os elementos e os padrões culturais europeus são
impostos aos colonizados, devido o fato dos europeus julgar-
se culturalmente superior.
Neste contexto, a chegada dos portugueses ao Brasil
e a conseqüente apropriação do território no início do século
JOSÉ AUGUSTO FIORIN 31
32. DO GAÚCHO AO TRADICIONALISTA: IMAGEM, IDENTIDADE E REPRESENTAÇÃO
XVI fez com que, uma nova dinâmica fosse impregnada. A
atuação dos europeus ocorria quase que exclusivamente em
regiões, que aos seus olhos, fossem atrativas
economicamente.
O Rio Grande do Sul, por sua vez, situado em uma
zona limítrofe, entre as colônias espanholas e a colônia
portuguesa, sofrerá um processo diferenciado na sua
constituição. O interesse pelas terras onde situa-se, decorre
mais que um século após a chegada dos primeiros europeus
no continente. As razões que levam a tal justificativa, está
no fator de não existir madeira ou minérios de fácil extração,
como em outras regiões da América ocorria.
Após um longo período de desinteresse por não
possuir atrativos aos colonizadores, viviam os povos
indígenas organizados em torno de seus elementos culturais
e rituais. Com isso, o interesse pela ocupação do território
onde hoje situa-se o Rio Grande do Sul, procede a partir da
importância que a pecuária representará, junto ao processo
de catequese desenvolvido pelos padres da Companhia de
Jesus nas terras onde hoje é a Região das Missões. É a
partir desse contexto e, considerando a importância que o
rio da Prata possuía como escoadouro dos minérios
retirados na região de Potosí, é que Portugal e Espanha
passam a olhar com outros olhos o território do Rio Grande
do Sul.
O fato de localizar-se em uma região de constante
disputa entre os reinos que ambicionavam seu território faz
com que insurja um tipo social, produto dessa região de
convergência. Esse tipo social por sua vez adotará uma
JOSÉ AUGUSTO FIORIN 32
33. DO GAÚCHO AO TRADICIONALISTA: IMAGEM, IDENTIDADE E REPRESENTAÇÃO
postura significativa na construção de uma identidade
cultural.
Para entendermos como ocorre a constituição do tipo
social do gaúcho predominante no século XIX,
examinaremos que tipo de relato os viajantes, provenientes
da Europa, desenvolvem acerca de sua imagem. Com isso,
há a pertinência de se destacar aqui os depoimentos
contidos nas viagens realizadas ao Rio Grande do Sul do
século XIX, do naturalista Auguste de Saint Hilaire, de
Arsène Isabelle e Nicolau Dreys. Além disso, uma
abordagem da imagética sobre o gaúcho, representada na
obra de Jean Baptiste Debret.
É importante destacar que a leitura que esses
viajantes fizeram, em relação ao que viam no Rio Grande do
Sul, representa a construção de uma visão própria daquela
realidade, resultado de um contexto histórico o qual viveram
e viviam naquele momento. Trata-se, dessa forma, de um
discurso não oficial, mas ainda é um discurso, portanto
deve ser analisado pela historiografia como um depoimento
legítimo de uma visão de mundo. Nesse sentido, entendemos
os depoimentos dos viajantes como efeito de um contexto
histórico e, sob esta ótica, se constituindo em fonte para a
compreensão da sociedade de certo período histórico.
Que visões esses viajantes terão do Rio Grande do
Sul? E sobre o tipo social do gaúcho? Certamente o que é
relatado possui dimensões opostas aquilo, que por meio da
representação, tenta-se viver em meados no século XX no
Rio Grande do Sul, que é um movimento tradicionalista e a
expressão gentílica de gaúcho, ao habitante do estado.
JOSÉ AUGUSTO FIORIN 33
34. DO GAÚCHO AO TRADICIONALISTA: IMAGEM, IDENTIDADE E REPRESENTAÇÃO
ESCRITOS: ARSÈNE, DREYS E HILAIRE
Durante o século XIX alguns viajantes provindos da
Europa irão visitar as terras onde hoje situa-se o Rio Grande
do Sul. Seus testemunhos tornam-se importantes na
reconstrução do cenário rio-grandense durante este período.
O olhar desses viajantes sob a perspectiva do homem que
habitava essa região é marcado por uma descrição analítica
sobre o tipo social e cultural que predominava na Província.
Ao fazer a abordagem do tipo social do gaúcho sob o
olhar dos viajantes, é importante destacar que tanto Hilaire,
Isabelle e Dreys são apenas “homens de seu tempo”, cujas
abstrações mentais e representações que fazem do mundo
que os cerca estão relacionadas com o seu contexto
histórico-social.
Arsène de Isabelle era um viajante francês.
Naturalista, muito interessado ao estudo da fauna e da
flora, veio para a América às suas próprias custas. Em
1830, viajou para a região do Prata com o desejo de
descrever os aspectos geográficos, geológicos, zoológicos e
botânicos desta região. Viagem essa, que possibilitou os
primeiros escritos sobre o elemento social do gaúcho.
Esteve primeiro no Uruguai e depois dirigiu-se para
Buenos Aires. Nesta cidade, perdeu todo seu capital em
maus negócios financeiros, sendo obrigado a abrir uma
pequena indústria têxtil para depois seguir com sua
expedição pelo interior. Sem alcançar a prosperidade
almejada, deslocou-se para o Uruguai, cruzando pelas terras
rio-grandenses em 1833 e 1834. Retornou à França em
JOSÉ AUGUSTO FIORIN 34
35. DO GAÚCHO AO TRADICIONALISTA: IMAGEM, IDENTIDADE E REPRESENTAÇÃO
1835, ocasião em que publicou seus relatos de viagem na
obra Voyage à Buenos Ayres et à Porto Alegre.
Em seu livro Voyage a Buenos-Ayres et a Porto-Alegre
Arsène 32 relata a excursão que fez ao Rio Grande entre 1830
e 1834. Ali estão contidas suas impressões sobre a província
do sul, retratando os costumes e as características do povo
da época, inclusive numa rápida passagem sobre a
Revolução Farroupilha no Estado.
Segundo seu relato, a visão que possui do gaúcho é
algo peculiar. Para ele:
... os gaúchos ou habitantes do campo são,
em relação a Buenos Aires, o que são os
tártaros em relação à China ou os beduínos
em relação a Argel. Foi um chefe gaúcho que
triunfou do partido de Lavalle e serão os
gaúchos que dominarão sempre a cidade,
opondo-se a toda inovação útil ao país, até
que se ponha em prática o plano de
Rivadávia, que consistia em favorecer aos
estrangeiros e induzí-los a formar colônias no
interior (...) agora, percebo que estou mais
próximo dos ´pampas` que da praça da
Vitória 33 . (ARSÈNE, p. 94)
Nicolau Dreys, também era francês, depois de
prestar serviço militar deixa seu país e em 1817 aporta no
Brasil. Percorreu várias Províncias do Império. Antes de
falecer em 1843, nos deixou vários depoimentos sobre sua
visão das províncias brasileiras. Destacamos aqui a Notícia
32 ISABELLE, A. A Viagem ao Rio da Prata e ao Rio Grande do Sul. Rio de
Janeiro: Livraria Editora Zélio Valverde S.A, 1979.
33 ISABELLE, A. A Viagem ao Rio da Prata e ao Rio Grande do Sul. Rio de
Janeiro: Livraria Editora Zélio Valverde S.A, 1979, p. 94.
JOSÉ AUGUSTO FIORIN 35
36. DO GAÚCHO AO TRADICIONALISTA: IMAGEM, IDENTIDADE E REPRESENTAÇÃO
descritiva da Província do Rio Grande de São Pedro do Sul,
quando faz, sob seu olhar, uma exposição escrita daquilo
que lhe chama atenção no Rio Grande do Sul, considerando
aspectos geográficos, humanos e sociais.
O que é pertinente ressaltar, tomando como
referência os viajantes já citados é que Dreys desenvolverá
uma crítica a obra, e consequentemente à visão que Arsène
terá da província. Segundo Dreys 34 não é assim que uma
imaginação judiciosa recebe e transmite as impressões;
infeliz do viajante que, depois de alguns anos de observação,
não lacerou suas primeiras notas; arrisca-se a enganar-se a
si mesmo e enganar os outros.
No entanto, sobre o habitante da Província e mais
especificadamente sobre o tipo social do gaúcho é no
capitulo terceiro, onde discorre sobre a população, que
Nicolau Dreys (1961) nos dá o melhor fruto das suas
observações. Depois de descrever, aquilo nomeado por ele
como população regular, seja o rio-grandense do meio rural
ou das cidades, já nas últimas páginas da Notícia Descritiva,
traça um retrato compreensivo dos famosos “gaúchos de
vida sôlta, ainda não assimilados e em pleno viço de sua
aventura histórica”.
Segundo Augusto Meyer, na nota introdutória da
edição da Notícia Descritiva da Província do Rio Grande de
São Pedro do Sul, de 1961, editado pelo Instituto Estadual
do Livro, não escapou a Dreys o “traço aculturativo dessa
aventura, e neste passo leva sem dúvida grande vantagem
34 DREYS, Nicolau. Notícia descritiva da Província do Rio Grande de São
Pedro do Sul. Porto Alegre: Instituto Estadual do Livro, 1961.
JOSÉ AUGUSTO FIORIN 36
37. DO GAÚCHO AO TRADICIONALISTA: IMAGEM, IDENTIDADE E REPRESENTAÇÃO
sôbre a intransigência preconceitual que podemos notar em
tantos autores inclusive Saint Hilaire” 35 .
Ao descrever sua visão sobre a província, Dreys 36
terá impressões não somente do território como também do
elemento social que predomina no Rio Grande do Sul, nesse
contexto. Para ele
...o homem do Rio Grande é geralmente alto,
robusto, bem apessoado, e suas feições viris
nada perdem por serem quase sempre
acompanhadas de uma cor alva, que faz
sobressair a preta capilária e o avermelhado
das faces, assemelhando-se a primeira vista
aos habitantes das regiões montuosas do
centro da França. (DREYS, 1961, p.11)
Com isso, Saint Hilaire confirmando as primeiras
impressões, irá concordar plenamente com Dreys. Para
Hilaire 37 les hommes étaient généralement très blancs et
avaient des cheveuxet des yeux de la même couleur que les
femmes ; ils étaient grands, bien faits ; ils avaient de
l’aisance, et rien de cette molesse qui caractérise les
Mineurs.
Já Arséne, irá destacar em seu relato que os homens
habitantes dessa região tinham uma característica
significativa de ser apreciada. Na composição desse tipo
social, segundo seu relato, a vestimenta dos homens da
35 MEYER, Augusto. In: Notícia Descritiva da Província do Rio Grande
de São Pedro do Sul. Porto Alegre: Instituto Estadual do Livro, 1961.Nota
introdutória.
36 DREYS, Nicolau. Notícia Descritiva da Província do Rio Grande de
São Pedro do Sul. Porto Alegre: Instituto Estadual do Livro, 1961.p.11.
37 SAINT HILAIRE. Viagem ao Rio Grande do Sul. Rio de Janeiro: Ariel
Editora, 1936.
JOSÉ AUGUSTO FIORIN 37
38. DO GAÚCHO AO TRADICIONALISTA: IMAGEM, IDENTIDADE E REPRESENTAÇÃO
campanha é mais rica que a dos gaúchos argentinos e
orientais. Consiste de sólidas botas, largas bombachas de
veludo azul-celeste, uma jaqueta de pano azul, um amplo
manto de pano e um chapéu de abas muito largas
levantadas dos lados, preso sob o queixo por um barbicacho
que termina em duas borlas. 38
Em importante obra sobre a construção social do
gaúcho, intitulada História de uma Palavra, Augusto Meyer
irá dizer que:
Sintomática, por exemplo, é sua reação diante
dos gaúchos de vida livre que vagueavam
pelos campos da fronteira. Eram na maioria
índios ou mestiços e viviam à margem da
sociedade organizada, sem moral e sem
religião. Muitos brancos haviam adotado os
seus costumes, e na Capela de Alegrete, o
modo de vida dos proprietários pouco diferia
da vida sôlta desses mesmos Garruchos, ou
Garuchos, ou Gahuchos, conforme a sua
grafia. Mas o seu testemunho parece muito
vago, as observações são imprecisas,
refletindo certa incompreensão preconceitual
do homem histórico e do meio 39 . (MEYER,
1957, p. 55-57)
O que levanta-se é que o surgimento do tipo social do
gaúcho somente será possível, dentro de um processo de
colonização americana. Os traços culturais predominantes
nos nativos, reais habitantes do território, somando aos
elementos culturais trazidos, principalmente pelos
38 ISABELLE, Arsène. Viagem ao Rio da Prata e ao Rio Grande do Sul.
Tradução de Teodomiro Tostes. Rio de Janeiro: Editora Zélio Valverde,1949.
p. 279.
39 MEYER, Augusto. História de uma palavra. Porto Alegre: Instituto
Estadual do Livro, 1957. p. 55.
JOSÉ AUGUSTO FIORIN 38
39. DO GAÚCHO AO TRADICIONALISTA: IMAGEM, IDENTIDADE E REPRESENTAÇÃO
espanhóis, é que constitui os traços culturais
predominantes no gaúcho.
Nesse contexto, considerando o livre trânsito na
fronteira, é que surge uma identidade cultural desse tipo
social. O fato de existir abundância em pastagens,
possibilitou que o gado, remanescente do período de
destruição das missões, fosse proliferando em abundância.
Na perspectiva de Nicolau Dreys, é importante
destacar o que, sob seu ponto de vista, chama sua atenção,
nesse caso na definição do habitante do território.
... os gaúchos aparecem geralmente sem
mulheres e manifestam mesmo pouca atração
para elas, felizmente para seus vizinhos, a
quem sua multiplicação, acompanhada de
desejos tumultuosos, poderia causar
desassossêgo: formados origináriamente do
contato com a raça branca com os indígenas,
eles se recrutam incessantemente dos
mesmos produtos, e ainda de todos os
indivíduos que nessas imediações nascem,
sem ordem e sem destino, com gôsto tão geral
de uma fácil e de perfeita liberdade. 40
(DREYS, 1961, p.160)
Com isso, Dreys trás presente o traço aculturativo na
formação do gaúcho, a pouca atração para as mulheres e,
principalmente, a idéia de liberdade. A imagem de gaúcho
aqui representada por Dreys torna-se interessante. A vida
desprendida e o pouco apego e interesse com as mulheres,
vem confrontar com a concepção criada em torno do mito
40 DREYS, Nicolau. Notícia descritiva da Província do Rio Grande de São
Pedro do Sul. Porto Alegre: Instituto Estadual do Livro, 1961.p.160.
JOSÉ AUGUSTO FIORIN 39
40. DO GAÚCHO AO TRADICIONALISTA: IMAGEM, IDENTIDADE E REPRESENTAÇÃO
gaúcho. A literatura regionalista, por exemplo, promove a
exaltação desse mito, colocando-se dentro da noção de uma
sociedade patriarcal, que fora desenvolvida no Rio Grande
do Sul, onde o gaúcho é apresentado como homem viril.
Assim percebe-se o conflito que há entre a descrição de
Dreys e aquilo com que o tradicionalista do século XX tenta
demonstrar como padrão de masculinidade.
Além disso, Dreys segue dizendo que sem chefes,
sem leis, sem polícia, os gaúchos não têm da moral social,
senão idéias vulgares e, sobretudo uma sorte da probidade
condicional que os leva a respeitar a propriedade
condicional que os leva a respeitar a propriedade de quem
os emprega, ou neles deposita confiança: entregues ao jogo
com furor, êsse vício, que parecem praticar como um meio
de encher o vácuo de seus dias, é a fonte dos roubos, e às
vezes das mortes que cometem. Joga o gaúcho tudo que
possui, dinheiro, cavalo, armas, vestidos, e sai do jogo
inteiramente ou quase nu 41 . Nesse parâmetro fica evidente o
arquétipo de liberdade vivido pelo gaúcho. A carência da
instituição de normatizações que regulamente a vida na
Província também deve ser enfatizada. Isso ocorre porque
sem lei a moral social do gaúcho é relacionada à
vulgarização de suas idéias bem como a atração por roubos
e constantes contrabandos na fronteira Brasil, Argentina e
Uruguai.
Auguste de Saint Hilaire, de 1816 a 1822, percorreu
o centro e o sul do Brasil, registrando em seus relatos de
viagens, publicados a partir de 1830, os costumes e as
41 DREYS, Nicolau. Notícia descritiva da Província do Rio Grande de São
Pedro do Sul. Porto Alegre: Instituto Estadual do Livro, 1961.p.160.
JOSÉ AUGUSTO FIORIN 40
41. DO GAÚCHO AO TRADICIONALISTA: IMAGEM, IDENTIDADE E REPRESENTAÇÃO
condições de vida no Brasil. Chega ao Rio Grande do Sul em
meados de 1820 trazendo uma carta de apresentação da
corte, dirigida às autoridades locais, que lhe conferia o posto
de coronel, prerrogativa de que pouco se valeu, mas poderia,
dada as circunstâncias da época, ter sido de muita utilidade
ao longo roteiro que iria cumprir percorrendo 1.500
quilômetros, de carreta ou a cavalo durante nove meses.
Ao chegar ao Rio Grande do Sul, em sua viagem pela
Província, Hilaire irá dizer que “dada conhecida índole dos
gaúchos, é possível imaginar que, proclamada a
independência, aproveitaram-se os primeiros momentos de
desordem para a pilhagem do gado nas estâncias
portuguesas, e os portugueses a seu turno promoviam
arreadas nas estâncias espanholas” 42 .
Muitos estudos surgiram em torno da presença de
Saint Hilaire na Província. Sem dúvida, que seus relatos
foram imprescindíveis não só para conhecer aspectos da
flora rio-grandense, como para conhecer as configurações,
que sob seu olhar, esse território possuía. Sobre o tipo social
do gaúcho, ele desenvolverá um conceito interessante de ser
analisado. Ao relatar o contato que teve com um habitante
do território, e posteriormente sua impressão sobre o fato,
Hilaire 43 descreveu:
Talvez tenha ele julgado que esse seria o
melhor meio de se ver livre de mim; talvez
tenha sido leviandade, falta de reflexão,
negligência, e sou tentado a acreditar que
42 SAINT HILAIRE. Auguste Viagem ao Rio Grande do Sul. Rio de Janeiro:
Ariel Editora, 1936, p.77.
43 Idem, p. 78.
JOSÉ AUGUSTO FIORIN 41
42. DO GAÚCHO AO TRADICIONALISTA: IMAGEM, IDENTIDADE E REPRESENTAÇÃO
esse homem, apesar de ser branco, pertence
aos habitantes dessa região que têm
costumes semelhantes ao dos gaúchos.
(HILAIRE, 1936, p. 78)
Outro depoimento, onde estão expressas as
primeiras impressões registradas sobre o tipo social do
gaúcho, é do viajante europeu, Felix de Azara, que por volta
de 1780 descreveu o tipo social platino. Madaline Nichols 44 ,
que estudou a obra de Azara, dirá que:
Além do dito povo, há naquela região, e
principalmente nas proximidades de
Montevidéu e Maldonado, uma outra classe
de gente, mui apropriadamente chamados
gaúchos ou gaudérios. (...)Sua nudez, suas
barbas crescidas, seu cabelo sempre
despenteado, sua sujeira e brutalidade de sua
aparência os tornam horríveis de ver. Por
nenhum motivo ou interesse querem eles
trabalhar para alguém, e além de serem
ladrões, também raptam mulheres. E essas
levam para os matos e vivem com elas em
choças, abatendo gado bravio para seu
sustento. (NICHOLS, 1953, p. 30).
Partindo da visão que Félix Azara desenvolverá sobre
o gaúcho, o que há de notoriedade é a representação de um
outro modelo de imagem, com alguns elementos que
aproximam o gaúcho platino do gaúcho rio-grandense. O
caráter depreciativo , em torno do tipo social do gaúcho
exposto por Nichols nos remonta a idéia de um elemento
social incivilizado, cujos traços característicos de barbárie
aparecem naturalmente. Porém, se considerarmos o relato
44 NICHOLS, Madaline Wallis. El Gaucho. Buenos Aires. Ediciones Peuser,
1953, p. 30.
JOSÉ AUGUSTO FIORIN 42
43. DO GAÚCHO AO TRADICIONALISTA: IMAGEM, IDENTIDADE E REPRESENTAÇÃO
que os viajantes fizeram da Província, e mais
detalhadamente, a forma como caracterizaram a imagem do
tipo social do gaúcho, vamos perceber que o gaúcho aqui
apresentado como histórico é diferente do gaúcho
representado como tradicionalista.
IMAGÉTICA DO GAÚCHO: DEBRET E MOLINA
A representação do gaúcho do século XIX está
presente nos discursos escritos dos viajantes europeus, que
estando na Província, retrataram o modo de organização e
vida desse habitante. Além disso, um outro modelo
representativo, passando pela via da imagética, torna-se
imprescindível e deve ser analisado. A imagem construída
do gaúcho através da pintura nós dá outra dimensão
simbólica e cultural da representação desse tipo social.
Na perspectiva da História Cultural, Canabarro 45
(2004) ressaltará que esta trabalha com as diferentes formas
de apropriação dos discursos de textos (verbais e não
verbais) e da produção do sentido, sendo diferenciado pelas
posições que os atores ocupam socialmente. Nesta
perspectiva, nos mostrando algumas dependências da vida
cultural, que aparecem nas diferentes formas de
apropriação, mediadas pela representação. Assim torna-se
claro o que os elementos descritos pelos viajantes do século
XIX queriam retratar e representar sobre o Rio Grande do
Sul.
45 CANABARRO, Ivo dos Santos. A construção da cultura fotográfica no
sul do Brasil: imagens de uma sociedade de imigração. 2004, 314 f. tese
(Doutorado em História) – Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2004.
p. 17.
JOSÉ AUGUSTO FIORIN 43
44. DO GAÚCHO AO TRADICIONALISTA: IMAGEM, IDENTIDADE E REPRESENTAÇÃO
Embora constituindo um texto não verbal, as
imagéticas sobre o gaúcho também são representadas nesse
contexto. Um elemento que merece destaque, considerando
essa noção, cujos escritos nos remetem a reconstruir a
identidade e a imagem do gaúcho sob a perspectiva dos
viajantes europeus, é justamente buscar qual a imagética
que o gaúcho representa. Para isso, buscamos na vasta obra
do pintor francês Jean Baptiste Debret, os pressupostos e
elementos que permitem-nos aproximar de uma forma mais
especifica e redirecionar o olhar sobre o gaúcho rio-
grandense, e na obra de Florêncio Molina Campos sobre o
gaucho platino. Porém, também se fará necessário investigar
como ocorre a evolução da indumentária rio-grandense. Isso
porque, a imagem e a conseqüente identidade do gaúcho,
estão ligadas a esta construção histórica e imagética.
A imagética que Debret nos dará sobre o gaúcho é
expressiva. Foi um pintor que esteve no Brasil com a Missão
Artística Francesa 46 . Chegou ao Rio de Janeiro em 1816,
dedicando-se ao ensino das artes e à organização da
Academia de Belas Artes, onde figura entre os alunos
fundadores da classe de pintura. Voltou à França em 1831,
onde pouco tempo depois publicou Viagem pitoresca e
histórica ao Brasil. Contribuiu de modo decisivo para uma
história pictórica do Brasil urbano e escravocrata do início
do século XIX.
As fontes imagéticas permitem ir muito além
das meras descrições, porque trazem
46 Missão Artística Francesa, grupo de pintores, escultores e arquitetos que
dom João VI trouxe da França, em 1816, com a finalidade de desenvolver
as atividades artísticas no Brasil e fundar uma escola de ciências, artes e
ofícios.
JOSÉ AUGUSTO FIORIN 44
45. DO GAÚCHO AO TRADICIONALISTA: IMAGEM, IDENTIDADE E REPRESENTAÇÃO
expressões de realidades vividas em outros
tempos. Da mesma forma, devido a
diversidade de informações que as fotografias
apresentam, uma vez que estas registram
distintas situações de vivências dos atores
individuais e coletivos, possibilitam o
entendimento das diferenças sociais dos
grupos, revelando questões que dizem
respeito à sua atuação em um determinado
contexto histórico 47 . (CANABARRO, 2004, pg.
17).
Em suas telas, Debret retratou não apenas a
paisagem, mas sobretudo, a sociedade brasileira,
destacando a forte presença dos escravos. Ao regressar à
França em 1831, logo publicou o álbum Voyage pittoresque
et historique au Brésil, ou Séjour d’un artiste français au
Brásil depuis 1816 jusqu’en 1831 (1834-1839).
A seguir, algumas imagens coletadas da obra de
Debret, que visam representar imageticamente o tipo social
do gaúcho 48 .
ÍNDIO GUARANI CIVILIZADO
FIGURA 1
47 CANABARRO, Ivo dos Santos. A construção da cultura fotográfica no
sul do Brasil: imagens de uma sociedade de imigração. 2004, 314 f. tese
(Doutorado em História) – Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2004.
p. 17.
48 Obras disponíveis em DEBRET, Jean Baptiste. Viagem pitoresca e
histórica ao Brasil. Belo Horizonte, Itatiaia; São Paulo, Edusp, l989, v.2.
JOSÉ AUGUSTO FIORIN 45
46. DO GAÚCHO AO TRADICIONALISTA: IMAGEM, IDENTIDADE E REPRESENTAÇÃO
CHARRUA CIVILIZADO
FIGURA 2
VIAJANTES DA PROVÍNCIA DO RIO
FIGURA 3
JOSÉ AUGUSTO FIORIN 46
47. DO GAÚCHO AO TRADICIONALISTA: IMAGEM, IDENTIDADE E REPRESENTAÇÃO
ARMAZÉM DE CARNE SECA
FIGURA 4
As aquarelas de Debret, representadas aqui pela
imagética que o mesmo constrói sobre o gaúcho, vêm de
encontro com os depoimentos descritos pelos outros
viajantes europeus. Assim, a similaridade do gaucho platino
e do gaúcho lusitano é nítida em virtude da indefinição
fronteiriça e da semelhança do modelo econômico.
Na figura 1, percebemos que no centro da cena se
encontra um índio da tribo Guarani, que Debret, optou por
designar a imagem de “Índio Guarani Civilizado”. A idéia de
civilidade perpassa o fator aculturativo. Ou seja, o nativo
estar trajando vestes seguindo o padrão europeu e o modelo
imposto pelos colonizadores. Além disso, essa imagem
também representa, de como o cavalo torna-se
JOSÉ AUGUSTO FIORIN 47
48. DO GAÚCHO AO TRADICIONALISTA: IMAGEM, IDENTIDADE E REPRESENTAÇÃO
indispensável às atividades cotidianas. Algo curioso que está
nesta representação é o fato do índio estar com vestes de
estancieiro. Não era comum um nativo estar vestindo-se
dessa maneira durante o século XIX. O indicativo é que, o
Guarani representado, seja uma espécie de peão de
confiança de algum estancieiro, considerando suas
habilidades e destreza com a montaria.
O cavalo torna-se fundamental na constituição
econômica da Província. Ele que havia se proliferado em
abundância, fora trazido pelos espanhóis no processo de
colonização. Assim, também na figura 2 vamos perceber que
o cavalo se faz presente. Ainda é visível a quantidade de
adereços junto aos índios charruas. Boleadeiras, laços,
esporas, pala, etc. O detalhe está no chapéu de feltro que
até então era usado somente pelos estancieiros e
charqueadores. Percebe-se que em segundo plano, os aperos
de montaria estão ao chão e o cavalo está pastando
provavelmente cansado de mais um dia de serviço. Ao fundo
outros índios peões levando o gado a algum lugar.
Nessas imagens a percepção que temos sobre o tipo
social do gaúcho rio-grandense é que sob a visão de Debret,
esse elemento se constitui com base indígena. A imagem
representada é de um individuo trabalhador, interessado
com as atividades econômicas. De acordo Leenhardt 49
(2006) enquanto documentarista Debret se revela ótimo,
mas como pintor ele não consegue captar e representar a
coerência do todo.
49 LEENHARDT, Jacques. Imagem e história em uma viagem pitoresca e
histórica ao Brasil, de Jean Baptiste Debret: o enterro de um filho de um
rei negro. In: LOPES, Antônio Herculano. História e linguagens: texto
imagem, oralidade e representações. Rio de Janeiro: 7 letras, 2006. p. 126.
JOSÉ AUGUSTO FIORIN 48
49. DO GAÚCHO AO TRADICIONALISTA: IMAGEM, IDENTIDADE E REPRESENTAÇÃO
O que Debret vai enfocar na figura 3 é passagem de
alguns viajantes pela Província. Aqui fica evidente a
condição social como determinante. O tipo de chapéu usado
pelos indivíduos que estão acompanhando a senhora,
usando vestido longo à moda européia, é diferente dos
chapéus representados nas figuras 1 e 2. Outro fator é a
pessoa que vem logo atrás não estar montando um cavalo e
sim uma mula, diferente daquelas que aparecem em
primeiro plano.
A precisão das estruturas que organizam o ambiente
da figura 4 é interessante. À frente encontra-se um
indivíduo de origem indígena. Porém o que é representado
por Debret é uma espécie de venda. Pode-se perceber a
presença de inúmeros mantimentos necessários à
subsistência dos habitantes da Província, principalmente o
produto impulsionador da economia rio-grandense durante
o século XIX: o charque.
Outro fator que merece destaque, diz respeito à
indumentária do tipo social predominante no Rio Grande do
Sul. Tendo a idéia da representação imagética de Debret
sobre a Província, faz-se necessário destacar como o tipo
social do gaúcho veste-se.
Um dos elementos constituidores da imagem e
conseqüentemente da identidade do tipo social do gaúcho,
perpassa pelo seu modo de vestir. A história cultural por
sua vez busca representar esse padrão de vestimenta como
elemento importante de investigação e interpretação
JOSÉ AUGUSTO FIORIN 49
50. DO GAÚCHO AO TRADICIONALISTA: IMAGEM, IDENTIDADE E REPRESENTAÇÃO
histórica. De acordo com Fagundes 50 (1985) na “evolução da
Indumentária Gaúcha”, há trajes fundamentais que
constroem uma identificação ao gaúcho, e, a cada um deles
corresponde uma indumentária feminina.
Na figura 5, vamos perceber o tipo de vestimenta que
alguns índios após o primeiro contato com os europeus
passaram a utilizar. Há clareza nos traços aculturativos
dessa imagem. Ou seja, o índio já possui o laço e as
boleadeiras como instrumento de trabalho. Já a índia,
aparece nessa representação com roupas seguindo modelo
europeu. Isso demonstra a proximidade com a cultura
européia dominadora aos povos nativos na América. Outro
aspecto que merece destaque está no elemento do
cristianismo presente. A cruz ao peito representa a aceitação
de um deus com moldes cristão/catolicista. Ainda é
interessante verificar a utilização do chiripá pelo homem.
Era uma espécie de saia, constituída por um retângulo de
pano enrolado na cintura, até os joelhos. Isso ajudava na
montaria.
Assim, podemos ressaltar que de peças da
indumentária ibérica, de peças da indumentária indígena, o
gaúcho foi constituindo sua própria indumentária. E
inevitavelmente a construção de sua identidade cultural
está diretamente ligada a construção de sua imagem.
Segundo Fagundes (1985), os Missioneiros se
vestiam, conforme severa moral jesuítica. Passaram a usar
os calções europeus e em seguida a camisa, introduzida nas
50 FAGUNDES, Antônio Augusto. Indumentária Gaúcha. Porto Alegre:
Martins Livreiro Editor, 1985.
JOSÉ AUGUSTO FIORIN 50
51. DO GAÚCHO AO TRADICIONALISTA: IMAGEM, IDENTIDADE E REPRESENTAÇÃO
missões pelo Padre Antônio Sepp. Usavam, ainda, uma peça
de indumentária não européia, proximamente indígena - "el
poncho". Essa peça de indumentária não existia no Rio
Grande do Sul antes da chegada do branco, pois os nossos
índios pré-missioneiros não teciam e nem fiavam.
A seguir apresentam-se imagens coletadas, que
abordam a evolução das vestimentas no estado do Rio
Grande do Sul, onde as mesmas aparecem em seqüência 51 .
TRAJE INDÍGENA
FIGURA 5
51 Iconografia disponível em FAGUNDES, Antônio Augusto. Indumentária
Gaúcha. Porto Alegre: Martins Livreiro Editor,1985.
JOSÉ AUGUSTO FIORIN 51
52. DO GAÚCHO AO TRADICIONALISTA: IMAGEM, IDENTIDADE E REPRESENTAÇÃO
CHARQUEADOR E PATRÃO DAS VACARIAS E
ESTANCIEIRA GAÚCHA ESPOSA
(1750-1820) (1750-1820)
FIGURA 6 FIGURA 7
PEÃO DAS VACARIAS E CHINA GAÚCHO COM CHIRIPÁ
DAS VACARIAS FARROUPILHA E MULHER
(1750-1820) GAÚCHA (1820-1865)
FIGURA 8 FIGURA 9
JOSÉ AUGUSTO FIORIN 52
53. DO GAÚCHO AO TRADICIONALISTA: IMAGEM, IDENTIDADE E REPRESENTAÇÃO
A evolução da imagem do gaúcho varia de acordo
com a adaptação das vestes. Considerando a influência
européia e, posteriormente a condição econômica e social
predominante no Rio Grande do Sul da época, é que vamos
perceber algumas variáveis. A primeira variável está nas
figuras 6 e 7. Possuímos nessas imagens a representação da
elite estancieira do Rio Grande do Sul. Homens e mulheres
com modelos europeus, adaptados socialmente ao clima e ao
elemento econômico preponderante na Província.
Compreendemos que evidentemente, o fator
econômico do Charqueador e do denominado Patrão das
Vacarias sobressai no que concerne à imagética
representada. Trajava-se basicamente à européia, com a
braga e as ceroulas de crivo. Segundo Fagundes 52 (1985),
passou a usar também a bota de garrão de potro 53 , invenção
gauchesca típica. Igualmente o cinturão-guaiaca, o lenço de
pescoço, o pala indígena, a tira de pano prendendo os
cabelos, o chapéu de pança de burro, etc. Em relação à
figura feminina, Fagundes segue dizendo que a mulher
desse rico estancieiro, usava botinhas fechadas, meias
brancas ou de cor, longos vestidos de seda ou veludo,
botinhas fechadas, mantilha, chale ou sobrepeliz, grande
52 FAGUNDES, Antônio Augusto. Indumentária Gaúcha. Porto Alegre:
Martins Livreiro Editor,1985.
53 As botas mais comuns eram as de garrão-de-potro, que eram retiradas de
vacas, burros e éguas (raramente era usado o couro de potro, que lhe deu o
nome). Essas botas eram lonqueadas ou perdiam o pêlo com o uso. Em
uso, as botas não duravam mais de 2 meses. Normalmente, eram feitas
com o couro das pernas traseiras do animal que dão botas maiores. As que
eram tiradas das patas dianteiras, muitas vezes eram cortadas na ponta e
no calcanhar, ficando o usuário com os dedos do pé e o calcanhar de fora.
Acima da barriga da perna, era ajustada por meio de tranças ou tentos.
JOSÉ AUGUSTO FIORIN 53
54. DO GAÚCHO AO TRADICIONALISTA: IMAGEM, IDENTIDADE E REPRESENTAÇÃO
travessa prendendo os cabelos enrolados e o infaltável leque.
Ou seja, os padrões europeus preponderaram na construção
dessa imagem de gaúcho.
Porém ressalta-se que esse tipo de vestimenta e
conseqüente imagem criada, é restringida a um número
mínimo de rio-grandenses. Um elemento que vem em
contraposição a condição social já apresentada é a
representação do peão. O peão é o responsável pelo trabalho
diário com o gado, dando fundamentação econômica à
Província. Nesse contexto a figura 8 nos mostra que tipo de
imagem esse peão representa. Segundo Fagundes, o traje do
peão das vacarias destinava-se a proteger o usuário e a não
atrapalhar a sua atividade - caçar o gado e cavalgar.
Normalmente, este gaúcho só usava o chiripá primitivo 54 e
um pala enfiado na cabeça.
E segue descrevendo que o chiripá, em pouco tempo,
assumiria uma cor indistinta de múgria - cor de esfregão. À
cintura, faixa larga, negra, ou cinturão de bolsas, tipo
guaiaca, adaptado para levar moedas, palhas e fumo e, mais
tarde, cédulas, relógio e até pistola. Ainda à cintura, as
infaltáveis armas desse homem: as boleadeiras, a faca
flamenga ou a adaga e, mais raramente, o facão. E sempre à
mão, a lança - de peleia ou de trabalho. Em relação à
camisa, quando contava com uma, era de algodão branco ou
riscado, sem botões, apenas com cadarços nos punhos, com
gola imensa e mangas largas. Pala 55 , não faltava,
54 Pano enrolado como saia, até os joelhos, meio aberto na frente, para
facilitar a equitação e mesmo o caminhar do homem.
55 Tem origem indígena. Pode ser de lã ou algodão, quando proteje contra o
frio, ou de seda, quando proteje contra o calor. É sempre retangular com
franjas nos quatro lados. A gola do pala é um simples talho, por onde o
homem enfia o pescoço.
JOSÉ AUGUSTO FIORIN 54
55. DO GAÚCHO AO TRADICIONALISTA: IMAGEM, IDENTIDADE E REPRESENTAÇÃO
comumente, o de lã - chamado "bichará" - em cores
naturais, e mais raramente o de algodão e o de seda que aos
poucos vão aparecendo. Logo, também surge o poncho 56
redondo, de cor azul e forrado de baeta vermelha.
O peão das vacarias, representado na figura 8, não
era de muito luxo. Só usava ceroulas de crivo nas
aglomerações urbanas. Ademais, andava de pernas nuas
como os índios. À cabeça, usava a fita dos índios, prendendo
os cabelos - que os platinos chamam "vincha" - e também o
lenço, como touca, atado à nuca.
Como podemos perceber nessa mesma imagem, a
mulher vestia-se pobremente: nada mais que uma saia
comprida, rodada, de cor escura e blusa clara ou desbotada
com o tempo. Pés e pernas descobertas, na maioria das
vezes. Por baixo, apenas usava bombachinhas, que eram as
calças femininas da época.
De acordo com Antônio Augusto Fagundes há uma
outra variante no século XIX, em relação à constituição da
indumentária rio-grandense. Segundo ele, será abdicado os
padrões de vestimentas já relatados e incorporado ao que ele
chamará de “Traje Gaúcho”. Isso ocorrerá no contexto da
Revolução Farroupilha. Ou seja, o homem utilizando Chiripá
Farroupilha 57 e a mulher Saia e Casaquinho como
56 Tem origem inteiramente gauchesca. É feito, invariavelmente, de lã
grossa. Quase sempre é azul escuro, forrado de baeta vermelha, mas
também existem de outras combinações de cores. O poncho tem a forma
circular ou ovalada. Só preteje contra o frio e a chuva. A gola é alta,
abotoada e há um peitilho na frente do poncho.
57 Cabe ressaltar que as botas são, ainda, a bota forte, comum, a bota
russilhona e a bota de garrão, inteira ou de meio pé. À cintura, faixa preta e
guaiaca, de uma ou duas fivelas. Camisa sem botões, de gola, e mangas
largas. Usavam jaleco, de lã ou mesmo veludo, e às vezes, a jaqueta, com
JOSÉ AUGUSTO FIORIN 55
56. DO GAÚCHO AO TRADICIONALISTA: IMAGEM, IDENTIDADE E REPRESENTAÇÃO
verificamos na figura 9. Este período é dominado por um
chiripá que substituiu o anterior, que não é adequado à
equitação, mas para o homem que anda a pé. O chiripá
dessa nova fase é em forma de grande fralda, passada por
entre as pernas. Este adapta-se bem ao ato de cavalgar e
essa é certamente a explicação para o seu aparecimento.
Com isso, fica claro que o Chiripá Primitivo era de origem
indígena.
A mulher, nesta época, usava saia e casaquinho com
discretas rendas e enfeites. Tinham as pernas cobertas com
meias. Usavam cabelo solto ou trançado, para as solteiras e
em coque para as senhoras. Os sapatos eram fechados e
discretos. Como jóias apenas um camafeu ou broche. Ao
pescoço vinha muitas vezes o fichú.
Assim, podemos perceber como ocorre a tentativa da
construção de uma imagem de gaúcho, seja pela visão que
Debret obtém do Rio Grande do Sul ou pela transformação
que a indumentária gaúcha obteve através do tempo. Fica
evidente que, os elementos que ajudarão na construção da
imagem de gaúcho rio-grandense, perpassam pelo fator
aculturativo de índios e europeus, ajudando a construir a
sua identidade.
Após analisado a visão que Debret possui da
Província e, como evolui a imagem do gaúcho rio-grandense
em relação a sua indumentária, dentro desse contexto
torna-se interessante verificar brevemente como se constitui
gola e manga de casaco, terminando na cintura, fechado à frente por
grandes botões ou moedas.
JOSÉ AUGUSTO FIORIN 56
57. DO GAÚCHO AO TRADICIONALISTA: IMAGEM, IDENTIDADE E REPRESENTAÇÃO
o tipo social do gaucho platino, considerando as
proximidades da fronteiras e a mesma matriz cultural.
GAUCHO EM FINAIS DO SÉCULO
FIGURA 10
O gaucho platino por sua vez apresentará
semelhanças culturais ao gaúcho rio-grandense conforme a
figura anterior 58 . Segundo Ibáñez, 59 (1964), gaucho fruto de
la mezcla de sangres española e indígena, comenzó a forjar
su original personalidad en las primitivas vaquerías de la
colonia. Allí aprendió a desempeñar las tareas de ganadería
con singular destreza y fundió su cuerpo con el de su
inseparable compañero: el caballo. Pasaba la mayor parte de
su vida sobre el lomo de su pingo, por eso siempre detestó la
agricultura, que lo obligaba a estar de pie.
58 Iconografia disponível em IBAÑEZ, José C. Historia Argentina. Buenos
Aires: Editorial Troquel, 1964 p. 59.
59IBAÑEZ, José C. Historia Argentina. Buenos Aires: Editorial Troquel,
1964. pg.48.
JOSÉ AUGUSTO FIORIN 57
58. DO GAÚCHO AO TRADICIONALISTA: IMAGEM, IDENTIDADE E REPRESENTAÇÃO
A impressão desenvolvida em relação a sua conduta
social complementa os depoimentos dos viajantes europeus
no Rio Grande do Sul.
La extensión de la llanura pampeana fue la
que terminó de moldear su conducta. Es
independiente, de vida errante y costumbres
sencillas. Esa libertad con que enfrenta la
vida le traería aparejados muchos disgustos.
Por mucho tiempo se lo marginó, llegándole
su reivindicación con el paso del tiempo, al
punto de convertirse la palabra gaucho en
sinónimo de rectitud de carácter y nobleza de
corazón 60 . (IBANEZ, 1964,p.56)
A representação imagética sobre o gaúcho platino
está presente na obra de Florencio Molina Campos 61 . Fue
un dibujante y pintor conocido por sus típicos dibujos
costumbristas de la pampa argentina. Sus dibujos y
pinturas rememoran con un toque humorístico típicas
viñetas gauchescas. De aire caricaturesco y, a menudo,
"naif", su dibujo, inspirado principalmente en el mundo
gauchesco, refleja a un observador agudo de la realidad
nacional.
60 IBAÑEZ, José C. Historia Argentina. Buenos Aires: Editorial Troquel,
1964. pg.56.
61 Disponível em http://www.molinacampos.org
JOSÉ AUGUSTO FIORIN 58
59. DO GAÚCHO AO TRADICIONALISTA: IMAGEM, IDENTIDADE E REPRESENTAÇÃO
Na seqüência, algumas representações da obra de
Florencio Molina Campos, onde constrói uma imagem do
gaucho platino 62 .
JINETEANDO
FIGURA 11
P'AL POBLAO
FIGURA 12
62Iconografia disponível em
http://www.me.gov.ar/efeme/tradicion/lamela.html
http://www.molinacamposzg.com.ar/obrasdispo.htm
JOSÉ AUGUSTO FIORIN 59
60. DO GAÚCHO AO TRADICIONALISTA: IMAGEM, IDENTIDADE E REPRESENTAÇÃO
YO TAMBIÉN FUÍ COMO ESE LOCO
FIGURA 13
HUAMPELEN
FIGURA 14
JOSÉ AUGUSTO FIORIN 60
61. DO GAÚCHO AO TRADICIONALISTA: IMAGEM, IDENTIDADE E REPRESENTAÇÃO
De acordo Vellinho 63 (1970) pontos de parecença
entre tipos sociais do gaúcho rio-grandense e do gaúcho
platino existem, sem dúvida, mas se restringem às
peculiaridades decorrentes do mesmo sistema básico de
atividades – o pastoreio, desenvolvido em um cenário físico
semelhante e parcialmente fundado, em ambos os lados, na
experiência e nas práticas do campeador nativo.
Reverbel 64 , também destaca os elementos de
proximidade e disparidade entre o gaúcho rio-grandense e o
gaúcho platino. Para ele
Não há identidade entre o gaúcho rio-
grandense e o gaúcho platino. Trata-se de
tipos sociais diferenciados, histórica,
sociológica e culturalmente. Mas há pontos de
aproximação, aspectos semelhantes, contatos,
interpenetrações. Afinal, a família é a mesma.
Ambos se formaram e dependem da sociedade
pastoris, geograficamente contíguas.
(REVERBEL, 1996, p.103)
Os depoimentos dos viajantes, com explicações e
aparato crítico adequados, contribuem para uma melhor e
mais enriquecida compreensão do passado. A representação
imagética de Debret remete a forma, que ele, viu e
interpretou. A imagem que Molina Campos representa do
gaucho platino, nada mais é do que produto de sua
perspectiva artística. Temos que cuidar, porém, para não
63 VELLINHO, Moysés. Capitania d’el Rei. Porto Alegre: globo, 1970, p.
144. 2 ed.
64 REVERBEL, Carlos. O gaúcho: aspectos de sua formação no Rio Grande
e no Rio da Prata. Porto Alegre: L&PM,1996, p. 103.
JOSÉ AUGUSTO FIORIN 61
62. DO GAÚCHO AO TRADICIONALISTA: IMAGEM, IDENTIDADE E REPRESENTAÇÃO
cairmos na armadilha de aceitarmos as suas descrições e
informações como sendo a própria e única realidade.
Elas se constituem de representações, reinvenções de
realidades, produzidas a partir da visão de um sujeito. São
imagens que se constituem em representações do real,
elaboradas a partir de componentes ideológicos de pessoas
dotadas de equipamentos culturais próprios e que trazem
um patrimônio anterior que condiciona o modo de observar
e entender o empírico.
Na visão dos viajantes, no Rio Grande do Sul, como
um todo, era motivo de estranhamento. As diferentes regiões
eram vistas através do filtro de sua própria cultura, mas
eles escreveram crônicas sobre os aspectos vistos ou vividos
bastante significativos para pensar o contexto do período.
Esses relatos foram muitas vezes desprezados pelos
historiadores por não serem construídos cientificamente,
por não apresentarem provas documentais. Entretanto, nos
últimos anos, passou-se a valorizar estes depoimentos como
testemunhos de época. Assim, os relatos dos viajantes, base
desta discussão, foram escolhidos por apresentarem pontos
de vista semelhantes, porém com significados claros com
relação ao gaúcho.
A imagética que Debret e Molina Campos constroem
sobre o gaúcho e as crônicas escritas por Saint Hilaire,
Arsène Isabelle e Nicolau Dreys mostram a visão de homens
oriundos de uma outra realidade. Referendados por outros
parâmetros de historicidade, que mostram no exterior certa
imagem da região meridional da América do Sul e levam as
discussões e debates sobre as condições de trabalho, de
JOSÉ AUGUSTO FIORIN 62
63. DO GAÚCHO AO TRADICIONALISTA: IMAGEM, IDENTIDADE E REPRESENTAÇÃO
cultura e do desenvolvimento do Rio Grande do Sul . Dessa
forma o gaúcho constrói sua representação. Tal simbolismo
se fortalecerá tornando-se ainda mais significativo, a partir
da segunda metade do século XX, quando busca-se através
de uma tentativa saudosista reviver o passado através de
um movimento tradicionalista ocorrendo uma reinvenção do
gaúcho.
JOSÉ AUGUSTO FIORIN 63
64. DO GAÚCHO AO TRADICIONALISTA: IMAGEM, IDENTIDADE E REPRESENTAÇÃO
O PROCESSO DE
CONSTRUÇÃO DE UMA
IDENTIDADE GAÚCHA
JOSÉ AUGUSTO FIORIN 64
64
65. DO GAÚCHO AO TRADICIONALISTA: IMAGEM, IDENTIDADE E REPRESENTAÇÃO
O PROCESSO DE CONSTRUÇÃO DE UMA IDENTIDADE
GAÚCHA
Dentre as perspectivas da história cultural, a noção
de identidade possui um papel importante. A abrangência
de seu significado, entre tantos aspectos, demonstra como
ela define os indivíduos. A construção identitária de
determinado povo e, por conseguinte, determinada
sociedade, vem representar elementos característicos de
suas manifestações culturais. Então, cultura e identidade
possuem um vínculo específico no que se refere à
construção de um modelo social.
No caso do Rio Grande do Sul, ocorre de forma
emblemática a tentativa de (re) surgimento de uma
identificação com o passado. Essa edificação vem de
encontro com os postulados que nos levam a refletir sobre a
origem e essência do gaúcho histórico. Este, porém,
JOSÉ AUGUSTO FIORIN 65