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CAPÍTULO DO LIVRO – HISTÓRIA DA ÁFRICA (EaD/FH/UFG)
O sistema colonial europeu em África em dois estudos de caso: o Estado
Livre do Congo (1885-1909) e a Companhia de Moçambique (1891-1925)
João Alberto da Costa Pinto (Faculdade de História da UFG)
“(...) os fatos não constituem o único elemento, nem o mais
importante. A história social, tal como a própria história, combina o
gosto, a imaginação, a ciência e a erudição. Ela reconcilia o que é
incompatível, equilibra probabilidades, para atingir finalmente a
realidade da ficção, que é a forma mais elevada de realidade”
(DANGERFIELD apud BERNARDO, 2003, p. 427).
Apresento neste capítulo uma análise bastante sucinta de alguns elementos estruturais
da história do colonialismo europeu em África, num recorte centrado no período de 1880-
1920. O período que a historiografia reconhece como o da implementação definitiva das
“relações de produção características do colonialismo” (RODNEY, 1991, p. 343)1
. Relações
sociais de produção que colocavam em contradição os interesses capitalistas dos colonialistas
frente às populações nativas que lutavam contra a proletarização que lhes era
sistematicamente imposta. O período marca a conclusão de um longo processo de ocupação
europeia em África, o processo de “roedura”2
europeia sobre o continente iniciado no século
XV. Concluía-se, nesse momento, a ocupação definitiva do continente, “pela primeira vez, e
talvez única em toda a história, um continente inteiro caiu sob domínio de povos estrangeiros”
(MACEDO, 2013, p. 135).
Na década de 1930, a África estava inserida integralmente no modo de produção
capitalista e foi desse período em diante que se iniciou o processo de lutas pelas autonomias
nacionais, somente concluídas em 1975. Estando a África inserida no processo global
capitalista, então as atrocidades mais recentes (República Democrática do Congo, Ruanda,
Sudão, etc.) que ali vêm acontecendo são intrínsecas do sistema produtivo capitalista; os
genocídios das lutas étnicas de limpeza racial são práticas institucionais da globalização
1
“(...) o sistema econômico colonial não atingiu o apogeu senão no período imediatamente anterior à Segunda
Guerra Mundial. Os anos 1880-1935 correspondem, portanto, ao período em que foram lançadas as bases das
relações de produção características do colonialismo. A oposição e a resistência africanas mantiveram os futuros
colonizadores em xeque até a segunda década do século atual [do século 20], e até para além disso, em alguns
casos. Às tentativas de destruição de sua independência econômica, os africanos respondiam com a violência”
(RODNEY, 1991, p. 343).
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A expressão de discutível gosto literário é de Hernandez, 2005, p. 45.
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capitalista e jamais poderiam ser percebidos como algo inato às antigas formações sociais no
continente.
A exposição que desenvolvo neste capítulo tem um caráter de síntese estrutural na
caracterização dos regimes administrativos coloniais e das lutas das populações nativas
africanas contra a ocupação europeia. A descrição dos regimes administrativos determinar-se-
á junto à institucionalização política e econômica das grandes companhias coloniais, as
companhias majestáticas, na expressão usual dos portugueses em Angola e Moçambique. A
institucionalidade dos vários regimes administrativos será aqui descrita em alguns exemplos
sumários. É impossível fazer uma descrição e análise ampliada, e em detalhe, de todas as
particularidades institucionais envolvidas no processo colonialista do período indicado, por
isso, optei por particularizar a historicidade do colonialismo no Congo e em Moçambique.
1. Os modelos administrativos do colonialismo e o poder soberano das Companhias
Majestáticas em África (1880-1930)
França e Portugal desenvolveram na África “soluções político-administrativas
altamente centralizadas, governando as suas colônias a partir de Paris ou de Lisboa e
concedendo à população colonial”, fossem membros das populações nativas (alguns sobas
tornaram-se funcionários da administração colonial), ou mesmo aos colonos, “uma
representação política nos órgãos de poder nacionais muito limitada, em especial no caso
português” (PIMENTA, 2005, p. 63). Apenas em Moçambique, no centro e no norte da
colônia, é que Portugal cedeu seu domínio à Companhia de Moçambique a partir de 1891,
dado o fracasso das tentativas anteriores de ocupação econômica dessas regiões3
.
A Inglaterra desenvolveu regimes coloniais mais descentralizados que procuraram
governar conjuntamente com os chefes tradicionais das populações nativas, além de
desenvolverem condições para a criação de quadros gestores locais para a administração, o
regime administrativo britânico pautava-se pela política do self-government (‘governo
próprio’), com ênfase à autonomia administrativa das companyrule (companhias
majestáticas). Nas colônias britânicas, ao contrário das colônias portuguesas, por exemplo,
3
Desde meados do século XIX, que o governo português, através de alguns decretos (de 1854 e de 1956) de Sá
da Bandeira, tentava estabelecer sólidos nexos administrativos para uma ocupação efetiva da colônia. Nesses
decretos já se estabeleciam as normas para a obrigatoriedade do imposto de palhota. Não houve sucesso algum
em tal normatização, seriam ainda necessárias mais algumas décadas para que tal propósito apresentasse alguns
resultados (Ver CAPELA, 1977, p. 41-43).
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não se reconhecia o direito à nacionalidade das populações colonizadas (PIMENTA, 2005, p.
63).
Contudo, não é possível caracterizar nenhuma das experiências administrativas do
colonialismo europeu em África como um “tipo puro”4
, a historicidade do processo fez com
que todos os modelos de gestão colonial sofressem adequações ao que fora originalmente
organizado, somente para efeitos de síntese é que sumario aqui a descrição em tipos puros.
Junto aos modelos de administração portuguesa e francesa (direta) e ao britânico (indireta), o
modelo no Congo foi misto5
(CROWDER, 2010, p. 89), mas há aqui uma ressalva importante
a ser feita. O Congo no momento do colonialismo europeu não se originou como uma colônia
da Bélgica. Desde a sua fundação, em 1885, era uma propriedade do rei Leopoldo II. Tornou-
se uma colônia da Bélgica apenas em 1909 por herança declarada pelo rei no seu testamento.
Obviamente que a estrutura colonial congolesa, de 1909 em diante, manteve o legado
institucional organizado anteriormente (que descreverei adiante em maior detalhe). Tornou-se,
então, uma colônia com práticas administrativas mistas (ora em intervenção direta e
extremamente violenta das práticas centralizadas das Companhias ou a ação do governo belga
em negociações diretas com os chefes locais das populações nativas) momento em que todo o
continente passava por importantes transformações administrativas em geral, dados os limites
de expansão de muitas companhias majestáticas derivados em grande na incapacidade de
enfrentar o confronto insurrecional de inúmeros povos contra o processo de
institucionalização das relações capitalistas de produção. A partir da década de 1910 com a
aguda repressão militar do estado metropolitano é que investimentos privados puderam se
organizar em larga escala, quando a borracha deixou de ser coletada aleatoriamente no
interior das matas, para ser coletada em fazendas. E a partir da década de 1920, o sistema
geral das administrações coloniais passaria por adequações determinadas em grande parte
pelas conjunturas políticas e econômicas da Europa no período do entreguerras (1919-1939).
O sistema britânico de administração indireta foi que passou por mais adequações
institucionais.
4
Apesar de a historiografia descrever o modelo colonial português como o de administração direta, houve
momentos, especialmente na década de 1860 quando se tentava organizar o empreendimento, de práticas
administrativas executadas sob o princípio da descentralização. “Pretendia-se uma maior eficácia da
administração colonial e abria-se a possibilidade de integração de elementos da população local na função
pública, sem a necessidade de autorização régia, desde que os vencimentos anuais não excedessem 300 mil réis”
(ESTEVÃO, 1991, p. 23). Contudo, a partir da década de 1880, a metrópole retomaria o controle direto das
colônias ou, como no caso de Manica-Sofala, em Moçambique, cedia integralmente em 1891 a sua soberania
para uma empresa, a Companhia de Moçambique.
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Mais ao final deste capítulo definirei em detalhe essa característica de regime tributário misto no sistema de
trabalho forçado do Congo.
4.
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Diferentemente da França que estabelecera um sistema administrativo quase
integralmente uniforme no conjunto das suas quatorze colônias da África
tropical, a Grã-Bretanha implantou diversos sistemas com vistas a
administrar as suas dependências africanas, de forma a tornar muito difícil
conceber, no tangente a estes sistemas, qualquer generalização.
(CROWDER, 2010, p. 89).
As colônias britânicas da África Ocidental (Nigéria, Costa do Ouro, Gâmbia e Serra
Leoa), por exemplo, desenvolveram formas administrativas indiretas com a incorporação dos
chefes tradicionais, percebidos pela metrópole como os “principais responsáveis pelos
organismos locais”, com quase as mesmas atribuições que um “conselho de condado na Grã-
Bretanha, com a pequena diferença de também se atribuir, a estes chefes, o encargo pessoal de
promover a justiça”. Nessas colônias, o poder tradicional local ligava-se quase que
diretamente ao poder central da colônia, ao poder do governador-geral, sempre um britânico.
Contudo, o real poder estava com os funcionários da administração [os pequenos gestores-
burocratas], “mesmo que fossem teoricamente apenas conselheiros junto às ‘autoridades
indígenas’”, se definiam na prática como responsáveis pela “supervisão direta de numerosos
aspectos da administração dos negócios” (CROWDER, 2010, p. 96). Note-se um aspecto
importante nesse modelo britânico de administração indireta: os chefes ocupantes de tais
“posições no quadro deste sistema administrativo sobreviveriam ao advento da
independência”, o que não aconteceu com as administrações portuguesas e francesas; nestas
os “agentes do regime administrativo direto” desapareceriam, em sua maioria, enquanto classe
(gestores-burocratas evadidos para a metrópole quando declaradas as independências, o caso
das administrações coloniais em Angola é exemplar). Enfim, o principal é que Grã-Bretanha
deixou a sua marca colonialista muito menos intensamente na vida cotidiana dos africanos em
territórios administrados indiretamente, por razões quase óbvias, os funcionários de origem
europeia eram assessores e se limitavam a atuar como agentes de consulta e de logística,
sendo os chefes tribais incorporados a efetiva expressão pública do poder (CROWDER, 2010,
p. 96-97). Com as independências, tais chefes administrativos tenderam a permanecer nos
quadros da tecnoburocracia dos novos regimes políticos nacionalizados. É claro que isso tinha
limites. Quando investimentos de grande porte eram aplicados nas colônias, esses chefes
locais eram sumariamente ignorados. Com investimentos globais para a colônia, o sentido do
poder local dos sobas limitava qualquer perspectiva de consulta de natureza mais ampla.
Quando se tratava de implementar medidas aplicadas ao conjunto da colônia,
o chefe recebia as suas instruções e raramente era consultado quanto à
sabedoria ou aos fundamentos das medidas, como a construção de estradas e
de vias férreas territoriais ou, por exemplo, as modalidades de combate às
epidemias (CROWDER, 2010, p. 97).
5.
5
Apesar das distinções nas práticas administrativas das metrópoles sobre as colônias,
um aspecto estrutural define o processo na sua totalidade: em todas as experiências
colonialistas a soberania de grandes Companhias Majestáticas se fazia presente, algo como
estados privados coordenados pela lógica de investidores (acionistas) de um mercado
financeiro já internacionalizado. Para além das diferenças administrativas coloniais, se diretas
ou indiretas, o fato importante a considerar é a soberania política e econômica das
Companhias Majestáticas por toda a África, não importando se a experiência colonialista
fosse de bandeira portuguesa, britânica, francesa ou belga.
As empresas concessionárias de capital privado instituíram o capitalismo no
continente africano6
. Após a década de 1880, quando a industrialização tomava dimensões
oligopolistas, a expansão capitalista europeia deixava gradativamente de perceber o
continente africano apenas como um espaço colonial de saques e trocas mercantis. As
colônias no avanço do capitalismo monopolista tornavam-se áreas de receptação de capital e
exportação de matérias-primas (BERNARDO, 2004, p. 42). Isso significava que a extração de
minérios ou a produção de borracha deveria estar organizada sob os fundamentos capitalistas
de exploração da força de trabalho. O grande papel histórico das Companhias Majestáticas foi
o de organizar as condições gerais de produção capitalista, mais especificamente as condições
da proletarização do trabalhador africano. Um dos exemplos de maior êxito nesse propósito
deu-se com a experiência administrativa da Companhia de Moçambique.
Se no período de 1840-1870, momento inicial da ocupação colonialista no século XIX,
as relações comerciais se faziam sob a lógica do trabalho forçado promovido pela
escravização de tribos nativas para a recolha de marfim, por exemplo, a partir da década de
1880, com a ampliação dos mercados monopolistas, a extração de matérias-primas teria que
se organizar em escala industrial, o que implicava na proletarização da força de trabalho
africana. As populações africanas resistiram de modo implacável a essas novas condições de
trabalho. Todas as companhias estabelecidas em África viram-se diante de lutas devastadoras
contra o seu patrimônio e investimentos. Milhões de africanos morreram em combates contra
a forçosa proletarização a que se viam subjugados. Mesmo com poderes administrativos de
6
Generalizou-se após 1880 a colonização sob o controle privado das companhias majestáticas. Como Estados,
organizaram seus exércitos e suas burocracias. Grandes companhias formaram burocracias “destinadas a
administrar os territórios conquistados. “O governo português cedeu a maior parte da área central de
Moçambique à Companhia de Moçambique e à Companhia da Zambézia, com o direito de cobrarem o imposto
de palhota”. Criada em 1891, a Companhia de Moçambique obteve, pelo prazo de cinquenta anos, direitos
soberanos sobre um território de cento e sessenta mil quilômetros quadrados” (BERNARDO, 2004, p. 55).
Consultar também Capela, 1977, p. 51-57.
6.
6
Estado, a grande maioria dessas companhias não resistiu sozinha às lutas de resistência dos
africanos e, na década de 1910, os Estados nacionais metropolitanos assumiram a defesa
militar e a garantia da expansão da proletarização africana e a consumação das condições
gerais de produção capitalista. A Companhia de Moçambique foi a única que se manteve
desde a sua fundação com autonomia em todo o processo de colonização portuguesa.
Manteve-se assim porque fora, desde sempre, uma companhia controlada por capitais e
investimentos britânicos. Portugal era apenas um detalhe simbólico na formalidade
administrativa.
A seguir, descrevo sucintamente a história dessa companhia majestática e com isso
creio que posso demonstrar a factibilidade do argumento exposto acima: a da intrínseca
relação do capitalismo monopolista na ação institucional dessas companhias e a proletarização
da força de trabalho africana.
1.1. A Companhia de Moçambique (1891)7
O Grupo Entreposto8
é uma holding sediada em Lisboa, que além de Portugal controla
dezenas de empresas em mais três países: Brasil, Moçambique e Timor. As empresas
administradas pelo Grupo Entreposto produzem de serviços de turismo a máquinas agrícolas e
serviços e sistemas de informação. Em 2011, o grupo movimentou um total global de 548
milhões de euros (algo em torno de 1,8 bilhão de reais). A história de sucesso dessa holding
está diretamente vinculada ao nosso tema: a holding é o resultado histórico de uma engenharia
empresarial que nos leva diretamente à Companhia de Moçambique, a primeira grande
companhia majestática naquela colônia portuguesa. Foi fundada no ano de 1891, na Beira,
capital da província de Manica-Sofala, localizada na região central da antiga colônia
portuguesa, e com direitos de plena soberania concedidos por um prazo de cinquenta anos. A
relação histórico-institucional da companhia majestática de antes, com a holding de hoje, é
7
No ano de 1890, foi fundada, ao Sul de Moçambique, a Companhia do Niassa. Com uma concessão de
soberania de 35 anos que envolvia o controle sobre uma área total de 160 mil km² da colônia portuguesa, esta
companhia deixou de existir em 1929. Nunca teve importância institucional equivalente ao que teve a
Companhia de Moçambique, “nada mais fazia no território do que recrutar trabalhadores para exportação
[principalmente para as minas de ouro do Transvaal – João Alberto] e cobrar o imposto de palhota. Os seus
funcionários eram tão mal pagos que muitos se viam obrigados a cultivar a terra para sobreviver. O que, por sua
vez, veio somar à exploração da Companhia novas barbaridades cometidas por estes cultivadores sobre os
trabalhadores que também recrutavam à força. A Companhia nunca se importou com tal estado de coisas, pelo
que as fugas da população para fora do território eram maciças” (CAPELA, 1981, p. 165-166). Essa companhia
teve, praticamente, toda sua existência administrativa controlada por capitais britânicos em grande parte
associados a sindicatos patronais da África do Sul.
8
Sobre o Grupo Entreposto, consultar: http://www.grupoentreposto.pt/pt
7.
7
também uma expressiva demonstração da institucionalidade das práticas de integração do
capitalismo dos gestores9
.
A Companhia de Moçambique, no ano de 1909, anunciava aos seus investidores esta
descrição do seu potencial econômico que vale a pena transcrever na íntegra:
"A Companhia de Moçambique chama a attenção dos commerciantes,
industriaes e capitalistas para o Territorio de Manica e Sofala, collocado sob
a sua administração, com uma superfície aproximada de 16.000.000 de
hectares, onde as riquezas naturaes, conhecidas de ha seculos, teem sido
confirmadas sobejamente pelas explorações ali realizadas nos tempos
modernos.
“A cidade da Beira, já hoje uma das mais importantes de toda a costa
oriental de Africa, capital do Territorio de Manica e Sofala, é testa do
caminho de ferro directo para o Rhodesia, que se está tratando de prolongar
até ás valiosas minas da Katanga, e dentro em pouco será também a estação
terminus da nova linha de caminho de ferro da Beira ao Zambeze, cujos
estudos estão concluidos e que atravessará regiões fertilissmas e de grande
riqueza em madeiras e borracha. A cidade da Beira é servida ainda por um
magnifico porto; frequentado pelos vapores das principaes empresas de
navegação; está ligada com Quelimane pelo cabo submarino e assim em
communição directa com a metropole; e num futuro proximo será uma das
testas do primeiro caminho de ferro transcontinental africano, sendo a outra
o porto do Lobito.
“A Companhia de Moçambique é administrada sob a fiscalização do
Governo de Sua Majestade tanto na Europa como em Africa, mas tem uma
legislação especial para o seu Territorio conducente a chamar para ali
todos os que dispõem de elementos efficazes para se entregarem a todos os
ramos da agricultura, do commercio e da industria. Sob este importante
ponto de vista já a Companhia de Moçambique regulamentou o trabalho dos
indigenas e o seu recrutamento, procurando assim assegurar aos seus
concessionarios a mão de obra sem a qual os capitaes não podiam tornar-se
produtivos.
“Existem no Territorio da Companhia de Moçambique vastíssimos e
ubérrimos territórios proprios para as grandes culturas de quasi todos os
productos vegetaes e extracção da borracha, tão apreciada nos mercados de
Londres e Hamburgo, e para as plantações de palmeiras e de algodão. A
cultura da canna saccharina e a fabricação do assucar e do alcool estão já em
plena actividade no mesmo territorio, empregando milhares de braços. Para
poder fornecer informações uteis e seguras aos que pretendem dedicar-se ali
a quaesquer emprehendimentos agrícolas, fundou a Companhia de
Moçambique dois jardins de ensaio, um a 36 kilometros da Beira, junto á
linha ferrea no sitio denominado M'Zimbite, e o outro nas proximidades da
estação do Revué, superiormente dirigidos por um profissional muito
competente. A pesquisa e exploração do quartzo aurifero e dos minerios de
cobre continua a fazer-se sob os melhores auspicios, nomeadamente depois
da descoberta da mina Paradox, que veio certificar a incalculavel riqueza da
região de Manica.
“É tambem muito notavel a riqueza pecuaria de todo o Territorio de Manica
e Sofala, de que dão prova as grandes manadas de gado bovino pertencentes
9
Não posso desenvolver neste capítulo uma descrição ampliada desse processo institucional integral, de 1891
aos dias de hoje. Limito-me a descrever o percurso da empresa da sua organização inicial à década de 1920.
8.
8
á Companhia de Moçambique” (Revista Almanach d’ O Mundo para 1909:
s/d/p, p. 310, grifos meus)10
.
O leitor pode perceber como a companhia tinha poderes soberanos de Estado. A
cidade organizou-se pelos propósitos econômicos da companhia. As condições gerais de
produção ali montadas seriam as mesmas que tradicionalmente ocupam os poderes públicos
dos Estados nacionais. Na ausência desse Estado tradicional, a empresa, naquela experiência,
antecipava um movimento histórico que somente na atualidade se percebe com mais
evidência. A companhia majestática na administração do seu destino institucional estava na
vanguarda do capitalismo, o que significa dizer que a ausência de um Estado Nacional
organizado não implica necessariamente em atraso capitalista ou uma “fase” primitiva ou
“superior” do capitalismo. Com evidências assim, o que se percebe historicamente é a
globalização integrada em processo de ampliação. Não haveria então um capitalismo
periférico frente a um capitalismo central, o que temos é um único e exclusivo processo de
expansão capitalista.
Na citação do documento, fiz um destaque em itálico, pois se encontra ali uma precisa
informação sobre a autonomia da Companhia na formação da mão de obra local com regras
intrinsecamente capitalistas, com vistas à formação de capitais produtivos e à formação de um
mercado de consumo local. E como se realizariam tais condições? Através da cobrança de
impostos. Cobrar tributos das populações que habitavam no perímetro territorial sob o seu
controle é o que fazia uma companhia majestática. Estava autorizada a isso desde a sua
fundação, mas só em 09 de julho de 1892 é que impôs a obrigatoriedade dos pagamentos do
imposto de palhota11
, o que significava que todos os donos ou moradores de palhotas
(cabanas indígenas) dentro do território controlado pela empresa estariam obrigados a pagar
um imposto anual (por palhota) de 900 réis. Nos dois primeiros anos esse imposto pôde ser
pago em gêneros com valor equivalente ao numerário exigido, mas após 1894 esse tributo só
pôde ser pago em dinheiro. Aqueles que não conseguiam ou que fugiam do pagamento do
imposto eram punidos com a obrigatoriedade de trabalhar para a Companhia “durante um
número preciso de dias, para que ao preço do salário local se perfizesse o quantitativo do
imposto” devido “aumentado de 50 por cento” (CAPELA, 1977, p. 60). Como muitos não
conseguiam remunerar-se para o imposto, conseguia-se muito facilmente a mão de obra para
os trabalhos que necessitava a empresa. Destaque-se que a Companhia, até o início de 1895,
10
Neste link pode-se ver a transcrição do anúncio de página inteira que a Companhia fez publicar na revista
citada http://www.companhiademocambique.blogspot.com.br/
11
No próximo item descrevo em maior detalhe o significado e o funcionamento do imposto de palhota.
9.
9
chegou a ter o apoio de Gungunhana na cobrança do imposto de palhota. Gungunhana foi um
dos mais importantes e temidos chefes tribais que a África portuguesa conheceu.12
Os agentes
da Companhia eram acompanhados por homens de Gungunhana para proteção e garantia do
sucesso nas cobranças do tributo (CAPELA, 1977, p. 60-61). Depois, a Companhia dividia
com Gungunhana os valores dos impostos cobrados.
A melhor descrição que encontrei sobre a organização e a formação de capitais da
Companhia de Moçambique foi a de Cunha Leal, escritor português e um dos mais
importantes oposicionistas do fascismo salazarista, apresentada no livro Peregrinações
através do poder econômico (1960), em trechos citados no livro de CAPELA (1977). Sobre a
Companhia de Moçambique, transcrevo, na sequência, alguns dos trechos desse livro de
Cunha Leal.
O capital (...) foi subscrito na sua quase totalidade por estrangeiros,
sobretudo ingleses, que na primeira fase da sua vida, com a duração dos 50
anos da concessão – entre 1892 e 1942 – orientaram a atividade funcional
desta sociedade. Os tomadores iniciais do capital social, dividido em acções
de pequeno valor nominal, conseguiram colocar avultada fracção dele em
Inglaterra e nos países vizinhos, França e Bélgica, sem nunca se arriscarem a
perder o domínio das Assembleias-Gerais. Não obstante a, por assim dizer,
nula rentabilidade destes títulos de crédito – em 50 anos só se distribuiu
dividendos em 5 deles –, o que é certo é que a crença no seu valor intrínseco
manteve-se imutável através dos tempos, dizendo-se ironicamente que em
Paris não havia membro da instituição citadina das porteiras de prédios que
não tivesse em carteira umas tantas acções da Companhia de Moçambique”
(apud CAPELA, 1977, p. 57-58, grifos meus).
Os escritórios centrais da Companhia de Moçambique localizavam-se em Lisboa, com
escritórios de representação comercial em Paris e Londres. E a sede em Moçambique estava
na cidade de Beira, local onde se estabelecia a Secretaria Geral do Governo do Território de
Manica e Sofala, expressão institucional do comando colonial da Companhia (era nessa
secretaria de governo que os interessados da cidade em comprar ações da Companhia
deveriam se dirigir).
12
Ver Capela, 1977, p. 60-61. Sobre Gungunhana, ver Isaacman&Vansina, 1999, p. 187-206. Gungunhana
reinava (Reino de Gaza) em ampla região que se estendia das fronteiras do Transvaal ao centro-norte de
Moçambique. Em 1895, Portugal conseguiu defender Lourenço Marques (importante cidade ao sul de
Moçambique, sempre cobiçada pelos ingleses pela sua posição estratégica no fornecimento de trabalhadores para
as minas de ouro no Transvaal africânder e para a África do Sul britânica) do ataque das populações de Gaza.
António Enes, o militar português que comandou as vitórias nas batalhas contra o Reino de Gaza, conseguiu
capturar o então lendário Gungunhana, e com uma habilidosa manobra do governo português, exilaram esse rei
africano nos Açores. Sobre as lutas militares contra Gaza em defesa de uma Lourenço Marques para os
portugueses, consultar Pelissier, 2006, p. 198-220.
10.
10
Note Ressalve-se que a Companhia que se definia como o poder político e econômico
na importante província de Sofala-Manica estava organizada por investidores e capitais
estrangeiros. Esse aspecto deve ser destacado por causa de uma indagação simples feita pelo
autor (Cunha Leal) aos seus leitores: se a Companhia não rendia dividendos aos acionistas,
então, qual seria o seu sentido econômico para os interesses dos investidores britânicos? O
autor responde:
É evidente que eles não estariam dispostos a representar entre nós o papel de
bons samaritanos, visto como não está nos seus usos e costumes trabalhar
por puro altruísmo. O seu lucro provinha da sua intervenção nos negócios
financeiros e económicos, inerentes à tarefa civilizadora da Companhia de
Moçambique: formação de companhias subsidiárias, tais como as do Porto e
Caminho de Ferro da Beira; adjudicação e execução da construção desses
empreendimentos; emissões de capitais acionistas e obrigacionistas (apud
CAPELA, 1977, p. 58).
A caracterização acima é a de uma holding. A Companhia Majestática no
Moçambique colonial antecipava com as suas práticas administrativas o que hoje é rotineiro
em qualquer complexo corporativo transnacionalizado: os investimentos integrados com
capitais internacionais. Mas, o mais importante, a Companhia organizava as condições gerais
de produção capitalistas em Moçambique e é exatamente isso o que Cunha Leal descreve na
sequência:
(...) nasceu do nada uma prometedora cidade, a Beira, que é hoje um dos
grandes centros populacionais da nossa costa moçambicana; instalou-se, para
seu serviço, um porto, cujo movimento é considerável e beneficioso para o
território nacional e para a Rodésia; tornou-se a Beira um centro de
irradiação ferroviária para drenagem da produção do hinterland português e
britânico; (...) acostumou-se a população indígena a uma vida de maior
disciplina e elevação material e espiritual; iniciaram-se certas culturas
remuneradoras, como a do algodão (CAPELA, 1977, p. 58-59)13
.
A Companhia conseguia se capitalizar na própria colônia em investimentos
diversificados e com o direito administrativo de exclusividade na tributação dos impostos
junto aos trabalhadores africanos. Mostrei na transcrição do anúncio que a Companhia
controlava quase que a integralidade dos terrenos na cidade da Beira, isto é, à medida que a
cidade progredia o fazia sobre terras da Companhia. O capital imobiliário era uma importante
13
Vicente Vera, autor do livro – Un viaje alTransvaal durante la guerra (Madrid, 1902) – esteve na Beira e a
descreveu como uma cidade “com mais de uma dezena de hotéis e de clubes, bancos e escritórios esplêndidos,
numerosos armazéns, lojas magníficas, um porto dos mais animados, um caminho-de-ferro em direção ao
interior e de todos os lados a atividade e a vida que confere a uma cidade nova a prosperidade comercial...Como
dizia ontem, e com razão, um oficial inglês: ‘Estou encantado. Estamos aqui como em casa’” (apud PELISSIER,
2006, p. 204).
11.
11
garantia de rentabilidade; junto a isso, controlava um sem número de áreas para agricultura
que, com as plantações de tabaco e algodão, eram muito lucrativas.
Afirmei anteriormente que por volta das décadas de 1910-1920, as Companhias
Majestáticas perderam a sua expressividade administrativa autônoma por todo o continente e
os Estado Nacionais metropolitanos foram obrigados a assumir militarmente, e depois
administrativamente, os empreendimentos coloniais. A Companhia de Moçambique foi a
única companhia majestática que assim se manteve ao longo das décadas seguintes, isso em
grande parte dada a insuficiência de Portugal em “voltar” a administrar as suas colônias14
,
mas, principalmente, porque os capitais da companhia eram britânicos. O Moçambique de
Portugal era uma ficção, com um mercado colonial em formação, a colônia era
predominantemente britânica15
. José Capela, num dos seus livros, afirma que Moçambique
era lastreada com moeda britânica, a libra esterlina inglesa. Era sob o padrão da libra inglesa
que se estabeleciam os preços, tanto que o Banco Nacional Ultramarino, em 1909, foi
autorizado a emitir papel-moeda designado de “libra esterlina” (a libra portuguesa) com
paridade de valores à libra inglesa. Esses papéis também eram convertíveis em ouro, mas tais
emissões pouca eficácia tiveram, tanto que os bancos ingleses não os trocavam por ouro, mas
por outros papéis e sempre em valores depreciados (CAPELA, 1981, p. 186-188). A questão
cambial sempre foi um problema para os moçambicanos, a desordem dos valores nas trocas
das moedas era permanentemente caótica porque as normatizações da Companhia de
Moçambique na expedição de títulos, ou mesmo na impressão de dinheiros através do Banco
Nacional do Ultramar, nunca conseguiam enfrentar a presença do ouro e da libra inglesa. Com
14
“Nas colônias portuguesas, a incúria da administração, incapaz de garantir a distribuição de sementes ou de
providenciar instruções técnicas, explica a ineficiência do sistema. Mesmo assim, prevaleceu de modo
particularmente arcaico no território da Companhia de Moçambique, criada em 1891, que gozava de direitos de
soberania sobre 160 mil km². Esta era a única companhia no mundo que em 1930 ainda exercia poder de
soberania e tinha o controle sobre 11,6% do comércio global da colônia, entre 1918 e 1927, sobre 6,5% do
território e sobre o trabalho de 4% da população” (COQUERY-VIDROVITCH, 1991, p. 371). O que esta
extraordinária historiadora francesa deixou de afirmar é que a companhia em si nunca esteve sob o controle de
Portugal, mas de alguns portugueses a serviço do capital financeiro britânico, só por essa característica é que se
pode entender a manutenção histórica da empresa em África quando todas as majestáticas similares já haviam
deixado de existir.
15
Gilberto Freyre esteve em Moçambique em janeiro de 1952, e sobre essa viagem escreveu, ao modo que
ideologicamente lhe era peculiar, esta descrição: “Beira é um centro estrategicamente econômico do mesmo
modo que complexamente social. Seu porto serve não só à província portuguesa de Manica e Sofala como à
Rodésia do Norte, à do Sul e à Niassalândia dos ingleses. Seu plano de urbanização é obra de planejamento
regional e não apenas urbano; social e não somente econômico”, e sobre os portugueses da Beira, disse: “(...) é
possível que a vizinhança da Rodésia torne alguns portugueses brancos da Beira um tanto ingleses no seu modo
de tratar gente mestiça. É uma influência contra a qual precisamos de estar vigilantes, todos os lusotropicais: a
influência dos nórdicos que nos afetam os hábitos com a sua vizinhança ou o seu contato de povos econômicos e
tecnicamente poderosos” (FREYRE, 2001, p. 442). Os olhos desse Camões de Salazar não percebiam que o
problema não era a vizinhança, mas que tudo aquilo que via diante de si já era controlado há bastante tempo por
capitais predominantemente britânicos.
12.
12
um meio circulante, tanto na Beira como em Lourenço Marques, padronizado por moeda
estrangeira, os portugueses viam-se obrigados a intervir no mercado de câmbios e quase
sempre de modo desfavorável às populações e ao comércio dessas cidades. No ano de 1925,
Beira viu-se envolvida por uma greve geral de trabalhadores contra os salários crescentemente
desvalorizados no seu poder de compra, já que grande parte do consumo originava-se de
produtos importados (com preços inflacionados pela crise do câmbio). Essa greve teve amplo
apoio dos comerciantes da cidade, esses chegaram a impor um lockout contra a Companhia,
foi uma greve geral por melhores salários e contra as medidas administrativas adotadas para o
controle do câmbio (entre elas, a obrigatoriedade de depósitos de valores antecipados em
todas as transações de importação de produtos, especialmente aqueles originados da África do
Sul). Os trabalhadores ganharam todas as suas reivindicações salariais contra a Companhia
(CAPELA, 1981, p. 190-194).
Figura 01 – Selo expedido pela Companhia de Moçambique em 1935, com o valor de 01 escudo.
Repare que o selo foi impresso em Londres. A célebre Companhia Majestática de bandeira portuguesa
sempre foi controlada majoritariamente por capitais britânicos. Fonte: Google Imagens.
13.
13
2. Os tributos coloniais: aplicação do imposto de palhota e do imposto de capitação na
formação do proletariado africano
Para disponibilizar mão de obra às administrações locais e aos investidores capitalistas
nas colônias, todas as potências europeias impuseram o uso do trabalho forçado, além da
aplicação compulsória de tributos às populações africanas. Diante da impossibilidade de se
manter um investimento colonial só com dinheiro da metrópole, foi condição imediata, a
todas as colônias, a obrigação de se capitalizarem, e a forma encontrada para tanto deu-se com
a obrigatoriedade dos impostos, primeiro com o imposto de palhota, depois com o imposto de
capitação (ou individual).
Transcrevo para efeitos de caracterização didática uma das melhores definições que
encontrei dos significados políticos e ideológicos da cobrança dos impostos coloniais. Os
termos são de Marcelo Caetano (NEVES, 1934).
O imposto indígena tem uma função prevalentemente civilizadora. Em
primeiro lugar, significa a submissão dos que o pagam à soberania
portuguesa: é o tributo. Em segundo lugar, moraliza a vida e estimula a
produção do contribuinte, e vejamos como. O estado social das populações
indígenas exige que o imposto seja único, de simples liquidação e cobrança
(NEVES, 1934, p. 205-206)16
.
E a seguir uma precisa definição dos procedimentos e o sentido capitalista dos
impostos coloniais, descrita com excepcional realismo e didatismo tão ao modo daquele que
foi um dos grandes tecnocratas do fascismo português:
O pagamento do imposto pode exigir-se em trabalho, em géneros ou em
dinheiro. A cobrança em trabalho é uma das formas do trabalho obrigatório.
O pagamento em géneros não satisfaz, em regra, o fim civilizador que se
pretende atingir e retarda a introdução do uso da moeda metálica. É o
pagamento em dinheiro que se deve preferir, pois para o obter há-de o
indígena trabalhar ao serviço dos europeus, ou transaccionar os seus
produtos nos grandes centros comerciais da colónia. Além disso, não tem
comparação a comodidade que a cobrança em dinheiro representa para o
Estado e a que adviria da cobrança em géneros (NEVES, 1934, p. 206).
Walter Rodney (1991) foi quem melhor caracterizou o sentido geral da solução
administrativa colonial que levaria à generalização da cobrança do imposto de palhota, e isso
porque a percebeu dentro da lógica conflitual das lutas sociais Vejamos:
16
Estas definições de Marcelo Caetano foram coligidas por Mário Neves, um dos seus alunos, que as publicou,
em edição do autor, no formato daquilo que se convencionava chamar de “sebenta”, algo equivalente às atuais
apostilas estudantis.
14.
14
Na África, a autonomia da aldeia indígena teve de ser mais brutalmente
destruída, pois não havia nenhum mecanismo social interno que
transformasse o trabalho em mercadoria. Era, então, necessário estabelecer
uma relação entre o capital europeu, suscetível de ser investido na África e a
mão-de-obra africana. Ora, esse capital não exercia atração sobre a mão-de-
obra, fosse por bons salários, fosse por altos preços de compra; do lado
africano, a traumatizante passagem de estruturas não-capitalistas
independentes para estruturas quase capitalistas avassaladas aos centros
econômicos do imperialismo não se fez, evidentemente, sem dificuldades.
Consequentemente, para recrutar a mão-de-obra africana, era preciso lançar
mão de força, quer abertamente, quer sob a proteção das leis dos novos
regimes coloniais (RODNEY, 1991, p. 347-348).
A aplicação do imposto de palhota foi a normatização institucional que melhor tentou
recrutar essa mão de obra africana aos novos regimes de trabalho, sem ele não se efetivaria o
processo de acumulação dos investimentos europeus dentro das colônias, e isso não se fez
senão sob grande violência17
. Os impostos que “incidiam sobre todos os africanos do sexo
masculino tinham repercussão profunda” (BETTS, 1991, p. 335). Foi a mais eficiente
expressão institucional de inserção das relações sociais capitalistas em África e um poderoso
instrumento de autofinanciamento dos investimentos coloniais. Do imposto de palhota muito
rapidamente passou-se ao imposto individual ou “imposto de capitação” disseminado por toda
a África a partir da década de 1920, quando já a produção era majoritariamente organizada em
fazendas e em minas de ouro (ou de cobre), empreendimentos submetidos à rigorosa
administração e apoio militar. O movimento histórico dessas tributações foi diferenciado em
cada experimento colonialista, mas definiu-se como a estrutura administrativa fundamental no
processo de acumulação das companhias majestáticas e do estado metropolitano. A cobrança
desses impostos generalizava-se conjuntamente com o trabalho forçado; as marcas sociais do
trabalho forçado envolviam a cobrança de impostos como algo inerente. Na década de 1920,
com a generalização da cobrança de impostos, talvez a melhor expressão a traduzir o processo
pudesse ter sido esta: assalariamento (proletarização) em condições de trabalho forçado.
Rebeliões contra o imposto de palhota aconteceram por todo o continente africano,
como a rebelião em “1898 dos Temne e dos Mende em Serra Leoa”, então sob o domínio
britânico. Foram atacadas e pilhadas feitorias, e esses povos insurrectos matavam
“funcionários e soldados britânicos, bem como todos os suspeitos de colaborar com a
17
“A primeira fase da cobrança de impostos envolveu muita brutalidade e provocou muita resistência,
nomeadamente a guerra do imposto de palhota na Serra Leoa, e a Revolta Bambata de 1906, na Zulolândia.
Sabe-se que alguns homens ugandenses se matavam quando não conseguiam arranjar dinheiro para pagar o
imposto” (ILIFFE, 1999, p. 255). “A introdução de impostos não tinha tanto o objetivo – pelo menos, não
unicamente – de aumentar a receita das colônias, mas de obrigar os africanos a deixar suas terras para se
integrarem no mercado de trabalho e na economia monetária. A mão-de-obra era empregada nas fazendas dos
colonos e em obras públicas, como a construção de estradas” (MWANZI, 1991, p. 185).
15.
15
administração colonial”. Por exemplo, no mês de maio de 1898, as forças “rebeldes chegaram
a cerca de 40 km de Freetown, e Lagos teve de despachar às pressas duas companhias de
soldados para defender a cidade” (GUEYE; BOAHEN, 1991, p. 158-160).
Além das rebeliões e insurreições contra o imposto de palhota, houve também outro
fenômeno social contrário à tributação: as migrações. “Um dos métodos mais generalizados
consistia em emigrar em massa, um protesto contra a dureza do regime colonial” (GUEYE;
BOAHEN, 1991, p. 161). É importante destacar que essas rebeliões e migrações “eram
essencialmente obra de rurícolas, cujos contatos diretos com europeus remontam apenas às
décadas de 1880 e 1890” (lembre-se que o imposto de palhota era cobrado por habitação
[palhota] nas aldeias indígenas). Nas regiões costeiras das antigas feitorias e nos “novos
centros urbanos”, onde viviam os quadros funcionários-administrativos e onde se formava
uma classe operária (como o que se sucedia na cidade de Beira), “as reações pareciam menos
violentas”, pois “tratava-se de greves, boicotes, protestos ideológicos, artigos nos jornais e,
sobretudo, envio de petições e de delegações aos administradores coloniais da localidade e do
governo central, por diversos grupos e movimentos” (GUEYE; BOAHEN, 1991, p. 161). Em
Moçambique, as companhias majestáticas enfrentaram contra si inúmeras revoltas populares
por causa das arbitrariedades dos impostos.
De modo geral, os levantes tinham origem no aumento ou na cobrança mais
rigorosa de impostos, ou nas reivindicações dos trabalhadores. No vale do
Zambeze contaram-se, entre 1890 e 1905, nada menos que 16 sublevações.
Essas revoltas, em sua maioria, voltaram-se contra a Companhia de
Moçambique e a Companhia da Zambézia, às quais Lisboa tinha cedido
quase todo o Moçambique central. As duas sociedades, que não dispunham
de capitais suficientes, procuravam maximizar os lucros impondo pesados
tributos sobre as habitações e exportando mão-de-obra constrangida ao
trabalho forçado, causa direta dos levantes (ISAACMAN; VANSINA, 1991,
p. 202).
Uma distinção formal a considerar: as insurreições diferenciavam-se de formas
localizadas de resistência, eram levantes generalizados que envolviam um ou vários povos em
amplas regiões. Era frequente nessas insurreições colocarem-se lado a lado povos que antes se
hostilizavam18
. De 1885 ao final da década de 1910, aconteceram dezenas de insurreições em
todo o continente africano. Aconteceram, principalmente, nas colônias portuguesas e no
Congo, locais onde a dominação extremamente opressiva, de um lado, e a debilidade da
18
Tornou-se frequente no avançar das lutas contra o colonialismo que “chefes das diversas insurreições”
apelassem “para os antigos adversários, que partilhavam de seu ódio ao sistema colonial”. “Os Lunda, sob
Mushidi, que começaram por ajudar o Estado Livre do Congo contra os Chokwe, em 1905, após uma reviravolta
espetacular, fizeram causa comum com os antigos inimigos, encetando uma luta que só foi esmagada por causa
da carestia de alimentos de 1910-2” (ISAACMAN; VANSINA, 1991, p. 208).
16.
16
estrutura administrativa e militar, por outro, facilitavam essas “ondas sucessivas de agitação”
(ISAACMAN; VANSINA, 1991, p. 204-205).
Como já afirmei, com a gradativa aplicação do imposto de palhota, o trabalho
assalariado expandiu-se por toda a África. No Congo, por exemplo, a quantidade de
trabalhadores assalariados decuplicou no período de 1917 a 1927, de 47 mil para 427 mil,
ainda que isso representasse menos de 20% da população apta a trabalhar, o que significava
que a manutenção do trabalho forçado ainda se fazia presente (COQUERY-VIDROVITCH,
1991 p. 375). Contudo, para ficar com o exemplo do Congo, que é o que mais nos interessa
nesta descrição geral, o crescimento do número de assalariados não implicou em elevação de
preços dos salários. Baixas remunerações resultavam em baixo consumo com reflexos
negativos imediatos ao recolhimento de tributos sobre esses salários. A estratégia adotada no
Congo para a garantia de receitas tributárias e manutenção da administração colonial foi a de
remunerar essa força de trabalho com salários parciais e com pagamentos em espécie,
principalmente gêneros alimentícios. Essa medida foi adotada no Congo a partir de 191619
,
pois se acreditava que assim estaria garantida a sobrevivência dos trabalhadores diante das
perdas inflacionárias a que estavam sujeitos os salários. Tal medida administrativa sobre a
remuneração dos trabalhadores, contudo, passou a exigir que os impostos cobrados deveriam
acontecer em dinheiro, ora, sendo assim, os trabalhadores tinham a sua remuneração em
dinheiro subtraída apenas para pagar impostos e o restante do salário pago em gêneros
alimentícios. Definia-se, então, o imposto por capitação (individual) e a condição de
proletarização universal da força trabalho, o que garantia a ampliação das remunerações
tributárias para a administração colonial e a garantia da sua manutenção e até mesmo da sua
ampliação institucional. Este processo de hipertrofia nas condições de exploração em níveis
de mais-valia absoluta realizou-se num momento em que já começava a predominar nos
cenários coloniais da África o trabalho nas fazendas, caso, por exemplo, das fazendas no
Congo de extração do azeite de palma (azeite-dendê), do grupo empresarial Lever (atual
Unilever), que em 1929 já era uma empresa britânica-holandesa de capital aberto
(CROWDER, 2010, p. 90).
19
De sua fundação em 1885 até fins da década de 1900, predominou no Congo uma violência primitiva em
regime de trabalho forçado que definirei ao final deste capítulo como um regime de tributação por apresamento.
O imposto de apresamento foi uma combinação bastante rudimentar, mas muito funcional para os propósitos que
envolviam a coleta da borracha, do imposto de palhota com o imposto de capitação.
17.
17
3. Do Estado Livre (Independente) do Congo ao Estado Falido da República
Democrática do Congo (1885-2013)
Um médico veterinário escocês chamado John Dunlop desenvolveu, em 1887, para a
bicicleta do filho, aros de borracha pneumática, pneus com câmara de ar, o que tornou o uso
da bicicleta bastante mais confortável. A preocupação com o conforto do lazer do filho teve
como resultado, para esse senhor de longas barbas brancas, uma invenção, uma nova
tecnologia que se fez em imediato sucesso mundial. Sem que pudesse imaginar o alcance da
sua descoberta, o futuro proprietário da empresa de pneus DunlopTyres, a primeira a
desenvolver a partir de 1890, em escala industrial, os pneus de câmara, atualmente uma marca
corporativa mundial associada à maior produtora de pneus do mundo, a Goodyear Group20
, ao
brincar com o filho estava inaugurando a corrida mundial pela extração da borracha21
.
A extração da borracha teve seu auge nas décadas de 1900 e 1910. Nesse período, o
Congo foi um dos maiores exportadores de borracha do mundo e foi por causa da extração da
borracha que ali se cometeu um dos maiores genocídios que a humanidade já teve notícia. A
historiografia indica que aproximadamente 10 milhões de pessoas foram mortas no Congo, no
apogeu do ciclo da borracha. Tal fato mobilizou grande campanha humanitária organizada
pela opinião pública internacional. Foi em 1904, com a publicação do relatório de Roger
Casement, então cônsul britânico no Congo, que a opinião pública mundial conheceu os
horrores advindos do violento processo de extração da borracha naquela propriedade
particular do rei da Bélgica, Leopoldo II (o Congo só se tornou colônia da Bélgica em 1909).
Nunca tantas atrocidades em escala de milhões de mortos tinham até então sido noticiadas.
Escritores de fama mundial, como Artur Conan Doyle e Mark Twain denunciavam e
acusavam a opinião pública mundial pelos milhões de assassinatos promovidos por Leopoldo
II22
.
Uma comissão governamental belga de 1919 calculou que da época que
Stanley começou a alicerçar o Estado de Leopoldo até aquela data, a
população do território fora ‘reduzida pela metade’. O major Charles C.
Liebrechts, alto funcionário da administração do Congo durante a vida quase
20
“Em 1890, na Irlanda, a companhia Dunlop começou a produzir pneumáticos – desencadeando uma verdadeira
febre de bicicletas e dando início a uma nova indústria que se ajustaria como uma luva ao advento do
automóvel” (HOCSCHILD, 1999, p. 169). Sobre a empresa Dunlop-Tyres, em Dublin, Irlanda, consultar:
http://www.dunlop.eu/dunlop_ptpt/about-us/our-history/index.jsp
21
“Entre 1890 e 1910, o preço da borracha a nível mundial quase quadruplicou e milhares de habitantes das
zonas tropicais exploraram as florestas em busca de seringueiras” (ILIFFE, 1999, p. 264).
22
Em 1909, Arthur Conan Doyle escreveu o livro – O crime do Congo, “que vendeu 25 mil exemplares na
semana em que foi lançado e que foi imediatamente traduzido para várias línguas” (...) Conan Doyle “chamava a
exploração do Congo de ‘o maior crime jamais cometido em toda a História da humanidade’” (HOCHSCHILD,
1999, p. 281).
18.
18
toda, chegou a uma estimativa semelhante em 1920. O julgamento de maior
peso, atualmente, é o de Jan Vansina, professor emérito de história e
antropologia da Universidade de Wisconsin e talvez o maior etnógrafo vivo
dos povos da bacia do Congo. Ele baseia seus cálculos em ‘inúmeras fontes
locais de diferentes áreas: padres que notaram seus rebanhos diminuírem,
tradições orais, genealogias e muito mais’. Vansina faz uma estimativa
semelhante: entre 1880 e 1920, a população do Congo foi reduzida ‘no
mínimo pela metade’. Metade de quanto? Somente em 1920 foram feitas as
primeiras tentativas de um recenseamento geral. Em 1924, a população era
de cerca de 10 milhões, número confirmado por contagens posteriores. Isso
significaria, segundo os cálculos, que durante o período de Leopoldo e o que
veio imediatamente depois, o Congo perdeu cerca de 10 milhões de pessoas
(HOCHSCHILD, 1999, p. 242)23
.
Leopoldo II era bastante conhecido no seu tempo, não só pela extensa barba branca
que sempre apresentava nas fotografias, mas pelo status de benfeitor humanitário e
missionário da libertação dos povos africanos que angariou à sua pessoa nos “esforços”
envidados, alguns anos antes, na campanha internacional de organização e criação da
Associação Internacional Africana (AIA), em 1876. Através dela, com a promoção das
viagens de Henry Morton Stanley à África, garantiu o reconhecimento diplomático do Estado
Livre do Congo, em 1885, durante a Conferência de Berlim (1884-1885).
Sob as “barbas” de John Dunlop e de Leopoldo II, o sistema capitalista já
encaminhava de modo irreversível o processo institucional das corporações monopolistas, que
segue comandando os atuais destinos do mundo. A barbárie na África e, principalmente, a
barbárie genocida no Congo, é estrutura fundante da globalização capitalista. A vanguarda
tecnológica do processo produtivo capitalista há mais de um século tem na África um dos
seus epicentros fundamentais. Sem os genocídios impostos contra os africanos, como o que
foi imposto aos povos congoleses nos últimos 130 anos, não existiria a globalização tal como
a conhecemos hoje. A história da barbárie na África é expressão da vanguarda institucional da
globalização do modo de produção capitalista. Se hoje os complexos corporativos comandam
a produção capitalista global para muito além dos poderes políticos dos Estados nacionais, é
fato que tal institucionalidade se desenvolveu historicamente com as tecnologias
administrativas apresentadas pelas colossais companhias majestáticas no processo de
ocupação colonial da África a partir de 1880. O Estado Livre (Independente) do Congo era, na
realidade, uma companhia majestática (neste caso, literalmente de sua majestade, o rei dos
belgas) e não uma colônia submetida à ocupação territorial por uma metrópole europeia.
23
Outro historiador afirma que “calcula-se que entre 1880 e 1920 a população do Congo Belga tenha diminuído
um terço ou metade. Em 1914, estaria a diminuir a 0,25 por cento ao ano” (ILIFFE, 1999, p. 273).
19.
19
Angola, Moçambique, África do Sul, Sudão e quase todos os demais territórios africanos
eram colônias de países europeus. O Congo não tinha esse status, pela sua particularidade
histórica de fundação advêm-se as imensas dificuldades que envolvem hoje a administração
da República Democrática do Congo, país independente a partir de 1960 e que adensa nos
últimos anos, para muitos analistas internacionais, a realidade fática de um Estado Falido24
.
No ano de 2003, estima-se que 1,6 milhão de pessoas tenham morrido na República
Democrática do Congo (RDC) em regiões próximas às fronteiras de países vizinhos (Ruanda
e Burundi, principalmente), num conflito que já é chamado de Guerra Mundial Africana25
.
Esta guerra, que nunca terminou, aconteceu por disputas pelo controle do solo em territórios
na região leste do país (especialmente Kivu-Sul, Kivu-Norte e Katanga). Tais disputas
mantêm uma guerra civil interminável, resultando, de 2003 para cá, em mais de 5,3 milhões
de mortos. É o maior número de vítimas em conflitos armados depois da Segunda Guerra
Mundial. O Congo, depois dos milhares de toneladas de borracha que mandou para o mundo,
matéria-prima que ajudou a Dunlop-Tyres a se tornar uma corporação mundial, é hoje cenário
de atrocidades de uma guerra que envolve interesses diretos de vários conglomerados
internacionais (especialmente aqueles envolvidos na produção industrial de telefonias móveis)
em disputa pelo controle de extração e comércio de alguns dos metais-minerais mais
importantes para o funcionamento de qualquer aparelho eletrônico que use baterias portáteis,
entre eles, o colton (colômbio-tantálio), que tem no solo daquele país praticamente todas as
reservas mundiais. Todas as baterias dos celulares utilizam-se do colton26
, além do nióbio
(também extraído no Congo). As reservas minerais do Congo costumam ser avaliadas em
trilhões de dólares, contudo, o PIB per capita do país é o mais baixo do mundo: 300 dólares
ao ano27
.
Há cerca de 130 anos que a história do Congo está diretamente relacionada à
processualidade global do capitalismo. A história do país, desde sua formação como Estado
Livre do Congo, em 1885, tem sido um dos emblemas máximos da barbárie capitalista.
24
Sobre a ausência absoluta de instituições estatais de regulação, e sobre o uso que a Ciência Política dá ao
conceito – Estado Falido, consultar SILVA (2011).
25
Utilizo-me do termo, conforme SILVA (2011).
26
Entre os inúmeros estudos que demonstram essa conexão da extração dos minérios no Congo com o
financiamento terrorista promovido por complexos empresariais globais, que vitima milhões de pessoas,
recomendo vivamente estes dois: o primeiro produzido pela Global Witness, que não posso aqui descrever em
maior detalhe: file:http://www.globalwitness.org/sites/default/files/pdfs/report_fr_final_0.pdf e este outro,
produzido pela International Alert: http://www.international-
alert.org/sites/default/files/publications/Natural_Resources_Jan_10.pdf
27
Os relatórios de investigação da Global Witness são de consulta obrigatória para se perceberem os crimes
econômicos de grandes corporações não apenas no Congo, mas em todo o continente africano. Ver o site:
http://new.globalwitness.org/
20.
20
Nasceu, repito, como um enclave privado sem um Estado europeu a comandar-lhe o destino,
mas uma propriedade que se subdividiu em várias propriedades de capitais privados (as
Companhias). Nasceu como um “Estado Livre” e, com a morte de Leopoldo II28
, por herança,
em 1909, passou a ser colônia da Bélgica, tornando-se um país independente em 1960, tendo
Patrice Lumumba como o primeiro-ministro da República Democrática do Congo. Patrice
Lumumba foi assassinado em 17 de janeiro de 1961 por comandos terroristas financiados
pelos governos da Bélgica, dos EUA e da África do Sul29
. O assassinato levou ao poder um
dos grandes opositores de Lumumba, Moise Tshombé, político ex-separatista da província de
Katanga. Mais de 200 mil pessoas foram assassinadas de 1962 a 1965 numa violenta guerra
civil para a afirmação do novo governo. Tshombé foi deposto em 1965. E de 1965 a 1997, o
Congo e o mundo conheceram a versão africana de Leopoldo II: Mobutu Sese-Seko. Com
Mobutu, o Congo (Zaire) foi saqueado como nunca nenhuma outra nação já tivesse sido30
.
Com Mobutu, instituiu-se o regime político de uma autocracia cleptocrática que destruiu por
completo o país. Mobutu abandonou o poder em 1997, enfrentando uma guerra civil desde
1996, que acabou por levar ao poder um ex-guerrilheiro maoísta (na década de 1960), Laurent
Kabila, que no fim da década de 1970, abandonando o ideário maoísta, se tornara um
importante empresário no ramo de ouro e marfim. Em 1997, com amplo apoio internacional,
foi o principal responsável pelo fim do governo de Mobutu – “avergonha da África” (o
regime governamental de Mobutu Sese-Seko manteve-se ao longo de 32 anos) (SILVA, 2011,
p. 98).
A seguir, apresento uma brevíssima descrição da formação histórica das condições
gerais da exploração capitalista no Estado Livre do Congo centrada na extração da borracha e
28
“Leopoldo II fundou, não como rei, mas como indivíduo privado, um estado cujas fronteiras conseguiu que as
potências reconhecessem. Em consequência disso, as colônias francesas e portuguesas na costa foram impedidas
de expandir-se para o interior, seu acesso sendo bloqueado pelo recém-criado Estado Livre do Congo, mais
tarde, o Congo Belga, e, por fim, Zaire, o segundo maior estado da África. Esse extraordinário acontecimento
deu-se como resultado das obsessões, ambições e gênio político de apenas um homem, o rei Leopoldo II da
Bélgica” (WESSELING, 1988, p. 86). Ressalve a qualificação retórica do autor frente a Leopoldo II, é óbvio que
nada na História se define pelas “ambições e gênio político” de um homem, mesmo que esse fosse o rei dos
belgas. Note, contudo, que o livro de Wesseling é um clássico de leitura obrigatória.
29
Sobre a independência do Congo, o governo de Lumumba e o seu assassinato, consultar o livro de WITTE
(2001), amplamente reconhecido como o melhor estudo já feito sobre o assunto. A descrição da última hora de
vida de Lumumba antes do seu fuzilamento junto a uma árvore em algum lugar na província de Katanga (região
que era a base política de Tchombé, um dos patrocinadores do assassinato e que governou o Congo até 1965
quando foi deposto por Mobutu) caracteriza como a barbárie no Congo é uma estrutura permanente (Ver
WITTE, 2001, p. 304-307). Valério Zurlini, um dos grandes cineastas italianos do século XX, fez um filme
extraordinário sobre o assassinato de Lumumba – Sentado à sua direita (1968), com Woody Strode (o ator negro
que Sérgio Leone imortalizou no duelo inicial, na estação de trem, no filme – Era uma vez no Oeste [1968]),
interpretando Patrice Lumumba.
30
Para uma descrição do governo de Mobutu Sese-Seko e da política congolesa após independência (1960) aos
dias atuais, consultar o excelente trabalho de SILVA (2011).
21.
21
o impacto desse processo produtivo junto aos povos congoleses, e com isso encerro este
capítulo.
22.
22
3.1. O “horror”31
capitalista aterroriza o Congo
Figura 02 – Trabalhadores congoleses na extração do látex. Fonte: Google Imagens.
No dia 30 de setembro de 1886, na sala de banquetes do Grand Hotel de Estocolmo,
Suécia, numa sessão solene da Sociedade Antropológica e Geográfica Sueca, foram lidos os
relatórios de três oficiais suecos que tinham trabalhado no Congo do Rei Leopoldo II. Não
houve objeção alguma ao que foi narrado, muito ao contrário, os autores foram incensados
por todos os presentes. Os três relatórios foram publicados em 1887, num livro de título Três
31
Tornou-se clássica uma fala do personagem Kurtz (“O horror! O horror!”), que Joseph Conrad imortalizou no
livro – Coração das Trevas, para caracterizar os horrores do colonialismo no Congo; essa mesma fala também
foi imortalizada pelo Kurtz (Marlon Brando), de Francis Ford Coppola, no filme Apocalypse Now (1979).
23.
23
anos no Congo. Um dos oficiais suecos, o tenente Pagels, conforme o que descreve Lindqvist
(2005), tinha sido aconselhado por um viajante a levar para o Congo um bom chicote e que
fizesse dele o seu melhor amigo, de preferência um chicote de pele de hipopótamo curtida.
Pagels, depois de três anos no Congo, concluía que a moralidade, o amor e a amizade eram
coisas que não se encontravam em nenhum “selvagem” daquele lugar, pois, concluía, “o
selvagem só respeita a força bruta. Considera um comportamento amigável como uma
estupidez. Por conseguinte, não se deve nunca demonstrar amizade a um selvagem”
(LINDQVIST, 2005, p. 36). E o senhor Pagels disse mais:
Era uma tarefa gigantesca a que o jovem Estado do Congo tomara a si, para
a grande empresa de civilização ser coroada de vitória, que a (...) benção do
Senhor [seja dada] para o nobre e abnegado amigo da humanidade, o
príncipe de ideias elevadas, o soberano do Congo, sua Majestade Leopoldo
II (apud LINDQVIST, 2005, p. 36-37).
O tenente Pagels não estava sozinho, a opinião pública mundial dizia o mesmo do rei
dos belgas, todos aplaudiam os esforços desse “abnegado amigo da humanidade” em dar ao
Congo os benefícios da civilização. O êxito diplomático na Conferência de Berlim (1884-
1885) na aprovação da criação do Estado Livre do Congo coroava uma intensa campanha em
justificar seu controle sobre aquela região da África, como um sacerdócio da civilização
frente ao mundo de “selvagens” do tenente Pagels. Desde a criação, em 1876, da Associação
Internacional Africana (AIA), Leopoldo II envidava esforços para ter a sua “colônia”
particular. O reconhecimento diplomático de 1885 foi pela criação de um Estado
Independente e não de uma colônia. Lobistas a soldo do rei atuaram por anos nos bastidores
da diplomacia internacional pelo reconhecimento desse propósito, especialmente junto ao
governo dos EUA, o primeiro país que reconheceu o Congo como um Estado (propriedade)
do rei belga (LINDQVIST, 2005; BRUNSCHWIG, 1993; HOCHSCHILD, 1999;
WESSELING, 1998; HERNANDEZ, 2005).
Leopoldo II gastou muito dinheiro para financiar o projeto de conquista do Congo por
vias diplomáticas e com amplo apoio da opinião pública internacional. Apresentou-se desde
1876 como um missionário da civilização. A sua proposta era tirar o Congo das trevas. Com a
ajuda de um emblemático personagem, Henry Morton Stanley32
, justificou-se legalmente
32
Henry Morton Stanley esteve no Congo a serviço do rei belga em duas expedições realizadas entre 1879 e
1884. O trabalho de Stanley está descrito em detalhe no livro de Hochschild (1999, p. 31-177). Em Dugard
(2004) encontra-se uma detalhada descrição da primeira grande expedição (1869) de Stanley à África Central
quando procurava David Livingstone que viajara a procura da nascente do rio Nilo. Essa primeira viagem de
Stanley deu-lhe fama internacional e o seu diário de viagem tornou-se um dos livros mais lidos naqueles anos.
Há uma versão adaptada, quase romanceada desse diário, elaborada por Eger (s/d). Sobre os contratos de Stanley
com os chefes tribais no Congo, consultar também Wessling (1998, p. 83-147).
24.
24
como o senhor do Congo através de 450 contratos com chefes tribais que lhe concediam a
soberania sobre as terras dos povos que comandavam. Uma ficção jurídica que Stanley
conseguiu arranjar para o rei com as assinaturas dos chefes dos sobas africanos. Com algumas
garrafas de bebidas alcoólicas, algumas peças de pano, e outros pequenos objetos,
presenteadas a cada contrato, Stanley conseguiu obter as centenas de assinaturas que
precisava – um Xis no final do documento – dos sobas africanos que não tinham a mínima
ideia do que significava ser a posse soberana sobre as terras ou qualquer outra definição de
propriedade. Para os sobas, as terras onde viviam com o seu povo pertenciam ao seu povo
pelo seu uso e não como uma propriedade. Quando Stanley e seus oficiais terminaram o
trabalho, a bandeira azul com a estrela dourada tremulava sobre aldeias e territórios de mais
de 450 chefes tribais da bacia do Congo, segundo o próprio Stanley (HOCHSCHILD, 1999, p.
81). Os chefes tribais entregavam as suas terras a Leopoldo. Nessa expedição, Stanley
conquistou o Congo para o rei Leopoldo II com um “exército privado, equipado com mil
rifles de tiro rápido, uma dúzia de pequenos canhões Krupp e quatro metralhadoras”. Eram
mercenários de Zanzibar quem compunham esse exército (HOCHSCHILD, 1999, p. 81)33
.
Com os 450 contratos de soberania concedida, o rei “provou” perante os participantes
da Conferência de Berlim o fato de já ser o soberano dos territórios das tribos-nações
congolesas e que não haveria, portanto, motivos para o não reconhecimento das nações ali
reunidas do Estado Livre (Independente) do Congo. O chanceler alemão, Otto von Bismarck
foi um dos primeiros a apoiar e aprovar a autoridade do rei sobre o Congo. Os ingleses
relutaram (porque viam naquela iniciativa uma ameaça à sua expansão imperialista em
África), mas também acabaram por reconhecer o novo Estado. Uma vitória consagradora.
Apesar disso, Leopoldo II tinha problemas com a nação, estava sem dinheiro e não havia
naquele ano de 1885 e nos próximos nada que pudesse resolver os problemas de investimento.
Os pneumáticos do senhor John Dunlop mostraram-lhe as alternativas. No começo da década
33
Hochschild faz a seguinte indagação: “Será que os chefes de Ngombi e Mafela, por exemplo, sabiam com o
que estavam concordando, a 1° de abril de 1884?” O autor responde citando alguns trechos de um desses
tratados que deram a soberania do Congo a Leopoldo. Os termos dos tratados com esses chefes definiam que
“em troca de ‘uma peça de tecido por mês para cada um dos chefes que assinam o presente documento, além do
tecido entregue ora em mãos’, eles prometiam ‘por livre e espontânea vontade, em nome próprio, de seus
herdeiros e sucessores (...) ceder, para sempre, à supracitada Associação, a soberania e todos os direitos
soberanos e governantes sobre todos os seus territórios (...) e a contribuir, com trabalho ou similar, com
quaisquer obras, melhorias ou expedições que a dita Associação haja por bem executar a qualquer momento e
em qualquer parte dos ditos territórios’” (HOCHSCHILD, 1999, p. 82).
25.
25
de 1890, o Congo já era um dos maiores exportadores de borracha vermelha do mundo.
Centenas de chicotes de pele de hipopótamo já zuniam no meio das matas congolesas34
.
Figura 03 – Um soldado da Force Publique preparando-se para fazer uso do chicote. Fonte: Google
Imagens.
Numa descrição precisa, Vargas Llosa sintetiza o empreendimento capitalista no
Congo promovido por Leopoldo II:
34
Mario Vargas Llosa, no seu monumental romance-biografia de Roger , assim descreve o sentido e o efeito do
chicote no Congo de Leopoldo II: “Quem teria inventado esse delicado, manuseável e eficaz instrumento para
espicaçar, assustar e castigar a indolência, a rusticidade ou a estupidez desses bípedes cor de ébano que nunca
faziam as coisas como os colonos esperavam (...)? Diziam que o inventor tinha sido um capitão da Force
Publique chamado monsieur Chicot, um belga de primeira leva, homem claramente prático, imaginativo e dotado
de agudo senso de observação, já que percebeu antes de qualquer outro que podia fabricar com a duríssima pele
de hipopótamo um chicote mais resistente e destrutivo que aqueles feitos de tripa de equinos e felinos, uma corda
sarmentosa capaz de provocar mais ardência, sangue, cicatrizes e dor que qualquer outro açoite e, ao mesmo
tempo, ligeiro e funcional, pois, engastado num pequeno cabo de madeira, capatazes, quarteleiros, guardas,
carcereiros e chefes de grupo podiam enrolá-lo na cintura ou pendurá-lo no ombro quase sem sentir que o
portavam, de tão leve. Sua simples posse pelos membros da Force Publique tinha um efeito intimidatório: os
olhos dos negros, das negras e dos negrinhos se arregalavam quando o reconheciam (...) imaginando que, no
primeiro erro, tropeço ou falha, o chicote rasgaria o ar com o seu inconfundível assobio e cairia nas suas pernas,
nádegas e costas, fazendo-os gritar” (LLOSA, 2011, p. 47).
26.
26
Com o regime de concessões, as companhias foram se espalhando pelo
Estado Independente do Congo em ondas concêntricas, entrando cada vez
mais na imensa região banhada pelo Médio e o Alto Congo e sua teia de
afluentes. Em seus respectivos domínios, essas companhias gozavam de
soberania. Além da proteção da Força Pública, contavam com suas próprias
tropas, sempre comandadas por algum ex-militar, ex-carcereiro, ex-detento
ou foragido, alguns dos quais ficariam célebres em toda a África por sua
ferocidade. Em poucos anos o Congo se transformou no maior produtor
mundial de borracha que o mundo civilizado exigia cada vez em maior
quantidade para fazer suas carroças, automóveis e trens andarem, além de
todo o tipo de sistemas de transporte, vestuário, decoração e irrigação
(LLOSA, 2011, p. 46).
Para explorar o Congo, o rei, que administrava a sua propriedade nos fundos do
palácio real, na Rua Bréderode, em Bruxelas, pedia empréstimos ao próprio governo belga e,
como nunca publicava o orçamento do seu Congo-Empresa, protelava ao máximo o
pagamento da dívida. E quando pagava alguma coisa era sempre com números contábeis
adulterados (HOCHSCHILD, 1999, p. 170-179)35
. Ao contrário das manobras contábeis de
Leopoldo II, as Companhias majestáticas que exploravam o Congo ofereciam dados que
ajudam a historiografia a calcular os investimentos envolvidos no país. O rei belga, ao fazer
as concessões de soberania às companhias, obtinha metade dos lucros das mesmas. Uma das
Companhias mais importantes do Congo foi a ABIR – Anglo-Belgian India Rubber and
Exploration Company (Companhia Anglo-Belga de Exploração de Borracha das Índias).
Afirma Hochschild que a ABIR, em 1897,
gastou 1,35 franco por quilo para colher borracha no Congo e transportá-la
para a sede da companhia em Antuérpia – onde era vendida por preços que
chegavam às vezes a 10 francos por quilo, um lucro de mais de 700%. Por
volta de 1898, o preço do estoque da ABIR era quase trinta vezes maior do
que o de seis anos antes. Entre 1890 e 1904, o total dos lucros obtidos com a
borracha do Congo aumentou 96 vezes. Na virada do século, o Congo tinha
se tornado, de longe, a colônia mais lucrativa da África. Os lucros vinham
rápidos porque, exceto pelos custos do transporte, a colheita da borracha não
35
“Uma das vantagens de se controlar o próprio país é que você pode emitir títulos. Isso acabaria por se tornar
uma fonte de lucros quase tão farta para Leopoldo quanto a borracha. Tudo somado, o rei emitiu títulos no valor
de mais de 100 milhões de francos, mais ou menos meio bilhão de dólares em dinheiro atual. Alguns títulos ele
vendeu; alguns deu a favoritos seus; outros manteve em sua carteira pessoal; e, outros ainda usou para pagar as
obras públicas que mandou executar na Bélgica. Uma vez que os títulos tinham prazos de até 99 anos, Leopoldo
sabia que pagar o principal não seria problema seu. Supostamente, o dinheiro dos títulos destinava-se ao
desenvolvimento do Congo, mas muito pouco foi gasto ali” (HOCHSCHILD, 1999, p. 179). Note que
Hochschild define o Congo de Leopoldo II ora como um país, ora como uma colônia, trata-se de uma imprecisão
de termos que repete ao longo do seu livro. O Estado Livre do Congo, repito, não era um país (e nem uma
colônia), mas um Estado-Empresa soberano. As Companhias concessionárias tinham a sua aferição de mercado
realizada na Bolsa de Valores de Londres e seria através da valorização das ações das mesmas que o rei
controlava a contabilidade integral dos investimentos. Vê-se com isso como efetivamente o rei belga já
administrava o Congo como uma holding.
27.
27
precisava de fertilizantes e não havia nenhum investimento de capital em
equipamentos caros. Exigia apenas braços (HOCHSCHILD, 1999, p. 171)36
.
A Força Pública (Force Publique) foi o aparato militar que Leopoldo II organizou para
garantir a conquista econômica do Congo. Sem esse exército privado, dificilmente se
obteriam os resultados advindos. A Força Pública, fundada em 1888, era composta por tropas
mercenárias, uma máquina militar comandada por assassinos. Essa instituição foi o emblema
do terror genocida imposto às populações nativas congolesas. Foi organizada para fazer
funcionar o regime de trabalho forçado, que descrevo adiante. Em 1900, essa força de tropas
mercenárias tinha mais de 19 mil homens, e foi durante muito tempo a força militar mais
poderosa da África. Era uma “força antiguerrilheira, um exército de ocupação e uma força
policial de trabalho”, espalhava-se pelo interior do Congo em guarnições compostas por
algumas dezenas ou centenas de soldados nativos comandados por um ou dois brancos; no
ano de 1900 existiam 183 e em 1908 já eram 313 guarnições (HOCHSCHILD, 1999, p. 133-
138). Vários oficiais da Força Pública tornavam-se depois funcionários das companhias
majestáticas, caso, por exemplo, de Léon Rom que se notabilizou como um dos maiores
assassinos que a África já teve. Conhecido como o “carniceiro da Força Pública” por causa do
seu hábito de colecionar cabeças decepadas de congoleses, em 1908 tornou-se o inspetor-geral
de uma das mais importantes companhias no Congo: a Companhia do Kasai37
(HOCSCHILD,
1999, p. 270).
Mas da Força Pública também se definiram alguns que se fizeram líderes de revoltas
contra o regime de trabalho forçado. Houve oficiais que se rebelaram contra o sistema, entre
eles, o sargento Kandolo que, em 1895, contra o abuso dos castigos impostos às populações e
contra os abusos dos oficiais europeus aos seus subordinados africanos, liderou um motim
contra o seu comandante de guarnição, Mathieu Pelzer, que apreciava castigar com chicotadas
os seus próprios subordinados. Pelzer foi morto por Kandolo, que dali então passou a liderar
36
Leopoldo II emitiu um “decreto em 29 de setembro de 1891 em que concedia aos seus representantes no
Congo o monopólio do comércio da borracha e do marfim. Pelo mesmo decreto, os indígenas eram obrigados a
fornecer borracha e mão-de-obra, o que na prática significava que não eram necessárias quaisquer transacções”,
e aqueles que se recusassem tinham “incendiadas as aldeias, assassinados os filhos e cortadas as mãos”
(LINDQVIST, 2005, p. 44).
37
Joseph Conrad, em Coração das Trevas (1902), descreve o jardim da residência de Kurtz ornado com crânios
presos a estacas, uma evidente remissão aos métodos de Léon Rom, sobre os quais Conrad tinha conhecimento.
Exemplos similares às práticas de Léon Rom não faltavam. Léon Fievez, também um chefe de posto da Força
Pública, afirmava que “qualquer aldeia que se recusasse a fornecer borracha era completamente varrida do
mapa”. E quando o posto precisava de alimentos, como mandioca e peixe, e se as aldeias vizinhas não
fornecessem imediatamente os alimentos de que precisava, o mesmo Fievez tinha por hábito proceder com o
seguinte método: “Eu fazia guerra contra eles. Um exemplo bastava: cem cabeças cortadas fora e a estação
voltava a ser abastecida com fartura. Meu objetivo final é humanitário. Eu mato cem pessoas, mas isso permite
que outras quinhentas vivam” (apud HOCHSCHILD, 1999, p. 176-177). Obviamente que as quinhentas pessoas
que tinham o direito de viver eram os soldados do posto da Força Pública que esse senhor comandava.
28.
28
uma revolta militar de grandes proporções contra as tropas da Força Pública, luta que se
estendeu durante treze anos, até 1908 (HOCHSCHILD, 1999, p. 138). E ressalve-se que o
levante de Kandolo na região do Kasai, no centro-sul do Congo, tinha como objetivo maior “a
expulsão dos europeus e a libertação do Estado Livre do Congo” (ISAACMAN; VANSINA,
1999, p. 206)38
. O motim de Kandolo antecipava as lutas anticolonialistas que marcaram o
século XX africano.
Guarnições da Força Pública foram espalhadas por todo o Congo e quase sempre
trabalhando a favor da repressão exigida pelas Companhias concessionárias, sendo que essas
também tinham as suas próprias milícias, referidas internamente como as “sentinelas”. O
controle das Companhias sobre os seus milicianos era similar ao controle que os comandantes
da Força Pública impunham aos seus soldados. Mais uma vez, Adam Hochschild define com
detalhe os procedimentos desses controles.
Para cada cartucho entregue a um soldado, passaram a exigir provas de que a
bala foi usada para matar alguém, e não ‘desperdiçada’ com caça ou, pior
ainda, economizando para algum possível motim. E a prova mais comum era
a da mão direita de um cadáver. De vez em quando ela não vinha de um
cadáver. ‘Às vezes’, contou um oficial a um missionário, os soldados
‘usavam o cartucho caçando um animal’; depois cortavam a mão de um
homem vivo. Em algumas unidades militares, havia inclusive o ‘guardador
de mãos’; seu trabalho era a defumação (HOCHSCHILD, 1999, p. 175-176).
O casal John e Alice Harris, missionários ingleses, estabeleceram-se no Congo em
1903. A sua presença no distrito de Baringa devia-se àquilo que Leopoldo II publicizava
havia anos: tirar o Congo das trevas através da ação civilizadora e obreiros evangelizadores.
Mas perceberam imediatamente que estavam num inferno. Depararam-se com o genocídio das
populações indígenas promovido pelos que organizavam as condições de trabalho na extração
da borracha; depararam-se com um regime bárbaro de trabalho forçado que submetia milhares
de congoleses a mutilações permanentes. Alice Harris era fotógrafa e são dela as primeiras
imagens do horror no Congo39
(Figuras 4 e 5). Com essas imagens amplamente divulgadas, a
grande farsa humanitária de Leopoldo II caiu por terra em definitivo. E não foram apenas as
fotografias de Alice Harris que documentaram o genocídio no Congo, reportagens, cartas e
livros de memórias de muitos dos missionários que lá estiveram registram o sistema de terror
38
“Entre 1885 e 1905, mais de uma dúzia de grupos teoricamente ‘subjugados’ do baixo Congo e do Congo
central se revoltou. Entre eles, os mais bem sucedidos foram os Yaka, que combateram eficazmente os europeus
durante mais de dez anos, antes de serem vencidos em 1906, os Buja e os Boa, que se revoltaram no fim do
século contra o trabalho forçado nas plantations de borracha. No apogeu das lutas, os rebeldes chegaram a
mobilizar mais de 5 mil trabalhadores, que empreenderam demorada guerrilha com bases profundamente
entranhadas na floresta” (ISAACMAN; VANSINA, 1991, p. 194).
39
Sobre o impacto das fotografias de Alice Harris, ver: http://iconicphotos.wordpress.com/tag/alice-and-john-
harris/
29.
29
ali padronizado quase que em escala industrial. Um relatório marcou época em 1904, o do
cônsul britânico na cidade de Boma, então capital do Estado Livre do Congo.
Figura 04 – As mãos decepadas no Congo. Foto de Alice Harris. Fonte: Google Imagens.
Em agosto de 1904 foi publicado na Inglaterra, nos anais do Parlamento britânico, o
relatório de Roger Casement40
. Com essa publicação, os acontecimentos do Congo fizeram-se
40
Entre tantos europeus que lutaram contra o genocídio do Congo, Roger Casement foi o personagem principal.
Fazendo uso da sua autoridade como cônsul conseguiu visitar inúmeras povoações ao longo do Rio Congo e
constatar o morticínio que as tropas da Força Pública de Leopoldo II impunham às populações que resistiam ao
trabalho forçado na extração da borracha. Casement já estivera no Congo. Em 1890, esteve em Matadi
trabalhando como supervisor para a Companhia dos Caminhos de Ferro do Congo e lá conheceu Joseph Conrad,
que naquele ano trabalhou seis meses como comandante de um barco que navegava nas águas do Congo (de
Matadi a Leopoldville [atual Kinshasa]). Conrad registrou o encontro com Casement (no dia 13 de junho de
1890) no seu Diário sobre o Congo (CONRAD, 2000, p. 150). Dessa experiência é que Conrad escreveria
alguns anos depois o livro – Coração das Trevas (1902), que publicara anteriormente como uma série de
capítulos num jornal inglês. O registro de Casement tinha outro status: era um relatório de um oficial de governo,
o impacto institucional das denúncias obrigaria o governo britânico a cobrar explicações da barbárie junto aos
responsáveis. Por causa desse seu trabalho, o governo britânico deu-lhe o título de Sir Roger Casement.
Casement esteve no Brasil, como cônsul, na cidade de Santos, e depois na Amazônia, acompanhando o ciclo da
borracha que ali se desenvolvia. Casement era um fervoroso nacionalista irlandês. Com a Primeira Guerra
Mundial tentou articular a independência da Irlanda contra a Inglaterra, numa aliança com a Alemanha. Foi
preso na Inglaterra por traição e conspiração. Em 1916, foi julgado e enforcado pelo governo inglês, mas não
apenas pela traição política a favor dos irlandeses, foi enforcado sob ampla humilhação pública porque a polícia
encontrara os seus diários pessoais, nos quais descrevia as suas experiências homossexuais. Ser acusado de
30.
30
notícia definitiva no mundo inteiro. O rei belga ainda se mobilizou por algum tempo na
tentativa de levar ao descrédito o documento de Casement, mas a situação era irreversível: o
genocídio do Congo era notícia internacional.41
Nas anotações do diário de Casement no Congo encontram-se em detalhe os passos da
sua investigação sobre o sistema de extração da borracha. Escrito durante o ano de 1903,
percebe-se nas notas do diário, com evidência contundente, como o sistema de trabalho
forçado àquela altura, com pouco mais de uma década de exploração da borracha, promovia o
genocídio dos congoleses. Aqui, alguns trechos do diário de Casement e a aguda percepção
comparada do extermínio em realização:
“22 de agosto: Bolongo completamente morta. Lembro-me bem dela, em
novembro de 1887, cheia de gente, agora, catorze adultos no total. Diria que
estão todos em petição de miséria, queixando-se amargamente do imposto da
borracha (...) 6h30 passei por Bokuta, inteira deserta. (...) Mouzede diz que
as pessoas foram levadas à força para Mampoko. Pobres almas infelizes.
“29 de agosto: Bongandanga (...) vi ‘Mercado’ de borracha, nada além de
armas – cerca de vinte homens armados. (...) Pop. 242 homens com
borracha, todos vigiados como condenados. Chamar isso de ‘comércio’ é
mentira deslavada.
“30 de agosto: dezesseis homens, mulheres e crianças de uma aldeia (...)
amarrados, perto da cidade. Abominável. Os homens foram presos, as
crianças foram soltas com minha intervenção. Abominável. Sistema
vergonhoso, abominável.
“9 de setembro: 11h10 passei por Bolongo de novo. Os pobres coitados
saíram nas canoas para implorar a minha ajuda”. (citado à p. 212).
Enfim, o que se sistematizou no capitalismo das companhias majestáticas do Congo do
rei belga foi um regime genocida de apresamento do trabalho forçado. Não propriamente um
regime escravista, pois isso era impossível, dado o fato que para obter a borracha os
homossexual na Inglaterra de então era um crime gravíssimo. Um detalhe a considerar: um abaixo-assinado
internacional foi feito pela libertação de Casement; muitos intelectuais o assinaram, mas Joseph Conrad recusou-
se a assiná-lo. O maior escritor de língua inglesa, depois de Shakespeare, que era russo-polonês de nascimento e
britânico por opção, viu como uma afronta o nacionalismo de Casement. O escritor peruano Mario Vargas Llosa
publicou um romance excepcional sobre a notável trajetória de Roger Casement – O sonho do celta (2011), um
livro que todos deveriam ler. O famoso relatório de Roger Casement pode ser consultado na sua íntegra neste
link: https://ia601006.us.archive.org/14/items/CasementReport/CasementReportSmall.pdf
41
Na mesma ocasião da divulgação do relatório Casement, Edmund Morel organizava uma associação
(Associação para a Reforma do Congo) para denunciar os crimes de Leopoldo II. Foi com base nos escritos de
Morel que Conan Doyle publicou o livro Crime no Congo em 1909. Em setembro de 1906, o famoso escritor
norte-americano, Mark Twain, liberal anti-imperialista, depois de conhecer e apoiar entusiasticamente o trabalho
da Associação de Morel, publicou o ensaio político: Solilóquio do Rei Leopoldo: a defesa do governo do Congo.
Esse documento já estava escrito em outubro de 1904, mas foi censurado à publicação pela sua própria editora.
Esse documento pode ser consultado em: TWAIN, 2003, p. 263-280. A divulgação da barbárie no Congo
acabava por atingir os valores de mercado e investimentos das Companhias Majestáticas do Congo na Europa.
Como as Companhias concessionárias eram avaliadas através da bolsa de valores (Londres), relatórios ou artigos
contra o abuso e a escravidão, vindos a público, como os de Casement ou os de Sheppard (um destacado
jornalista norte-americano), faziam as ações cair no seu valor. Escreve Hochschild que por causa de uma
reportagem de Sheppard em 1908, “o preço das ações da Compagniedu Kasai despencou” (HOCHSCHILD,
1999, p. 271).
31.
31
trabalhadores espalhavam-se pelas matas sem qualquer vigilância. O que os obrigava a
trabalhar era o terrorismo do apresamento das famílias desses trabalhadores. Impunham-se
cotas em quilos de borracha por prazos de trabalho em troca da liberdade dos familiares.
Conforme o diário de um chefe da Força Pública, Louis Chaltin (1892), citado por Hochschild
(1999), o comum era os oficiais e soldados da Força Pública chegarem de canoa numa aldeia;
assim que os viam chegar, os habitantes que podiam “fugiam na hora; os soldados eram então
desembarcados e começavam a pilhagem”, subtraindo os mantimentos do povoado. Depois
“atacavam os nativos até conseguirem prender as mulheres; essas mulheres eram mantidas
como reféns” até que o chefe do distrito (o soba) conseguisse o número de quilos de borracha
que lhe era pedido, organizando ele a quantidade de borracha que cada homem da aldeia
deveria arranjar, isso em prazos de uma ou duas semanas. Entregue a borracha, “as mulheres
eram então vendidas de volta a seus donos (sic) por um par de cabras cada”, e assim era feito
de “aldeia em aldeia, até que a quantidade requisitada de borracha tivesse sido coletada”
(apud HOCHSCHILD, 1999, p. 172). A violência do apresamento nas aldeias seria algo
equivalente a um imposto pré-palhota, que na falta de melhor termo chamarei aqui de
imposto de apresamento. Através da violência, companhias como a ABIR definiam como
meta produtiva para cada aldeia dentro do seu território que a cada 15 dias deveria entregar de
três a quatro quilos de borracha por homem adulto (HOCHSCHILD, 1999, p. 172).
E com isso posso afirmar que com a violência e terror do sistema de tributação por
apresamento, as companhias no Congo tinham resultados equivalentes aos impostos de
palhota e de capitação. A violência primitiva, bestial, da Força Pública e das “sentinelas” das
companhias fazia da barbárie colonial no Congo um caso único no continente africano. E faz
todo o sentido, então, o que Roger Casement descrevia no seu diário em 1903: o
desaparecimento de populações inteiras deu-se porque ou foram dizimadas pela violência da
Força Pública ou evadidas das aldeias de origem para fugir do apresamento e do consequente
trabalho compulsório.
Um detalhe final: a partir de 1904, a campanha internacional contra as atrocidades no
Congo promovidas pelo sistema administrativo do rei Leopoldo II foi contundente. Muitos
intelectuais, como Edmund Morel, envidaram todos os seus esforços contra o rei belga, mas
tinham em mente que “não havia nada de errado com o colonialismo, desde que sua
administração fosse equilibrada e justa” (HOCHSCHILD, 1999, p. 219). Enfim, a perspectiva
historiográfica que me parece correta, nestes breves estudos de caso que apresentei em linhas
bastante gerais do colonialismo em África, só pode ser a dos africanos que lutaram contra as