A cidade Liberal. Da revolução à estabilização do regime
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História do Porto. Volume 10: A cidade liberal. Da revolução à estabilização do
regime
Book · January 2010
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Jorge Fernandes Alves
University of Porto
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5 | A CIDADE LIBERAL
As três décadas que decorreram, grosso modo, entre 1820-1850 representam um tempo muito par-
ticular no Porto, com a cidade a tornar-se palco das principais iniciativas que conduziram à implan-
tação do liberalismo em Portugal e, posteriormente, à sua consolidação.
Trata-se de uma fieira de acontecimentos, de enredo complexo, num alongado folhetim típico do
romantismo, por onde perpassam opções políticas inovadoras (com algumas ilusões), traições e dis-
sidências protagonizadas por determinadas fracções sociais. Episódios de uma guerra civil (decla-
rada e/ou latente) que percorreu todo o período e que a cidade teve de suportar, nuns casos por con-
vicção, noutros por arrastamento, sempre em situações de grande sofrimento e risco. Um ciclo
histórico que se iniciou com a revolução liberal de 24 de Agosto de 1820, passou pela dolorosa der-
rota de 1828, incluiu o dramático cerco do Porto, assistiu às desavenças entre setembristas e cartis-
tas e só terminou em 1851, com o golpe militar que permitiu a Regeneração. Acontecimentos que
se inscrevem de forma duradoura no imaginário da cidade como marcadores da sua história e, na
limitação de páginas deste volume, sobrepujam a descrição da vida de trabalho e de consumo que
continuou a pautar o quotidiano dos portuenses.
Cidade segunda, com tradição de insubmissa, afastada da capital, pólo de uma área produtiva de
grande significado, o Porto tornou-se um espaço social e económico propício ao contrapoder.
“Baluarte da liberdade”, “coração do liberalismo” são expressões de uma aura mítica que envolveu
a cidade e que ganhou foros institucionais com o decreto real que lhe conferiu o título de Invicta.
O presente volume procura, ainda que brevemente, delinear essas movimentações que envolveram
e implicaram o Porto, conferindo um protagonismo muito especial à cidade e às suas gentes num
tempo em que a respectiva dinâmica cultural, económica e social se cruza de uma forma determi-
nante com a História de Portugal.
Introdução
8 | HISTÓRIA DO PORTO
A este sentimento de se ver Portugal transformado
em colónia de uma colónia (o Brasil), coisa nunca
antes vista, acrescia o facto de o país estar entregue
a um Conselho de Regência, completamente submisso
ao general Beresford, comandante do Exército,
onde proliferavam oficiais ingleses, humilhando
dessa forma os oficiais portugueses e exaurindo
as finanças públicas.
—
O Porto desenvolveu historicamente um papel
amplo e activo no jogo das trocas internas e
internacionais. O tempo dos Almadas represen-
tou o pulsar do crescimento económico, assis-
tindo-se à multiplicação dos navios em circula-
ção (mais de 400 anualmente), tendo no
comércio com o Brasil e com a Inglaterra os dois
eixos propulsores da dinâmica económica1.
Os alvores do século XIX trouxeram uma pro-
funda turbulência a este centro de prosperi-
dade que o Porto representava, uma vez Portugal
envolvido no processo político revolucionário
que, emergindo em França, alastrou a todo o
mundo ocidental, bem como pelo processo
geral de reorganização do comércio mundial
ditado pela industrialização. O Bloqueio Conti-
nental, com a saída da família real para o Brasil
e concomitante abertura dos portos brasileiros
em 1808, e o Tratado de Comércio e Navegação
com a Inglaterra, em 1810, provocaram danos
irreversíveis. Estava-se, de facto, perante uma
situação de ruptura, com o fim do pacto colo-
nial e do sistema mercantilista e a necessidade
de ajustamento a uma nova política que inse-
risse Portugal na nova economia mundial,
conjuntura que os perdedores encaravam, por
seu lado, como uma situação de hegemonia
económica inglesa e consequente dependência
portuguesa.
Perante os efeitos do tratado comercial de 1810
e, uma vez ultrapassado o tempo crítico das
invasões, verificou-se um tom crescente de crí-
ticas que atribuíam ao tratado todas as respon-
sabilidades pela crise do comércio, da indústria
e da navegação, uma vez que as taxas aduanei-
ras favoreciam a Inglaterra (15%) em relação a
Portugal (16%) e aos outros países (24%). Res-
ponsáveis governamentais tentaram, ao longo
da década, rever o respectivo clausulado, sem
sucesso, mas fazendo aparecer no interior dos
interesses metropolitanos a fractura entre o
sector vinícola (sobretudo o do Douro) e o sec-
tor industrial2.
O fermentar da revolução
Ao descontentamento pela situação económica
juntavam-se as razões políticas ancoradas no
sentimento de orfandade e de periferização
vivido na metrópole perante a ausência da
Corte no Rio de Janeiro, que absorvia largas
rendas e se entretinha a tentar controlar a mar-
gem oriental do rio da Prata e conquistar Mon-
tevideu, mobilizando para o efeito homens e
recursos da metrópole, enquanto aqui se vivia
sob o medo de uma vingança espanhola que
poderia resultar em anexação. A este senti-
9 | A CIDADE LIBERAL
mento de se ver Portugal transformado em
colónia de colónia, coisa nunca antes vista,
acrescia o facto de Portugal estar entregue a um
Conselho de Regência, completamente sub-
misso ao general Beresford, comandante do
Exército de Portugal, onde proliferavam oficiais
ingleses, humilhando dessa forma os oficiais
portugueses e exaurindo as finanças públicas.
Perante a falta de liberdade de imprensa em
Portugal, só os exilados denunciavam a situação
em publicações editadas em Londres, discur-
sando sobre a dependência e a decadência como
crítica às instituições tradicionais. E perspecti-
vavam as possibilidades de mudança na organi-
zação económica, social e política, segundo a
ideologia liberal, enquanto em Portugal se veri-
ficava uma forte repressão contra o jacobi-
nismo (o caso mais saliente foi o enforcamento
do general Gomes Freire de Andrade, em 1817,
na sequência de denúncia de conspiração para o
estabelecimento de um regime parlamentar).
Não faltavam, pois, situações de descontenta-
mento popular potenciadoras das novas ideias
que as invasões tinham ajudado a difundir. Foi
por esta altura que o Porto surgiu activamente
no cenário da fermentação liberal: sublinhe-se
o tradicional cosmopolitismo do Porto e a con-
taminação de ideias avançadas, pois na cidade
viviam numerosos ingleses e franceses, acres-
cendo a influência das frequentes viagens
comerciais ao estrangeiro. E não faltaram os
esforços de organização: “Alguns liberais
tinham em 1818 iniciado no Porto uma associa-
ção, a que deram o nome de sinédrio, destinado
a espreitar atenta a opinião pública, e até a
encaminhá-la a fazer uma mudança de governo
em Portugal, dirigindo os espíritos para as
ideias liberais nas três províncias do Norte do
reino, sendo nisto auxiliados pelos jornais por-
tugueses, que se imprimiam em Londres”3.
Manuel Fernandes Tomás, desembargador da
Relação do Porto, Ferreira Borges, advogado e
secretário da Companhia da Agricultura das
Vinhas do Alto Douro, José da Silva Carvalho,
juiz dos órfãos, e João Ferreira Viana, comer-
ciante, foram os obreiros do núcleo inicial do
Sinédrio, criado em 27 de Dezembro de 1817 e
reunido pela primeira em 22 de Janeiro de
1818, a que outras personalidades se vieram
juntar, num total de 13. Reuniam-se em jantar
a 22 de cada mês em S. João da Foz, debatiam a
situação e o futuro, atentos ao que acontecia
em Espanha, guardando segredo e lealdade,
prontos para conduzirem uma eventual revolu-
ção. Cerca de dois anos se passaram de organi-
zação e aliciação, de divulgação de jornais e
livros proibidos, de relações com personalida-
des civis e militares de vários pontos do Norte e
11 | A CIDADE LIBERAL
D. João VI foi obrigado a regressar do Brasil após a revolução liberal.
Quadro de Domingos Sequeira. Palácio Nacional da Ajuda
de Lisboa e com outras associações secretas.
Refiram-se as reuniões com emissários espa-
nhóis, após a revolta de Cádis (1 de Janeiro de
1820), no seio das tropas que iam partir para a
América Latina e depois replicada noutros pon-
tos, obrigando Fernando VII a jurar a Constitui-
ção de 1812. Revolta idêntica aconteceu em
Nápoles. A rede maçónica, centrada em Espa-
nha, não é dissociável da preparação revolucio-
nária que se fazia no Sul da Europa e em Portu-
gal (incluindo projectos iberistas). Essa
preparação ocorria com maior incidência no
Porto, onde se trabalhava para a “regeneração e
instrução” do país, através do apoio do embai-
xador espanhol, José Maria de Pando, que con-
ferenciava com Manuel Fernandes Tomás e ofe-
recia apoio militar, se necessário, através de
duas divisões militares que estacionariam pró-
ximo da fronteira, a norte e a sul.
O dia 24 de Agosto de 1820
A preparação da revolta beneficiou com a
ausência de Beresford no Rio de Janeiro, desde
9 de Maio de 1820, para dar conta da eferves-
cência que grassava no reino, contaminado
desde a revolta de Espanha. Mas já não desem-
barcou em Portugal (apesar de elevado a mare-
chal e lhe serem conferidos poderes extraordi-
nários). Com efeito, segundo Luz Soriano,
“os trabalhos do sinédrio a nada avultaram
enquanto não apareceu a revolta liberal da
Espanha; e animados como foram os seus mem-
bros, pelo apoio que ela lhes dava, começaram
por chamar ao seu partido alguns dos coman-
dantes da guarnição do Porto, como consegui-
ram, diligenciando fazer o mesmo, quanto ao
comandante da brigada que estava em Braga, o
coronel António Teixeira de Barros, o que tam-
bém alcançaram, não sem terem contra si algu-
mas dificuldades e dúvidas, que para isso
houve. Conseguindo igualmente ganhar o coro-
nel Sepúlveda, comandante de infantaria nº 18,
levantaram finalmente no Porto o grito da
revolta no dia 24 de Agosto de 1820, grito que
as ditas três províncias do Norte prontamente
abraçaram. Nomeou-se portanto um novo
governo, ou junta provisional, que os governa-
dores do reino trataram de hostilizar quanto
puderam, baldando-se tudo quanto para tal fim
puseram por obra. Marchando a junta do Porto
para Coimbra, a esta cidade lhe foi o capitão
Bernardo de Sá Nogueira levar a notícia da
revolta liberal, rebentada em Lisboa no dia 15
de Setembro, facto que lhes abriu a porta da
capital, vindo a entrar nela triunfantes no dia 1
de Outubro, e unindo-se com o governo inte-
13 | A CIDADE LIBERAL
A antiga Praça Nova das Hortas, depois Praça de D. Pedro,
com os velhos Paços do Concelho no lado norte,
cuja demolição permitiu ligar, no princípio do século XX,
a nova Praça da Liberdade à Avenida dos Aliados
rino, eleito popularmente em Lisboa, forma-
ram desde então os dois uma só junta, denomi-
nada junta provisional do supremo governo do
reino”4.
Naturalmente, o processo foi mais complexo.
Inicialmente prevista para 29 de Junho, a revo-
lução malograra-se por desentendimento entre
os chefes militares, mas foi possível recuperar
forças e conciliar os intervenientes sobre a pro-
clamação a fazer. O primeiro texto de Fernan-
des Tomás, de feição radical, foi rejeitado pelo
general Silveira, que só aceitava assinar um
texto que propusesse a criação de um conselho
militar e convocação da Câmara Municipal, a
qual indicaria os nomes para uma junta de
governo, cuja única missão seria representar ao
rei no sentido de remediar os males da pátria e
voltar ao reino. O compromisso foi assegurado
por novo texto veiculado por Ferreira Borges,
marcando-se a revolução para o dia 24 de
Agosto.
Assim, de madrugada, o coronel Cabreira reu-
niu a artilharia no Campo de Santo Ovídio
(actual Praça da República), em frente ao
quartel-general, mandou dizer missa ao cape-
lão num altar improvisado, seguida de uma
salva de 21 tiros, anunciando-se, assim, o iní-
cio da revolução. Para ali convergiram outras
forças militares aderentes, formou-se o conse-
lho militar composto pelos comandantes das
tropas e leram-se duas proclamações. A pri-
meira proclamação, lida por Cabreira, dizia
assim:
Proclamação
Soldados! Uma só vontade nos una. Caminhe-
mos à salvação da pátria. Não há males que Por-
tugal não sofra. Não há sofrimento que nos por-
tugueses não esteja apurado. Os portugueses,
sem segurança em suas pessoas e bens, pedem
o nosso auxílio; eles querem a liberdade
regrada pela lei. Vós mesmos, vítimas dos
males comuns, tendes perdido a consideração
que vosso brio e vossas virtudes mereciam. É
necessária uma reforma, mas esta reforma deve
guiar-se pela razão e pela justiça, não pela
licença. Coadjuvai a ordem; coibi os tumultos;
abafai a anarquia. Criemos um governo provi-
sório, em quem confiemos. Ele chame as cortes,
que sejam o órgão da nação, e elas preparem
uma constituição, que assegure nossos direitos.
O nosso rei, o senhor D. João VI, como bom,
como benigno e como amante de um povo que
o idolatra, há-de abençoar nossas fadigas. Viva
o nosso bom rei! Vivam as cortes e por elas a
constituição!
15 | A CIDADE LIBERAL
Manuel Fernandes Tomás, Manuel Borges Carneiro
e Joaquim António de Aguiar, deputados às Cortes Constituintes.
Painel de Columbano Bordalo Pinheiro, Assembleia da República
O respeito pelo rei e pela religião, seguido do
pedido de constituição, “cuja falta é a origem
de todos os nossos males”, eram as marcas da
segunda proclamação, lida por Sepúlveda, com
um apelo aos soldados para os acompanharem.
As tropas seguiram depois para a Praça Nova,
entrando os chefes na Câmara Municipal e man-
dando ao juiz de fora convocar a vereação da
cidade. Nessa vereação extraordinária, perante a
exposição dos sofrimentos de todas as classes e
para evitar um “rompimento anárquico” que
poderia surgir do descontentamento popular, se
deliberou a criação da Junta Provisória do
Governo Supremo do Reino, presidida por Antó-
nio da Silveira Pinto da Fonseca e composta por
mais 14 cidadãos representantes da Igreja, da
nobreza, da magistratura, da Universidade de
Coimbra, do comércio e das províncias, além de
três secretários com voto (elementos do Sinédrio).
Governar em nome do rei, manter a religião
católica e fazer convocar as Cortes para elabora-
ção de uma Constituição eram as suas atribui-
ções. O “Manifesto aos Portugueses”, publicado
pela junta nesse mesmo dia, apresentava o
Exército, que antes salvara a pátria, como vindo
arrancá-la do abismo em que se achava precipi-
tada por uma administração cheia de erros e
vícios: “Vimos nós desaparecer desgraçada-
mente o nosso comércio, definhar-se a nossa
indústria, esmorecer a agricultura e apodrecer
a nossa marinha”. Consideravam-se estancadas
as fontes da prosperidade nacional e lamen-
tava-se a orfandade em que se vivia desde que o
rei deixara de “viver entre nós”. Contempori-
zava-se com as “partes estáveis da monarquia”,
o soberano e a religião, defendia-se uma “ilumi-
nada instrução pública”, enquanto as leis segu-
rariam a propriedade individual, os direitos de
cada um e ninguém seria incomodado por suas
opiniões ou conduta passada5.
Na verdade, tudo se limitou a um pronuncia-
mento, com tropas disciplinadas, enquanto a
população assistia e aplaudia. As outras cidades
do Norte foram aderindo, replicando proclama-
ções favoráveis a uma nova ordem constitucio-
nal e conseguiram-se novas adesões de forças
militares não implicadas na revolução.
As Cortes, a Constituição, o retorno do rei
A 28 de Agosto fazia-se uma proclamação diri-
gida ao povo de Lisboa, convidando-o à adesão.
A regência, tomando conhecimento dos factos,
fez uma contraproclamação, condenando a
insurreição, mas sem eco popular, tal como
outras iniciativas e delongas (tentativa de con-
vocação tradicional das Cortes).
16 | HISTÓRIA DO PORTO
O “Manifesto aos Portugueses” apresentava o Exército,
que antes salvara a pátria, como vindo arrancá-la
do abismo em que se achava precipitada
por uma administração cheia de erros e vícios.
—
17 | A CIDADE LIBERAL
A força militar da junta do Porto, indiferente às
manobras da regência, partiu para Lisboa a 13
de Setembro, chegando a Coimbra a 15. No
mesmo dia, dirigidas pelo juiz do povo, aconte-
ciam em Lisboa manifestações populares e mili-
tares de insurreição, com vivas ao rei, à religião
católica, às Cortes prometidas e aos valorosos
heróis do Porto. Composto um governo inte-
rino, um dos primeiros actos foi oficiar à junta
do Porto, no sentido de trabalharem em con-
junto, mandando o então capitão Bernardo de
Sá Nogueira a Leiria para informar as tropas da
regência do sucedido, o qual seguiu depois para
Coimbra a dar notícias às tropas liberais. A 28
de Setembro os governos do Porto e de Lisboa
convergiam na criação de uma só Junta Provi-
sional do Governo Supremo do Reino. A 1 de
Outubro, a junta do Porto entrava em Lisboa,
reunindo as duas comissões no palácio do
governo, ao Rossio. Estabelecido o governo
único, abria-se o caminho para a nova ordem
constitucional. A 5 de Outubro, as tropas do
Porto entravam em Lisboa e eram aclamadas
pela multidão.
As Cortes constituintes foram convocadas, mas
logo surgiram desinteligências entre magistra-
dos e militares a propósito das instruções elei-
torais, acabando por se realizarem em diferen-
tes dias de Dezembro. As Cortes, com abertura
prevista para 6 de Janeiro de 1821, só reuniram
a 24 para verificação de poderes, sendo instala-
das com cerimonial a 26. Deu-se por terminada
a junta provisional, com o novo governo já indi-
cado pelas Cortes. Entretanto, o rei D. João VI
voltou do Brasil, desembarcou, em Lisboa, a 3
de Julho de 1821, após 13 anos de afastamento,
deixando lá o filho mais velho, D. Pedro, como
regente.
A constituição foi sendo elaborada como pre-
visto, ficando pronta em 25 de Setembro de 1822.
O rei transigiu em jurar a Constituição, mas
esqueceu-se dela pouco depois, submetido pela
facção absolutista, onde pontificavam a rainha,
D. Carlota Joaquina, e o príncipe D. Miguel, este
entretanto nomeado comandante dos exércitos.
Portugal não voltaria a ser o centro do império
luso-brasileiro, pois a independência do Brasil
tornou-se inevitável, acontecendo pouco depois
o grito do Ipiranga, solto por D. Pedro, face às
medidas pouco racionais e provocatórias das
Cortes (uma junta administrativa para cada
província, directamente submetidas a Portugal,
desconjuntando a unidade territorial do Brasil;
a exoneração do regente D. Pedro, ordenando-
se-lhe uma viagem a países europeus para ins-
trução e preparação para o trono).
Mas os absolutistas não tinham desistido,
desenvolvendo, perante a incapacidade e as
posições dúbias de D. João VI, uma feroz perse-
guição às figuras liberais. O próprio rei excep-
tuaria do perdão concedido em 1824 aos consti-
tucionais aqueles que tinham participado no
plano de insurreição do Porto, em 24 de Agosto
de 1820, os quais se viram marginalizados, no
imediato, de todos os cargos públicos. Na reali-
dade, a revolução iniciada em 1820 era apenas
precursora da ordem constitucional, face ao
retrocesso que então se verificava. Havia ainda
um longo e tortuoso caminho a percorrer...
O ideário vintista
De qualquer modo, o ideário vintista ficou
intrinsecamente ligado ao Porto, cidade onde
uma abundante toponímia evoca o movimento.
O vintismo, centrado na memória das revolu-
ções liberais do Porto e de Lisboa e na defesa da
constituição, tornou-se um ideário a consolidar,
assinalando-se a data com celebrações popula-
res, surgindo sociedades patrióticas para a sua
celebração e preparação dos homens do futuro.
Neste quadro se insere a Sociedade Patriótica
Portuense, cujo primeiro artigo dos estatutos
dizia: “Esta sociedade tem por objecto dirigir,
por meio dos seus escritos e de suas discussões
públicas acerca de assuntos políticos, a opinião
pública sobre o sistema constitucional que hoje
governa a heróica nação portuguesa; servir ao
mesmo tempo de escola, para adquirir o hábito
de falar em público com precisão e acerto, e
promover pelo modo possível, já por meio de
prémios, já por gratificações, a indústria nacio-
nal, conferindo-se aqueles e estes segundo os
programas convenientemente anunciados, a
quem melhor satisfizer aos requisitos nos mes-
mos programas designados”6.
Inaugurada a 24 de Agosto de 1822, todos os
anos devia celebrar a data com uma sessão
solene nesse dia, com actos de beneficência e
filantropia e um Te-Deum em acção de graças
pela “gloriosa regeneração portuguesa, pela
boa união dos portugueses de ambos os hemis-
férios”, realizando de tarde uma sessão extraor-
dinária com discurso do presidente e de um
orador nomeado. Os estatutos foram organiza-
dos por antigos membros do Sinédrio retirados
da vida pública (João Ferreira Viana, Duarte
Lessa) e por outros como Agostinho Albano da
Silveira Pinto e a associação distribuía o seu tra-
balho por várias comissões. Na terceira sessão,
entre os sócios admitidos, contavam-se os
irmãos Manuel e José da Silva Passos, então
estudantes em Coimbra. De entre as suas activi-
dades, conta-se a divulgação de instruções
acerca das eleições e advertências sobre as
19 | A CIDADE LIBERAL
Independência ou morte: o grito do Ipiranga marca a ruptura de
D. Pedro com a metrópole.
Quadro de François René Moreau. Museu Imperial de Petrópolis
intervenções absolutistas neste campo,, com
José Passos a propor a elaboração de um cate-
cismo constitucional.
Mas os absolutistas não ficaram a olhar a paisa-
gem, criando também os seus “clubes apostóli-
cos” para reconquistarem espaço político e
enfrentarem a onda de pedreiros livres e de
maçons que instauravam uma nova ordem,
pondo em perigo a velha aliança do trono e do
altar.
Os interesses do comércio portuense
Alguns negociantes do Porto estiveram intima-
mente ligados à criação do Sinédrio e à prepa-
ração da revolução de 1820. Mas o corpo do
comércio do Porto quis dar colectivamente o
seu apoio oficial à causa liberal, enviando uma
delegação de sete membros à junta, em 1 de
Setembro de 1820, a oferecer os seus serviços. E
publicou um texto de felicitação ao movimento
regenerador, mostrando a sua gratidão aos
heróis do “primeiro grito da justa liberdade
opressa” e à junta que personificava a espe-
rança em melhores dias.
Mais tarde, as Cortes constituintes ordenaram
que, em todas as cidades, se constituíssem
comissões de comércio para informarem sobre
as necessidades locais. A comissão de comércio
da praça do Porto, integrada por vinte nego-
ciantes, enviou o seu documento às Cortes em
4 de Dezembro de 1822, um parecer em 26 pon-
tos “sobre os estorvos que sofre o Comércio da
Praça do Porto e meios de os remediar”7. Este
texto expõe as principais reivindicações dos
negociantes e algumas das razões do seu libera-
lismo, pois a comissão estava convencida de
que “o comércio e a indústria devem gozar de
toda a liberdade possível”.
A comissão apontava o facto de a praça do
Porto não ter representação organizada, nem
regulamentos, nem juízes próprios, pedindo
um código de comércio e um consulado ou
câmara de comércio que permitisse representar
ao governo e conhecer o meio comercial. Pedia
uma Casa de Alfândega, pois a existente não era
adequada, com serviços dispersos por mais de
vinte armazéns, numa situação propícia a des-
caminhos e roubos, bem como recomendava a
publicação de uma nova pauta alfandegária e
um regimento sobre a arrecadação de mercado-
rias.
A comissão abordava ainda as relações comer-
ciais com o Brasil, aplaudindo um projecto de
decreto que garantia uma perfeita reciproci-
dade. Pedia um depósito de tabaco para o Porto,
condenando o exclusivo de Lisboa. Pretendia
21 | A CIDADE LIBERAL
Uma nova esperança nasceu com a Constituição
remover a secular proibição de o Porto comer-
ciar com a Ásia, exclusivo de Lisboa. Pretendia
o fim do exclusivo dos contratos de seguro a
favor da praça de Lisboa ou do estrangeiro, soli-
citando permissão para os realizar no Porto.
Combatia o exclusivo da Corporação do Corpo
Santo de Setúbal para o transporte do sal no
país (só os estrangeiros tinham permissão de
transporte).
Os vinhos ocupavam uma parte substancial do
parecer: pretendia-se suprimir a proibição de
baldeação no Porto de vinhos nacionais (para
além do vinho do Douro), pois os portuenses
eram obrigados a ir a Aveiro ou Figueira (por-
tos difíceis, com custos elevados e longas demo-
ras) receber os vinhos da Beira, evitando-se,
desse modo, o contrabando de duas mil pipas
desse vinho introduzido clandestinamente no
Porto. Quanto aos vinhos do Douro, a “produ-
ção mais rica de Portugal” (exportação de 40
mil pipas para Inglaterra), a comissão apontava
como estorvos os direitos excessivos, o mau sis-
tema de qualificação no Douro (no método e
nos abusos), o exclusivo de aguardente conce-
dido à companhia. Para melhorar a navegação
no Douro era necessário fazer escavações nas
encostas para caminhos que permitissem a ala-
gem dos barcos a partir de terra, demolir pes-
queiras e açudes, aplanar ou extinguir obstácu-
los no leito do rio. Também a navegação marí-
tima devia ser apoiada com a eliminação de
alguns estorvos, tais como a obrigação de levar
aulistas da Academia, reduzir a um imposto
anual o direito dos faróis, concessão de passa-
portes aos passageiros apenas por autoridade
local, igualar impostos para as embarcações de
vela latina e vela redonda.
Defendia o apoio à pesca (com prioridade à
supressão dos conventos que percebiam dízi-
mos da pescaria); a promoção das exportações
para a Rússia e Suécia, para contrabalançar as
importações de linho e ferro; combatia os privi-
légios das manufacturas em grande (isentas de
direitos na exportação e importação) em rela-
ção aos pequenos produtores. Denunciava o
mau estado das estradas e pedia a sua repara-
ção.
Enfim, as reclamações tocavam ainda o reco-
nhecimento local dos papéis relativos à Índia e
Mina; a revisão da legislação sobre a décima dos
juros e os protestos de letras; a isenção de
recrutamento para negociantes, caixeiros e
guarda-livros; estímulos para a criação de sirgo
e fiação da seda, com apoio particular ao Filató-
22 | HISTÓRIA DO PORTO
A praça do Porto pretendia remover
a secular proibição de a cidade comerciar com a Ásia,
exclusivo de Lisboa. Pretendia também
o fim do monopólio que a capital igualmente
detinha nos contratos de seguro.
—
23 | A CIDADE LIBERAL
rio de Chacim; a abolição das corporações dos
fabricantes de sedas, que apenas serviam “para
oprimir o progresso destas manufacturas”; a
extinção do subsídio militar só pago no Porto; a
abolição da portagem de terra, pois “incomoda
o comércio interno e embaraça a livre-circula-
ção dos géneros”.
A vida curta do primeiro liberalismo tirou opor-
tunidade a estas reivindicações que nos mos-
tram a vida apertada de uma praça comercial
com vocação expansionista, mas aprisionada
entre obstáculos de origem mercantilista, como
era o caso dos privilégios, dos exclusivos, das
corporações em relação aos quais pretendia
libertação.
A antiga Bolsa do Porto, na rua que começou
por se chamar Formosa e depois Nova dos Ingleses,
sendo agora a do Infante D. Henrique
26 | HISTÓRIA DO PORTO
O Porto teve aderentes entusiasmados
com a proclamação da Carta Constitucional,
que fizeram “públicas demonstrações de júbilo
e satisfação”, e “grande cópia de foguetes se lançaram
ao ar em todos os bairros da cidade, luminárias
e fogueiras se viram nalgumas ruas, e o novo hino
constitucional por elas se cantou entusiasticamente”.
—
Sabe-se como foi difícil a implantação do cons-
titucionalismo em Portugal e como D. João VI
esqueceu a Constituição de 1822 pouco depois
de a jurar cumprir, no seio de profundas intri-
gas que alvejaram o retorno ao absolutismo.
Da Carta Constitucional à usurpação
Contornando o princípio da soberania do povo,
D. Pedro IV, seu sucessor e já imperador do Bra-
sil, outorgou uma Carta Constitucional (com
poder moderador atribuído ao rei e duas câma-
ras, sendo a dos deputados por eleição indirecta
e a dos pares composta por elementos de
nomeação régia), acompanhada da abdicação
do trono a favor da filha D. Maria da Glória. Era
uma solução de compromisso, do tipo da verifi-
cada na França da restauração, mas que os abso-
lutistas continuavam a não aceitar. A regência,
numa proclamação datada de 12 de Julho de
1826, apresentava-a desta forma: “Não é uma
concessão arrancada pelo espírito revolucioná-
rio, é um dom espontâneo do poder legítimo de
sua majestade, meditado na sua profunda e real
sabedoria. Nesta carta se procura terminar a
luta dos princípios extremos, que tem agitado
todo o universo; a ela são chamados todos os
portugueses para se reconciliarem, como se
têm reconciliado outros povos por semelhantes
meios”. Muitos transigiram e aceitaram, numa
linha de conciliação, a Carta Constitucional,
vista como “um porto de refúgio para todos os
que não eram puritanos miguelistas”8.
O Porto teve aderentes entusiasmados com a pro-
clamação da carta, que fizeram “públicas
demonstrações de júbilo e satisfação” e “grande
cópia de foguetes se lançaram ao ar em todos os
bairros da cidade, luminárias e fogueiras se viram
nalgumas ruas, e o novo hino constitucional por
elas se cantou entusiasticamente”, segundo Luz
Soriano (2º, p. 457). Pelo seu tom conciliador, a
Carta Constitucional tornou-se uma nova causa e
D. Pedro uma figura venerada, emergindo como o
novo chefe do “partido liberal”.
O pior estava para vir, num tempo de profun-
das fracturas e divergências. D. Miguel, que
tinha traído o regime constitucional nos episó-
dios da Vilafrancada (1823) e da Abrilada (1824)
e por isso se vira afastado do país, era agora
chamado pelo seu irmão para assegurar a
regência na menoridade de D. Maria II, na qua-
lidade de “lugar-tenente”, com promessa de
casamento posterior (decreto de 3 de Julho de
1827). Uma “decisão impolítica” que espantava
todos os liberais, ao mesmo tempo que os enre-
dava na responsabilidade de defenderem a
carta e o trono da jovem rainha.
27 | A CIDADE LIBERAL
D. Miguel regressou a 22 de Fevereiro de 1828,
jurou cumprir a carta e fidelidade ao irmão e à
jovem rainha, juramento pressionado pelo
embaixador inglês. Entregar a regência a um
absolutista inconformado e com provas dadas
de intransigência e, concomitantemente, à sua
facção violenta, era uma ingenuidade! Os parti-
dários de D. Miguel, entre os quais pontificava
a rainha-mãe, Carlota Joaquina, promoveram
logo uma política de terror para com os adver-
sários. Multiplicaram-se os insultos a personali-
dades liberais, bandos de caceteiros promove-
ram desordens e petições pelo rei absoluto,
perseguições individuais, repressão violenta,
espionagem, denúncias e prisões arbitrárias
(obrigando muitos liberais ao exílio), promoção
de sublevações locais a favor do absolutismo...
Tudo isso ajudou a criar as condições para D.
Miguel usurpar o trono, dissolver as Cortes
constitucionais e ser aclamado rei absoluto,
com base no pedido do Senado da Câmara de
Lisboa de 25 de Abril de 1828. Pedido que os
absolutistas fizeram replicar a todas as câma-
ras, ensaiando um processo legitimador para a
usurpação. No dia 26, um decreto aprovava essa
súplica da Câmara de Lisboa e a 3 de Maio eram
convocadas as Cortes pelo modo antigo, cha-
mando-se apenas simpatizantes para a aclama-
ção.
A revolução de 1828
Com a política de perseguições adoptada pelos
absolutistas, aos constitucionais só restava luta-
rem no sentido de restaurar a carta e assegurar
os direitos de D. Maria II, impedindo essa acla-
mação. Promoveram conciliábulos entre civis e
militares. Houve uma tentativa frustrada de
levantamento em Lisboa, pois os movimentos
eram muito vigiados. Restava o Norte, onde nas
principais cidades tinha havido fortes resistên-
cias às aclamações de D. Miguel. No Porto a
Câmara Municipal fora muito relutante no
pedido, suscitado pelos absolutistas, para que
D. Miguel se declarasse rei. E cresceu o desa-
grado por, apesar das oposições públicas, o
pedido ter seguido para Lisboa. Por isso cerca
de seis mil pessoas reuniram-se no Campo de S.
Ovídio, no dia 30 de Abril, em frente do quartel-
general, aos vivas a D. Pedro, à rainha, incenti-
vando-se o Exército a sair, mas o tumulto foi
disperso e nos dias seguintes foram presos algu-
mas dezenas de militares.
Em 3 de Maio houve uma primeira manifesta-
ção militar em Aveiro, com o Batalhão de Caça-
dores nº 10 a aclamar D. Pedro, a rainha e a
carta. E foi em Aveiro que este batalhão se
sublevou na manhã de 16 de Maio de 1828,
declarando D. Miguel privado da regência, em
29 | A CIDADE LIBERAL
Com D. Miguel regressou o absolutismo.
Pintura de João Baptista Ribeiro. Museu Nacional dos Coches/IPM
face do acto de usurpação, fazendo lavrar, de
novo, na Câmara de Aveiro, o auto de aclama-
ção da carta, partindo depois para o Porto, para
se juntar a um novo governo que ali seria for-
mado. Aqui, na tarde do mesmo dia 16, verifi-
cou-se também uma sublevação, iniciada por
Infantaria 6, que se dirigiu para o Campo de
Santo Ovídio, aclamando D. Pedro, D. Maria II e
a carta, acontecimento a que acorreram muitos
civis e militares, com a música a tocar o hino
constitucional. Diz-se que a notícia inflamou a
cidade a favor da causa liberal, com inumerá-
veis grupos a correrem para o Campo de Santo
Ovídio e a adesão sucessiva de militares.
No dia 17 de Maio, de manhã, os comandantes
dos vários corpos, em conselho militar, fazem
uma proclamação respeitando ainda D. Miguel,
enquanto “lugar tenente de seu augusto
irmão”, mas considerando-o impotente na sua
vontade governativa pela facção que o rodeava,
justificando a revolução para a reposição da
legalidade:
“A força militar, essencialmente obediente ao
espírito do juramento explícito de lealdade ao
legítimo rei o senhor D. Pedro IV, reuniu-se por
autoridade desse solene e sagrado juramento
para o ratificar e sustentar. Declarar-se expres-
samente destronizado esse legítimo soberano,
proclamado por uma facção rebelde outro
monarca, que não era o senhor D. Pedro, serão
acaso motivos que justifiquem a nobre resolu-
ção das tropas portuguesas? O magnânimo
autor da carta constitucional da monarquia não
previu que houvesse autoridades rebeladas que,
dominando a mesma força, a quisessem impe-
lir à destruição das autoridades legítimas”9.
A 20 de Maio foi eleita uma Junta Provisória
(general Hipólito da Costa para presidente,
coronel Duarte Guilherme Ferreri para vice-pre-
sidente, e como vogais: desembargadores Ale-
xandre Morais Sarmento, José Joaquim Gerardo
de Sampaio, negociantes Cristiano Kopke e
Francisco Inácio Vanzeller, coronel Francisco da
Gama Lobo Botelho; a que se juntavam quatro
secretários: os desembargadores, Manuel Antó-
nio Velez Caldeira Castelo Branco, Joaquim
José de Queirós, o jurista Joaquim António de
Magalhães e o tenente-coronel José Baptista da
Silva Lopes) para substituir o conselho militar.
Mas a junta, reconhecidamente heterogénea e
demasiado extensa, com preponderância de
moderados e juristas, revelou-se incapaz das
medidas rápidas que a situação exigia, colo-
cando-se à defesa e só publicando um mani-
festo a 28 de Maio. No correr dos dias, os acon-
tecimentos do Porto foram seguidos
militarmente noutros pontos do Norte do país
e no Algarve, com adesões à “causa do Porto” de
31 | A CIDADE LIBERAL
Carlota Joaquina, um dos esteios da restauração miguelista
batalhões e de corpos de milícias e voluntários,
mas o movimento, em geral, manifestava clara
desorganização, falta de meios, de homens e de
comando.
A reacção miguelista fez-se sentir. Desde logo
no Porto, com a tentativa de bloqueamento da
barra do Douro por duas corvetas em 28 de
Maio (ineficaz, pois eram neutralizadas pelas
baterias do castelo da Foz, além de concederem
passagem aos navios ingleses). E reorganizaram
as forças militares fiéis a partir de Lisboa, res-
pondendo ainda com a criação de batalhões
realistas por todo o país (as “companhias de
caceteiros”). Controlando Aveiro e Porto, as tro-
pas constitucionais convergiram para Coimbra,
com a junta a recomendar que esperassem aqui
pela junção de mais reforços, em vez de conti-
nuarem sobre Lisboa.
Entretanto, avançaram os absolutistas para o
Norte, acabando por se verificarem confrontos
na zona de Condeixa (2 de Junho), com a bata-
lha de Cruz de Morouços, ganha pelos liberais.
Mas a partir daqui, o exército liberal recuou
sucessivamente para o Vouga e depois para
Grijó e Santo Ovídio (Gaia).
Entretanto, a 26 de Junho, fundeava em Matosi-
nhos, fretado para o efeito, o desgastado vapor
Belfast, que trazia os principais chefes liberais
(Palmela, Saldanha, Vila Flor e outros, num
total de 29 figuras), vindos de Inglaterra para
ajudarem a junta do Porto. Foram recebidos
principescamente no Porto e logo assumiram
posições de direcção, com o marquês de Pal-
mela a ser elevado a comandante-em-chefe.
O anúncio de uma investida absolutista pre-
vista para Grijó a 3 de Julho levou, porém, os
membros da junta a reunirem, dissolvendo a
mesma e decidindo embarcar na noite anterior
no Belfast, rumo à Inglaterra, deixando o Exér-
cito sob o comando de Saldanha. Este desone-
rou-se nessa mesma noite dessa obrigação, por
os comandantes dos corpos alegadamente se
recusarem a retirar o Exército para a Galiza
sem combaterem, e embarcou também. Este
episódio de fuga, conhecido pela Belfastada,
desmoralizou por completo o exército liberal,
que, seguindo as instruções da junta retirou
para a margem direita do rio Douro e logo se
dirigiu para o Minho, pela estrada de Santo
Tirso, comandado por figuras antes subalternas
como o brigadeiro Pizarro e o então major Sá
Nogueira (futuro Sá da Bandeira), enquanto o
exército absolutista ocupava o Porto e lançava
brigadas de perseguição sobre os soldados libe-
rais. A Galiza seria o destino dos que não foram
apanhados, onde, desarmados, acamparam,
embarcando depois uns para outros países
(Inglaterra foi o destino de 2386 liberais), vol-
32 | HISTÓRIA DO PORTO
A 7 de Julho de 1828, D. Miguel prestava juramento
perante os três estados do reino – clero, nobreza
e povo –, declarando-se rei absoluto. O seu governo,
curiosamente, só foi reconhecido por três estados:
Santa Sé, Rússia e Estados Unidos.
—
33 | A CIDADE LIBERAL
tando outros para Portugal, uma vez que o
governo espanhol apenas concedeu autorização
de estadia para um mês.
A 7 de Julho de 1828, D. Miguel prestava jura-
mento perante os três estados do reino — clero,
nobreza e povo —, declarando-se rei absoluto.
Sublinhe-se que o seu governo, curiosamente,
só foi reconhecido por outros três estados:
Santa Sé, Rússia e Estados Unidos.
Forcas para os “malhados”
A 14 de Julho uma carta régia mandava realizar
devassas sobre os acontecimentos da rebelião
de 16 de Maio de 1828 no Porto, considerada
uma tentativa de reprodução da de 1820, a fim
de os responsáveis e seus cúmplices receberem
castigo: “Servindo de exemplo para o futuro,
acabe de uma vez a revolução que em Portugal,
ou encoberta ou declaradamente, dura desde o
referido ano de 1820”. Para resolver o problema
enviava-se uma alçada, “na forma antigamente
usada, a qual, munida de faculdades especiais,
inquira deles e os julgue logo em última instân-
cia breve e sumariamente”10.
As sentenças vieram por partes, em face das
muitas denúncias. A 18 de Fevereiro de 1829
eram sentenciados 26 réus, dos quais 12 morre-
ram no patíbulo, tendo sido exautorados e pri-
vados de todas as honras, privilégios e dignida-
des, condenados com baraço e pregão. E mais:
"sejam levados pelas ruas públicas desta cidade
ao largo da Praça Nova, e, nas forcas que na
mesma serão levantadas, morram morte natu-
ral para sempre, e depois lhe sejam a todos
decepadas as cabeças, ficando aí algumas
expostas por três dias, e outras o serão em altos
postes no lugares de seus delitos". Além da con-
fiscação e perdimento de todos os bens11.
A 6 de Maio mandava-se executar a sentença. E
no dia seguinte, saídos da cadeia da Relação, 10
dos condenados à morte compunham um cor-
tejo que seguiu pela Porta do Olival, calçada dos
Clérigos, Largo dos Lóios e Praça Nova onde
estavam implantadas duas forcas, sendo acom-
panhados por mais quatro companheiros que
deviam observar as execuções, para depois, nus
da cinta para cima, serem açoitados num per-
curso até Miragaia, recolhendo de novo ao cár-
cere, para aguardarem partida para o degredo.
Dos enforcados, duas cabeças ficaram nos patí-
bulos, uma na Cordoaria, duas foram enviadas
para Aveiro, duas para a Vila da Feira, uma para
Coimbra e outra para a Foz12.
Outra sentença veio datada de 21 de Agosto de
1829, também um longo libelo, que exautorava
e privava de todos os títulos, privilégios, honras
34 | HISTÓRIA DO PORTO
A alçada do Porto condenou a pena de morte,
a garrote ou forca 42 indivíduos, dos quais 12 foram
executados. Os restantes ficaram presos em diversas
cadeias, onde faleceram ou foram libertados
posteriormente com a chegada dos liberais
em 1833 e 1834.
—
35 | A CIDADE LIBERAL
e dignidades, os emigrados na Inglaterra (Pal-
mela, Saldanha, Vila Flor, etc.) que tinham par-
ticipado na revolução, desnaturalizando-os e
condenando-os a que “com baraço e pregão
sejam conduzidos pelas ruas públicas desta
cidade até à Praça Nova da mesma, onde em um
alto cadafalso, que aí será levantado, de sorte
que o seu castigo seja visto de todo o povo, a
quem tanto têm escandalizado o seu horroro-
síssimo delito, morram morte natural de gar-
rote, e depois de lhe serem decepadas as cabe-
ças, seja o mesmo cadafalso com seus corpos
pelo fogo reduzido a cinzas, que serão lançadas
ao mar para que deles e da sua memória não
haja mais notícia”. Exautorava da mesma forma
outros oito rebeldes, como Rodrigo Pizarro ou
Tomás Saavedra, condenando-os a que “com
baraço e pregão, sejam levados pelas ruas públi-
cas ao mesmo lugar da Praça Nova, e aí nas for-
cas que se acham levantadas morram morte
natural para sempre; e depois de decepadas as
cabeças, serão pregadas em altos postes por
toda a estrada de Matosinhos até às praias do
mar onde desembarcaram, ficando expostas até
que o tempo as consuma; e a uns e outros dos
sobreditos réus condenam mais na confiscação
e perdimento de todos os seus bens para o fisco
e a câmara real, com respectiva reversão e
incorporação na coroa dos de morgado, feudo
ou foro, constituído em bens que saíssem da
mesma coroa”13.
A alçada do Porto continuava activa: a 19 de
Setembro, nova sentença para mais 20 pessoas,
das quais 16 seriam condenadas à morte na
Praça Nova e quatro ao degredo, depois de
assistirem às execuções.
Muitos eram condenados à revelia, estavam exi-
lados e escaparam à forca, pelo que o carácter
sanguinário das sentenças era, em muitos
casos, apenas simbólico, com o objectivo de ser
exemplar. Dos efectivamente detidos, a alçada
do Porto condenou a pena de morte, a garrote
ou forca, 42 indivíduos, dos quais só doze
foram executados, os restantes ficaram presos
em diversas cadeias, onde faleceram ou foram
libertados posteriormente com a chegada dos
liberais em 1833 e 1834.
As devassas e comissões especiais tornaram-se
frequentes no reinado de D. Miguel, em várias
localidades, sempre que havia suspeitas de
conspiração, com práticas idênticas às da
alçada do Porto.
Entretanto, o dia-a-dia era marcado pela perse-
guição aos “malhados” (designação que os
miguelistas davam aos liberais) por bandos de
caceteiros miguelistas, numa prática frequente
de delação, agressão, prisão aos milhares,
numa política de terror. Os miguelistas tinham
Apoiantes da causa liberal enforcados na Praça Nova
36 | HISTÓRIA DO PORTO
Numa posição de tudo ou nada,
muitos do condenados, no exílio, estavam disponíveis
para a acção militar, outros faziam diplomacia
ou discutiam juridicamente os direitos
ao trono e a usurpação.
—
nos frades e noutros membros do clero os gran-
des mentores da sua política arruaceira, bas-
tando lembrar as exortações do conhecido
padre José Agostinho de Macedo (considerado
por Oliveira Martins como o fundador do jorna-
lismo político em Portugal) em “A Tripa Virada”
e em “A Besta Esfolada”, publicações em que o
religioso teoriza sobre o “malhado”, a pedrei-
rada e a legitimidade da justiça do cacete, pas-
sando em revista acontecimentos e personali-
dades do liberalismo: “Trabalhar o cacete,
desancar o bordão, descarregar o arrocho, são
axiomas eternos e invariáveis regras de justiça,
quando se trata de amansar, ou de tirar manhas
às bestas (...) porque estas mesmas latadas em
costelas, estas mesmas fracturas de crânios,
estes mesmos braços deitados abaixo, bamba-
leando como mangas perdidas em sotainas de
clérigos (...) é ajudar a mesma justiça em seus
sagrados trabalhos” (A Besta Esfolada, nº 16).
Sublinhe-se que, em 1837, a Misericórdia do
Porto trasladou as ossadas dos enforcados na
Praça Nova para a sua igreja, na rua das Flores.
Em 18 de Junho de 1878 fez-se uma cerimónia de
trasladação das cinzas dos supliciados para um
mausoléu privativo da Misericórdia no cemitério
do Prado do Repouso, perorando Alves da Veiga à
multidão sobre os “mártires da liberdade”, num
acto colectivo que comoveu a cidade do Porto.
Os direitos de D. Maria II e o Exército Libertador
O exemplo tenebroso dos enforcamentos na
Praça Nova não terminou com o espírito da
revolução liberal, antes o tornou mais justo e
ardente. Numa posição de tudo ou nada, mui-
tos dos condenados, no exílio, estavam disponí-
veis para a acção militar, outros faziam diplo-
macia ou discutiam juridicamente os direitos
ao trono e a usurpação. A eles viria agora jun-
tar-se D. Pedro IV, já não como rei, mas como
pai de uma rainha, jovem e inocente, na qual
abdicara do trono, entretanto usurpado pelo tio
que devia ser o seu consorte.
Crença liberal, reposição da legalidade, defesa
da honra de uma jovem indefesa e dos seus
“inauferíveis direitos à Coroa de Portugal”, bem
como o carácter sanguinário e perseguidor dos
absolutistas (“encheram-se de vítimas as pri-
sões do reino, castigando-se, por esta forma,
não o crime, mas a lealdade e o respeito à fé
jurada” — dizia-se no manifesto de D. Pedro,
em 1832), tudo se conjugou num efeito mobili-
zador, num esforço supremo para libertar Por-
tugal do rei usurpador e da sua facção violenta.
Acresce que uma nova vaga de soluções políti-
cas mais democráticas surgia nos inícios dos
anos 30, com relevo para a revolução de 1830,
em Paris, que levou ao poder Luís Filipe, tor-
37 | A CIDADE LIBERAL
Esquadra miguelista derrotada na batalha dos Açores
Arquivo Histórico-Militar
nando mais tangíveis as aspirações liberais.
Não seria, contudo, pacífico este papel de D.
Pedro na aglutinação das forças liberais, pois os
emigrados já se dividiam em duas facções, cuja
linha de fractura passava pela concepção do
modelo constitucional (carta vs. constituição) e
pela avaliação do papel anterior dos principais
caudilhos no processo político e na luta contra
o absolutismo. Acrescia agora a dúvida sobre o
papel de D. Pedro, que a ala radical (Rodrigo
Pizarro, irmãos Passos) não queria ver como
regente, uma vez que, ao abdicar, desencadeara
o motor dos males que vieram a seguir.
Nos inícios de 1829, a maioria dos cerca de
2000 portugueses que estavam no depósito de
“emigrados” em Plymouth e outros lugares
começou a ser encaminhada para a ilha Ter-
ceira, nos Açores, o único território que esca-
pou à submissão miguelista. O governo de D.
Miguel, após alguns episódios falhados de con-
trolo da ilha, enviou uma forte expedição à Ter-
ceira, rechaçada nos confrontos de 11 de
Agosto de 1829. Por essa altura, já mais de um
milhar de liberais, vindos de Inglaterra, ali
tinham aportado para colaborar na defesa. E foi
ali que os liberais, perseguidos em todo o res-
tante território português, se reorganizaram,
comandados por uma regência nomeada por D.
Pedro. Uma a uma, submeteram todas as ilhas
dos Açores. E começaram a preparar o chamado
Exército Libertador: recorreram a empréstimos
dos habitantes, incorporaram prisioneiros rea-
listas nas tropas liberais, recrutaram 2852 aço-
rianos das várias ilhas (excepto a Terceira, onde
já se tinha recrutado), a que se juntavam os
voluntários liberais que ali iam aportando.
Ali passou D. Pedro, em 1830, depois de abdicar
da coroa imperial do Brasil: vindo do Rio e diri-
gindo-se a Inglaterra, tocou a Terceira, deixando
a promessa de se devotar de todo o coração a
favor da causa da legitimidade e da Carta Consti-
tucional, reduzido agora a “simples particular”,
mas “incansável em promover na Europa os inte-
resses de sua filha”, usando apenas o título de
duque de Bragança e assumindo as funções de
regente. O regente e a rainha fixaram-se depois
em França, recebidos com todas as honras pelo
rei Luís Filipe, enquanto os seus colaboradores
(liderados por Palmela) tratavam de organizar a
expedição, negociando um difícil empréstimo
em Inglaterra e promovendo o alistamento de
pessoas capazes para serviço de mar e terra, bem
como embarcações e armamento, de que se
encarregou uma “comissão de aprestos”.
Em de 2 de Fevereiro de 1832, a bordo da fra-
gata Rainha de Portugal, em Belle-Isle, de onde
partiria para os Açores a 10, D. Pedro publicava
o manifesto em que apresentava a sua expedi-
38 | HISTÓRIA DO PORTO
Nos inícios de 1829, a maioria dos cerca de 2000
portugueses que estavam no depósito de “emigrados”
em Plymouth e outros lugares começou a ser
encaminhada para a ilha Terceira, nos Açores, o único
território que escapou à submissão miguelista.
—
39 | A CIDADE LIBERAL
ção libertadora aos governos da Europa e aos
portugueses, relatando os factos sucessórios e a
usurpação, a sua intenção de aplicar a Carta
Constitucional e de congraçar a nação desa-
vinda através de uma amnistia, incluindo àque-
las partes do exército miguelista que quisessem
unir-se ao Exército Libertador. Já nos Açores,
por decreto de 3 de Março, assumiu a autori-
dade da regência e nomeou o governo, com Pal-
mela, Mouzinho da Silveira e Agostinho José
Freire.
Ficou célebre a obra legisladora de Mouzinho
neste “governo dos Açores”, procurando adap-
tar Portugal à matriz liberal, com decretos
sobre a supressão dos dízimos, a abolição de
vínculos e capelas, a extinção dos batalhões de
milícias e ordenanças, com relevo para os três
decretos de 16 de Maio que reformavam a
fazenda, a administração e a justiça, para que,
com a vitória militar, Portugal ficasse dotado de
um novo ordenamento jurídico e administra-
tivo, “ganhando em liberdade, sem perder em
força e segurança”, segundo o relatório prévio.
Seguiram-se diplomas relativos à redução ou
supressão dos conventos, definindo-se os que
podiam subsistir. Decretos que foram sendo
aplicados nos Açores, à espera de o serem no
continente, com os legisladores convictos de
que o seu anúncio, só por si, levaria à adesão
entusiástica da população à causa constitucio-
nal logo após o desembarque, mas que acirra-
ram os miguelistas pela ameaça que consti-
tuíam aos interesses instalados. Por isso,
muitos consideraram inoportuna esta revolu-
ção a fazer “com os bicos da pena”.
42 | HISTÓRIA DO PORTO
O desembarque verificou-se ao redor do local
onde depois foi colocado um obelisco em memória
deste Exército Libertador, de menos de 8 mil homens,
que se dispôs a libertar Portugal contra
um exército de 80 mil, de natureza regular,
devidamente equipado e instalado no país.
Uma aventura própria do romantismo do tempo
e dos fortes apelos à luta pela liberdade!
—
A 26 de Junho dava-se ordem ao Exército Liber-
tador para levantar ferro das águas dos Açores,
largando no dia seguinte o comboio naval
rumo a Portugal. Para onde? Para Lisboa, onde
uma entrada de surpresa poderia resolver de
vez a contenda, mas que era um espaço bem
defendido e vigiado? Não! O Porto surgia,
então, como a base de operações, um ponto
estratégico, como esclarece Luz Soriano, um
protagonista do Exército Libertador:
- “o seu espírito decididamente liberal a isso
convidava os invasores e não menos o descuido
do inimigo, que ali seria completamente sur-
preendido, não por falta de tropa que tivesse,
mas porque lá não esperava ser atacado, não
tendo, como tal, levantado fortificações algu-
mas em que se defendesse, podendo, por conse-
guinte, ser levado de assalto e afugentado pelo
fogo de terra e mar”.
- “ser o mercado onde aflui uma grande parte
dos cereais que se colhem na laboriosa provín-
cia do Minho, de que é incontestável senhora,
pelo seu comércio com o interior, pela sua
grande população, que podia até fornecer
recrutamento de bastante vulto para o exército,
pela vastidão dos seus edifícios e crescido
número de casas religiosas, ministrando, por
meio delas, os quartéis e hospitais militares de
que se precisasse, pelo estabelecimento militar
do seu trem, pelas muitas munições que ainda
tinha e, finalmente, pela margem que também
havia a levantar-se ali algum empréstimo em
caso de precisão, ao passo que pelo lado do mar
os seus defensores se achariam em relação com
todo o universo”14.
Para desembarcar as tropas (após uma recepção
pouco amistosa em Vila do Conde ao emissário
Bernardo de Sá Nogueira), acabou por ser esco-
lhida uma área de praia acolhedora, normal-
mente referida como Mindelo, mas, na ver-
dade, um pouco mais a sul, em Pampelido, nos
areais da freguesia de Lavra. O desembarque
verificou-se ao redor do local onde depois
(1840) foi colocado um obelisco em memória
deste Exército Libertador, de menos de 8 mil
homens, que se dispôs a libertar Portugal con-
tra um exército de 80 mil homens, de natureza
regular, devidamente equipado e instalado no
país. Uma aventura própria do romantismo do
tempo e dos fortes apelos à luta pela liberdade!
O desembarque ocorreu a 8 de Julho de 1832.
Algumas forças da tropa miguelista em Pedras
Rubras e Leça, perante o avanço liberal, retira-
ram para Vila Nova de Gaia pela madrugada do
dia 9, sem qualquer combate. Recuo um pouco
inexplicável, que alguns atribuíram a um
desejo de vingança dos miguelistas pelas duas
revoluções na cidade (1820, 1828), pelo que dei-
43 | A CIDADE LIBERAL
44 | HISTÓRIA DO PORTO
Pela manhã do dia 9 começaram a chegar
os batalhões liberais ao Porto, atravessando uma rua
de Cedofeita aparentemente em festa,
escasso tempo após o insucesso da revolução de 1828
e as forcas na Praça Nova.
—
xariam encurralar os liberais no Porto para
depois realizarem o massacre que acabasse com
o liberalismo para sempre.
O cerco do Porto
Pela manhã do dia 9 começaram a chegar os
batalhões liberais ao Porto, atravessando uma
rua de Cedofeita aparentemente em festa,
escasso tempo após o insucesso da revolução de
1828 e as forcas na Praça Nova. No meio das pri-
meiras manifestações populares foram logo
destruídas as duas forcas da Praça Nova e abati-
dos os dois carrascos das alçadas. Pelo meio dia,
D. Pedro apeava-se junto à Câmara Municipal.
Fez divulgar as suas proclamações aos portu-
gueses e aos portuenses, impressas e afixadas
pela cidade, pelas quais prometia a paz, a
reconciliação e a liberdade, restaurando o
trono legítimo e a Carta Constitucional, e foi
aquartelar-se no palácio dos Carrancas (actual
Museu de Soares dos Reis).
Foi uma atitude simbólica a tomada do Porto
para sede do exército liberal, mas arriscada e
temerária, que fragilizou as posições liberais,
pois a natureza topográfica da cidade facilitava
um cerco pelas forças inimigas, como veio a
acontecer. Por isso, se houve manifestações
populares de regozijo, houve também alguma
frieza por parte de pessoas mais circunspectas
na recepção ao exército e a D. Pedro, perante a
ameaça que tal facto representava, tanto mais
que os liberais convictos tinham abandonado a
cidade desde 1828.
Com efeito, logo no dia 9, as forças miguelistas
estabelecidas em Vila Nova de Gaia começaram
a disparar sobre a cidade, desde a Ribeira ao
Trem do Ouro, preocupando os portuenses. No
dia seguinte, já com a esquadra liberal ao largo
da Foz, foi necessário fazer entrar no rio uma
corveta e pequenas embarcações para fazerem
fogo sobre a margem esquerda, espantando os
atiradores e obrigando assim a que os miguelis-
tas recuassem para Oliveira de Azeméis, com
postos avançados em Grijó e Souto Redondo.
Isso permitiu que os liberais ocupassem posi-
ções no convento da serra do Pilar, no Alto da
Bandeira e em Santo Ovídio, além de voltarem
a implantar a ponte das barcas para o restabe-
lecimento normal da comunicação com Gaia.
E começaram a ser tomadas medidas adminis-
trativas, com a nomeação de um novo presi-
dente para o Tribunal da Relação, a nomeação
de deputados para os lugares desertos da Com-
panhia Geral da Agricultura e das Vinhas do
Alto Douro, com a extinção do exclusivo que
esta detinha da venda de vinho e aguardente
45 | A CIDADE LIBERAL
Tropas liberais desembarcam em Pampelido
aos habitantes do Porto, a nomeação de uma
nova administração municipal e, perante a fuga
do bispo D. João de Magalhães e Avelar, a
nomeação de Frei Manuel de Santa Inês para
governador dos bispados do Porto e Braga, con-
siderados em sede vacante. Deu-se uma amnis-
tia geral por opiniões políticas para os crimes
cometidos desde 31 de Julho de 1826 (com algu-
mas excepções). Começou a publicar-se a Cró-
nica Constitucional do Porto como boletim ofi-
cial, na qual se republicaram alguns decretos
dos Açores, imprimiam-se as novas medidas e
noticiava-se o avanço das operações. Tomaram-
se disposições, simbólicas na altura, para a dis-
solução dos exércitos absolutistas, das milícias
e ordenanças e medidas de recrutamento para
ampliar as forças liberais (recrutando todos os
homens entre os 18 e os 50 anos), organizaram-
se novos batalhões, uns móveis, outros fixos,
para defesa dos pontos estratégicos da cidade.
Estes corpos de recrutamento local atingiram
cerca de 7 mil homens, quase duplicando o
exército inicial!
Ordenou-se que nas câmaras municipais aban-
donadas pelos miguelistas se fizesse o auto de
aclamação e reconhecimento de D. Maria II e da
Carta Constitucional. Ordem difícil de cumprir:
a saída de um batalhão de 400 homens para
Braga e Guimarães, com esse fim, bateu em
retirada, por todo o lado havia forças hostis
comprometidas com D. Miguel, desde as orde-
nanças aos religiosos que viam nos liberais o
combate à religião e outros males, enquanto os
simpatizantes da causa constitucional se mos-
travam esquivos, lembrando os exemplos do
terror miguelista.
Entretanto, o exército miguelista, comandado
pelo general Santa Marta, recuperou Gaia, ocu-
pando posições (à excepção da serra do Pilar,
reduto inexpugnável) que permitiam bombar-
dear a cidade do Porto. Surgiram mortes de
pessoas e destruições de casas dos dois lados do
rio Douro e nas embarcações ancoradas. Às tro-
pas miguelistas destacadas para a região jun-
tou-se mais uma divisão vinda do Sul, coman-
dada pelo marechal Póvoas, o que lhes permitiu
o envio de tropas para a margem direita do rio
Douro e o controlo dos movimentos liberais
para o Minho e Trás-os-Montes.
Afastada a crença na adesão espontânea da
população pela simples proclamação dos valo-
res liberais e da apresentação de D. Pedro no
terreno, o cenário estava desenhado para largos
meses. Os liberais faziam sortidas de raio curto
à volta do Porto, tentando rechaçar os miguelis-
tas para áreas mais afastadas, obtendo algumas
vitórias (Penafiel, Valongo, Grijó) e alguns reve-
ses (Souto Redondo). Os miguelistas sitiavam,
47 | A CIDADE LIBERAL
D. Pedro em defesa da Carta e dos direitos de sua filha
à Coroa de Portugal
ao largo, a cidade, impedindo as comunicações
com as províncias do Norte e o abastecimento
pelo interior. Pelo meio, algumas batalhas san-
grentas, como a de Ponte Ferreira, e vários
momentos de pânico na cidade, em face de boa-
tos negativos sobre as operações, contra-infor-
mação ou acontecimentos imprevistos. Foi o
caso do incêndio do convento de S. Francisco na
noite de 24 para 25 de Julho de 1832, ao qual se
tinha recolhido o Batalhão de Caçadores nº 5,
simpaticamente recebido pelos respectivos fra-
des na adega e aposentos, os quais lançaram
depois fogo ao convento, quiçá na expectativa
de liquidarem aquele corpo do exército liberal.
O papel dos frades que persistiam na cidade pas-
sou a ser questionado pela acção subterrânea e
doutrinária contra os liberais, apontados como
profanadores e autores de roubos e desacatos
perante o sagrado (alguns havia, sobretudo por
parte de soldados estrangeiros). Mas eram tam-
bém apontados aos próprios frades vários episó-
dios de acusação falsa ou dissimulação, como foi
o caso dos Lóios, em que um homem foi apa-
nhado a levar peças de seda e prata e, perante o
acto de prisão, denunciou o procurador geral
dessa ordem como tendo-o incumbido dessa
missão. Nestas circunstâncias, o governo proi-
biu o uso de hábitos regulares na cidade, obri-
gando a partir os que não aceitassem a medida.
A acção liberal decorria numa conjugação de
algumas operações de guerra ofensiva, com
outras de guerra defensiva. A partir de 27 de
Julho, com a nomeação de um novo governador
militar para a cidade, Bernardo de Sá Nogueira,
estabeleceram-se fortificações (com muros, fos-
sos, barris) e instalaram-se baterias em pontos
estratégicos, alistando-se novos soldados e
criando novos batalhões. Foi a altura da defini-
ção das célebres Linhas do Porto, o perímetro
de defesa da cidade, tendo em conta a topogra-
fia e as comunicações. Essas linhas começavam
no extremo oriental, na quinta da China, no
sopé do monte do Seminário, serpenteava por
lugares como Guelas de Pau (actual hospital
Joaquim Urbano), rua do Prado, Monte das
Antas, Aguardente, Monte Pedral, Carvalhido,
Ramada Alta, Bom Sucesso, Lordelo, Ouro, exis-
tindo ainda uma segunda linha exterior, na
zona de Francos. Perímetro exíguo e estrangu-
lado pela topografia, que nos dá uma ideia da
decisão temerária do Exército Libertador, pare-
cendo encurralado, justificando a crença na
opção infalível do cerco por parte dos absolutis-
tas! Os sucessos posteriores mostrariam ser
uma base defensável ante as possibilidades
existentes.
Por sua vez, o exército miguelista ergueu tam-
bém linhas mais afastadas, melhor organizadas
48 | HISTÓRIA DO PORTO
A rua do Heroísmo foi assim designada
para assinalar a violência dos combates que por
ali então se travaram para evitar a entrada
dos absolutistas na cidade.
—
49 | A CIDADE LIBERAL
dada a disponibilidade de meios e de tempo,
que começavam no ribeiro de Campanhã, na
quinta do Freixo, e passavam por S. Roque da
Lameira, Arroteia, Cruz do Padrão, Senhora da
Hora, Ramalde, Serralves, Ervilha e monte de
Crasto (Carreiros), além das linhas da margem
esquerda do rio Douro, que começavam no
Cabedelo, pontuando com baterias lugares
como Pedra do Cão, Afurada, Verdinho, Castelo
de Gaia, Fonte Santa, Campo Belo, até ao forte
de Valbom.
Entretanto, o governo liberal enviava o duque
de Palmela a Londres para esclarecer a situação
de guerra e obter apoios militares, com alista-
mento de soldados estrangeiros e novos meios
financeiros, nomeadamente um empréstimo de
300 mil libras, conseguido em 23 de Outubro de
1832, equacionando a hipótese de outros
empréstimos a garantir com o vinho da compa-
nhia armazenado em Gaia.
A partir de Outubro de 1832, o cerco ao Porto
adensou-se, com a concentração de mais tropas
miguelistas, bloqueando as comunicações com
o interior e o fornecimento de víveres, sobre-
tudo o pão e os cereais. As tropas adversárias
intensificavam os bombardeamentos indiscri-
minadamente sobre a cidade. Multiplicavam-se
os confrontos nas linhas de defesa com o ini-
migo a passear-se próximo dos últimos redu-
tos, que se revelaram, todavia, inexpugnáveis,
mesmo perante o grande ataque de 29 de
Setembro. Este ataque ocorria no dia de S.
Miguel, escolhido simbolicamente para o ata-
que ao Porto na expectativa de oferecer a vitó-
ria absolutista a D. Miguel. Na proclamação aos
seus soldados, o novo comandante miguelista,
visconde do Peso da Régua, declarava-lhes que,
após a vitória, poderiam “ressarcir-se dos seus
trabalhos e privações que têm sofrido, em algu-
mas das casas constitucionais do Porto”, ou
seja, estabelecia o velho direito ao saque. Nesse
dia, duas colunas miguelistas, com 5 mil
homens cada, atacaram as linhas de defesa a
norte da cidade, desde Campanhã até ao Carva-
lhido, além do reduto da serra do Pilar,
durante cerca de 10 horas, sendo rechaçados
naquela que foi considerada como a maior
vitória dos liberais. A rua do Heroísmo foi
depois assim designada para assinalar a violên-
cia dos combates que por ali então se travaram
para evitar a entrada dos absolutistas na
cidade.
As tropas liberais revelavam capacidade de
resistência e conseguiam ter acesso a recursos
vindos por mar, nomeadamente os reforços
militares de Inglaterra, controlando para isso
a foz do Douro com sucesso. Os miguelistas
decidiram-se, então, pelas operações passivas,
50 | HISTÓRIA DO PORTO
Obelisco da praia da Memória (Pampelido)
51 | A CIDADE LIBERAL
Proclamação
de D. Pedro a
os soldados antes
do desembarque
52 | HISTÓRIA DO PORTO
ou seja, limitarem-se à defesa das suas posi-
ções ao largo, de forma a tornar mais efectivo
o bloqueio do Porto e do seu aprovisiona-
mento, contando, entretanto, com a ajuda de
um enorme canhão, o “mata-malhados”, cons-
truído em Inglaterra e oferecido pelo contrata-
dor do tabaco a D. Miguel, com o qual se jul-
gava arrasar o Porto. Em Novembro, as
baterias na zona da Afurada e proximidades
começaram a atacar de forma mais incisiva a
navegação mercante e a frota de guerra anco-
rada na zona do Ouro: a partir de 7 de Dezem-
bro mais nenhum navio entrou na barra do
Douro, segundo Soriano, dificultando o abas-
tecimento e fazendo explodir o preço dos
bens alimentares.
O cerco apertava-se. Os liberais fizeram um
último apelo aos companheiros que não
tinham vindo no Exército Libertador por desin-
teligências várias (caso de Saldanha), alteraram
as chefias militares e tomaram várias medidas
relativas a arrecadação de impostos e de bens
sequestrados ou de conventos abandonados
(depois que Mouzinho da Silveira pediu a
demissão, em Dezembro, e foi substituído por
José da Silva Carvalho), incluindo o lança-
mento de um empréstimo forçado aos habi-
tantes do Porto e dos Açores (7 de Dezembro).
No âmbito do apoio externo, chegava o presti-
giado almirante francês Solignac, que desem-
barcou na Foz a 1 de Janeiro de 1833 com uma
frota de ajuda, mas trouxe numa das embarca-
ções doentes com cholera-morbus que conta-
giaram alguns descarregadores e foram inter-
nados no hospital Militar, espalhando-se a
doença pela cidade: entre 1 de Janeiro e 30 de
Agosto de 1833 foram registados nos hospitais
civis e militares 4039 internamentos de coléri-
cos, considerando-se que a mortalidade por
esta causa ascendeu a 3621, dentro e fora dos
hospitais15.
O desembarque de Saldanha, na Foz, a 28 de
Janeiro trouxe uma nova animação aos liberais,
pela reunião simbólica dos desavindos. O cerco
continuava, com sucessivos ataques às baterias
liberais, e a fome já se fazia sentir penosa-
mente, com alguns produtos a decuplicarem de
preço face aos valores habituais. Surgiu, então,
a criação de uma associação de sopa econó-
mica, que distribuía, crescentemente, milhares
de rações de quartilho por dia. A escassez ali-
mentar era acompanhada por bombardeamen-
tos cada vez mais generalizados à cidade inteira
pela construção de novas baterias em Gaia.
Alguns já falavam em capitulação, outros que-
riam ainda um ataque último aos sitiantes, pois
a memória das forcas mostrava que o melhor
caminho era lutar até ao fim.
O cerco continuava, com sucessivos ataques às baterias
liberais, e a fome já se fazia sentir penosamente,
com alguns produtos a decuplicarem de preço face
aos valores habituais.
—
A frota de Napier e as operações no Sul
A verdade é que a concentração das tropas
absolutistas no Norte, com vista a dar o golpe
final no Porto, desguarnecia os territórios do
Sul. A frota liberal que continuava junto à foz
do Douro constituía uma possibilidade de ata-
que, aliás uma parte das embarcações foi vigiar
os portos de Lisboa e Setúbal para tentar con-
trolar o movimento da navegação inimiga, com
quem teve pequenos confrontos. Equacionou-
se, então, uma expedição a Sagres, outra a Lis-
boa, mas o almirante Sartorius, que comandava
a frota desde o início, enredava-se em reivindi-
cações de pagamentos, insubordinações de
marinheiros e ameaças de deserção, o que obri-
gou à sua demissão (13 de Março de 1833).
Procurou-se outro comandante, que veio a ser o
célebre almirante inglês Charles Napier. Che-
gou ao Porto no dia 1 de Junho de 1833, acom-
panhado do duque de Palmela, vindos de Fal-
mouth, numa frota com cinco vapores (com
1200 soldados e espaço para embarcar mais 3
mil), antecipadamente organizada. Ali depara-
ram com 110 navios ancorados defronte da
barra. Napier veio com pressa de levar a expedi-
ção para fora do Porto, queria mesmo ir directo
para Lisboa, mas as delongas e desinteligências
do conselho militar em terra prolongavam a
indecisão, só resolvida a 11, perante a sua
ameaça de voltar para Inglaterra. Disponibiliza-
ram-lhe então 2500 homens, cujo embarque
começou no dia seguinte. E o duque da Ter-
ceira, por carta régia de 13 de Junho, foi
nomeado comandante com amplos poderes
para levar a efeito as operações que enten-
desse, de acordo com o conselho militar da
esquadra (ele, Napier e Palmela).
A 21 de Junho a expedição largava do Porto
(cinco vapores vindos da Inglaterra, mais três
fragatas, uma corveta e um brigue, da frota ori-
ginal dos Açores), sem anunciar destino. Os
miguelistas fizeram correr o boato de que era a
fuga para os Açores, embora alguns apostassem
numa tentativa de desembarque dos liberais
em Lisboa ou na Figueira, para uma eventual
interposição entre as tropas miguelistas.
A 24 de Junho, a frota desembarcava no
Algarve, no areal entre Monte Gordo e Cacela,
sem qualquer dificuldade, apenas algumas
escaramuças, pois era uma zona militarmente
desguarnecida. O general miguelista responsá-
vel pelo Algarve foi retirando com largas deser-
ções. Os corpos de tropas liberais avançaram
por terra — a 26 entraram em Olhão, a 27 em
Faro (onde se estabeleceu um governo civil e se
aclamou a rainha), enquanto a frota acompa-
nhava os movimentos, deslocando-se à vista da
53 | A CIDADE LIBERAL
costa. Em seis dias ocupou-se todo o Algarve,
recuperando-se armas, munições e homens.
Avisado por telégrafo, o governo de Lisboa fez
sair a sua esquadra do Tejo (nove embarcações),
que se avistou a 3 de Julho com a embarcação
de Napier, ao largo do cabo de S. Vicente. O
combate deu-se a 5 de Julho, saindo vitoriosa a
armada constitucional, que, por aprisiona-
mento da frota inimiga, alargou a sua em mais
cinco embarcações, tendo-se escapado duas
outras rumo a Lisboa e mais dois brigues (um
rumou à Madeira, outro juntou-se depois aos
vencedores). Esta vitória naval precipitou os
acontecimentos: deixou os absolutistas sem
armada, desmoralizando-os, e deu um impulso
anímico aos liberais que voltaram a ganhar
esperança. O Tejo ficava livre para a frota de
Napier. E as tropas do duque da Terceira, então
retidas em Loulé, puderam internar-se pelo
Alentejo, chegar a Setúbal, onde derrotaram
uma divisão miguelista, e a Cacilhas, derro-
tando outra.
Entretanto, perante a incapacidade dos seus
generais para romperem as defesas do Porto, os
absolutistas recrutaram um célebre marechal
francês, Bourmont, por quem esperavam,
acompanhado de um conjunto de oficiais, para
o assalto final. A 4 de Julho, já o Porto festejava
o desembarque no Algarve, com bandas de
música e iluminações. Pagou caro esse entu-
siasmo no dia seguinte, perante mais uma
investida fortíssima dos absolutistas na zona do
Carvalhido e Prelada, que ocasionou muitas
perdas, mas não teve melhor sucesso que as
anteriores (21 mortos e 66 feridos para os libe-
rais; pelo menos 150 mortos deixados no
campo da batalha, outros retirados, para os
miguelistas, calculando Soriano um total de
900 a mil mortos).
No dia 9 de Julho, aniversário da entrada do
Exército Libertador no Porto, D. Pedro fazia
uma proclamação, anunciando a vitória naval
do cabo de S. Vicente, e mandou um emissário
parlamentar com o inimigo, o que foi recusado.
Bourmont chegava finalmente a 10 de Julho a
Vila do Conde e andou a reconhecer o terreno.
Num acto táctico, os absolutistas ainda anun-
ciaram uma amnistia para todos os liberais até
à patente de coronel.
Entretanto, o teatro da guerra alterava-se com
as operações a sul, com os soldados miguelistas
a engrossarem as tropas liberais e a ajudarem
no controlo do Alentejo, bem como os mari-
nheiros a equiparem os navios agora domina-
dos por Napier. Até uma pequena força que
tinha partido do Porto para agitar a Zona Cen-
tro, tendo ficando sediada nas Berlengas, fazia
sortidas em terra, acabando por tomar Peniche.
54 | HISTÓRIA DO PORTO
A vitória naval ao largo do cabo de São Vicente
precipitou os acontecimentos: deixou os absolutistas
sem armada, desmoralizando-os, e deu um impulso
anímico aos liberais, que voltaram
a ganhar esperança.
—
55 | A CIDADE LIBERAL
A 24 de Julho, Almada rendia-se ao duque da
Terceira, que ali chegara num percurso de
sucessivas aclamações através do Alentejo.
Nesse dia, em Lisboa, as tropas miguelistas do
duque do Cadaval reuniam no Campo Grande e
evacuavam para Coimbra, e com elas muitos
civis comprometidos, deixando Lisboa a desco-
berto.
Na manhã desse dia, 24 de Julho de 1833, no
Cais do Sodré, num pequeno grupo de catraei-
ros davam-se vivas a D. Maria II e à Carta Cons-
titucional. A esse grupo juntaram-se mais popu-
lares que, engrossando, foram pelas ruas de
Lisboa até ao Terreiro do Paço, sem qualquer
resistência da parte dos miguelistas, eles que
no dia anterior tinham executado precisa-
mente no Cais do Sodré um preso político. No
Terreiro do Paço multiplicaram-se os subleva-
dos, uns foram às cadeias libertar presos libe-
rais, outros foram içar a bandeira azul e branca
em pontos simbólicos da cidade (castelo de S.
Jorge e fortalezas costeiras), outros ainda ao
Arsenal do Exército, onde se apossaram das
armas. Foi então que um brigadeiro, Sampaio e
Pina, assumiu a condução do movimento popu-
lar: abriu as portas da Câmara Municipal e
falou ao povo, formulou um auto de aclamação
da rainha e da carta, mandou uma deputação
ao duque da Terceira, ainda em Almada, convi-
dando-o a vir para Lisboa e colocando-lhe uma
escuna à disposição. O duque desconfiou de
uma cilada, mas era a libertação de um regime
despótico, que governava sobre o medo da
forca e da repressão. Nesse mesmo dia entrava
a esquadra de Napier no Tejo, cuja primeira
missão foi apossar-se do forte de S. Julião da
Barra.
A Corte liberal parte para Lisboa, mas o cerco continua
No Porto, a 25 de Julho as tropas absolutistas, já
sob o comando de Bourmont, que passou a dis-
por de um exército de 40 mil homens, tenta-
ram de novo forçar as defesas da cidade e isolá-
la da Foz. Atacam sobre Lordelo, a partir do
reduto de Serralves e das baterias de Gaia,
depois avançam sobre Francos e Prelada, ata-
cando em seguida outras defesas (Campanhã,
Bonfim, Guelas de Pau). Foram novamente
rechaçados naquele que foi considerado o ata-
que mais desesperado, com elevadas perdas (67
mortos, 244 feridos, 11 prisioneiros para os
constitucionais; cerca de 600 mortos e 4000
feridos para os miguelistas). Seria o último
grande confronto do cerco.
A notícia da queda de Lisboa chegara ao Porto e
ao quartel-general de D. Pedro. A 26 de Julho,
57 | A CIDADE LIBERAL
pelas 10 horas da noite, D. Pedro falou aos
“amigos portuenses”, a quem fez uma procla-
mação, dando notícia das conquistas a sul e
mostrando a necessidade de partir, após o que
se dirigiu à Foz e embarcou rumo a Lisboa,
ficando a segurança da cidade entregue a Salda-
nha. Pelo início da tarde de 28 de Julho de 1833,
D. Pedro desembarcava no Tejo e era aclamado
em Lisboa e, com ele, a rainha e a Carta Consti-
tucional.
Entretanto, o Porto continuava cercado. Só no
dia 9 de Agosto se percebeu na cidade que Bour-
mon já estava a levantar as tropas desde o dia 2,
afastando artilharia e homens de fortes como
Castro, Ervilha, Serralves, abrindo passagem
entre Lordelo e Matosinhos, por onde começa-
ram logo a entrar provisões para a cidade. As
tropas miguelistas retiravam-se também para
Coimbra, num efeito de concentração e reorga-
nização.
Antes da partida definitiva, os miguelistas
ainda tentaram negociar os vinhos da Compa-
nhia, em Vila Nova de Gaia, para fazerem
frente à escassez de fundos, o que atrasou a par-
tida: o duque de Lafões, ministro miguelista,
veio a Gaia, com um agente alemão, conferen-
ciar com Saldanha, de forma a que este anuísse
à saída do vinho para Inglaterra, caso contrário
seria destruído. A Junta da Companhia opôs-se,
considerando que o vinho era dos accionistas e
credores, responsabilizando o duque de Lafões
por eventuais perda e danos. Apesar da indigna-
ção geral pelo objectivo miguelista de captação
dos vinhos, os miguelistas, agora comandados
pelo francês conde d’Almer, a cobrir a retirada,
minaram os armazéns e, a 16 de Agosto, pega-
ram fogo aos rastilhos, provocando um vio-
lento incêndio. Foi um acto que indignou a
população, dada a riqueza que o vinho repre-
sentava, pertencente a particulares: cerca de
600 pipas de aguardente, 12 mil pipas de vinho,
3 mil cascos vazios, instalações, numa destrui-
ção calculada, a valores da altura, em cerca de
2500 contos de réis16.
Coube a Saldanha, face à persistência de algu-
mas baterias que impediam a navegação no
Douro e de outras posições miguelistas, passar
à ofensiva, com incursões aos arrabaldes para
dispersar as forças inimigas. A 19 de Agosto
fazia-se o levantamento do bloqueio da barra,
com os navios a entrarem, ancorando normal-
mente frente à cidade. A 20 de Agosto de 1833,
o inimigo abandonava definitivamente Vila
Nova de Gaia, só então sendo considerado como
findo o cerco do Porto, que durava desde 9 de
Julho de 1832, ou seja, mais de treze meses, ao
longo do qual terão morrido 732 soldados
constitucionais e 2586 dados como feridos.
Saldanha trouxe um novo ímpeto às hostes liberais
A convenção de Évora-Monte e a morte de D. Pedro IV
A guerra civil mudou de configuração, com a
perda das duas principais cidades pelos migue-
listas, mas continuou, agora na Zona Centro do
país, com escaramuças de desespero em muitos
lugares da província, recusando os miguelistas
ceder no imediato para a pacificação. Ainda
tentaram avançar para Lisboa, mas, não conse-
guindo entrar, retrocederam para Santarém.
Entretanto, um facto novo surgia em Espanha:
Fernando VII, que tinha sido hostil à causa legiti-
mista, morreu em 29 de Setembro de 1833. Suce-
deu-lhe uma filha menor, cujo trono era reivindi-
cado por seu tio Carlos, o qual, em litígio, tinha
recebido apoio e hospedagem de D. Miguel, tra-
zendo consigo vários militares. Com a subida ao
trono de Isabel II, tutelada pela mãe Maria Cris-
tina, a similaridade veio ao de cima, entendendo-
se agora as duas regências peninsulares contra o
carlismo e o miguelismo, procurando impedir a
circulação de forças militares adversas. Expressão
da nova correlação de forças é o tratado assinado
em Londres, em 22 de Abril de 1834, entre os
governos de Inglaterra, França, Espanha e Portu-
gal “a fim de unirem os seus mútuos esforços
para fazer cessar as hostilidades na península e
obrigar a sair dos domínios portugueses o ex-
Infante Dom Miguel de Portugal e o Infante Dom
Carlos de Espanha”. Este tratado, ratificado em
10 de Maio de 1834, constituindo a Quádrupla
Aliança, previa que uma força espanhola viesse
coadjuvar as tropas portuguesas para cumprir o
objectivo previsto e a disponibilidade da Ingla-
terra e da França para ajudarem, caso necessário.
No teatro das operações de guerra, os constitu-
cionais alcançaram vitórias significativas em
Almoster (18 de Fevereiro) e Asseiceira (11 de
Maio), as quais abriram o caminho para a con-
venção de Évora-Monte, assinada apenas em 26
de Maio de 1834. Esta convenção dava uma
amnistia geral para todos os delitos políticos
(com algumas excepções nominais) e garantia
aos militares os seus postos, implicando a disso-
lução do exército miguelista. Obrigava ainda à
saída de D. Miguel para o estrangeiro no prazo
de quinze dias, com a promessa de não voltar a
Portugal e de não se imiscuir nos negócios polí-
ticos, mas garantindo uma pensão anual de 60
contos de réis. A convenção foi, por uns, consi-
derada magnânima, para outros foi uma capitu-
lação generosa, quando não uma cobardia, acir-
rando-se os ânimos da oposição liberal contra
D. Pedro e seu governo, pela protecção dada ao
usurpador. Por isso D. Pedro, com a família
real, foi objecto de uma assuada no teatro de S.
Carlos, no dia 27 de Maio, conhecidos que
foram os termos da convenção.
58 | HISTÓRIA DO PORTO
A convenção de Évora-Monte obrigava à saída
de D. Miguel para o estrangeiro no prazo de quinze
dias, com a promessa de não voltar a Portugal
e de não se imiscuir nos negócios políticos, mas
garantindo uma pensão anual de 60 contos de réis.
—
59 | A CIDADE LIBERAL
Entretanto houve eleições legislativas e, a 15 de
Agosto, D. Pedro abriu as Cortes. Aí se colocou
desde logo a continuidade da regência, que as
Cortes consagraram, com alguns poucos a con-
testá-la (entre eles, um dos novos deputados
eleitos pelo Porto — Passos Manuel). Mas a
regência era já um acto simbólico de consagra-
ção.
A 18 de Setembro, o presidente da Câmara de
Deputados, Frei Francisco de S. Luís (depois car-
deal Saraiva) lia uma carta de D. Pedro em que
este se declara incapaz de continuar a assumir
os negócios públicos e pedia à Câmara para
“prover de remédio”. A Câmara decidiria pela
maioridade da rainha, então com 15 anos, que
subia formalmente ao trono a 20 de Setembro.
D. Pedro tomava conhecimento da decisão das
Cortes e, a 24, falecia, com 35 anos, vítima de
tuberculose.
Anote-se o apego de D. Pedro ao Porto, doando,
em testamento, a esta cidade o seu coração, que
foi guardado numa pequena urna instalada
num altar da igreja da Lapa, igreja que tinha
frequentado para os ofícios religiosos durante o
cerco. Este altar passou a representar um lugar
de especial valor simbólico, ponto de romagem
para os liberais cartistas. Os defensores do porto
62 | HISTÓRIA DO PORTO
Uma das medidas tomadas pelo “governo do Porto”
estabeleceu o direito de qualquer cidadão poder
ser admitido a cargos públicos, civis, políticos
ou militares “sem outra diferença que não seja
a dos seus talentos e virtudes”, sendo abolidas
as antigas exigências de “provanças de nobreza”.
—
Com a entrada do Exército Libertador e, conse-
quentemente, do governo de D. Pedro, o Porto
tornou-se o espaço metropolitano em que pri-
meiro se aplicou a legislação liberal publicada
desde o “governo dos Açores”, alguma já refe-
renciada.
Aplicar as ideias liberais a partir do Porto
Uma das primeiras medidas do “governo do
Porto”, a 14 de Julho de 1832, foi acabar com o
exclusivo da Companhia Geral da Agricultura
das Vinhas do Alto Douro da venda de vinho e
aguardente aos habitantes do Porto e de produ-
ção de aguardente, agora de venda e produção
livres. Estes produtos agora pagariam imposto
pela entrada na cidade, mas agora a ser pago ao
recebedor-geral, sem intervenção da compa-
nhia.
Ainda a 14 de Julho extinguiam-se os corpos de
milícias, considerados um dos “maiores flage-
los” da nação, compostos por lavradores, nego-
ciantes e artistas compelidos a interromper as
suas actividades para se entregarem ao exercí-
cio militar. O mesmo acontecia ao sistema de
ordenanças (decreto de 20 de Julho). Pela
mesma altura (17 de Julho) era concedida
amnistia geral de todos os delitos políticos
cometidos desde 31 de Julho de 1826, com
excepção dos de um pequeno conjunto de per-
sonalidades ligadas directamente ao acto da
usurpação. A 28 de Julho criava-se a Ordem
Militar de Torre e Espada do Valor, Lealdade e
Mérito para distinguir os feitos militares que
todos os dias se faziam sentir.
A extinção dos dízimos (imposto correspon-
dente à décima parte da produção agrícola) che-
gava a 30 de Julho (decreto nº 40), precedido de
um marcante relatório de Mouzinho da Silveira
sobre a reforma tributária, considerando-se este
imposto culpado por grande parte das terras
incultas em Portugal. A 13 de Agosto surgia o
decreto nº 44 com o objectivo de tornar alodiais
e alienáveis os bens da Coroa, extinguindo os
foros e outras prestações de natureza senhorial.
Ao nível local, organizou-se a cidade do Porto,
para efeitos da administração da justiça crimi-
nal e da segurança pública, em três bairros:
Cedofeita, Santo Ovídio e Santa Catarina. Cada
bairro tinha à frente um juiz do crime, sendo
dividido em secções com um juiz pedâneo e
um comissário de segurança pública (decreto
de 4 de Dezembro de 1832). Os objectivos de
controlo eram evidentes, numa altura propícia
à indisciplina e ao banditismo.
Não sendo possível dar conta de todas as medi-
das tomadas pelo “governo do Porto”, muitas
63 | A CIDADE LIBERAL
delas adstritas à situação de guerra, importa
sublinhar resumidamente algumas medidas de
alcance municipal e/ou nacional. Foi o caso da
determinação do direito de qualquer cidadão
poder ser admitido a cargos públicos, civis, polí-
ticos ou militares “sem outra diferença que não
seja a dos seus talentos e virtudes”, sendo aboli-
das as antigas exigências de “provanças de
nobreza” (decreto nº 45, de 27 de Agosto de
1832). De se tornar livre a produção e venda de
sabão (decreto nº 48, de 21 de Novembro). De
facilitar a entrada de subsistências para a
cidade, pagando apenas metade dos impostos
previstos anteriormente, e a criação de um
depósito público no mesmo sentido. Da supres-
são do convento de Santo Elói, incorporado
desde logo nos Bens Nacionais, com uma presta-
ção de 12 mil réis mensais para cada religioso
egresso, medida que antecipava a regulamenta-
ção prevista em decreto dos Açores sobre os con-
ventos a extinguir (30 de Abril de 1833). Em 15
de Maio a supressão era alargada a todos os con-
ventos, hospícios e mosteiros abandonados por
religiosos ou religiosas na cidade e seus bens
incorporados nos Bens Nacionais. Da reversão
do Campo da Cordoaria à Câmara Municipal
para a criação de um passeio público, bem como
do recolhimento do Anjo e sua cerca para a
construção de um mercado (decreto nº 60, de 20
de Maio de 1833). Da emissão de acções intitula-
das — Acções do Tesouro de Portugal, em Lon-
dres, até 200 mil libras (decreto nº 62, de 13 de
Junho de 1833). Da publicação de um regula-
mento para a administração militar (decreto nº
64A, 26 de Junho de 1833). Da divisão adminis-
trativa do território nacional, sucessivamente,
em províncias, comarcas, concelhos e freguesias
(decreto nº 65).
Uma das medidas de maior simbolismo para a
cidade do Porto é a que resulta do decreto nº
67, de 9 de Junho de 1833, que determina a cria-
ção da Real Biblioteca Pública da Cidade do
Porto. O relatório prévio, da autoria de Cândido
José Xavier, sustenta-se na afirmação de que “a
ignorância é a inimiga mais irreconciliável da
Liberdade”, sendo uma obrigação do governo
administrar a instrução necessária, nessa linha
se inserindo já os decretos dos Açores sobre a
liberdade de ensino público, como passo para a
generalização da instrução primária, universal
e gratuita que a Carta Constitucional previa.
Ora, uma das estruturas necessárias para essa
generalização eram os “depósitos de todos os
conhecimentos humanos”, conhecidos como
bibliotecas. Havia já uma biblioteca pública em
Lisboa, desde 1796:
“O Porto, porém, Senhor, tão notável por sua
riqueza, indústria e comércio; tão distinto nos
65 | A CIDADE LIBERAL
Mouzinho da Silveira, Palmela, Saldanha e Silva Carvalho.
Painel de Columbano Bordalo Pinheiro. Assembleia da República
66 | HISTÓRIA DO PORTO
À recuperação das livrarias dos conventos
abandonados juntou-se a riquíssima biblioteca
particular (cerca de 36 mil volumes) do bispo D. João
de Magalhães e Avelar, que, tendo dado o seu aval
ao absolutismo, se afastou do Porto.
—
tempos pela sua lealdade e pela sua adesão à
Causa da Pátria, tão heróico hoje pelos sacrifí-
cios de todos os géneros, feitos a prol da Restau-
ração do Legítimo Governo e das Liberdades
Nacionais; o Porto, ornamento da mais bela
Província do reino, Província que tem sido o
berço de tantos talentos ilustres, que nas dife-
rentes épocas da Monarquia pelas suas virtudes
e pelo seu saber têm honrado no seu País e nos
estranhos o século em que viveram; o Porto
carecia de um estabelecimento desta natureza,
a que por tantos títulos tem um particular
direito. (... ) Não escapará aos ilustres portuen-
ses que no primeiro dia aniversário do dia
memorável em que Vossa majestade Imperial
apareceu entre eles com o nobre fim de restabe-
lecer na Mãe Pátria o Governo da razão e da Lei,
Vossa Majestade Imperial fundou nesta Cidade,
terra clássica do valor Cívico, da Liberdade e do
Patriotismo, um monumento durável que
insultando nobremente o despotismo é mais
uma atalaia estabelecida para segurança e
defesa das Liberdades Nacionais”.
Por estas razões, reconhecimento da importân-
cia das bibliotecas para a instauração da liber-
dade e celebração do primeiro aniversário da
entrada do Exército Libertador na cidade (por
sinal, dia de grande bombardeamento, uma vez
que os miguelistas queriam também assinalar a
data de outra forma, estragando os festejos),
estabelecia-se a Real Biblioteca (hoje Biblioteca
Pública Municipal do Porto), directamente
dependente do Ministério do Reino, servindo
de primeiro fundo as obras dos conventos aban-
donados que tinham ficado incorporados nos
bens nacionais. Seria estabelecida na casa de
um hospício na Praça da Cordoaria, e, depois de
fundada à custa da Fazenda Pública, entregue à
Câmara Municipal para conservação e custea-
mento. O decreto estabelecia depois outras
regras de funcionamento, incluindo o direito à
recepção de um exemplar de qualquer obra
publicada em Portugal (depósito legal), bem
como a obrigação de entregar as obras duplica-
das derivadas da recolha inicial à Academia da
Marinha e Comércio e à Escola de Cirurgia da
cidade. A recolha dos fundos primitivos ini-
ciou-se em pleno cerco e nela teve um papel
decisivo Alexandre Herculano, então nomeado
segundo bibliotecário quando era um soldado
do Batalhão dos Voluntários da Rainha. À recu-
peração das livrarias dos conventos abandona-
dos juntou-se a riquíssima biblioteca particular
(cerca de 36 mil volumes) do bispo D. João de
Magalhães e Avelar, que, tendo dado o seu aval
ao absolutismo, se afastou do Porto com a
entrada dos liberais na cidade: a sua biblioteca
foi sequestrada e depositada na Biblioteca,
67 | A CIDADE LIBERAL
Palácio da Bolsa, sede da Associação Comercial do Porto
sendo mais tarde objecto de querela judiciária,
negociada e paga aos herdeiros (lei de 30 de
Julho de 1843). A Real Biblioteca, cuja criação
tinha sido já defendida nas Cortes de 1821, foi
sendo enriquecida posteriormente com a doa-
ção de muitos outros fundos, passando a ocu-
par, em 1842, o actual edifício, ex-convento de
Santo António, frente ao Jardim de S. Lázaro.
A partir dos finais de Julho de 1833 o governo
passou a administrar o reino a partir de Lisboa,
após a transferência de D. Pedro para a capital.
Uma medida desse governo teve impacto
directo no Porto e sua região. Por decreto de 30
de Maio de 1834, foi conferida maior latitude à
extinção dos privilégios da Companhia das
Vinhas do Alto Douro, a qual perdia agora os
privilégios de demarcação, arrolamento, provas
e qualificações, taxas de preços, feira e tempo
de carregação, preferência nas compras e uma
conservatória, com privilégio de Fazenda Real,
para a cobrança das dívidas activas. Para se evi-
tar a continuação de “actos arbitrários e iní-
quos” derivados de um corpo de comércio fisca-
lizar os outros comerciantes, declarava-se o fim
de todos os privilégios da companhia e o direito
de cada lavrador dispor dos seus vinhos como
lhe aprouvesse, em mais uma medida de “liber-
tação da terra”, sendo que os vinhos de expor-
tação pagariam 12$000 réis de imposto em cada
pipa, como forma de garantir a qualidade de
origem (e a certeza de arrecadar receitas para a
Fazenda Publica). Medida que suscitou muita
polémica, mesmo no interior do partido gover-
namental, em face do papel que a companhia,
agora mera empresa comercial, ainda podia
desempenhar e que, por isso, foi objecto de
legislação posterior, repondo algumas daquelas
funções.
A cidade mercantil em afirmação
Com a vitória liberal, o Porto afirma a sua natu-
reza comercial e industrial e a cidade vai
ampliar-se de acordo com esses desígnios,
seguindo valores burgueses e claramente capi-
talistas, empenhada na produção de riqueza e
na implementação de melhoramentos mate-
riais, mas também na difusão de conhecimen-
tos, através das suas escolas secundárias e supe-
riores, das instituições de cultura entretanto
implementadas.
O empenho dos negociantes do Porto na causa
constitucional faz com que as alterações sociais
decorrentes da guerra civil não sejam aqui
muito sentidas, a não ser na reafirmação e
ampliação da rede social ligada ao comércio que
já dominava a cidade e que era um dos factores
69 | A CIDADE LIBERAL
D. João de Magalhães e Avelar, bispo do Porto, afastou-se
da cidade antes da chegada do Exército de D. Pedro