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UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA (UFRO)
      CENTRO DE HERMENÊUTICA DO PRESENTE

         PRIMEIRA VERSÃO
                                                           PRIMEIRA VERSÃO
                                                           ISSN 1517-5421      lathé biosa

                                                                                         245
ANO VIII, Nº 245 - SETEMBRO - PORTO VELHO, 2009.
               Volume XXVII - Set/Dez.

                     ISSN 1517-5421


                       EDITOR
                  NILSON SANTOS
               CONSELHO EDITORIAL
        ALBERTO LINS CALDAS – História - UFRO
   CLODOMIR S. DE MORAIS – Sociologia - IATTERMUND
            ARTUR MORETTI – Física - UFRO
           CELSO FERRAREZI – Letras - UFRO
      HEINZ DIETER HEIDEMANN – Geografia - USP
       JOSÉ C. SEBE BOM MEIHY – História – USP
         MARIO COZZUOL – Biologia – PUC-RGS
            MIGUEL NENEVÉ – Letras - UFRO
         ROMUALDO DIAS – Educação - UNICAMP
        VALDEMIR MIOTELLO – Filosofia - UFSC

Os textos no mínimo 3 laudas, tamanho de folha A4, fonte
Times New Roman 11, espaço 1.5, formatados em “Word for      EDUCAÇÃO APÓS AUSCHWITZ
     Windows” deverão ser encaminhados para e-mail:


                                                                                Theodor Adorno
                    nilson@unir.br
                   CAIXA POSTAL 775
                    CEP: 78.900-970
                    PORTO VELHO-RO


                TIRAGEM 200 EXEMPLARES
       EDITORA UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA
EDUCAÇÃO APÓS AUSCHWITZ
        Theodor Adorno


        A exigência que Auschwitz não se repita é a primeira de todas para a educação. De tal modo ela precede quaisquer outras que creio não ser possível nem
necessário justificá-la. Não consigo entender como até hoje mereceu tão pouca atenção. Justificá-la teria algo de monstruoso em vista de toda monstruosidade
ocorrida. Mas a pouca consciência existente em relação a essa exigência e as questões que ela levanta provam que a monstruosidade não calou fundo nas pessoas,
sintoma da persistência da possibilidade de que se repita no que depender do estado de consciência e de inconsciência das pessoas. Qualquer debate acerca de metas
educacionais carece de significado e importância frente a essa meta: que Auschwitz não se repita. Ela foi a barbárie contra a qual se dirige toda a educação. Fala-se
da ameaça de uma regressão à barbárie. Mas não se trata de uma ameaça, pois Auschwitz foi a regressão; a barbárie continuará existindo enquanto persistirem no
que têm de fundamental as condições que geram esta regressão. E isto que apavora. Apesar da não-visibilidade atual dos infortúnios, a pressão social continua se
impondo. Ela impele as pessoas em direção ao que é indescritível e que, nos termos da história mundial, culminaria em Auschwitz. Dentre os conhecimentos
proporcionados por Freud, efetivamente relacionados inclusive à cultura e à sociologia, um dos mais perspicazes parece-me ser aquele de que a civilização, por seu
turno, origina e fortalece progressivamente o que é anticivilizatório. Justamente no que diz respeito a Auschwitz, os seus ensaios O mal-estar na cultura e Psicologia
de massas e análise do eu mereceriam a mais ampla divulgação. Se a barbárie encontra-se no próprio principio civilizatório, então pretender se opor a isso tem algo
de desesperador.
        A reflexão a respeito de como evitar a repetição de Auschwitz é obscurecida pelo fato de precisarmos nos conscientizar desse elemento desesperador, se não
quisermos cair presas da retórica idealista. Mesmo assim é preciso tentar, inclusive porque tanto a estrutura básica da sociedade como os seus membros, responsáveis
por termos chegado onde estamos, não mudaram nesses vinte e cinco anos. Milhões de pessoas inocentes ---- e só o simples fato de citar números já é humanamente
indigno, quanto mais discutir quantidades —foram assassinadas de uma maneira planejada. Isto não pode ser minimizado por nenhuma pessoa viva como sendo um
fenômeno superficial, como sendo uma aberração no curso da história, que não importa, em face da tendência dominante do progresso, do esclarecimento, do
humanismo supostamente crescente. O simples fato de ter ocorrido já constitui por si só expressão de uma tendência social imperativa. Nesta medida gostaria de
remeter a um evento, que de um modo muito sintomático parece pouco conhecido na Alemanha, apesar de constituir a temática de um best-seller como Os quarenta
dias de Musa Dagh, de Werfel. Já na Primeira Guerra Mundial os turcos —- o assim chamado movimento turco jovem dirigido por Enver Pascha e Talaat Pascha —
— mandaram assassinar mais de um milhão de armênios. Importantes quadros militares e governamentais, embora, ao que tudo indica, soubessem do ocorrido,
guardaram sigilo estrito, O genocídio tem suas raízes naquela ressurreição do nacionalismo agressor que vicejou em muitos países a partir do fim do século XIX.
Além disso não podemos evitar ponderações no sentido de que a invenção da bomba atômica, capaz de matar centenas de milhares literalmente de um só
golpe, insere-se no mesmo nexo histórico que o genocídio. Tornou-se habitual chamar o aumento súbito da população de explosão populacional: parece que a
fatalidade histórica, para fazer frente à explosão populacional, dispõe também de contra-explosões, o morticínio de populações inteiras. Isto só para indicar como as
forças às quais é preciso se opor integram o curso da história mundial.
        Como hoje em dia é extremamente limitada a possibilidade de mudar os pressupostos objetivos, isto é, sociais e políticos que geram tais acontecimentos, as
tentativas de se contrapor à repetição de Auschwitz são irnpelidas necessariamente para o lado subjetivo. Com isto refiro-me sobretudo também à psicologia das
pessoas que fazem coisas desse tipo. Não acredito que adianta muito apelar a valores eternos, acerca dos quais justamente os responsáveis por tais atos reagiriam
com menosprezo; também não acredito que o esclarecimento acerca das qualidades positivas das minorias reprimidas seja de muita valia. É preciso buscar as raízes
nos perseguidores e não nas vitimas, assassinadas sob os pretextos mais mesquinhos. Torna-se necessário o que a esse respeito uma vez denominei de inflexão em
direção ao sujeito. É preciso reconhecer os mecanismos que tornam as pessoas capazes de cometer tais atos, é preciso revelar tais mecanismos a eles próprios,
procurando impedir que se tornem novamente capazes de tais atos, na medida em que se desperta uma consciência geral acerca desses mecanismos. Os culpados não
são os assassinados, nem mesmo naquele sentido caricato e sofista que ainda hoje seria do agrado de alguns. Culpados são unicamente os que, desprovidos de
consciência, voltaram Contra aqueles seu ódio e sua fúria agressiva. E necessário contrapor-se a uma tal ausência de consciência, é preciso evitar que as pessoas
golpeiem para os lados sem refletir a respeito de si próprias. A educação tem sentido unicamente como educação dirigida a uma auto-reflexão crítica. Contudo, na
medida em que, conforme os ensinamentos da psicologia profunda, todo caráter, inclusive daqueles que mais tarde praticam crimes, forma-se na primeira infância, a
educação que tem por objetivo evitar a repetição precisa se concentrar na primeira infância. Já mencionei a tese de Freud acerca do mal-estar na cultura. Ela é ainda
mais abrangente do que ele mesmo supunha: sobretudo porque, entrementes, a pressão civilizatória observada por ele multiplicou-se em uma escala insuportável. Por
essa via as tendências à explosão a que ele atentara atingiriam uma violência que ele dificilmente poderia imaginar. porém o mal-estar na cultura tem seu lado social
---- o que Freud sabia, embora não o tenha investigado concretamente. É possível falar da claustrofobia das pessoas no mundo administrado, um sentimento de
encontrar-se enclausurado numa situação cada vez mais socializada, como uma rede densamente interconectada. Quanto mais densa é a rede, mais se procura
escapar, ao mesmo tempo em que precisamente a sua densidade impede a saída. Isto aumenta a raiva contra a civilização. Esta torna-se alvo de uma rebelião violenta
e irracional.
        Um esquema sempre confirmado na história das perseguições é o de que a violência contra os fracos se dirige principalmente contra os que são considerados
socialmente fracos e ao mesmo tempo ---- seja isto verdade ou não —- felizes. De uma perspectiva sociológica eu ousaria acrescentar que nossa sociedade, ao
mesmo tempo em que se integra cada vez mais, gera tendências de desagregação. Essas tendências encontram-se bastante desenvolvidas logo abaixo da superfície da


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vida civilizada e ordenada. A pressão do geral dominante sobre tudo que é particular, os homens individualmente e as instituições singulares, tem uma tendência a
destroçar o particular e individual juntamente com seu potencial de resistência. Junto com sua identidade e seu potencial de resistência, as pessoas também perdem
suas qualidades, graças a qual têm a capacidade de se contrapor ao que em qualquer tempo novamente seduz ao crime. Talvez elas mal tenham condições de resistir
quando lhes é ordenado pelas forças estabelecidas que repitam tudo de novo, desde que apenas seja em nome de quaisquer ideais de pouca ou nenhuma
credibilidade.
        Quando falo de educação após Auschwitz, refiro-me a duas questões: primeiro, à educação infantil, sobretudo na primeira infância; e, além disto, ao
esclarecimento geral, que produz um clima intelectual, cultural e social que não permite tal repetição; portanto, um clima em que os motivos que conduziram ao
horror tornem-se de algum modo conscientes. Evidentemente não tenho a pretensão de sequer esboçar o projeto de uma educação nesses termos. Contudo, quero ao
menos indicar alguns pontos nevrálgicos. Com freqüência por exemplo, nos Estados Unidos —- o espirito germânico de confiança na autoridade foi responsabilizado
pelo nazismo e também por Auschwitz. Considero esta afirmação excessivamente superficial, embora na Alemanha, como em muitos outros países europeus,
comportamentos autoritários e autoridades cegas perdurem com mais tenacidade sob os pressupostos da democracia formal do que se ~‘4ueira reconhecer. Antes é
de se supor que o fascismo e o horror que produziu se relacionam com o fato de que as antigas e consolidadas autoridades do império haviam ruído e se esfacelado,
mas as pessoas ainda não se encontravam psicologicamente preparadas para a autodeterminação. Elas não se revelaram à altura da liberdade com que foram
presenteadas de repente. É por isso que as estruturas de autoridade assumiram aquela dimensão destrutiva e ---- por assim dizer — de desvario que antes, ou não
possuíam, ou seguramente não revelavam. Quando lembramos que visitantes de quaisquer potentados. já politicamente desprovidos de qualquer função real, levam
populações inteiras a explosões de êxtase, então se justifica a suspeita de que o potencial autoritário permanece muito mais forte do que o imaginado. Porém quero
enfatizar com a maior intensidade que o retorno ou não retorno do fascismo constitui em seu aspecto mais decisivo uma questão social e não uma questão
psicológica. Refiro-me tanto ao lado psicológico somente porque os demais momentos, mais essenciais, em grande medida escapam à ação da educação, quando não
se subtraem inteiramente à interferência dos indivíduos.
        Freqüentemente pessoas bem-intencionadas e que se opõem a que tudo aconteça de novo citam o conceito de vínculos de compromisso. A ausência de
compromissos das pesssoas seria responsável pelo que aconteceu. Isto efetivamente tem a ver com a perda da autoridade, uma das condições do pavor
sadomasoquista. É plausível para o entendimento humano sadio evocar compromissos que detenham o que é sádico, destrutivo, desagregador, mediante um enfático
"não deves". Ainda assim considero ser uma ilusão imaginar alguma utilidade no apelo a vínculos de compromisso ou até mesmo na exigência de que se
reestabeleçam vinculações de compromisso para que o mundo e as pessoas sejam melhores. A falsidade de compromissos que se exige somente para que provoquem
alguma coisa —- mesmo que esta seja boa ----, sem que eles sejam experimentados por si mesmos como sendo substanciais para as pessoas, percebe-se muito


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prontamente. E espantosa a rapidez com que até mesmo as pessoas mais ingênuas e tolas reagem quando se trata de descobrir as fraquezas dos superiores.
Facilmente os chamados compromissos convertem-se em passaporte moral --— são assumidos com o objetivo de identificar-se como cidadão confiável — ou então
produzem rancores raivosos psicologicamente contrários à sua destinação original. Eles significam uma heteronomia, um tornar-se dependente de mandamentos, de
normas que não são assumidas pela razão própria do indivíduo, O que a psicologia denomina superego, a consciência moral, é substituído no contexto dos
compromissos por autoridades exteriores, sem compromisso, intercambiáveis, como foi possível observar com muita nitidez também na Alemanha depois da queda
do Terceiro Reich. Porém justamente a disponibilidade em ficar do lado do poder, tomando exteriormente como norma curvar-se ao que é mais forte, constitui
aquela índole dos algozes que nunca mais deve ressurgir. Por isto a recomendação dos compromissos é tão fatal. As pessoas que os assumem mais ou menos
livremente são colocadas numa espécie de permanente estado de exceção de comando. O único poder efetivo contra o princípio de Auschwitz seria autonomia, para
usar a expressão kantiana; o poder para a reflexão, a autodeterminação, a não-participação.
        Certa feita uma experiência me assustou muito: numa viagem ao lago de Constância, eu lia num jornal de Baden em que se informava acerca da peça Mortos
sem sepuItura, de Sartre, que representa as situações mais terríveis. A peça incomodava visivelmente o critico. Mas ele não explicou este incômodo mediante o
horror da coisa que constitui o horror de nosso mundo, mas torceu a questão como se, frente a uma posição como a de Sartre, que se ocupara do problema, nós
tivéssemos, por assim dizer, um sentido para algo mais nobre: que não poderíamos reconhecer a ausência de sentido do horror. Resumindo: o critico procurava se
subtrair ao confronto com o horror graças a um sofisticado palavrório existencial. O perigo de que tudo aconteça de novo está em que não se admite o contato com a
questão. rejeitando até mesmo quem apenas a menciona, como se, ao fazê-lo sem rodeios, este se tomasse o responsável, e não os verdadeiros culpados.
        Em relação ao problema de autoridade e barbárie considero importante um aspecto que geralmente passa quase despercebido. Ele é mencionado numa
observação do livro O Estado da SS, de Eugen Kogon, que contém abordagens importantes deste todo complexo e que não recebeu a atenção merecida por parte da
ciência e da pedagogia. Kogon afirma que os algozes do campo de concentração em que ele mesmo passou anos eram em sua maioria jovens filhos de camponeses.
A diferença cultural ainda persistente entre a cidade e o campo constitui uma das condições do horror, embora certamente não seja nem a única nem a mais
importante. Repudio qualquer sentimento de superioridade em relação à população rural. Sei que ninguém tem culpa por nascer na cidade ou se formar no campo.
Mas registro apenas que provavelmente no campo o insucesso da desbarbarização foi ainda maior. Mesmo a televisão e os outros meios de comunicação de massa,
ao que tudo indica, não provocaram muitas mudanças na situação de defasagem cultural. Parece-me mais correto afirmar isto e procurar uma mudança do que elogiar
de uma maneira nostálgica quaisquer qualidades especiais da vida rural ameaçadas de desaparecer. Penso até que a desbarbarização do campo constitui um dos
objetivos educacionais mais importantes. Evidentemente ela pressupõe um estudo da consciência e do inconsciente da respectiva população. Sobretudo é preciso



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atentar ao impacto dos modernos meios de comunicação de massa sobre um estado de consciência que ainda não atingiu o nível do liberalismo cultural burguês do
século XIX.
        Para mudar essa situação, o sistema normal de escolarização, freqüentemente bastante problemático no campo, seria insuficiente. Penso numa série de
possibilidades. Uma seria — e estou improvisando — o planejamento de transmissões de televisão atendendo pontos nevrálgicos daquele peculiar estado de
consciência. Além disto, imagino a formação de grupos e colunas educacionais móveis de voluntários que se dirijam ao campo e procurem preencher as lacunas mais
graves por meio de discussões, de cursos e de ensino suplementar. Naturalmente sei que dificilmente essas pessoas serão muito bem-vistas. Mas com o passar do
tempo se estabelecerá um pequeno círculo que se imporá e que talvez tenha condições de se irradiar.
        Entretanto não deve haver nenhum mal-entendido quanto à inclinação arcaica pela violência existente também nas cidades, principalmente nos grandes
centros. Tendências de regressão — ou seja, pessoas com traços sádicos reprimidos — são produzidas por toda parte pela tendência social geral. Nessa medida quero
lembrar a relação perturbada e patogênica com o corpo que Horkheimer e eu descrevemos na Dialética do esclarecimento. Em cada situação em que a consciência é
mutilada, isto se reflete sobre o corpo e a esfera corporal de uma forma não-livre e que é propicia à violência. Basta prestar atenção em um certo tipo de pessoa
inculta como até mesmo a sua linguagem —-- principalmente quando algo é criticado ou exigido — se torna ameaçadora, como se os gestos da fala fossem de uma
violência corporal quase incontrolada. Aqui seria preciso estudai também a função do esporte. que ainda não foi devidamente reconhecida por uma psicologia social
crítica. O esporte é ambíguo: por um lado, ele pode ter um efeito contrário à barbárie e ao sadismo, por intermédio do fairplay, do cavalheirismo e do respeito pelo
mais fraco. Por outro, em algumas de suas modalidades e procedimentos, ele pode promover a agressão a brutalidade C o sadismo, principalmente no caso de
espectadores. que pessoalmente não estão submetidos ao esforço e à. disciplina do esporte; são aqueles que costumam gritar nos campos esportivos. Épreciso
analisar de uma maneira sistemática essa ambigüidade. Os resultados teriam que ser aplicados à vida esportiva na medida da influência da educação sobre a mesma.
        Tudo isso se relaciona de um modo ou outro à velha estrutura vinculada à autoridade, a modos de agir ---- eu quase diria — do velho e bom caráter
autoritário. Mas aquilo que gera Auschwitz, os tipos característicos ao mundo de Auschwitz, constituem presumivelmente algo de novo. Por um lado, eles
representam a identificação cega com o coletivo. Por outro, são talhados para manipular massas, coletivos, tais como os Himmler, Höss, Eichmann. Considero que o
mais importante para enfrentar o perigo de que tudo se repita é contrapor-se ao poder cego de todos os coletivos, fortalecendo a resistência frente aos mesmos por
meio do esclarecimento do problema da coletivização. Isto não é tão abstrato quanto passa parecer ao entusiasmo participativo. especialmente das pessoas jovens, de
consciência progressista. O ponto de partida poderia estar no sofrimento que os coletivos infligem e se filiam a eles. Basta pensar nas primeiras experiências de cada
um na escola. ~ preciso se opor àquele tipo de folk-ways, hábitos populares, ritos de iniciação de qualquer espécie, que infligem dor física —muitas vezes
insuportável -— a uma pessoa como preço do direito de ela se sentir um filiado, um membro do coletivo. A brutalidade de hábitos tais como os trotes de qualquer


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ordem, ou quaisquer outros costumes arraigados desse tipo, é precursora imediata da violência nazista. Não foi por acaso que os nazistas enalteceram e cultivaram
tais barbaridades com o nome de "costumes". Eis aqui um campo muito atual para a ciência. Ela poderia inverter decididamente essa tendência da etnologia
encampada com entusiasmo pelos nazistas, para refrear esta sobrevida simultaneamente brutal e fantasmagórica desses divertimentos populares.
        Tudo isso tem a ver com um pretenso ideal que desempenha um papel relevante na educação tradicional em geral: a severidade. Esta pode até mesmo
remeter a uma afirmativa de Nietzsche, por mais humilhante que seja e embora ele na verdade pensasse em outra coisa. Lembro que durante o processo sobre
Auschwitz, em um de seus acessos, o terrível Boger culminou num elogio à educação baseada na força e voltada à disciplina. Ela seria necessária para constituir o
tipo de homem que lhe parecia adequado. Essa idéia educacional da severidade, em que irrefletidamente muitos podem até acreditar, é totalmente equivocada. A
idéia de que a virilidade consiste num grau máximo da capacidade de suportar dor de há muito se converteu em fachada de um masoquismo que — como mostrou a
psicologia — se identifica com muita facilidade ao sadismo. O elogiado objetivo de "ser duro" de uma tal educação significa indiferença contra a dor em geral. No
que, inclusive, nem se diferencia tanto a dor do outro e a dor de si próprio. Quem é severo consigo mesmo adquire o direito de ser severo também com os outros,
vingando-se da dor cujas manifestações precisou ocultar e reprimir. Tanto é necessário tornar consciente esse mecanismo quanto se impõe a promoção de uma
educação que não premia a dor e a capacidade de suportá-la, como acontecia antigamente. Dito de outro modo: a educação precisa levar a sério o que já de há muito
é do conhecimento da filosofia: que o medo não deve ser reprimido. Quando o medo não é reprimido, quando nos permitimos ter realmente tanto medo quanto esta
realidade exige, então justamente por essa via desaparecerá provavelmente grande parte dos efeitos deletérios do medo inconsciente e reprimido.
        Pessoas que se enquadram cegamente em coletivos convertem a si próprios em algo como um material, dissolvendo-se como seres autodeterminados. Isto
combina com a disposição de tratar outros como sendo uma massa amorfa. Para os que se comportam dessa maneira utilizei o termo "caráter manipulador" em
Authoritarian personality (A personalidade autoritária), e isto quando ainda não se conhecia o diário de Höss ou as anotações de Eichmann. Minhas descrições do
caráter manipulador datam dos últimos anos da Segunda Guerra Mundial. Às vezes a psicologia social e a sociologia conseguem construir conceitos confirmados
empiricamente só muito tempo depois. O caráter manipulador — e qualquer um pode acompanhar isto a partir das fontes disponíveis acerca desses lideres nazistas
—- se distingue pela fúria organizativa, pela incapacidade total de levar a cabo experiências humanas diretas, por um certo tipo de ausência de emoções, por um
realismo exagerado. A qualquer custo ele procura praticar uma pretensa, embora delirante, realpolitik. Nem por um segundo sequer ele imagina o mundo diferente
do que ele é, possesso pela vontade de doing things, de fazer coisas, indiferente ao conteúdo de tais ações. Ele faz do ser atuante, da atividade, da chamada efficiency
enquanto tal, um culto, cujo eco ressoa na propaganda do homem ativo. Este tipo encontra-se, entrementes — a crer em minhas observações e generalizando
algumas pesquisas sociológicas ----, muito mais disseminado do que se poderia imaginar. O que outrora era exemplificado apenas por alguns monstros nazistas pode
ser constatado hoje a partir de casos numerosos, como delinqüentes juvenis, lideres de quadrilhas e tipos semelhantes, diariamente presentes no noticiário. Se fosse


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obrigado a resumir em uma fórmula esse tipo de caráter manipulador — o que talvez seja equivocado embora útil à compreensão — eu o denominaria de o tipo da
consciência coisificada. No começo as pessoas desse tipo se tornam por assim dizer iguais a coisas. Em seguida, na medida em que o conseguem, tornam os outros
iguais a coisas. Isto é muito bem traduzido pela expressão aprontar, que goza de igual popularidade entre os valentões juvenis e entre os nazistas. Esta expressão
aprontar define as pessoas como sendo coisas aprontadas em seu duplo sentido. Conforme Max Horkheimer, a tortura é a adaptação controlada e devidamente
acelerada das pessoas aos coletivos. Algo disso encontra-se no espirito da época, por menos procedente que seja falar em espírito nesses termos. Enfim, resumirei
citando Paul Valéry, que antes da última Guerra Mundial disse que a desumanidade teria um grande futuro. É particularmente difícil confrontar esta questão porque
aquelas pessoas manipuladoras, no fundo incapazes de fazer experiências, por isto mesmo revelam traços de incomunicabilidade, no que se identificam com certos
doentes mentais ou personalidades psicóticas.
       Nas tentativas de atuar contrariamente à repetição de Auschwitz pareceu.me fundamental produzir inicialmente uma certa clareza acerca do modo de
constituição do caráter manipulador, para em seguida poder impedir da melhor maneira possível a sua formação, pela transformação das condições para tanto. Quero
fazer uma proposta concreta: utilizar todos os métodos científicos disponíveis, em especial psicanálise durante muitos anos, para estudar os culpados por Auschwitz,
visando se possível descobrir como uma pessoa se torna assim. O que aqueles ainda podem fazer de bom é contribuir, em contradição com a própria estrutura de sua
personalidade, no sentido de que as coisas não se repitam. E essa contribuição só ocorreria na medida em que colaborassem na investigação de sua gênese.
Obviamente seria difícil levá-los a falar; em nenhuma hipótese poder-se-ia aplicar qualquer procedimento semelhante a seus próprios métodos para aprender como
eles se tornaram do jeito que são. De qualquer modo, entrementes eles se sentem — justamente em seu coletivo, com a sensação de que todos são velhos nazistas —-
- tão protegidos, que praticamente nenhum demonstrou nem ao menos remorsos. Porém presumivelmente também neles, ou em alguns deles, existem pontos de
apoio psicológicos mediante os quais seria possível mudar isto, como, por exemplo, seu narcisismo, ou, dito simplesmente, seu orgulho. Eles se sentirão importantes
ao poder falar livremente a seu respeito, tal como Eichmann, cujas falas aparentemente preenchem fileiras inteiras de volumes. Finalmente, é de supor que também
nessas pessoas, aprofundando-se suficientemente a busca, existam restos da velha instância da consciência moral que se encontra atualmente em grande parte em
processo de dissolução. Na medida em que se conhecem as condições internas e externas que os tornaram assim — pressupondo por hipótese que esse conhecimento
é possível —, seria possível tirar conclusões práticas que impeçam a repetição de Auschwitz. A utilidade ou não de semelhante tentativa só se mostrará após sua
concretização; não pretendo superestimá-la. É preciso lembrar que as pessoas não podem ser explicadas automaticamente a partir de condições como estas. Em
condições iguais alguns se tornaram assim, e Outros de um jeito bem diferente. Mesmo assim valeria a pena. O mero questionamento de como se ficou assim já
encerraria um potencial esclarecedor. Pois um dos momentos do estado de consciência e de inconsciência daninhos está em que seu ser-assim —que se é de um
determinado modo e não de outro ---- é apreendido equivocadamente como natureza, como um dado imutável e não como resultado de uma formação. Mencionei o


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conceito de consciência coisificada. Esta é sobretudo uma consciência que se defende em relação a qualquer vir-a-ser, frente a qualquer apreensão do próprio
condicionamento, impondo como sendo absoluto o que existe de um determinado modo. Acredito que o rompimento desse mecanismo impositivo seria
recompensador.
       No que diz respeito à consciência coisificada, além disto é preciso examinar também a relação com a técnica, sem restringir-se a pequenos grupos. Esta
relação é tão ambígua quanto a do esporte, com que aliás tem afinidade. Por um lado, é certo que todas as épocas produzem as personalidades — tipos de
distribuição da energia psíquica — de que necessitam socialrnente. Um mundo em que a técnica ocupa uma posição tão decisiva como acontece atualmente, gera
pessoas tecnológicas, afinadas com a técnica. Isto tem a sua racionalidade boa: em seu plano mais restrito elas serão menos influenciáveis, com as correspondentes
conseqüências no plano geral. Por outro lado, na relação atual com a técnica existe algo de exagerado, irracional, patogênico. Isto se vincula ao "véu tecnológico".
Os homens inclinam-se a considerar a técnica como sendo algo em si mesma, um fim em si mesmo, uma força própria, esquecendo que ela é a extensão do braço dos
homens. Os meios —— e a técnica é um conceito de meios dirigidos à autoconservação da espécie humana — são fetichizados, porque os fins — uma vida humana
digna — encontram-se encobertos e desconectados da consciência das pessoas. Afirmações gerais como estas são até convincentes. Porém uma tal hipótese ainda é
excessivamente abstrata. Não se sabe com certeza como se verifica a fetichização da técnica na psicologia individual dos indivíduos, onde está o ponto de transição
entre uma relação racional com ela e aquela supervalorização, que leva, em última análise, quem projeta um sistema ferroviário para conduzir as vitimas a Auschwitz
com maior rapidez e fluência, a esquecer o que acontece com estas vítimas em Auschwitz. No caso do tipo com tendências à fetichização da técnica, trata-se
simplesmente de pessoas incapazes de amar. Isto não deve ser entendido num sentido sentimental ou moralizante, mas denotando a carente relação libidinal com
Outras pessoas. Elas são inteiramente frias e precisam negar também em seu íntimo a possibilidade do amor, recusando de antemão nas outras pessoas o seu amor
antes que o mesmo se instale. A capacidade de amar, que de alguma maneira sobrevive, eles precisam aplicá-la aos meios. As personalidades preconceituosas e
vinculadas à autoridade com que nos ocupamos em Authoritarian Personality, em Berkeley, forneceram muitas evidências neste sentido. Um sujeito experimental ---
- e a própria expressão já é do repertório da consciência coisificada -— afirmava de si mesmo: "I like nice equipament" (Eu gosto de equipamentos, de instrumentos
bonitos), independentemente dos equipamentos em questão. Seu amor era absorvido por coisas, máquinas enquanto tais. O perturbador — porque torna tão
desesperançoso atuar contrariamente a isso — é que esta tendência de desenvolvimento encontra-se vinculada ao conjunto da civilização. Combatê-lo significa o
mesmo que ser contra o espírito do mundo; e desta maneira apenas repito algo que apresentei no começo como sendo o aspecto mais obscuro de uma educação
contra Auschwitz.
       Afirmei que aquelas pessoas eram frias de um modo peculiar. Aqui vêm a propósito algumas palavras acerca da frieza. Se ela não fosse um traço básico da
antropologia, e, portanto, da constituição humana como ela realmente é em nossa sociedade; se as pessoas não fossem profundamente indiferentes em relação ao que


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acontece com todas as outras, executando o punhado com que mantêm vínculos estreitos e possivelmente por intermédio de alguns interesses concretos, então
       Auschwitz não teria sido possível, as pessoas não o teriam aceito. Em sua configuração atual — e provavelmente há milênios —- a sociedade não repousa
em atração, em simpatia, como se supôs ideologicamente desde Aristóteles, mas na persecução dos próprios interesses frente aos interesses dos demais. Isto se
sedimentou do modo mais profundo no caráter das pessoas. O que contradiz, o impulso grupal da chamada lonely crowd, da massa solitária, na verdade constitui
uma reação, um enturmar-se de pessoas frias que não suportam a própria frieza mas nada podem fazer para alterá-la. Hoje em dia qualquer pessoa, sem exceção, se
sente mal-amada, porque cada um é deficiente na capacidade de amar. A incapacidade para a identificação foi sem dúvida a condição psicológica mais importante
para tornar possível algo como Auschwitz em meio a pessoas mais ou menos civilizadas e inofensivas. O que se chama de "participação oportunista" era antes de
mais nada interesse prático: perceber antes de tudo a sua própria vantagem e não dar com a língua nos dentes para não se prejudicar. Esta é uma lei geral do
existente. O silêncio sob o terror era apenas a conseqüência disto. A frieza da mônada social, do concorrente isolado, constituía, enquanto indiferença frente ao
destino do outro, o pressuposto para que apenas alguns raros se mobilizassem. Os algozes sabem disto; e repetidamente precisam se assegurar disto.
       Não me entendam mal. Não quero pregar o amor. Penso que sua pregação é vã: ninguém teria inclusive o direito de pregá-lo, porque a deficiência de amor,
repito, é uma deficiência de todas as pessoas, sem exceção, nos termos em que existem hoje. Pregar o amor pressupõe naqueles a quem nos dirigimos uma outra
estrutura do caráter, diferente da que pretendemos transformar. Pois as pessoas que devemos amar são elas próprias incapazes de amar e por isto nem são tão
amáveis assim. Um dos grandes impulsos do cristianismo, a não ser confundido com o dogma, foi apagar a frieza que tudo penetra. Mas esta tentativa fracassou;
possivelmente porque não mexeu com a ordem social que produz e reproduz a frieza. Provavelmente até hoje nunca existiu aquele calor humano que todos
almejamos, a não ser durante períodos breves e em grupos bastante restritos, e talvez entre alguns selvagens pacíficos. Os utópicos freqüentemente ridicularizados
perceberam isto. Charles Fourier, por exemplo, definiu a atração como algo ainda por ser constituído por uma ordem social digna de um ponto de vista humano.
Também reconheceu que esta situação só seria possível quando os instintos não fossem mais reprimidos, mas satisfeitos e liberados. Se existe algo que pode ajudar
contra a frieza como condição da desgraça, então trata-se do conhecimento dos próprios pressupostos desta, bem como da tentativa de trabalhar previamente no
plano individual contra esses pressupostos. Agrada pensar que a chance é tanto maior quanto menos se erra na infância, quanto melhor são tratadas as crianças. Mas
mesmo aqui pode haver ilusões. Crianças que não suspeitam nada da crueldade e da dureza da vida acabam por ser particularmente expostas à barbárie depois que
deixam de ser protegidas. Mas, sobretudo, não é possível mobilizar para o calor humano pais que são, eles próprios, produtos desta sociedade, cujas marcas
ostentam. O apelo a dar mais calor humano às crianças é artificial e por isto acaba negando o próprio calor. Além disto o amor não pode ser exigido em relações
profissionalmente intermediadas, como entre professor e aluno, médico e paciente, advogado e cliente. Ele é algo direto e contraditório com relações que em sua
essência são intermediadas. O incentivo ao amor ----- provavelmente na forma mais imperativa, de um dever — constitui ele próprio parte de uma ideologia que


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perpetua a frieza. Ele combina com o que é impositivo, opressor, que atua contrariamente à capacidade de amar. Por isto o primeiro passo seria ajudar a frieza a
adquirir consciência de si própria, das razões pelas quais foi gerada.
        Para terminar gostaria ainda de discorrer brevemente a respeito de algumas possibilidades de conscientização dos mecanismos subjetivos em geral, sem os
quais Auschwitz dificilmente aconteceria. O conhecimento desses mecanismos é uma necessidade; da mesma forma também o é o conhecimento da defesa
estereotipada, que bloqueia uma tal consciência. Quem ainda insiste em afirmar que o acontecido nem foi tão grave assim já está defendendo o que ocorreu, e sem
dúvida seria capaz de assistir ou colaborar se tudo acontecesse de novo. Mesmo que o esclarecimento racional não dissolva diretamente os mecanismos inconscientes
— conforme ensina o conhecimento preciso da psicologia —, ele ao menos fortalece na pré-consciência determinadas instâncias de resistência, ajudando a criar um
clima desfavorável ao extremismo. Se a consciência cultural em seu conjunto fosse efetivamente perpassada pela premonição do caráter patogênico dos traços que se
revelaram com clareza em Auschwitz, talvez as pessoas tivessem evitado melhor aqueles traços.
        Além disso seria necessário esclarecer quanto à possibilidade de haver um outro direcionamento para a fúria ocorrida em Auschwitz. Amanhã pode ser a vez
de um outro grupo que não os judeus, por exemplo os idosos, que escaparam por pouco no Terceiro Reich, ou os intelectuais, ou simplesmente alguns grupos
divergentes. O clima ---- e quero enfatizar esta questão — mais favorável a um tal ressurgimento é o nacionalismo ressurgente. Ele é tão raivoso justamente porque
nesta época de comunicações internacionais e de blocos supranacionais já não é mais tão convicto, obrigando-se ao exagero desmesurado para convencer a si e aos
outros que ainda têm substância.
        De qualquer modo, haveria que mostrar as possibilidades concretas da resistência. Por exemplo, a história dos assassinatos por eutanásia, que acabaram não
sendo cometidos na dimensão pretendida pelos nazistas na Alemanha, graças a resistência manifestada. A resistência limitava-se ao próprio grupo; e justamente este
é um sintoma bastante notável e amplo da frieza geral. Além de tudo, porém, ela é limitada também em face da insaciabilidade presente no princípio das
perseguições. Em última instância, qualquer pessoa não-pertencente ao grupo perseguidor pode ser atingida; portanto, existe um interesse egoísta drástico a que se
poderia apelar. Enfim, seria necessário indagar pelas condições específicas, históricas, das perseguições. Em uma época em que o nacionalismo é antiquado, os
chamados movimentos de renovação nacional são, ao que tudo indica, particularmente sujeitos a práticas sádicas.
        Finalmente, o centro de toda educação política deveria ser que Auschwitz não se repita. Isto só será possível na medida em que ela se ocupe da mais
importante das questões sem receio de contrariar quaisquer potências. Para isto teria de se transformar em sociologia, informando acerca do jogo de forças localizado
por trás da superfície das formas políticas. Seria preciso tratar criticamente um conceito tão respeitável como o da razão de Estado, para citar apenas um modelo: na
medida em que colocamos o direito do Estado acima do de seus integrantes, o terror já passa a estar potencialmente presente.



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Em Paris, durante a emigração, quando eu ainda retornava esporadicamente à Alemanha, certa vez Walter Benjamin me perguntou se ali ainda havia algozes
em número suficiente para executar o que os nazistas ordenavam. Havia. Apesar disto a pergunta é profundamente justificável. Benjamm percebeu que, ao contrário
dos assassinos de gabinete e dos ideólogos, as pessoas que executam as tarefas agem em contradição com seus próprios interesses imediatos, são assassinas de si
mesmas na medida em que assassinam os outros. Temo que será difícil evitar o reaparecimento de assassinos de gabinete, por mais abrangentes que sejam as
medidas educacionais. Mas que haja pessoas que, em posições subalternas, enquanto serviçais, façam coisas que perpetuam sua própria servidão, tornando-as
indignas;   que   continue   a   haver   Bojeis   e Kaduks,   contra   isto   é   possível   empreender   algo   mediante   a   educação   e   o   esclarecimento.




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UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA (UFRO)
      CENTRO DE HERMENÊUTICA DO PRESENTE
                                                           PRIMEIRA VERSÃO
         PRIMEIRA VERSÃO                                    ISSN 1517-5421             lathé biosa

 ANO VIII, Nº246 - OUTUBRO - PORTO VELHO, 2009.
             VOLUME XXVI – SET/DEZ
                  ISSN 1517-5421
                                                                                                     246
                       EDITOR
                  NILSON SANTOS

               CONSELHO EDITORIAL
        ALBERTO LINS CALDAS – História - UFRO
   CLODOMIR S. DE MORAIS – Sociologia - IATTERMUND
            ARTUR MORETTI – Física - UFRO
           CELSO FERRAREZI – Letras - UFRO
      HEINZ DIETER HEIDEMANN – Geografia - USP
       JOSÉ C. SEBE BOM MEIHY – História – USP                                 FLÁVIO DUTKA
         MARIO COZZUOL – Biologia – PUC-RGS
            MIGUEL NENEVÉ – Letras - UFRO
         ROMUALDO DIAS – Educação - UNICAMP
        VALDEMIR MIOTELLO – Filosofia - UFSC

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                TIRAGEM 200 EXEMPLARES
       EDITORA UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA                                Dalva Aparecida Garcia



                                                                                                      13
Dalva Aparecida Garcia
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Uma filosofia concreta não é uma filosofia feliz. Seria preciso que se mantivesse junto da experiência e que, contudo, não se limitasse ao empírico, que restituísse em cada
experiência a cifra ontológica que anteriormente a marca. Por muito difícil que seja, nestas condições, imaginar o futuro da filosofia, duas coisas parecem seguras: nunca mais voltará
ela a encontrar a convicção de, com seus conceitos, deter as chaves da natureza ou da história, e, ainda, não renunciará ao seu radicalismo, a esta procura dos pressupostos e dos
fundamentos que produziu as grandes filosofias. Tanto menos se renunciará a isso, durante o tempo em que os sistemas perdiam seu crédito, as técnicas ultrapassaram a si próprias e
reclamavam a filosofia. Nunca como hoje o saber científico transformou seu próprio à priori. Nunca a literatura foi tão filosófica quanto no século XX, refletiu tanto sobre a
linguagem, sobre a verdade, sobre o sentido do ato de escrever. Nunca, como hoje, a vida política mostrou suas raízes ou a sua trama, contestou suas próprias certezas... Ainda que os
filósofos esmorecessem, estariam os outros presentes para nos chamar de novo à filosofia. A menos que esta inquietação a si mesma se devore, pode-se esperar muito de um tempo
que não crê mais na filosofia triunfante, mas que, pelas suas dificuldades, é um apelo permanente ao rigor, à crítica, à universalidade, à filosofia militante” (MERLEAU PONTY in
SINAIS)


                                                                   O PROBLEMA
        Os professores envolvidos com o Ensino de Filosofia para jovens refutam a tese da impotência da filosofia frente às rápidas transformações que
atingem a escola neste início de século. Entende-se o filosofar como esforço da construção dos valores humanos para conhecer e reconhecer, destruir e
recriar os múltiplos significados da cultura e do conhecimento. Neste contexto, alimentamos o sonho de retirar a filosofia das Instituições Acadêmicas
para colocá-la no espaço que até então estava reservado à informação dos produtos das ciências. A escola como espaço de informação e aprendizagem se
vê diante de um desafio: compreender o sentido de uma prática reflexiva distante de respostas únicas. Por outro lado, o professor de filosofia se vê diante
de uma árdua empreitada: transformar o esforço da reflexão presente na história do pensamento em investigação viva, instigante, que revê e cria novos
significados no cotidiano do aluno e da escola.
        Da experiência de cerca de 14 anos como professora de filosofia no Ensino Médio, tanto na rede pública como em escolas particulares, que emerge uma
questão: Como iniciar esse processo? Se perseguirmos o raciocínio de Marilena Chauí em seu “Convite à Filosofia”, poderíamos afirmar que a filosofia requer uma
“atitude filosófica”, que começa quando nos espantamos com o mundo que nos cerca. Essa atitude consiste no questionamento das evidências do cotidiano, ou seja,
requer um certo distanciamento do “óbvio” para que seja possível a problematização, a suspensão provisória dos juízos e a análise profunda dos princípios que
cercam nossas certezas. Todavia, em um contexto de transformações meteóricas nada mais espanta, vive-se a primazia dos fatos, das informações que se aglomeram
e se perdem com assustadora rapidez. O que era importante ontem, hoje perde o valor, o que era enigma torna-se evidência. Como se distanciar de um universo de
valores que é impossível vislumbrar?
Somada as características de nosso tempo com a ação intempestiva, característica da juventude e da adolescência, podemos afirmar que uma das principais
dificuldades para os professores é provocar o estranhamento de um mundo que tão de estranho passa a ser evidente.
        Habituados a um universo fragmentado, a uma visão de mundo utilitarista e imediatista, os adolescentes encontram-se a margem dos procedimentos do
filosofar, tais como: a capacidade de abstração, de contemplação, de análise e síntese, de reflexão radical.
        Um dos grandes desafios do professor de filosofia é buscar caminhos para que seja possível provocar um deslocamento que permita o questionamento das
evidências e inaugure um trabalho de problematização e investigação filosófica. Como na prática educativa apontar e fornecer subsídios para a construção desse
caminho?
        Comumente acredita-se que ao se colocar as temáticas filosóficas no universo de formação dos adolescentes já se está, de alguma forma, aproximando os
alunos do filosofar. Afinal, séculos e séculos de trabalhos sistematizados acerca das indagações humanas não poderiam ser infrutíferos. Desta forma, apresenta-se
temas e construções teóricas que pouco ou nada significam para os jovens. Em nome do pressuposto que o distanciamento do senso comum é necessário ao filosofar,
acabamos distanciando o aluno da própria filosofia. Por outro lado, em nome da aproximação dos alunos da filosofia temos que cuidar para não instaurar na sala de
aula um debate vazio sobre opiniões e crenças infundadas. O risco dessa ação pedagógica é o de termos o senso comum institucionalizado e legitimado com o nome
de “filosofia”.
        Ora, se verdadeiramente consideramos a filosofia importante na formação e entendemos seu valor educacional como esforço de reflexão crítica do
conhecimento e dos valores, não podemos nos distanciar dos valores e conhecimentos presentes na cultura e nos elementos constitutivos do imaginário destes jovens.
Neste sentido, é preciso abrir espaço para a análise de um suposto caminho de mediação na prática pedagógica. Ainda mais porque a suposta “descentralização
pedagógica” e a “recomendação do ensino de filosofia” pela própria LDB vêm permitindo que a filosofia seja reintroduzida nas escolas.
        Porém, antes de buscarmos preconizar o ensino de filosofia como necessidade nesses nossos tempos e travarmos uma nova luta pela sua obrigatoriedade nos
currículos de Ensino Médio e Fundamental é necessário nos perguntarmos sobre o papel educacional da Filosofia. Essa discussão iniciada em meados de 1976,
aponta para alguns instigantes caminhos que vão desde o questionamento político frente às novas diretrizes das Reformas Educacionais até o enfrentamento das
questões relacionadas ao conteúdo que se deve ensinar e à formação de profissionais competentes: Devem dar aulas de filosofia licenciados em Filosofia ou não?
Poderia estar o ensino de filosofia nas mãos do pedagogo? Deve-se privilegiar a história da filosofia como centro de um conteúdo programático ou como referência
para a análise contextualizada de temas e problemas? Devemos inserir o aluno no universo árido da análise conceitual dos textos filosóficos ou devemos partir do
esforço de interpretação da realidade vivida? É relevante o conhecimento dos sistemas filosóficos que se erigiram em toda a história do pensamento ou podemos
fazer recortes desse universo? Se podemos, quais os critérios que usaríamos neste recortes?

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Há quase duas décadas profissionais envolvidos com o Ensino da Filosofia, assim como pesquisadores preocupados com compromisso educacional da
Filosofia abordam essas e outras questões. Todavia, neste caldeirão de idéias, críticas, concepções e até propostas é negligenciada uma das mais complexas questões:
a questão de um método para introduzir jovens e crianças no universo do Filosofar e da Filosofia, o estudo de um caminho capaz de conciliar o esforço sistemático
de construção teórica com os procedimentos do filosofar. Nos perguntamos freqüentemente: Filosofia ou Filosofar com crianças e jovens? Por trás de toda a
discussão que marca, nestas duas últimas décadas, a reintrodução da filosofia no currículo do Ensino Médio e, recentemente, a introdução no Ensino Fundamental
revela-se um dualismo entre conteúdo e forma, entre teoria e prática. Apesar das críticas e da análise de diferentes propostas que despontam no meio educacional
quase como uma avalanche de modismos, nos colocamos à margem de um estudo rigoroso para um caminho de superação. Nos colocamos à margem, talvez por
acreditarmos que a questão de um método educacional esteja nas mãos dos pedagogos, se bem que negamos a eles a competência de ensinar filosofia; talvez porque
apesar de todas as transformações que ocorreram desde a passagem da consciência mítica à consciência filosófica na Grécia Antiga ainda nos colocamos no papel de
observadores atentos do que ocorre a nossa volta, de theoros... A filosofia nas escolas nos exige agora uma outra postura, um novo desafio se não quisermos
contemplar sua banalização para depois escrevermos sistematicamente e com rigor um tratado sobre seu fracasso: a filosofia nas escolas nos exige a busca de uma
ação educacional, o estudo de metodologias que garantam seu sentido e significado.
       Da reflexão do contexto acima exposto que se constrói as teias deste texto, na busca de um caminho que permita a conciliação entre a teoria
filosófica e a prática do filosofar. É da inquietação oriunda da prática com o ensino de Filosofia para alunos de Ensino Médio que se pergunta sobre o
papel da Narrativa no Ensino de Filosofia e sobre as aproximações entre literatura e filosofia. O sucesso avassalador do texto “O mundo de Sofia” de
Jostein Gaarden, publicado pela Ed. Companhia das Letras, “As novelas filosóficas” que compõem o “Programa de Filosofia para Crianças” de Matthew
Lipman nos remetem a necessidade de análise da narrativa enquanto um dos recursos metodológicos para o ensino de filosofia.
        No entanto, antes de tratar propriamente do problema que pretendo abordar, julgo pertinente localizá-lo no cenário de indefinições que configura o ensino de
filosofia no Ensino Médio.
       Marcada pelo fracasso do ensino técnico-profissionalizante, a reintrodução da filosofia nos currículos do Ensino Médio, no início da década de 80,
trazia em seu bojo a retomada da crença em uma educação revolucionária, capaz de romper as amarras e marcas da ditadura que afastaram o aluno da
crítica, do esforço de construção teórica autônoma, da prática do diálogo e da argumentação. Essa empolgação logo se diluí quando se constata que as
marcas do tecnicismo eram bem mais profundas do que se imaginava. A filosofia não poderia se configurar como salvadora de um cenário educacional no
mínimo desolador. Acrescenta-se a este cenário uma espécie de indefinição dos objetivos do Ensino Médio: Se não se trata mais de um ensino com o
objetivo de inserir jovens no mercado de trabalho, qual sua função? A resposta oferecida pelo MEC é que o Ensino Médio deveria oferecer aos estudantes

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“uma formação geral”. Assim, num currículo de generalidades haveria lugar para filosofia como parcela significativa e importante do acervo cultural da
humanidade: filosofia para cidadania é assim que se configura o papel da filosofia no Ensino Médio. No início da década de 80, nos entraves da
redemocratização, a cidadania e a filosofia, é claro, ficariam como “questões optativas” .
        As indefinições sobre os objetivos do Ensino Médio e o papel da filosofia nos currículos se estende ao longo dessas duas décadas. A Lei 9394/96
parece tentar solucionar o impasse: o ensino deverá vincular-se ao mundo do trabalho e à prática social, deverá superar o dualismo entre teoria e prática,
conciliar formação humanista e uso de tecnologias. O foco é aprender a aprender, ou seja, oferecer condições para continuidade do processo de
aprendizagem, seja ele dentro ou fora das Instituições Educacionais; daí a ênfase no desenvolvimento de competências e habilidades. Qual o papel da
filosofia neste novo contexto? A LDB, em seu artigo 36, §1, afirma que os educandos devem demonstrar domínio dos conhecimentos de Filosofia e
Sociologia necessários ao exercício da cidadania. Quais seriam os conhecimentos necessários a esse fim? A que modelo de cidadania se refere o texto?
       Os Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Médio apontam para três dimensões do conceito de cidadania: estética, ética e política. Estética
no sentido do exercício da sensibilidade; ética no sentido de construção da identidade autônoma e política, visando a participação democrática através do
acesso a bens culturais e naturais. O conceito de cidadania é formulado na esfera ideal e caberá à escola aproximá-lo do real. É, neste contexto, que a
Filosofia entra desenvolvendo algumas competências e habilidades.
       Examinemos algumas dessas competências e habilidades, assim como os procedimentos indicados pelo texto dos Parâmetros:
       - Ler textos filosóficos de modo significativo:
                   Fazer o estudante aceder a uma competência discursivo-filosófica, ou seja, tornar evidente a conexão interna entre conteúdo e método;
                   Exercitar a capacidade de problematização, isto é, apropriar-se reflexivamente do conteúdo;
                   Tematizar e criticar, de modo rigoroso, conceitos, proposições e argumentos, valores e normas, expressões subjetivas e estruturas
                   formais;
                   Apropriar-se de quadro referencial a partir de conceitos, temas, problemas e métodos conforme elaborados a partir da própria tradição
                   filosófica.
       Mas como o fazê-lo? Quais conteúdos escolher? Após considerações sobre as possíveis formas de se construir o conteúdo, seja por temáticas,
sistemas ou autores, o texto alerta:




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Deve-se ter critérios muito claros na escolha que se fizer deles para o cotidiano pedagógico. Um deles, talvez o mais influente, será o
                      ponto de vista filosófico do professor, conjugado à sua formação cultural”. Ainda no mesmo texto pode-se ler: “Considerando o critério da
                      realidade do aluno, acredita-se que, num país de baixa literatação, como é o nosso caso, uma disciplina com o grau de abstração e
                      contextualização conceptual e histórica, como ocorre com a Filosofia, supõe que a opção do curso que for feita deve corresponder um cuidado
                      redobrado com respeito às metodologias e materiais didáticos, levando em conta o que é necessário para introduzir os alunos significativamente
                      no Filosofar. (PNCEM)

       Mas quais são os materiais e metodologias capazes de auxiliar o professor a cumprir essa tarefa? Seria um bom critério a escolha pautada pela
formação cultural do professor? Estaria o professor de filosofia alheio aos problemas “de um país de baixa literatação”?
        Sem a busca e estudo sistemático de metodologias e materiais, seria possível atingir o desenvolvimento das demais competências e habilidades,
como pressupõe o texto dos Parâmetros?
                                                   Revisitando a prática do ensino de filosofia na sala de aula


                      (...) Enfim Micrômegas disse
                      -  Já que sabeis tão bem o que está fora de vós, sem dúvida sabereis melhor o que está dentro de vós. Dizei-me o que é vossa alma,
                         e de que modo formais vossas idéia?.
                      - Os filósofos falaram todos ao mesmo tempo, como antes.
                      Mas cada um tinha uma opinião diferente. O mais velho citava Aristóteles, outro pronunciava o nome de Descartes, este o de
                      Malebranche, o outro o de Leibniz, outro ainda o de Locke. Um velho peripatético disse alto, com toda a confiança:
                      -   A alma é uma enteléquia e uma razão pelo qual tem o poder de ser o que é. É o que declara expressamente Aristóteles, página
                          633 da edição do Louvre.- Não entendo bem o grego – disse o gigante.
                      -   Eu também não- disse a traça filosófica.
                      -   Por que então- retomou o siriano- citais um certo Aristóteles em grego?
                      -   É que é bom citar o que não se compreende na língua que menos se entende – replicou o sábio.
                      -   O cartesiano tomou a palavra e disse:
                      -    A alma é espírito puro, que recebeu, no ventre da mãe, todas as idéias metafísicas, e que, ao sair de lá, é obrigada a ir à escola e
                          aprender de novo o que sempre soube tão bem e que nunca mais saberá.
                      -   Então não vale a pena que a alma seja tão sábia no ventre da mãe, para ficar tão ignorante quando tiver barba na cara- respondeu
                          o animal de oito léguas. – Mas o que é que entendeis por espírito?
                      -   O que é que estais me perguntando? Não tenho a mínima idéia do que seja – disse o raciocinador.
                      -    Dizem que o espírito não é a matéria (...)
                              (VOLTAIRE, 1997)



                                                                                                                                                                  18
O pequeno trecho acima, extraído de um dos contos do filósofo iluminista Voltaire, aponta para uma interessante forma que o autor encontra para
questionar as finalidades da filosofia e dos dogmatismos filosóficos. Por outro lado, lança alguns elementos para pensarmos o próprio ensino da filosofia e
nossa concepção do filosofar como estudo analítico de sistemas e teorias sistematizadas ao longo da história. Todavia, antes de iniciarmos essa reflexão,
seria pertinente oferecer uma síntese do instigante trabalho de Voltaire no conto.
       O personagem Micrômegas é um extraterrestre de estatura gigantesca que chega ao minúsculo globo terrestre, vindo da estrela Sírius, em
companhia de um Saturniano. Micrômegas é ser de espírito culto, não apenas por saber muitas coisas, mas também por ter inventado tantas outras. Quando
saiu da infância, com cerca de 450 anos, o gigante envolveu-se em conflitos graças a uma pesquisa sobre a forma substancial das pulgas e pôs-se a viajar
de planeta em planeta com o objetivo de formar o espírito e coração. Em seu encontro com o habitante de Saturno, secretário da academia, Micrômegas
estabelece um interesse diálogo acerca dos limites do conhecimento e após trocarem informações do pouco que sabiam e do muito que não sabiam,
resolveram empreender uma viagem filosófica. Como gigante que é, Micrômegas não tem apenas cinco sentidos, mal mil. Enquanto seu amigo Saturniano
tem apenas 72 sentidos. Acidentalmente os dois viajantes chegam à Terra convictos que, dadas as irregularidades de construção do globo, ali não poderia
existir vida inteligente Mas o gigante depara-se com alguns homens em um navio em pleno oceano e os coloca na palma da mão. As partículas minúsculas
que falam são filósofos e iniciam uma conversa com o gigante a fim de demonstrar sua pretensa sabedoria. Todos falam ao mesmo tempo e iniciam uma
disputa acirrada que provoca os risos do gigante, afinal como seres tão infinitamente pequenos podem alimentar orgulho e pretensão tão grandes? Com dó
daqueles seres, o gigante promete entregar a seus interlocutores um livro, em letras bem miúdas, com a resposta da finalidade de todas as coisas. Os
filósofos levam o livro à Academia e em abertura solene descobrem que o livro está inteiramente em branco.
       Como podemos interpretar o conto de Voltaire? Ironia, sarcasmo ou descrença na filosofia?
       Podemos encontrar algumas chaves de interpretação da narrativa na própria obra de Voltaire, inserindo-a no contexto de sua produção e ação
históricas. A idéia de uma razão crítica tem na história a sua arma para lutar contra a intolerância e para fazer do filosofia ação capaz de mudar a história.
Crítico ferrenho dos grandes sistemas filosóficos, Voltaire se nega a construir o seu, antes coloca todos sobre o crivo da razão.
       Neste sentido os contos de Voltaire são fascinantes. Revela-se um encontro entre conteúdo e forma, pois se os grandes sistemas filosóficos foram
edificados por uma cadeia de argumentos dedutivos e indutivos, a crítica aos sistemas empresta da literatura a forma da narrativa para revelar o absurdo de
um enredo que pretende se colocar para além do tempo vivido e da história. Afirma Maria das Graças Nascimento e Silva:




                                                                                                                                                           19
“Os personagens dos contos de Voltaire são, quase sempre viajantes. Viaja o gigante espacial Micrômegas, “de planeta em planeta, para
                         acabar de formar o espírito e o coração”, até que vem dar na nossa Terra que, para ele, por causa da pequenez, parece mais um formigueiro.
                         Viaja também o herói Cândido, em sua incrível peregrinação pelas mais diversas regiões do mundo, em busca da amada Cunegundes. Viaja por
                         fim o ingênuo huroniano semi-selvagem, tentando compreender as loucuras dos europeus. (...) A aventura de descobrir o mundo até os confins
                         traz à luz uma série de elementos para a reflexão. Viajar permite comparar, opor, duvidar e chegar ao sentimento de que as coisas são, no final
                         das contas, relativas. Dessa aventura pode resultar uma visão de mundo diferente daquela que teríamos sem sair do mesmo lugar. Os
                         personagens de Voltaire nos conduzem a mundo de surpresas, a fatos inesperados, às vezes maravilhosos, às vezes grotescos. Que visões do
                         mundo e das coisas ele quer revelar ao leitor? (NASCIMENTO, 1993)

                 A aventura da viagem implica na possibilidade de perder-se, por isso em sua Teoria do Romance, Lukács ao analisar a epopéia grega
afirma:
                         Ao sair em busca de aventuras e vencê-las, a alma desconhece o real tormento da procura e o real perigo da descoberta, e jamais põe a si mesma
                         em jogo; ela ainda não sabe que pode perder-se e nunca imagina que terá que buscar-se. (LUKACS,2003)


          Acerca da filosofia, Lukács entende representar esta uma cisão entre o interior e o exterior, um índice da diferença essencial entre o eu e o mundo,
da incogruência entre a alma e ação. Neste sentido, a filosofia grega não se distancia da epópeia. Afirma Lukács que nos tempos da filosofia grega, todos
os homens são filósofos, depositários do objetivo utópico de toda a filosofia:
                                  O grego conhece somente respostas, mas nenhuma pergunta, somente soluções (mesmo que enigmáticas), mas nenhum enigma, somente
                         formas, mas nenhum caos. (...) Por isso, a conduta do espírito nessa pátria é acolhimento passivo- visionário de um sentido prontamente
                         existente. O mundo do sentido é palpável e abarcável com a vista, basta encontrar nele o locus destinado ao individual. O erro, aqui, é questão
                         somente de falta ou excesso, de uma falha de medida ou de percepção. Pois saber é alçar véus opacos; criar, apenas copiar as essencialidades
                         visíveis e eternas; virtude, um conhecimento perfeito dos caminhos; e o que é estranho aos sentidos decorre somente da excessiva distância em
                         relação ao sentido. (Idem)

          Longe da certeza de sair e voltar, da sensação de viajar mantendo a sensação de sempre sentir-se em casa, tanto a filosofia quanto a literatura
moderna, nos propõe a aventura de perde-se, de ultrapassar fronteiras em que os limites não são prontamente demarcados. Resta-nos saber, enquanto
professores de filosofia, se queremos enfrentar esses perigos ou se consideramos a filosofia e seu ensino como afirma Novalis: “Filosofia é na verdade
nostalgia, o impulso de sentir-se em casa em toda a parte”
   Por hora, creio que o conto de Voltaire poderia nos introduzir na reflexão que se pretende abordar neste texto, ou seja, a reflexão sobre as “filosofias”
e as finalidades de seu ensino e de sua prática em sala de aula, por meio de algumas metáforas que poderiam se configurar como visões caricatas da
problemática que envolve o ensino de filosofia.



                                                                                                                                                                     20
É claro que esta      empreitada nos oferece riscos. Riscos dos reducionismos próprios das caricaturas, mas para ser coerente com a proposta de
ultrapassar fronteiras entre o literário e filosófico, partirei das múltiplas leituras que nos oferece o conto de Voltaire para tentar reescrevê-lo à luz das
inquietações que extrapolam o tempo e o espaço que lhe deram origem, enfim, para torná-lo presente no agora de nossa situação problemática. De
qualquer forma, é preciso admitir que, algumas vezes, as caracterizações na filosofia podem ser mais arriscadas que as caricaturas.
   Diria que alguns educadores se vêem como os filósofos do conto de Voltaire e encerram a discussão na citação de obras e autores. A filosofia seria
portadora de um saber que só seria alcançado através do pleno domínio de sua linguagem. Quem a ensina, portanto, deveria introduzir o aprendiz em um
universo de conceitos e argumentações construído ao longo de sua história. Considerando-se que essa não é uma tarefa que poderia ser realizada em curso
introdutório, tal como se configura no Ensino Médio, a filosofia só poderia ser tarefa de filósofos. Caso contrário, se constituiria em “coisa que não se
compreende em língua que menos se entende”.
   Outros, como o gigante do conto, tomam os pequenos nas palmas da mão e se deliciam com sua ignorância. Trata-se da posição de quem é detentor de algum tipo
de saber e que, benevolentemente, se compraz daqueles que pensam que sabem. Seria, portanto, preciso oferecer-lhes a promessa do saber enquanto autoridade,
mesmo que sem nenhuma linha traçada. Pelo menos duas possibilidades poderiam ser extraídas desta posição:
   A primeira, que geralmente nos faz retomar a atividade socrática como metáfora da própria filosofia, é a de que a finalidade do ensino de filosofia
estaria em destruir as certezas, ou melhor, as falsas certezas. A ironia socrática cumpriria a missão de quem pergunta para constatar a ignorância de quem
não pode responder. Essa postura, se por um lado contém o gérmen da crítica, por outro, nos remete à crença na existência de uma verdade que estaria nas
mãos de poucos capazes de reconhecê-la e ler aquilo que ninguém pode ver. Sendo assim, o professor de filosofia seria o guia dos cegos até que eles
pudessem enxergar.
   A segunda possibilidade é entender a filosofia como exercício de puro questionamento, o lugar dos “porquês”. Ainda aqui, a finalidade da filosofia
seria a de demolidora de certezas, não das certezas mais imediatas ou inconsistentes, mas de tudo que esteja estabelecido. O professor de filosofia seria
aquele sabe questionar, questiona a existência de Deus, as possíveis evidências das percepções e dos sentidos, pois acredita ser o filósofo aquele que
pergunta mas não responde. Não há nada escrito no livro, portanto nada vale, tudo pode.
    Há ainda aqueles que abrem os livros e que inconformados com os espaços vazios, interpretam o vazio à luz de algum sistema. Para estes a filosofia estaria
sempre pronta a arranjar o desarranjado, basta-lhe um procedimento seguro. Só não vê aquele que ainda não domina as ferramentas da visão. Se apropriar das
ferramentas adequadas para ler o livro do mundo e ensinar a utilizá-las com precisão constituiria a tarefa do professor de filosofia. Pouco importa o conteúdo ou se
há conteúdo, a filosofia seria , em seu fazer, exercício intelectual.

                                                                                                                                                                 21
Mas há ainda uma outra maneira de ler o conto de Voltaire e essa me parece promissora para pensarmos as finalidades da filosofia no Ensino Médio. Seria a de
entender a filosofia como livro aberto para cravarmos os sinais e os significados na ação e no exercício de interpretação e reinterpretação que envolve as questões do
presente à luz de certas tradições filosóficas. Se esse for o objetivo da filosofia e de seu ensino, seria o texto filosófico o instrumento mais adequado para introduzir o
aluno na aventura do perder-se de si para buscar reencontrar-se?
        Tentando buscar indícios para responder esta questão, façamos um pequeno passeio pela prática da filosofia em sala de aula tomando emprestado alguns
depoimentos extraídos do trabalho de pesquisa de Maria Helena Prado Maddalena “Lecionar filosofia uma prática em Debate: um estudo de caso do ensino de
filosofia nas Escolas Estaduais de Ensino Médio de Mogi das Cruzes”(MADDALENA, 2001) Embora várias questões elaboradas em entrevistas com professores do
ensino médio nos interesse, nos limitaremos a duas: “O que é filosofia para você? Qual metodologia é usada nas aulas?”
Primeira Questão : O que é filosofia para você ou o que espera das aulas de filosofia?
                                                                                           Professor I
        A filosofia é a busca do conhecimento, a busca de respostas, a busca da sabedoria, a busca de acertar. Seria mais ou menos isso... a busca de acertar. Com
todos os erros que acontecem na vida, mas estamos em busca de fazer os erros o menos mal, o mais certo.
                                                                              Professor II
        Olha, eu tenho uma expectativa... eu gostaria muito de levar o aluno, um pouquinho, ao raciocínio abstrato; não consegue abstrair-se nada. Terceiro colegial
eles não conseguem tirar uma reflexão de um filme, de uma música..., eu pelo pouco tempo que tenho de uma aula, faço um debate para poder ver as coisas na
sociedade, tentar refletir, que as coisas que estão aí nem sempre são aquilo que está sendo apresentado, mas existe algo por trás que a gente tem que descobrir. Eu
sonho muito com a filosofia, inclusive com a filosofia individual, enquanto filosofia clínica.
                                                                              Professor III
        A filosofia é uma forma de conhecimento. O que eu tenho passado aos alunos é que a reflexão contribui para ciência, porque a ciência analisa de uma forma
e a filosofia de outra, porque a filosofia não está presa a um só aspecto - ela analisa os fatos em seus vários aspectos. A reflexão é importante para todo o mundo;
então, todos nós temos que filosofar. Nós todos temos que ser filósofos no sentido de estar sempre refletindo, pensando.
                                                                              Professor IV
        A concepção que eu tenho de filosofia, enquanto disciplina para o ensino médio, ela tem a funcionalidade de estruturar outras disciplinas. A filosofia faz a
análise de todas as ciências, sempre no ponto de vista filosófico. Neste sentido, a filosofia é extremanente importante, porque ela vai dar uma totalidade diferente
para a ciência, das visões que se tem em relação à ciência e das visões que a maioria dos professores têm em relação às suas próprias disciplinas. Então a filosofia vai

                                                                                                                                                                       22
despertar um senso crítico-filosófico nos alunos, para que eles possam enxergar as diversas disciplinas que assistem de forma diferente, para que não sejam
conduzidos a terem uma visão apenas unilateral das ciências.
                                                                             Professor V
        Para mim é tudo. Ela está vinculada a todas as áreas de nossa vida, em todas as disciplinas, em toda a parte. Tem quem pense que a filosofia é uma coisa
assim sofisticada, um “bicho de sete cabeças. Antigamente havia essa idéia, até um tempo atrás, de que a filosofia era coisa para elite, mas não é. Ela está em tudo,
tudo o que se faz, se usa a filosofia.
                                                                             Professor VI
        É primordial, é fundamental. É justamente a filosofia que vai trazer novamente à tona os valores que estão perdidos. É justamente este o papel da filosofia;
num momento de crise, num momento que o senso comum não consegue responder mais nada, entra a filosofia. Ela foi desprezada muito tempo, não lhe deram a
devida atenção; professor de filosofia no Estado não tem capacitação, não tem um cursinho, não tem nenhuma palestra para se inteirar. Eu acho isso um horror, um
descaso muito grande, porque eles ficam com medo de que o aluno faça greve, mas isso não é verdade. A filosofia ensina a criticar, mas de uma maneira racional, de
uma maneira organizada, que não tende à baderna. Eles não tem que ficar com medo disso.
                                                                            Professor VII
        Particularmente, eu gosto muito. Eu sou realizada; acho muito importante, na atualidade abrir a mente dos jovens, apesar da apatia dos jovens, que não
gostam de pensar. Eles acham que a filosofia não serve para nada, não cai no vestibular. Eu acho que o ser humano, a própria sociedade, preparou o homem para ter,
não para ser. Tudo visa a utilidade, o para que serve, o que eu vou ganhar com isso, e não o que eu vou ser, o que vai me enriquecer em termos de pessoa, de ser
humano. Infelizmente, é isso que está faltando na cabecinha deles; eles estão muito na visão capitalista, do ter, e estão deixando o lado do ser.
        Nos diversos depoimentos acerca do que é filosofia ou da finalidade de seu ensino é fácil observar que permanece a crença de um certo poder redentor da
filosofia, seja enquanto conhecimento que se opõe ao cientificismo, seja enquanto forma de se recuperar valores esquecidos, ou mesmo enquanto crítica do
capitalismo e da sociedade de consumo. A filosofia como exercício de abstração e análise crítica caracteriza o processo do filosofar, embora algumas expressões
utilizadas mereçam atenção, pois revelam ser esses procedimentos essenciais da filosofia que precisam ser acordados ou despertados no aluno quase que de forma
espontaneísta: “Eles não conseguem tirar uma reflexão de um filme...” - “A filosofia vai dar uma totalidade diferente às ciências” – “todos nós temos que ser
filósofos no sentido de estar pensando refletindo” – “A filosofia vai trazer à tona os valores que estão perdidos” – “Acho importante(...) abrir a mente dos jovens.”
Vejamos pois os meios ou caminhos escolhidos para atingir tais objetivos:
                                                                                              Professor I

                                                                                                                                                                    23
No primeiro ano eu sentia muita dificuldade, durante os primeiros seis meses, porque quando eu sai da faculdade, às vezes eu queria passar a filosofia como
era na faculdade, mas a gente vê que no segundo grau é completamente diferente. Você tem que colocar o aluno no contexto definindo o que é a filosofia... Olha a
metodologia, geralmente é a aula expositiva, discussões, debates, sem dar respostas prontas, mas fazendo com que cada um dê sua opinião e pergunte o “porquê” das
coisas. Sempre falando, às vezes com filmes, colocando situações que a gente vive. Por exemplo, um dos filmes que eu trabalhei com a questão das emoções, da
razão, da intuição, que foi um filme novo, “O sexto sentido”. Então deu para trabalhar com um lado intuitivo. Para mostrar que quando as coisas acontecem,
acontecem sempre em cima de causa e efeito. Então eu identifiquei esse nome técnico com os alunos – causa e efeito- que para eles é muito novo. Não é um
acontecimento traz outro- nada vêm do além- então tento sempre colocar coisas que chamem atenção e aproveito o interesse deles naquilo que eles colocam com
certa evidência.
                                                                             Professor II
        Normalmente eu adoto alguns livros básicos para o meu trabalho, “Um outro olhar”, que eu gosto muito, da Sônia Maria Ribeiro de Souza. “O filosofando”,
“O mundo de Sofia”, e um outro, muito interativo, da Angélica Sátiro e Mirian Wuensch. Esse livro deveria estar na mão de todos os alunos, pelas atividades... é
difícil estar usando, porque você acaba tendo que passar muita coisa na lousa, com uma aula...
                                                                             Professor III
        Olha, eu tenho feito mais aula expositiva, isso devido à dificuldade que os alunos têm para interpretar, para ler, escrever – nos terceiros anos a gente encontra
erros bárbaros: que eu vou fazer? Dá desânimo
                                                                             Professor IV
        Eu trabalho com temas, no meu planejamento eu tenho temas que eu trabalho no bimestre. Por exemplo no primeiro bimestre eu trabalho com a cultura-
abordo as questões do desenvolvimento da própria antropologia, da antropologia filosófica, da antropologia cultural, e aí, bem no início, a questão da relação
linguagem com o conhecimento, o desenvolvimento do processo, como se processou a própria abstração... Eu pego Gramsci, pego Marx, faço a análise do
pensamento político, econômico, para que eles possam entender o que se passa hoje, sempre fazendo uma análise histórica. Há uma necessidade...as aulas do terceiro
ano permitem a você abordar a questão histórica, contextualizar, porque há uma dificuldade tremenda no conhecimento da história, não há bagagem de história, a
não ser o conhecimento mais comum e superficial que todos tem. Não uso livro-texto, eu uso aí uma miscelânea...a gente que já tem uma certa experiência, nunca
usa um referencial só. Nem sempre textos de filosofia; são artigos de jornal do Gilberto Dimenstein, do Marcelo Coelho, da Marilena Felinto, que são textos
interessantes. Esses são mais textos de jornais, e eu trabalho com outros textos, também. Tem uma revistinha muito interessante, produzida em Porto Alegre, se
chama Mundo Jovem. É uma revista produzida pela Pastoral da Juventude Operária da Igreja Católica, em que eles produzem essa revista é muito interessante; então

                                                                                                                                                                      24
você tem ali... a própria revista dá trabalhar com os alunos. Então tem várias temáticas, separadas em textos. A própria revista nem grampeada é, que é para você
destacar para poder trabalhar. Então tem aspectos assim: filosofia – e aí tem uma análise, tem questões, muito interessante esta revista...
                                                                              Professor V
        Olha, para eu trabalhar em sala de aula, é muito difícil. Eu trabalho com dois livros- eu gosto de trabalhar com apostilas, porque os livros eles (os alunos)
falam que não podem comprar, então eu tiro xerox para eles. Os livros são “Temas de Filosofia” de Maria Lúcia Arruda Aranha e Maria Helena Pires Martins e “Um
outro olhar” de Sonia Maria Ribeiro de Souza. Esse livro é muito bom, os alunos gostam dele porque ele traz poesia, traz música, coisas que estão mais perto deles.
São temas atuais, não tem aquela coisa do passado, que eram mais textos que eles tinham que pegar em outras fontes. Aí não, tem quase tudo que é da realidade
deles – jornais, revistas, cita algumas coisas que estão ao acesso deles. Entre o trabalho com temas e capítulos, trabalho com capítulos que abordam vários temas. Por
exemplo: agora eu estou trabalhando com o mito. Eu já trabalhei dois capítulos. O primeiro – Filosofia, processo e produto – e – O homem, quem é ele, afinal – o
terceiro – Mito- religião e Filosofia, que estou trabalhando agora.
                                                                             Professor VI
        Eu estou buscando; montei o programa com capítulos do livro. Estou buscando uma definição melhor. Dentro dos capítulos do livro vou trabalhando dia a
dia; trato dos acontecimentos atuais, vou usar vídeos da TV Cultura. É tudo uma novidade, são tentativas.
                                                                             Professor VII
        Eu faço o Programa, inclusive eu era sozinha aqui, me reunia com os professores de sociologia, para ver se os temas não se repetiam muito, conseguindo
fazer um trabalho que não ficasse tão repetitivo para o aluno... Enfim a gente faz um programa, não deixando de lado a história, fazendo mais a parte histórica, e
também abordando temas importantes como a ética, a política, etc... Não consigo adotar um livro didático, não. Eu uso muito o “Filosando”. Eu tenho mais ou
menos preparado, na cabeça... depois de tantos anos...eu procuro sempre estar trazendo uma coisa nova. Agora estava dando uma olhada no “Convite à Filosofia” da
Marilena Chauí, achei muito bom.


        É importante salientar que os 7 professores entrevistados pela pesquisadora, todos são licenciados em filosofia.
        Embora eu não pretenda fazer um análise detalhada das respostas é interessante destacar alguns elementos que nos servem aqui como pano de fundo para
uma reflexão mais ampla:
1) Há em todos os depoimentos uma preocupação em fazer o aluno conhecer a história da filosofia;
2) O programa de curso é, geralmente, marcado por capítulos de livros didáticos, embora os professores não os adotem;

                                                                                                                                                                   25
3) O que determina a escolha dos livros didáticos ou demais recursos utilizados não é a concepção de filosofia do autor ou os problemas que os textos apresentam,
   mas a presença de elementos que permitam uma certa aproximação do aluno dos temas a serem abordados: música, poemas, artigos de jornal e indicação de
   filmes;
4) Não há nenhuma preocupação em aproximar o aluno do texto filosófico ou da leitura filosófica de textos narrativos. A dificuldade de leitura dos alunos leva o
   professor a intercalar aulas expositivas que inferimos serem referentes a apresentação da história da filosofia, com aulas onde é possível discutir alguns temas
   capazes de mobilizar os alunos.
    Podemos, também, de certa forma afirmar que há uma ruptura entre o conteúdo e a forma. O conteúdo contido na tradição filosófica é tratado em aulas
expositivas e forma crítica da reflexão é vivenciada em debates onde o aluno pode pensar e emitir opiniões, embora caiba ao professor “abrir a cabeça” do aluno para
que este possa desvencilhar-se das respostas prontas e do senso comum. Embora não queria fazer julgamentos precipitados pareceu-se que as entrevistas com os
professores mantém algumas similaridades no que se refere a forma de entender a filosofia. Apontarei aqui duas:
    1) A crença que, num universo fragmentado, a filosofia enquanto atividade totalizadora, exposta em uma espécie de “epopéia do pensamento”, poderia auxiliar
        os alunos na busca da verdadeira sabedoria. A explicação do que é a filosofia se faz, na maioria das vezes, pela narração da grande aventura dos grandes
        heróis do pensamento. Cabe ao professor contar essa história em aulas expositivas, de forma linear ou não, na maioria das vezes com o auxílio do livro
        didático;
    2) A compreensão da filosofia como atividade crítica e questionadora, capaz de fazer o aluno pensar com autonomia. A filosofia indicaria a necessidade de um
        trabalho de abstração e análise e, se não é possível acompanhar a abstração do texto filosófico, é possível tratar as questões polêmicas (sexo, aborto, drogas)
        de forma crítica.
        A afirmação de Walter Benjamin que a narrativa estaria se definhando pois a sabedoria(o lado épico da verdade) estaria em extinção nos conduz ao
    questionamento da verdade como patrimônio da tradição (seja da experiência vivida ou tradição filosófica). As transformações tecnológicas transformam nossa
    vida de forma abrupta e impessoal. Não seria mais possível aconselhar. Ora, se admitimos com Benjamin que o conselho extraído da experiência vivida nos
    parece antiquado, o que dizer do “conselho” extraído da tradição filosófica que se apresenta de forma enigmática aos alunos? O que dizer quando esta tradição é
    apresentada com uma narrativa historiográfica de idéias e pensamentos contada pelo professor de filosofia?
        Mesmo admitindo inúmeras respostas às dúvidas colocadas na história da filosofia, considerando-a como uma atividade distante de respostas prontas, o
    professor não crê na possibilidade da própria filosofia se perder e crê que na filosofia reside a promessa da sabedoria.



                                                                                                                                                                    26
Neste contexto seria pertinente, dada as dificuldades do professor trabalhar com o texto filosófico, nos perguntarmos o que efetivamente caracteriza um texto
como filosófico e quais as possibilidades da narrativa.


Do filosófico ao literário- fronteiras e possibilidades
                         O Rei fartou-se de reinar sozinho e decidiu partilhar o poder com a Opinião Pública.
                         - Chamem a Opinião Pública – ordenou aos serviçais
                         Eles percorreram as praças da cidade e não a encontraram. Havia muito que a opinião deixara de frequentar os lugares públicos. Recolhera-
                         se ao beco sem saída, onde furtivamente, abria só um olho, isso mesmo lá de vez em quando.
                         Descoberta, afinal, depois de muitas buscas, ela consentiu em comparecer ao Palácio Real, onde sua Majestade, acariciando-lhe docemente o
                         queixo, lhe disse:
                         - Preciso de ti.
                         A Opinião muda como entrara, muda se conservou. Perdera o uso da palavra ou preferia não exercitá-la. O rei insistia, oferecendo-lhe
                         sequilhos e perguntando o que ela pensava disso e daquilo, se acreditava em discos voadores, horóscopos, correção monetária, essas coisas.
                         E outras. A Opinião Pública abanava a cabeça: Não tinha opinião.
                         - Vou te obrigar a ter opinião – disse o Rei, zangado. – Meus especialista te dirão o que deves pensar e manifestar. Não posso mais reinar
                             sem teu concurso. Instruída devidamente sobre todas as matérias, e tendo assimilado o que é preciso achar sobre cada uma em particular
                             e sobre a problemática geral, tu me serás indispensável.
                         E virando-se para os serviçais:
                         - Levem esta senhora para o curso intensivo de Conceitos Oficiais. E que ela só volte aqui depois de decorar bem as apostilas.
                             (DRUMMOND, 1985)

        Quando nos perguntamos o que é literatura ou mesmo o que é filosofia tendemos a afirmar que o campo da racionalidade e dos sistemas
explicativos seria o campo da filosofia e o espaço das emoções e dos afetos seria o campo da arte e da literatura, capaz de nos arrebatar. Aqui convém
questionar: Estariam as relações entre filosofia e literatura marcadas com certezas claras e distintas, como no cogito cartesiano? O que, então, caracteriza
o texto filosófico?
        Essa caracterização não é simples porque esbarra na caracterização da própria filosofia. Alguns referenciais para traçar essa distinção podem ser encontrados
nas obras de G.G Granger e Frederick Cossutta. Para esses pensadores a especificidade do texto filosófico seria a construção de um universo de significação que tem
sua raíz na experiência vivida, mas se desloca da mesma através de conceitos. Enquanto o artista cria significações e nos faz vivê-las, o filósofo transpõe o vivido em
termos de abstrações conceituais.
        Independentemente dos mecanismos de construção de um texto filosófico, seja por meio de uma cadeia dedutivas de argumentação ou por estilizações
subjetivas e metafóricas, o que nos permite identificar um texto como filosófico é a possibilidade da construção e reconstrução dos conceitos. No universo conceitual

                                                                                                                                                                    27
estaria a instância mediadora do vivido e do pensado, do particular e do universal, do concreto e do abstrato que permite ao filósofo deslocar, atribuir sentidos,
destruir e construir significações.
        A elaboração dos conceitos no interior do texto filosófico permite-nos distinguir filosofia e literatura. Na literatura temos a suspensão dos referenciais do
vivido e a substituição destas referências do discurso descritivo por um equivalente ficcional. A filosofia, através do conceito, propõe a reconstrução desse discurso e
não simplesmente sua suspensão e substituição. Exatamente por isso, Granger alerta para o perigo do uso de metáforas na construção do texto filosófico, pois o uso
excessivo da imagem interrompe a exposição abstrata e a substitui por um equivalente concreto, a metáfora alude às imagens que podem ser compreendidas sem
exatidão, a situação poética poderia ser um problema para o rigor filosófico e, consequentemente, para os mecanismos da demonstração filosófica necessários para a
reconstrução do vivido.
        De forma geral, poderíamos considerar os conceitos como pontos de vista sob o qual a experiência se organiza e podem ser entendidos como feixes de
explicação para as experiências, sendo assim é preciso admitir que os conceitos só podem ser criados a partir das referências vividas na experiência. Por outro lado,
tais ponto de vista podem ser desligados de sua relação referencial e considerados em si. O conceito, neste caso, torna-se reflexivo, torna-se auto- referente. No texto
sistemático – entendido por hora como texto filosófico- os conceitos reflexivos servem reciprocamente para a organização dos esquemas de organização da
experiência. Se a filosofia ganha em rigor, paga o preço de uma abstração capaz de distanciar o conceito de seu campo referencial de experiência.
        Mas seria possível admitir um universo conceitual num texto de ficção? Exatamente por substituir as referências do discurso descritivo por “pseudo-
referências”, o texto literário supõe uma maleabilidade em relação aos conceitos. Apresenta-se, desta forma, possibilidades de uso de conceitos e, com isso,
possibilidades de diferentes esquemas para a organização da experiência. O real e a ficção se estrelaçam, a unidade da ficção não é a unidade de uma consistência
sistemática, mas sim uma unidade que se configura como equivalente de uma experiência. Essa unidade pode subverter os esquemas da realidade em camadas
sobrepostas no texto literário. Aqui seria preciso um esforço de leitura para o encontro com essas camadas.
        A literatura pode não somente apresentar conceitos, mas também problematizar conceitos e representar condensações pré-conceituais. No texto literário é
possível encontrar a tematização de experiências pré-conceituais e se abrir ao universo de problematização e criação de conceitos. Talvez por esse motivo, a filosofia
quando duvida da validade dos grandes sistemas explicativos se aproxima da literatura. Vemos esse exemplo em Voltaire.
        Ora, se admitirmos com Voltaire que a filosofia é livro a ser escrito, o que supõe uma atividade criadora e criativa, a literatura teria muito a ensinar à
filosofia e poderia apontar caminhos para seu ensino. Considerando o caráter introdutório da filosofia no Ensino, o discurso narrativo poderia se configurar com uma
ponte entre a realidade e o conceito e se abrir ao processo de criação de conceitos. Neste sentido é preciso aprender com Carlos Drumond de Andrade, para não
corrermos o risco de transformar as salas de aulas de filosofia em “Palácios do Rei”.

                                                                                                                                                                     28
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Educação após Auschwitz

  • 1. UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA (UFRO) CENTRO DE HERMENÊUTICA DO PRESENTE PRIMEIRA VERSÃO PRIMEIRA VERSÃO ISSN 1517-5421 lathé biosa 245 ANO VIII, Nº 245 - SETEMBRO - PORTO VELHO, 2009. Volume XXVII - Set/Dez. ISSN 1517-5421 EDITOR NILSON SANTOS CONSELHO EDITORIAL ALBERTO LINS CALDAS – História - UFRO CLODOMIR S. DE MORAIS – Sociologia - IATTERMUND ARTUR MORETTI – Física - UFRO CELSO FERRAREZI – Letras - UFRO HEINZ DIETER HEIDEMANN – Geografia - USP JOSÉ C. SEBE BOM MEIHY – História – USP MARIO COZZUOL – Biologia – PUC-RGS MIGUEL NENEVÉ – Letras - UFRO ROMUALDO DIAS – Educação - UNICAMP VALDEMIR MIOTELLO – Filosofia - UFSC Os textos no mínimo 3 laudas, tamanho de folha A4, fonte Times New Roman 11, espaço 1.5, formatados em “Word for EDUCAÇÃO APÓS AUSCHWITZ Windows” deverão ser encaminhados para e-mail: Theodor Adorno nilson@unir.br CAIXA POSTAL 775 CEP: 78.900-970 PORTO VELHO-RO TIRAGEM 200 EXEMPLARES EDITORA UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA
  • 2. EDUCAÇÃO APÓS AUSCHWITZ Theodor Adorno A exigência que Auschwitz não se repita é a primeira de todas para a educação. De tal modo ela precede quaisquer outras que creio não ser possível nem necessário justificá-la. Não consigo entender como até hoje mereceu tão pouca atenção. Justificá-la teria algo de monstruoso em vista de toda monstruosidade ocorrida. Mas a pouca consciência existente em relação a essa exigência e as questões que ela levanta provam que a monstruosidade não calou fundo nas pessoas, sintoma da persistência da possibilidade de que se repita no que depender do estado de consciência e de inconsciência das pessoas. Qualquer debate acerca de metas educacionais carece de significado e importância frente a essa meta: que Auschwitz não se repita. Ela foi a barbárie contra a qual se dirige toda a educação. Fala-se da ameaça de uma regressão à barbárie. Mas não se trata de uma ameaça, pois Auschwitz foi a regressão; a barbárie continuará existindo enquanto persistirem no que têm de fundamental as condições que geram esta regressão. E isto que apavora. Apesar da não-visibilidade atual dos infortúnios, a pressão social continua se impondo. Ela impele as pessoas em direção ao que é indescritível e que, nos termos da história mundial, culminaria em Auschwitz. Dentre os conhecimentos proporcionados por Freud, efetivamente relacionados inclusive à cultura e à sociologia, um dos mais perspicazes parece-me ser aquele de que a civilização, por seu turno, origina e fortalece progressivamente o que é anticivilizatório. Justamente no que diz respeito a Auschwitz, os seus ensaios O mal-estar na cultura e Psicologia de massas e análise do eu mereceriam a mais ampla divulgação. Se a barbárie encontra-se no próprio principio civilizatório, então pretender se opor a isso tem algo de desesperador. A reflexão a respeito de como evitar a repetição de Auschwitz é obscurecida pelo fato de precisarmos nos conscientizar desse elemento desesperador, se não quisermos cair presas da retórica idealista. Mesmo assim é preciso tentar, inclusive porque tanto a estrutura básica da sociedade como os seus membros, responsáveis por termos chegado onde estamos, não mudaram nesses vinte e cinco anos. Milhões de pessoas inocentes ---- e só o simples fato de citar números já é humanamente indigno, quanto mais discutir quantidades —foram assassinadas de uma maneira planejada. Isto não pode ser minimizado por nenhuma pessoa viva como sendo um fenômeno superficial, como sendo uma aberração no curso da história, que não importa, em face da tendência dominante do progresso, do esclarecimento, do humanismo supostamente crescente. O simples fato de ter ocorrido já constitui por si só expressão de uma tendência social imperativa. Nesta medida gostaria de remeter a um evento, que de um modo muito sintomático parece pouco conhecido na Alemanha, apesar de constituir a temática de um best-seller como Os quarenta dias de Musa Dagh, de Werfel. Já na Primeira Guerra Mundial os turcos —- o assim chamado movimento turco jovem dirigido por Enver Pascha e Talaat Pascha — — mandaram assassinar mais de um milhão de armênios. Importantes quadros militares e governamentais, embora, ao que tudo indica, soubessem do ocorrido, guardaram sigilo estrito, O genocídio tem suas raízes naquela ressurreição do nacionalismo agressor que vicejou em muitos países a partir do fim do século XIX.
  • 3. Além disso não podemos evitar ponderações no sentido de que a invenção da bomba atômica, capaz de matar centenas de milhares literalmente de um só golpe, insere-se no mesmo nexo histórico que o genocídio. Tornou-se habitual chamar o aumento súbito da população de explosão populacional: parece que a fatalidade histórica, para fazer frente à explosão populacional, dispõe também de contra-explosões, o morticínio de populações inteiras. Isto só para indicar como as forças às quais é preciso se opor integram o curso da história mundial. Como hoje em dia é extremamente limitada a possibilidade de mudar os pressupostos objetivos, isto é, sociais e políticos que geram tais acontecimentos, as tentativas de se contrapor à repetição de Auschwitz são irnpelidas necessariamente para o lado subjetivo. Com isto refiro-me sobretudo também à psicologia das pessoas que fazem coisas desse tipo. Não acredito que adianta muito apelar a valores eternos, acerca dos quais justamente os responsáveis por tais atos reagiriam com menosprezo; também não acredito que o esclarecimento acerca das qualidades positivas das minorias reprimidas seja de muita valia. É preciso buscar as raízes nos perseguidores e não nas vitimas, assassinadas sob os pretextos mais mesquinhos. Torna-se necessário o que a esse respeito uma vez denominei de inflexão em direção ao sujeito. É preciso reconhecer os mecanismos que tornam as pessoas capazes de cometer tais atos, é preciso revelar tais mecanismos a eles próprios, procurando impedir que se tornem novamente capazes de tais atos, na medida em que se desperta uma consciência geral acerca desses mecanismos. Os culpados não são os assassinados, nem mesmo naquele sentido caricato e sofista que ainda hoje seria do agrado de alguns. Culpados são unicamente os que, desprovidos de consciência, voltaram Contra aqueles seu ódio e sua fúria agressiva. E necessário contrapor-se a uma tal ausência de consciência, é preciso evitar que as pessoas golpeiem para os lados sem refletir a respeito de si próprias. A educação tem sentido unicamente como educação dirigida a uma auto-reflexão crítica. Contudo, na medida em que, conforme os ensinamentos da psicologia profunda, todo caráter, inclusive daqueles que mais tarde praticam crimes, forma-se na primeira infância, a educação que tem por objetivo evitar a repetição precisa se concentrar na primeira infância. Já mencionei a tese de Freud acerca do mal-estar na cultura. Ela é ainda mais abrangente do que ele mesmo supunha: sobretudo porque, entrementes, a pressão civilizatória observada por ele multiplicou-se em uma escala insuportável. Por essa via as tendências à explosão a que ele atentara atingiriam uma violência que ele dificilmente poderia imaginar. porém o mal-estar na cultura tem seu lado social ---- o que Freud sabia, embora não o tenha investigado concretamente. É possível falar da claustrofobia das pessoas no mundo administrado, um sentimento de encontrar-se enclausurado numa situação cada vez mais socializada, como uma rede densamente interconectada. Quanto mais densa é a rede, mais se procura escapar, ao mesmo tempo em que precisamente a sua densidade impede a saída. Isto aumenta a raiva contra a civilização. Esta torna-se alvo de uma rebelião violenta e irracional. Um esquema sempre confirmado na história das perseguições é o de que a violência contra os fracos se dirige principalmente contra os que são considerados socialmente fracos e ao mesmo tempo ---- seja isto verdade ou não —- felizes. De uma perspectiva sociológica eu ousaria acrescentar que nossa sociedade, ao mesmo tempo em que se integra cada vez mais, gera tendências de desagregação. Essas tendências encontram-se bastante desenvolvidas logo abaixo da superfície da 3
  • 4. vida civilizada e ordenada. A pressão do geral dominante sobre tudo que é particular, os homens individualmente e as instituições singulares, tem uma tendência a destroçar o particular e individual juntamente com seu potencial de resistência. Junto com sua identidade e seu potencial de resistência, as pessoas também perdem suas qualidades, graças a qual têm a capacidade de se contrapor ao que em qualquer tempo novamente seduz ao crime. Talvez elas mal tenham condições de resistir quando lhes é ordenado pelas forças estabelecidas que repitam tudo de novo, desde que apenas seja em nome de quaisquer ideais de pouca ou nenhuma credibilidade. Quando falo de educação após Auschwitz, refiro-me a duas questões: primeiro, à educação infantil, sobretudo na primeira infância; e, além disto, ao esclarecimento geral, que produz um clima intelectual, cultural e social que não permite tal repetição; portanto, um clima em que os motivos que conduziram ao horror tornem-se de algum modo conscientes. Evidentemente não tenho a pretensão de sequer esboçar o projeto de uma educação nesses termos. Contudo, quero ao menos indicar alguns pontos nevrálgicos. Com freqüência por exemplo, nos Estados Unidos —- o espirito germânico de confiança na autoridade foi responsabilizado pelo nazismo e também por Auschwitz. Considero esta afirmação excessivamente superficial, embora na Alemanha, como em muitos outros países europeus, comportamentos autoritários e autoridades cegas perdurem com mais tenacidade sob os pressupostos da democracia formal do que se ~‘4ueira reconhecer. Antes é de se supor que o fascismo e o horror que produziu se relacionam com o fato de que as antigas e consolidadas autoridades do império haviam ruído e se esfacelado, mas as pessoas ainda não se encontravam psicologicamente preparadas para a autodeterminação. Elas não se revelaram à altura da liberdade com que foram presenteadas de repente. É por isso que as estruturas de autoridade assumiram aquela dimensão destrutiva e ---- por assim dizer — de desvario que antes, ou não possuíam, ou seguramente não revelavam. Quando lembramos que visitantes de quaisquer potentados. já politicamente desprovidos de qualquer função real, levam populações inteiras a explosões de êxtase, então se justifica a suspeita de que o potencial autoritário permanece muito mais forte do que o imaginado. Porém quero enfatizar com a maior intensidade que o retorno ou não retorno do fascismo constitui em seu aspecto mais decisivo uma questão social e não uma questão psicológica. Refiro-me tanto ao lado psicológico somente porque os demais momentos, mais essenciais, em grande medida escapam à ação da educação, quando não se subtraem inteiramente à interferência dos indivíduos. Freqüentemente pessoas bem-intencionadas e que se opõem a que tudo aconteça de novo citam o conceito de vínculos de compromisso. A ausência de compromissos das pesssoas seria responsável pelo que aconteceu. Isto efetivamente tem a ver com a perda da autoridade, uma das condições do pavor sadomasoquista. É plausível para o entendimento humano sadio evocar compromissos que detenham o que é sádico, destrutivo, desagregador, mediante um enfático "não deves". Ainda assim considero ser uma ilusão imaginar alguma utilidade no apelo a vínculos de compromisso ou até mesmo na exigência de que se reestabeleçam vinculações de compromisso para que o mundo e as pessoas sejam melhores. A falsidade de compromissos que se exige somente para que provoquem alguma coisa —- mesmo que esta seja boa ----, sem que eles sejam experimentados por si mesmos como sendo substanciais para as pessoas, percebe-se muito 4
  • 5. prontamente. E espantosa a rapidez com que até mesmo as pessoas mais ingênuas e tolas reagem quando se trata de descobrir as fraquezas dos superiores. Facilmente os chamados compromissos convertem-se em passaporte moral --— são assumidos com o objetivo de identificar-se como cidadão confiável — ou então produzem rancores raivosos psicologicamente contrários à sua destinação original. Eles significam uma heteronomia, um tornar-se dependente de mandamentos, de normas que não são assumidas pela razão própria do indivíduo, O que a psicologia denomina superego, a consciência moral, é substituído no contexto dos compromissos por autoridades exteriores, sem compromisso, intercambiáveis, como foi possível observar com muita nitidez também na Alemanha depois da queda do Terceiro Reich. Porém justamente a disponibilidade em ficar do lado do poder, tomando exteriormente como norma curvar-se ao que é mais forte, constitui aquela índole dos algozes que nunca mais deve ressurgir. Por isto a recomendação dos compromissos é tão fatal. As pessoas que os assumem mais ou menos livremente são colocadas numa espécie de permanente estado de exceção de comando. O único poder efetivo contra o princípio de Auschwitz seria autonomia, para usar a expressão kantiana; o poder para a reflexão, a autodeterminação, a não-participação. Certa feita uma experiência me assustou muito: numa viagem ao lago de Constância, eu lia num jornal de Baden em que se informava acerca da peça Mortos sem sepuItura, de Sartre, que representa as situações mais terríveis. A peça incomodava visivelmente o critico. Mas ele não explicou este incômodo mediante o horror da coisa que constitui o horror de nosso mundo, mas torceu a questão como se, frente a uma posição como a de Sartre, que se ocupara do problema, nós tivéssemos, por assim dizer, um sentido para algo mais nobre: que não poderíamos reconhecer a ausência de sentido do horror. Resumindo: o critico procurava se subtrair ao confronto com o horror graças a um sofisticado palavrório existencial. O perigo de que tudo aconteça de novo está em que não se admite o contato com a questão. rejeitando até mesmo quem apenas a menciona, como se, ao fazê-lo sem rodeios, este se tomasse o responsável, e não os verdadeiros culpados. Em relação ao problema de autoridade e barbárie considero importante um aspecto que geralmente passa quase despercebido. Ele é mencionado numa observação do livro O Estado da SS, de Eugen Kogon, que contém abordagens importantes deste todo complexo e que não recebeu a atenção merecida por parte da ciência e da pedagogia. Kogon afirma que os algozes do campo de concentração em que ele mesmo passou anos eram em sua maioria jovens filhos de camponeses. A diferença cultural ainda persistente entre a cidade e o campo constitui uma das condições do horror, embora certamente não seja nem a única nem a mais importante. Repudio qualquer sentimento de superioridade em relação à população rural. Sei que ninguém tem culpa por nascer na cidade ou se formar no campo. Mas registro apenas que provavelmente no campo o insucesso da desbarbarização foi ainda maior. Mesmo a televisão e os outros meios de comunicação de massa, ao que tudo indica, não provocaram muitas mudanças na situação de defasagem cultural. Parece-me mais correto afirmar isto e procurar uma mudança do que elogiar de uma maneira nostálgica quaisquer qualidades especiais da vida rural ameaçadas de desaparecer. Penso até que a desbarbarização do campo constitui um dos objetivos educacionais mais importantes. Evidentemente ela pressupõe um estudo da consciência e do inconsciente da respectiva população. Sobretudo é preciso 5
  • 6. atentar ao impacto dos modernos meios de comunicação de massa sobre um estado de consciência que ainda não atingiu o nível do liberalismo cultural burguês do século XIX. Para mudar essa situação, o sistema normal de escolarização, freqüentemente bastante problemático no campo, seria insuficiente. Penso numa série de possibilidades. Uma seria — e estou improvisando — o planejamento de transmissões de televisão atendendo pontos nevrálgicos daquele peculiar estado de consciência. Além disto, imagino a formação de grupos e colunas educacionais móveis de voluntários que se dirijam ao campo e procurem preencher as lacunas mais graves por meio de discussões, de cursos e de ensino suplementar. Naturalmente sei que dificilmente essas pessoas serão muito bem-vistas. Mas com o passar do tempo se estabelecerá um pequeno círculo que se imporá e que talvez tenha condições de se irradiar. Entretanto não deve haver nenhum mal-entendido quanto à inclinação arcaica pela violência existente também nas cidades, principalmente nos grandes centros. Tendências de regressão — ou seja, pessoas com traços sádicos reprimidos — são produzidas por toda parte pela tendência social geral. Nessa medida quero lembrar a relação perturbada e patogênica com o corpo que Horkheimer e eu descrevemos na Dialética do esclarecimento. Em cada situação em que a consciência é mutilada, isto se reflete sobre o corpo e a esfera corporal de uma forma não-livre e que é propicia à violência. Basta prestar atenção em um certo tipo de pessoa inculta como até mesmo a sua linguagem —-- principalmente quando algo é criticado ou exigido — se torna ameaçadora, como se os gestos da fala fossem de uma violência corporal quase incontrolada. Aqui seria preciso estudai também a função do esporte. que ainda não foi devidamente reconhecida por uma psicologia social crítica. O esporte é ambíguo: por um lado, ele pode ter um efeito contrário à barbárie e ao sadismo, por intermédio do fairplay, do cavalheirismo e do respeito pelo mais fraco. Por outro, em algumas de suas modalidades e procedimentos, ele pode promover a agressão a brutalidade C o sadismo, principalmente no caso de espectadores. que pessoalmente não estão submetidos ao esforço e à. disciplina do esporte; são aqueles que costumam gritar nos campos esportivos. Épreciso analisar de uma maneira sistemática essa ambigüidade. Os resultados teriam que ser aplicados à vida esportiva na medida da influência da educação sobre a mesma. Tudo isso se relaciona de um modo ou outro à velha estrutura vinculada à autoridade, a modos de agir ---- eu quase diria — do velho e bom caráter autoritário. Mas aquilo que gera Auschwitz, os tipos característicos ao mundo de Auschwitz, constituem presumivelmente algo de novo. Por um lado, eles representam a identificação cega com o coletivo. Por outro, são talhados para manipular massas, coletivos, tais como os Himmler, Höss, Eichmann. Considero que o mais importante para enfrentar o perigo de que tudo se repita é contrapor-se ao poder cego de todos os coletivos, fortalecendo a resistência frente aos mesmos por meio do esclarecimento do problema da coletivização. Isto não é tão abstrato quanto passa parecer ao entusiasmo participativo. especialmente das pessoas jovens, de consciência progressista. O ponto de partida poderia estar no sofrimento que os coletivos infligem e se filiam a eles. Basta pensar nas primeiras experiências de cada um na escola. ~ preciso se opor àquele tipo de folk-ways, hábitos populares, ritos de iniciação de qualquer espécie, que infligem dor física —muitas vezes insuportável -— a uma pessoa como preço do direito de ela se sentir um filiado, um membro do coletivo. A brutalidade de hábitos tais como os trotes de qualquer 6
  • 7. ordem, ou quaisquer outros costumes arraigados desse tipo, é precursora imediata da violência nazista. Não foi por acaso que os nazistas enalteceram e cultivaram tais barbaridades com o nome de "costumes". Eis aqui um campo muito atual para a ciência. Ela poderia inverter decididamente essa tendência da etnologia encampada com entusiasmo pelos nazistas, para refrear esta sobrevida simultaneamente brutal e fantasmagórica desses divertimentos populares. Tudo isso tem a ver com um pretenso ideal que desempenha um papel relevante na educação tradicional em geral: a severidade. Esta pode até mesmo remeter a uma afirmativa de Nietzsche, por mais humilhante que seja e embora ele na verdade pensasse em outra coisa. Lembro que durante o processo sobre Auschwitz, em um de seus acessos, o terrível Boger culminou num elogio à educação baseada na força e voltada à disciplina. Ela seria necessária para constituir o tipo de homem que lhe parecia adequado. Essa idéia educacional da severidade, em que irrefletidamente muitos podem até acreditar, é totalmente equivocada. A idéia de que a virilidade consiste num grau máximo da capacidade de suportar dor de há muito se converteu em fachada de um masoquismo que — como mostrou a psicologia — se identifica com muita facilidade ao sadismo. O elogiado objetivo de "ser duro" de uma tal educação significa indiferença contra a dor em geral. No que, inclusive, nem se diferencia tanto a dor do outro e a dor de si próprio. Quem é severo consigo mesmo adquire o direito de ser severo também com os outros, vingando-se da dor cujas manifestações precisou ocultar e reprimir. Tanto é necessário tornar consciente esse mecanismo quanto se impõe a promoção de uma educação que não premia a dor e a capacidade de suportá-la, como acontecia antigamente. Dito de outro modo: a educação precisa levar a sério o que já de há muito é do conhecimento da filosofia: que o medo não deve ser reprimido. Quando o medo não é reprimido, quando nos permitimos ter realmente tanto medo quanto esta realidade exige, então justamente por essa via desaparecerá provavelmente grande parte dos efeitos deletérios do medo inconsciente e reprimido. Pessoas que se enquadram cegamente em coletivos convertem a si próprios em algo como um material, dissolvendo-se como seres autodeterminados. Isto combina com a disposição de tratar outros como sendo uma massa amorfa. Para os que se comportam dessa maneira utilizei o termo "caráter manipulador" em Authoritarian personality (A personalidade autoritária), e isto quando ainda não se conhecia o diário de Höss ou as anotações de Eichmann. Minhas descrições do caráter manipulador datam dos últimos anos da Segunda Guerra Mundial. Às vezes a psicologia social e a sociologia conseguem construir conceitos confirmados empiricamente só muito tempo depois. O caráter manipulador — e qualquer um pode acompanhar isto a partir das fontes disponíveis acerca desses lideres nazistas —- se distingue pela fúria organizativa, pela incapacidade total de levar a cabo experiências humanas diretas, por um certo tipo de ausência de emoções, por um realismo exagerado. A qualquer custo ele procura praticar uma pretensa, embora delirante, realpolitik. Nem por um segundo sequer ele imagina o mundo diferente do que ele é, possesso pela vontade de doing things, de fazer coisas, indiferente ao conteúdo de tais ações. Ele faz do ser atuante, da atividade, da chamada efficiency enquanto tal, um culto, cujo eco ressoa na propaganda do homem ativo. Este tipo encontra-se, entrementes — a crer em minhas observações e generalizando algumas pesquisas sociológicas ----, muito mais disseminado do que se poderia imaginar. O que outrora era exemplificado apenas por alguns monstros nazistas pode ser constatado hoje a partir de casos numerosos, como delinqüentes juvenis, lideres de quadrilhas e tipos semelhantes, diariamente presentes no noticiário. Se fosse 7
  • 8. obrigado a resumir em uma fórmula esse tipo de caráter manipulador — o que talvez seja equivocado embora útil à compreensão — eu o denominaria de o tipo da consciência coisificada. No começo as pessoas desse tipo se tornam por assim dizer iguais a coisas. Em seguida, na medida em que o conseguem, tornam os outros iguais a coisas. Isto é muito bem traduzido pela expressão aprontar, que goza de igual popularidade entre os valentões juvenis e entre os nazistas. Esta expressão aprontar define as pessoas como sendo coisas aprontadas em seu duplo sentido. Conforme Max Horkheimer, a tortura é a adaptação controlada e devidamente acelerada das pessoas aos coletivos. Algo disso encontra-se no espirito da época, por menos procedente que seja falar em espírito nesses termos. Enfim, resumirei citando Paul Valéry, que antes da última Guerra Mundial disse que a desumanidade teria um grande futuro. É particularmente difícil confrontar esta questão porque aquelas pessoas manipuladoras, no fundo incapazes de fazer experiências, por isto mesmo revelam traços de incomunicabilidade, no que se identificam com certos doentes mentais ou personalidades psicóticas. Nas tentativas de atuar contrariamente à repetição de Auschwitz pareceu.me fundamental produzir inicialmente uma certa clareza acerca do modo de constituição do caráter manipulador, para em seguida poder impedir da melhor maneira possível a sua formação, pela transformação das condições para tanto. Quero fazer uma proposta concreta: utilizar todos os métodos científicos disponíveis, em especial psicanálise durante muitos anos, para estudar os culpados por Auschwitz, visando se possível descobrir como uma pessoa se torna assim. O que aqueles ainda podem fazer de bom é contribuir, em contradição com a própria estrutura de sua personalidade, no sentido de que as coisas não se repitam. E essa contribuição só ocorreria na medida em que colaborassem na investigação de sua gênese. Obviamente seria difícil levá-los a falar; em nenhuma hipótese poder-se-ia aplicar qualquer procedimento semelhante a seus próprios métodos para aprender como eles se tornaram do jeito que são. De qualquer modo, entrementes eles se sentem — justamente em seu coletivo, com a sensação de que todos são velhos nazistas —- - tão protegidos, que praticamente nenhum demonstrou nem ao menos remorsos. Porém presumivelmente também neles, ou em alguns deles, existem pontos de apoio psicológicos mediante os quais seria possível mudar isto, como, por exemplo, seu narcisismo, ou, dito simplesmente, seu orgulho. Eles se sentirão importantes ao poder falar livremente a seu respeito, tal como Eichmann, cujas falas aparentemente preenchem fileiras inteiras de volumes. Finalmente, é de supor que também nessas pessoas, aprofundando-se suficientemente a busca, existam restos da velha instância da consciência moral que se encontra atualmente em grande parte em processo de dissolução. Na medida em que se conhecem as condições internas e externas que os tornaram assim — pressupondo por hipótese que esse conhecimento é possível —, seria possível tirar conclusões práticas que impeçam a repetição de Auschwitz. A utilidade ou não de semelhante tentativa só se mostrará após sua concretização; não pretendo superestimá-la. É preciso lembrar que as pessoas não podem ser explicadas automaticamente a partir de condições como estas. Em condições iguais alguns se tornaram assim, e Outros de um jeito bem diferente. Mesmo assim valeria a pena. O mero questionamento de como se ficou assim já encerraria um potencial esclarecedor. Pois um dos momentos do estado de consciência e de inconsciência daninhos está em que seu ser-assim —que se é de um determinado modo e não de outro ---- é apreendido equivocadamente como natureza, como um dado imutável e não como resultado de uma formação. Mencionei o 8
  • 9. conceito de consciência coisificada. Esta é sobretudo uma consciência que se defende em relação a qualquer vir-a-ser, frente a qualquer apreensão do próprio condicionamento, impondo como sendo absoluto o que existe de um determinado modo. Acredito que o rompimento desse mecanismo impositivo seria recompensador. No que diz respeito à consciência coisificada, além disto é preciso examinar também a relação com a técnica, sem restringir-se a pequenos grupos. Esta relação é tão ambígua quanto a do esporte, com que aliás tem afinidade. Por um lado, é certo que todas as épocas produzem as personalidades — tipos de distribuição da energia psíquica — de que necessitam socialrnente. Um mundo em que a técnica ocupa uma posição tão decisiva como acontece atualmente, gera pessoas tecnológicas, afinadas com a técnica. Isto tem a sua racionalidade boa: em seu plano mais restrito elas serão menos influenciáveis, com as correspondentes conseqüências no plano geral. Por outro lado, na relação atual com a técnica existe algo de exagerado, irracional, patogênico. Isto se vincula ao "véu tecnológico". Os homens inclinam-se a considerar a técnica como sendo algo em si mesma, um fim em si mesmo, uma força própria, esquecendo que ela é a extensão do braço dos homens. Os meios —— e a técnica é um conceito de meios dirigidos à autoconservação da espécie humana — são fetichizados, porque os fins — uma vida humana digna — encontram-se encobertos e desconectados da consciência das pessoas. Afirmações gerais como estas são até convincentes. Porém uma tal hipótese ainda é excessivamente abstrata. Não se sabe com certeza como se verifica a fetichização da técnica na psicologia individual dos indivíduos, onde está o ponto de transição entre uma relação racional com ela e aquela supervalorização, que leva, em última análise, quem projeta um sistema ferroviário para conduzir as vitimas a Auschwitz com maior rapidez e fluência, a esquecer o que acontece com estas vítimas em Auschwitz. No caso do tipo com tendências à fetichização da técnica, trata-se simplesmente de pessoas incapazes de amar. Isto não deve ser entendido num sentido sentimental ou moralizante, mas denotando a carente relação libidinal com Outras pessoas. Elas são inteiramente frias e precisam negar também em seu íntimo a possibilidade do amor, recusando de antemão nas outras pessoas o seu amor antes que o mesmo se instale. A capacidade de amar, que de alguma maneira sobrevive, eles precisam aplicá-la aos meios. As personalidades preconceituosas e vinculadas à autoridade com que nos ocupamos em Authoritarian Personality, em Berkeley, forneceram muitas evidências neste sentido. Um sujeito experimental --- - e a própria expressão já é do repertório da consciência coisificada -— afirmava de si mesmo: "I like nice equipament" (Eu gosto de equipamentos, de instrumentos bonitos), independentemente dos equipamentos em questão. Seu amor era absorvido por coisas, máquinas enquanto tais. O perturbador — porque torna tão desesperançoso atuar contrariamente a isso — é que esta tendência de desenvolvimento encontra-se vinculada ao conjunto da civilização. Combatê-lo significa o mesmo que ser contra o espírito do mundo; e desta maneira apenas repito algo que apresentei no começo como sendo o aspecto mais obscuro de uma educação contra Auschwitz. Afirmei que aquelas pessoas eram frias de um modo peculiar. Aqui vêm a propósito algumas palavras acerca da frieza. Se ela não fosse um traço básico da antropologia, e, portanto, da constituição humana como ela realmente é em nossa sociedade; se as pessoas não fossem profundamente indiferentes em relação ao que 9
  • 10. acontece com todas as outras, executando o punhado com que mantêm vínculos estreitos e possivelmente por intermédio de alguns interesses concretos, então Auschwitz não teria sido possível, as pessoas não o teriam aceito. Em sua configuração atual — e provavelmente há milênios —- a sociedade não repousa em atração, em simpatia, como se supôs ideologicamente desde Aristóteles, mas na persecução dos próprios interesses frente aos interesses dos demais. Isto se sedimentou do modo mais profundo no caráter das pessoas. O que contradiz, o impulso grupal da chamada lonely crowd, da massa solitária, na verdade constitui uma reação, um enturmar-se de pessoas frias que não suportam a própria frieza mas nada podem fazer para alterá-la. Hoje em dia qualquer pessoa, sem exceção, se sente mal-amada, porque cada um é deficiente na capacidade de amar. A incapacidade para a identificação foi sem dúvida a condição psicológica mais importante para tornar possível algo como Auschwitz em meio a pessoas mais ou menos civilizadas e inofensivas. O que se chama de "participação oportunista" era antes de mais nada interesse prático: perceber antes de tudo a sua própria vantagem e não dar com a língua nos dentes para não se prejudicar. Esta é uma lei geral do existente. O silêncio sob o terror era apenas a conseqüência disto. A frieza da mônada social, do concorrente isolado, constituía, enquanto indiferença frente ao destino do outro, o pressuposto para que apenas alguns raros se mobilizassem. Os algozes sabem disto; e repetidamente precisam se assegurar disto. Não me entendam mal. Não quero pregar o amor. Penso que sua pregação é vã: ninguém teria inclusive o direito de pregá-lo, porque a deficiência de amor, repito, é uma deficiência de todas as pessoas, sem exceção, nos termos em que existem hoje. Pregar o amor pressupõe naqueles a quem nos dirigimos uma outra estrutura do caráter, diferente da que pretendemos transformar. Pois as pessoas que devemos amar são elas próprias incapazes de amar e por isto nem são tão amáveis assim. Um dos grandes impulsos do cristianismo, a não ser confundido com o dogma, foi apagar a frieza que tudo penetra. Mas esta tentativa fracassou; possivelmente porque não mexeu com a ordem social que produz e reproduz a frieza. Provavelmente até hoje nunca existiu aquele calor humano que todos almejamos, a não ser durante períodos breves e em grupos bastante restritos, e talvez entre alguns selvagens pacíficos. Os utópicos freqüentemente ridicularizados perceberam isto. Charles Fourier, por exemplo, definiu a atração como algo ainda por ser constituído por uma ordem social digna de um ponto de vista humano. Também reconheceu que esta situação só seria possível quando os instintos não fossem mais reprimidos, mas satisfeitos e liberados. Se existe algo que pode ajudar contra a frieza como condição da desgraça, então trata-se do conhecimento dos próprios pressupostos desta, bem como da tentativa de trabalhar previamente no plano individual contra esses pressupostos. Agrada pensar que a chance é tanto maior quanto menos se erra na infância, quanto melhor são tratadas as crianças. Mas mesmo aqui pode haver ilusões. Crianças que não suspeitam nada da crueldade e da dureza da vida acabam por ser particularmente expostas à barbárie depois que deixam de ser protegidas. Mas, sobretudo, não é possível mobilizar para o calor humano pais que são, eles próprios, produtos desta sociedade, cujas marcas ostentam. O apelo a dar mais calor humano às crianças é artificial e por isto acaba negando o próprio calor. Além disto o amor não pode ser exigido em relações profissionalmente intermediadas, como entre professor e aluno, médico e paciente, advogado e cliente. Ele é algo direto e contraditório com relações que em sua essência são intermediadas. O incentivo ao amor ----- provavelmente na forma mais imperativa, de um dever — constitui ele próprio parte de uma ideologia que 10
  • 11. perpetua a frieza. Ele combina com o que é impositivo, opressor, que atua contrariamente à capacidade de amar. Por isto o primeiro passo seria ajudar a frieza a adquirir consciência de si própria, das razões pelas quais foi gerada. Para terminar gostaria ainda de discorrer brevemente a respeito de algumas possibilidades de conscientização dos mecanismos subjetivos em geral, sem os quais Auschwitz dificilmente aconteceria. O conhecimento desses mecanismos é uma necessidade; da mesma forma também o é o conhecimento da defesa estereotipada, que bloqueia uma tal consciência. Quem ainda insiste em afirmar que o acontecido nem foi tão grave assim já está defendendo o que ocorreu, e sem dúvida seria capaz de assistir ou colaborar se tudo acontecesse de novo. Mesmo que o esclarecimento racional não dissolva diretamente os mecanismos inconscientes — conforme ensina o conhecimento preciso da psicologia —, ele ao menos fortalece na pré-consciência determinadas instâncias de resistência, ajudando a criar um clima desfavorável ao extremismo. Se a consciência cultural em seu conjunto fosse efetivamente perpassada pela premonição do caráter patogênico dos traços que se revelaram com clareza em Auschwitz, talvez as pessoas tivessem evitado melhor aqueles traços. Além disso seria necessário esclarecer quanto à possibilidade de haver um outro direcionamento para a fúria ocorrida em Auschwitz. Amanhã pode ser a vez de um outro grupo que não os judeus, por exemplo os idosos, que escaparam por pouco no Terceiro Reich, ou os intelectuais, ou simplesmente alguns grupos divergentes. O clima ---- e quero enfatizar esta questão — mais favorável a um tal ressurgimento é o nacionalismo ressurgente. Ele é tão raivoso justamente porque nesta época de comunicações internacionais e de blocos supranacionais já não é mais tão convicto, obrigando-se ao exagero desmesurado para convencer a si e aos outros que ainda têm substância. De qualquer modo, haveria que mostrar as possibilidades concretas da resistência. Por exemplo, a história dos assassinatos por eutanásia, que acabaram não sendo cometidos na dimensão pretendida pelos nazistas na Alemanha, graças a resistência manifestada. A resistência limitava-se ao próprio grupo; e justamente este é um sintoma bastante notável e amplo da frieza geral. Além de tudo, porém, ela é limitada também em face da insaciabilidade presente no princípio das perseguições. Em última instância, qualquer pessoa não-pertencente ao grupo perseguidor pode ser atingida; portanto, existe um interesse egoísta drástico a que se poderia apelar. Enfim, seria necessário indagar pelas condições específicas, históricas, das perseguições. Em uma época em que o nacionalismo é antiquado, os chamados movimentos de renovação nacional são, ao que tudo indica, particularmente sujeitos a práticas sádicas. Finalmente, o centro de toda educação política deveria ser que Auschwitz não se repita. Isto só será possível na medida em que ela se ocupe da mais importante das questões sem receio de contrariar quaisquer potências. Para isto teria de se transformar em sociologia, informando acerca do jogo de forças localizado por trás da superfície das formas políticas. Seria preciso tratar criticamente um conceito tão respeitável como o da razão de Estado, para citar apenas um modelo: na medida em que colocamos o direito do Estado acima do de seus integrantes, o terror já passa a estar potencialmente presente. 11
  • 12. Em Paris, durante a emigração, quando eu ainda retornava esporadicamente à Alemanha, certa vez Walter Benjamin me perguntou se ali ainda havia algozes em número suficiente para executar o que os nazistas ordenavam. Havia. Apesar disto a pergunta é profundamente justificável. Benjamm percebeu que, ao contrário dos assassinos de gabinete e dos ideólogos, as pessoas que executam as tarefas agem em contradição com seus próprios interesses imediatos, são assassinas de si mesmas na medida em que assassinam os outros. Temo que será difícil evitar o reaparecimento de assassinos de gabinete, por mais abrangentes que sejam as medidas educacionais. Mas que haja pessoas que, em posições subalternas, enquanto serviçais, façam coisas que perpetuam sua própria servidão, tornando-as indignas; que continue a haver Bojeis e Kaduks, contra isto é possível empreender algo mediante a educação e o esclarecimento. 12
  • 13. UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA (UFRO) CENTRO DE HERMENÊUTICA DO PRESENTE PRIMEIRA VERSÃO PRIMEIRA VERSÃO ISSN 1517-5421 lathé biosa ANO VIII, Nº246 - OUTUBRO - PORTO VELHO, 2009. VOLUME XXVI – SET/DEZ ISSN 1517-5421 246 EDITOR NILSON SANTOS CONSELHO EDITORIAL ALBERTO LINS CALDAS – História - UFRO CLODOMIR S. DE MORAIS – Sociologia - IATTERMUND ARTUR MORETTI – Física - UFRO CELSO FERRAREZI – Letras - UFRO HEINZ DIETER HEIDEMANN – Geografia - USP JOSÉ C. SEBE BOM MEIHY – História – USP FLÁVIO DUTKA MARIO COZZUOL – Biologia – PUC-RGS MIGUEL NENEVÉ – Letras - UFRO ROMUALDO DIAS – Educação - UNICAMP VALDEMIR MIOTELLO – Filosofia - UFSC Os textos no mínimo 3 laudas, tamanho de folha A4, fonte Times New Roman 11, espaço 1.5, formatados em “Word for Windows” deverão ser encaminhados para e-mail: nilson@unir.br CAIXA POSTAL 775 CEP: 78.900-970 PORTO VELHO-RO O uso da narrativa no ensino de filosofia TIRAGEM 200 EXEMPLARES EDITORA UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA Dalva Aparecida Garcia 13
  • 14. Dalva Aparecida Garcia O uso da narrativa no ensino de filosofia Uma filosofia concreta não é uma filosofia feliz. Seria preciso que se mantivesse junto da experiência e que, contudo, não se limitasse ao empírico, que restituísse em cada experiência a cifra ontológica que anteriormente a marca. Por muito difícil que seja, nestas condições, imaginar o futuro da filosofia, duas coisas parecem seguras: nunca mais voltará ela a encontrar a convicção de, com seus conceitos, deter as chaves da natureza ou da história, e, ainda, não renunciará ao seu radicalismo, a esta procura dos pressupostos e dos fundamentos que produziu as grandes filosofias. Tanto menos se renunciará a isso, durante o tempo em que os sistemas perdiam seu crédito, as técnicas ultrapassaram a si próprias e reclamavam a filosofia. Nunca como hoje o saber científico transformou seu próprio à priori. Nunca a literatura foi tão filosófica quanto no século XX, refletiu tanto sobre a linguagem, sobre a verdade, sobre o sentido do ato de escrever. Nunca, como hoje, a vida política mostrou suas raízes ou a sua trama, contestou suas próprias certezas... Ainda que os filósofos esmorecessem, estariam os outros presentes para nos chamar de novo à filosofia. A menos que esta inquietação a si mesma se devore, pode-se esperar muito de um tempo que não crê mais na filosofia triunfante, mas que, pelas suas dificuldades, é um apelo permanente ao rigor, à crítica, à universalidade, à filosofia militante” (MERLEAU PONTY in SINAIS) O PROBLEMA Os professores envolvidos com o Ensino de Filosofia para jovens refutam a tese da impotência da filosofia frente às rápidas transformações que atingem a escola neste início de século. Entende-se o filosofar como esforço da construção dos valores humanos para conhecer e reconhecer, destruir e recriar os múltiplos significados da cultura e do conhecimento. Neste contexto, alimentamos o sonho de retirar a filosofia das Instituições Acadêmicas para colocá-la no espaço que até então estava reservado à informação dos produtos das ciências. A escola como espaço de informação e aprendizagem se vê diante de um desafio: compreender o sentido de uma prática reflexiva distante de respostas únicas. Por outro lado, o professor de filosofia se vê diante de uma árdua empreitada: transformar o esforço da reflexão presente na história do pensamento em investigação viva, instigante, que revê e cria novos significados no cotidiano do aluno e da escola. Da experiência de cerca de 14 anos como professora de filosofia no Ensino Médio, tanto na rede pública como em escolas particulares, que emerge uma questão: Como iniciar esse processo? Se perseguirmos o raciocínio de Marilena Chauí em seu “Convite à Filosofia”, poderíamos afirmar que a filosofia requer uma “atitude filosófica”, que começa quando nos espantamos com o mundo que nos cerca. Essa atitude consiste no questionamento das evidências do cotidiano, ou seja, requer um certo distanciamento do “óbvio” para que seja possível a problematização, a suspensão provisória dos juízos e a análise profunda dos princípios que cercam nossas certezas. Todavia, em um contexto de transformações meteóricas nada mais espanta, vive-se a primazia dos fatos, das informações que se aglomeram e se perdem com assustadora rapidez. O que era importante ontem, hoje perde o valor, o que era enigma torna-se evidência. Como se distanciar de um universo de valores que é impossível vislumbrar?
  • 15. Somada as características de nosso tempo com a ação intempestiva, característica da juventude e da adolescência, podemos afirmar que uma das principais dificuldades para os professores é provocar o estranhamento de um mundo que tão de estranho passa a ser evidente. Habituados a um universo fragmentado, a uma visão de mundo utilitarista e imediatista, os adolescentes encontram-se a margem dos procedimentos do filosofar, tais como: a capacidade de abstração, de contemplação, de análise e síntese, de reflexão radical. Um dos grandes desafios do professor de filosofia é buscar caminhos para que seja possível provocar um deslocamento que permita o questionamento das evidências e inaugure um trabalho de problematização e investigação filosófica. Como na prática educativa apontar e fornecer subsídios para a construção desse caminho? Comumente acredita-se que ao se colocar as temáticas filosóficas no universo de formação dos adolescentes já se está, de alguma forma, aproximando os alunos do filosofar. Afinal, séculos e séculos de trabalhos sistematizados acerca das indagações humanas não poderiam ser infrutíferos. Desta forma, apresenta-se temas e construções teóricas que pouco ou nada significam para os jovens. Em nome do pressuposto que o distanciamento do senso comum é necessário ao filosofar, acabamos distanciando o aluno da própria filosofia. Por outro lado, em nome da aproximação dos alunos da filosofia temos que cuidar para não instaurar na sala de aula um debate vazio sobre opiniões e crenças infundadas. O risco dessa ação pedagógica é o de termos o senso comum institucionalizado e legitimado com o nome de “filosofia”. Ora, se verdadeiramente consideramos a filosofia importante na formação e entendemos seu valor educacional como esforço de reflexão crítica do conhecimento e dos valores, não podemos nos distanciar dos valores e conhecimentos presentes na cultura e nos elementos constitutivos do imaginário destes jovens. Neste sentido, é preciso abrir espaço para a análise de um suposto caminho de mediação na prática pedagógica. Ainda mais porque a suposta “descentralização pedagógica” e a “recomendação do ensino de filosofia” pela própria LDB vêm permitindo que a filosofia seja reintroduzida nas escolas. Porém, antes de buscarmos preconizar o ensino de filosofia como necessidade nesses nossos tempos e travarmos uma nova luta pela sua obrigatoriedade nos currículos de Ensino Médio e Fundamental é necessário nos perguntarmos sobre o papel educacional da Filosofia. Essa discussão iniciada em meados de 1976, aponta para alguns instigantes caminhos que vão desde o questionamento político frente às novas diretrizes das Reformas Educacionais até o enfrentamento das questões relacionadas ao conteúdo que se deve ensinar e à formação de profissionais competentes: Devem dar aulas de filosofia licenciados em Filosofia ou não? Poderia estar o ensino de filosofia nas mãos do pedagogo? Deve-se privilegiar a história da filosofia como centro de um conteúdo programático ou como referência para a análise contextualizada de temas e problemas? Devemos inserir o aluno no universo árido da análise conceitual dos textos filosóficos ou devemos partir do esforço de interpretação da realidade vivida? É relevante o conhecimento dos sistemas filosóficos que se erigiram em toda a história do pensamento ou podemos fazer recortes desse universo? Se podemos, quais os critérios que usaríamos neste recortes? 15
  • 16. Há quase duas décadas profissionais envolvidos com o Ensino da Filosofia, assim como pesquisadores preocupados com compromisso educacional da Filosofia abordam essas e outras questões. Todavia, neste caldeirão de idéias, críticas, concepções e até propostas é negligenciada uma das mais complexas questões: a questão de um método para introduzir jovens e crianças no universo do Filosofar e da Filosofia, o estudo de um caminho capaz de conciliar o esforço sistemático de construção teórica com os procedimentos do filosofar. Nos perguntamos freqüentemente: Filosofia ou Filosofar com crianças e jovens? Por trás de toda a discussão que marca, nestas duas últimas décadas, a reintrodução da filosofia no currículo do Ensino Médio e, recentemente, a introdução no Ensino Fundamental revela-se um dualismo entre conteúdo e forma, entre teoria e prática. Apesar das críticas e da análise de diferentes propostas que despontam no meio educacional quase como uma avalanche de modismos, nos colocamos à margem de um estudo rigoroso para um caminho de superação. Nos colocamos à margem, talvez por acreditarmos que a questão de um método educacional esteja nas mãos dos pedagogos, se bem que negamos a eles a competência de ensinar filosofia; talvez porque apesar de todas as transformações que ocorreram desde a passagem da consciência mítica à consciência filosófica na Grécia Antiga ainda nos colocamos no papel de observadores atentos do que ocorre a nossa volta, de theoros... A filosofia nas escolas nos exige agora uma outra postura, um novo desafio se não quisermos contemplar sua banalização para depois escrevermos sistematicamente e com rigor um tratado sobre seu fracasso: a filosofia nas escolas nos exige a busca de uma ação educacional, o estudo de metodologias que garantam seu sentido e significado. Da reflexão do contexto acima exposto que se constrói as teias deste texto, na busca de um caminho que permita a conciliação entre a teoria filosófica e a prática do filosofar. É da inquietação oriunda da prática com o ensino de Filosofia para alunos de Ensino Médio que se pergunta sobre o papel da Narrativa no Ensino de Filosofia e sobre as aproximações entre literatura e filosofia. O sucesso avassalador do texto “O mundo de Sofia” de Jostein Gaarden, publicado pela Ed. Companhia das Letras, “As novelas filosóficas” que compõem o “Programa de Filosofia para Crianças” de Matthew Lipman nos remetem a necessidade de análise da narrativa enquanto um dos recursos metodológicos para o ensino de filosofia. No entanto, antes de tratar propriamente do problema que pretendo abordar, julgo pertinente localizá-lo no cenário de indefinições que configura o ensino de filosofia no Ensino Médio. Marcada pelo fracasso do ensino técnico-profissionalizante, a reintrodução da filosofia nos currículos do Ensino Médio, no início da década de 80, trazia em seu bojo a retomada da crença em uma educação revolucionária, capaz de romper as amarras e marcas da ditadura que afastaram o aluno da crítica, do esforço de construção teórica autônoma, da prática do diálogo e da argumentação. Essa empolgação logo se diluí quando se constata que as marcas do tecnicismo eram bem mais profundas do que se imaginava. A filosofia não poderia se configurar como salvadora de um cenário educacional no mínimo desolador. Acrescenta-se a este cenário uma espécie de indefinição dos objetivos do Ensino Médio: Se não se trata mais de um ensino com o objetivo de inserir jovens no mercado de trabalho, qual sua função? A resposta oferecida pelo MEC é que o Ensino Médio deveria oferecer aos estudantes 16
  • 17. “uma formação geral”. Assim, num currículo de generalidades haveria lugar para filosofia como parcela significativa e importante do acervo cultural da humanidade: filosofia para cidadania é assim que se configura o papel da filosofia no Ensino Médio. No início da década de 80, nos entraves da redemocratização, a cidadania e a filosofia, é claro, ficariam como “questões optativas” . As indefinições sobre os objetivos do Ensino Médio e o papel da filosofia nos currículos se estende ao longo dessas duas décadas. A Lei 9394/96 parece tentar solucionar o impasse: o ensino deverá vincular-se ao mundo do trabalho e à prática social, deverá superar o dualismo entre teoria e prática, conciliar formação humanista e uso de tecnologias. O foco é aprender a aprender, ou seja, oferecer condições para continuidade do processo de aprendizagem, seja ele dentro ou fora das Instituições Educacionais; daí a ênfase no desenvolvimento de competências e habilidades. Qual o papel da filosofia neste novo contexto? A LDB, em seu artigo 36, §1, afirma que os educandos devem demonstrar domínio dos conhecimentos de Filosofia e Sociologia necessários ao exercício da cidadania. Quais seriam os conhecimentos necessários a esse fim? A que modelo de cidadania se refere o texto? Os Parâmetros Curriculares Nacionais do Ensino Médio apontam para três dimensões do conceito de cidadania: estética, ética e política. Estética no sentido do exercício da sensibilidade; ética no sentido de construção da identidade autônoma e política, visando a participação democrática através do acesso a bens culturais e naturais. O conceito de cidadania é formulado na esfera ideal e caberá à escola aproximá-lo do real. É, neste contexto, que a Filosofia entra desenvolvendo algumas competências e habilidades. Examinemos algumas dessas competências e habilidades, assim como os procedimentos indicados pelo texto dos Parâmetros: - Ler textos filosóficos de modo significativo: Fazer o estudante aceder a uma competência discursivo-filosófica, ou seja, tornar evidente a conexão interna entre conteúdo e método; Exercitar a capacidade de problematização, isto é, apropriar-se reflexivamente do conteúdo; Tematizar e criticar, de modo rigoroso, conceitos, proposições e argumentos, valores e normas, expressões subjetivas e estruturas formais; Apropriar-se de quadro referencial a partir de conceitos, temas, problemas e métodos conforme elaborados a partir da própria tradição filosófica. Mas como o fazê-lo? Quais conteúdos escolher? Após considerações sobre as possíveis formas de se construir o conteúdo, seja por temáticas, sistemas ou autores, o texto alerta: 17
  • 18. Deve-se ter critérios muito claros na escolha que se fizer deles para o cotidiano pedagógico. Um deles, talvez o mais influente, será o ponto de vista filosófico do professor, conjugado à sua formação cultural”. Ainda no mesmo texto pode-se ler: “Considerando o critério da realidade do aluno, acredita-se que, num país de baixa literatação, como é o nosso caso, uma disciplina com o grau de abstração e contextualização conceptual e histórica, como ocorre com a Filosofia, supõe que a opção do curso que for feita deve corresponder um cuidado redobrado com respeito às metodologias e materiais didáticos, levando em conta o que é necessário para introduzir os alunos significativamente no Filosofar. (PNCEM) Mas quais são os materiais e metodologias capazes de auxiliar o professor a cumprir essa tarefa? Seria um bom critério a escolha pautada pela formação cultural do professor? Estaria o professor de filosofia alheio aos problemas “de um país de baixa literatação”? Sem a busca e estudo sistemático de metodologias e materiais, seria possível atingir o desenvolvimento das demais competências e habilidades, como pressupõe o texto dos Parâmetros? Revisitando a prática do ensino de filosofia na sala de aula (...) Enfim Micrômegas disse - Já que sabeis tão bem o que está fora de vós, sem dúvida sabereis melhor o que está dentro de vós. Dizei-me o que é vossa alma, e de que modo formais vossas idéia?. - Os filósofos falaram todos ao mesmo tempo, como antes. Mas cada um tinha uma opinião diferente. O mais velho citava Aristóteles, outro pronunciava o nome de Descartes, este o de Malebranche, o outro o de Leibniz, outro ainda o de Locke. Um velho peripatético disse alto, com toda a confiança: - A alma é uma enteléquia e uma razão pelo qual tem o poder de ser o que é. É o que declara expressamente Aristóteles, página 633 da edição do Louvre.- Não entendo bem o grego – disse o gigante. - Eu também não- disse a traça filosófica. - Por que então- retomou o siriano- citais um certo Aristóteles em grego? - É que é bom citar o que não se compreende na língua que menos se entende – replicou o sábio. - O cartesiano tomou a palavra e disse: - A alma é espírito puro, que recebeu, no ventre da mãe, todas as idéias metafísicas, e que, ao sair de lá, é obrigada a ir à escola e aprender de novo o que sempre soube tão bem e que nunca mais saberá. - Então não vale a pena que a alma seja tão sábia no ventre da mãe, para ficar tão ignorante quando tiver barba na cara- respondeu o animal de oito léguas. – Mas o que é que entendeis por espírito? - O que é que estais me perguntando? Não tenho a mínima idéia do que seja – disse o raciocinador. - Dizem que o espírito não é a matéria (...) (VOLTAIRE, 1997) 18
  • 19. O pequeno trecho acima, extraído de um dos contos do filósofo iluminista Voltaire, aponta para uma interessante forma que o autor encontra para questionar as finalidades da filosofia e dos dogmatismos filosóficos. Por outro lado, lança alguns elementos para pensarmos o próprio ensino da filosofia e nossa concepção do filosofar como estudo analítico de sistemas e teorias sistematizadas ao longo da história. Todavia, antes de iniciarmos essa reflexão, seria pertinente oferecer uma síntese do instigante trabalho de Voltaire no conto. O personagem Micrômegas é um extraterrestre de estatura gigantesca que chega ao minúsculo globo terrestre, vindo da estrela Sírius, em companhia de um Saturniano. Micrômegas é ser de espírito culto, não apenas por saber muitas coisas, mas também por ter inventado tantas outras. Quando saiu da infância, com cerca de 450 anos, o gigante envolveu-se em conflitos graças a uma pesquisa sobre a forma substancial das pulgas e pôs-se a viajar de planeta em planeta com o objetivo de formar o espírito e coração. Em seu encontro com o habitante de Saturno, secretário da academia, Micrômegas estabelece um interesse diálogo acerca dos limites do conhecimento e após trocarem informações do pouco que sabiam e do muito que não sabiam, resolveram empreender uma viagem filosófica. Como gigante que é, Micrômegas não tem apenas cinco sentidos, mal mil. Enquanto seu amigo Saturniano tem apenas 72 sentidos. Acidentalmente os dois viajantes chegam à Terra convictos que, dadas as irregularidades de construção do globo, ali não poderia existir vida inteligente Mas o gigante depara-se com alguns homens em um navio em pleno oceano e os coloca na palma da mão. As partículas minúsculas que falam são filósofos e iniciam uma conversa com o gigante a fim de demonstrar sua pretensa sabedoria. Todos falam ao mesmo tempo e iniciam uma disputa acirrada que provoca os risos do gigante, afinal como seres tão infinitamente pequenos podem alimentar orgulho e pretensão tão grandes? Com dó daqueles seres, o gigante promete entregar a seus interlocutores um livro, em letras bem miúdas, com a resposta da finalidade de todas as coisas. Os filósofos levam o livro à Academia e em abertura solene descobrem que o livro está inteiramente em branco. Como podemos interpretar o conto de Voltaire? Ironia, sarcasmo ou descrença na filosofia? Podemos encontrar algumas chaves de interpretação da narrativa na própria obra de Voltaire, inserindo-a no contexto de sua produção e ação históricas. A idéia de uma razão crítica tem na história a sua arma para lutar contra a intolerância e para fazer do filosofia ação capaz de mudar a história. Crítico ferrenho dos grandes sistemas filosóficos, Voltaire se nega a construir o seu, antes coloca todos sobre o crivo da razão. Neste sentido os contos de Voltaire são fascinantes. Revela-se um encontro entre conteúdo e forma, pois se os grandes sistemas filosóficos foram edificados por uma cadeia de argumentos dedutivos e indutivos, a crítica aos sistemas empresta da literatura a forma da narrativa para revelar o absurdo de um enredo que pretende se colocar para além do tempo vivido e da história. Afirma Maria das Graças Nascimento e Silva: 19
  • 20. “Os personagens dos contos de Voltaire são, quase sempre viajantes. Viaja o gigante espacial Micrômegas, “de planeta em planeta, para acabar de formar o espírito e o coração”, até que vem dar na nossa Terra que, para ele, por causa da pequenez, parece mais um formigueiro. Viaja também o herói Cândido, em sua incrível peregrinação pelas mais diversas regiões do mundo, em busca da amada Cunegundes. Viaja por fim o ingênuo huroniano semi-selvagem, tentando compreender as loucuras dos europeus. (...) A aventura de descobrir o mundo até os confins traz à luz uma série de elementos para a reflexão. Viajar permite comparar, opor, duvidar e chegar ao sentimento de que as coisas são, no final das contas, relativas. Dessa aventura pode resultar uma visão de mundo diferente daquela que teríamos sem sair do mesmo lugar. Os personagens de Voltaire nos conduzem a mundo de surpresas, a fatos inesperados, às vezes maravilhosos, às vezes grotescos. Que visões do mundo e das coisas ele quer revelar ao leitor? (NASCIMENTO, 1993) A aventura da viagem implica na possibilidade de perder-se, por isso em sua Teoria do Romance, Lukács ao analisar a epopéia grega afirma: Ao sair em busca de aventuras e vencê-las, a alma desconhece o real tormento da procura e o real perigo da descoberta, e jamais põe a si mesma em jogo; ela ainda não sabe que pode perder-se e nunca imagina que terá que buscar-se. (LUKACS,2003) Acerca da filosofia, Lukács entende representar esta uma cisão entre o interior e o exterior, um índice da diferença essencial entre o eu e o mundo, da incogruência entre a alma e ação. Neste sentido, a filosofia grega não se distancia da epópeia. Afirma Lukács que nos tempos da filosofia grega, todos os homens são filósofos, depositários do objetivo utópico de toda a filosofia: O grego conhece somente respostas, mas nenhuma pergunta, somente soluções (mesmo que enigmáticas), mas nenhum enigma, somente formas, mas nenhum caos. (...) Por isso, a conduta do espírito nessa pátria é acolhimento passivo- visionário de um sentido prontamente existente. O mundo do sentido é palpável e abarcável com a vista, basta encontrar nele o locus destinado ao individual. O erro, aqui, é questão somente de falta ou excesso, de uma falha de medida ou de percepção. Pois saber é alçar véus opacos; criar, apenas copiar as essencialidades visíveis e eternas; virtude, um conhecimento perfeito dos caminhos; e o que é estranho aos sentidos decorre somente da excessiva distância em relação ao sentido. (Idem) Longe da certeza de sair e voltar, da sensação de viajar mantendo a sensação de sempre sentir-se em casa, tanto a filosofia quanto a literatura moderna, nos propõe a aventura de perde-se, de ultrapassar fronteiras em que os limites não são prontamente demarcados. Resta-nos saber, enquanto professores de filosofia, se queremos enfrentar esses perigos ou se consideramos a filosofia e seu ensino como afirma Novalis: “Filosofia é na verdade nostalgia, o impulso de sentir-se em casa em toda a parte” Por hora, creio que o conto de Voltaire poderia nos introduzir na reflexão que se pretende abordar neste texto, ou seja, a reflexão sobre as “filosofias” e as finalidades de seu ensino e de sua prática em sala de aula, por meio de algumas metáforas que poderiam se configurar como visões caricatas da problemática que envolve o ensino de filosofia. 20
  • 21. É claro que esta empreitada nos oferece riscos. Riscos dos reducionismos próprios das caricaturas, mas para ser coerente com a proposta de ultrapassar fronteiras entre o literário e filosófico, partirei das múltiplas leituras que nos oferece o conto de Voltaire para tentar reescrevê-lo à luz das inquietações que extrapolam o tempo e o espaço que lhe deram origem, enfim, para torná-lo presente no agora de nossa situação problemática. De qualquer forma, é preciso admitir que, algumas vezes, as caracterizações na filosofia podem ser mais arriscadas que as caricaturas. Diria que alguns educadores se vêem como os filósofos do conto de Voltaire e encerram a discussão na citação de obras e autores. A filosofia seria portadora de um saber que só seria alcançado através do pleno domínio de sua linguagem. Quem a ensina, portanto, deveria introduzir o aprendiz em um universo de conceitos e argumentações construído ao longo de sua história. Considerando-se que essa não é uma tarefa que poderia ser realizada em curso introdutório, tal como se configura no Ensino Médio, a filosofia só poderia ser tarefa de filósofos. Caso contrário, se constituiria em “coisa que não se compreende em língua que menos se entende”. Outros, como o gigante do conto, tomam os pequenos nas palmas da mão e se deliciam com sua ignorância. Trata-se da posição de quem é detentor de algum tipo de saber e que, benevolentemente, se compraz daqueles que pensam que sabem. Seria, portanto, preciso oferecer-lhes a promessa do saber enquanto autoridade, mesmo que sem nenhuma linha traçada. Pelo menos duas possibilidades poderiam ser extraídas desta posição: A primeira, que geralmente nos faz retomar a atividade socrática como metáfora da própria filosofia, é a de que a finalidade do ensino de filosofia estaria em destruir as certezas, ou melhor, as falsas certezas. A ironia socrática cumpriria a missão de quem pergunta para constatar a ignorância de quem não pode responder. Essa postura, se por um lado contém o gérmen da crítica, por outro, nos remete à crença na existência de uma verdade que estaria nas mãos de poucos capazes de reconhecê-la e ler aquilo que ninguém pode ver. Sendo assim, o professor de filosofia seria o guia dos cegos até que eles pudessem enxergar. A segunda possibilidade é entender a filosofia como exercício de puro questionamento, o lugar dos “porquês”. Ainda aqui, a finalidade da filosofia seria a de demolidora de certezas, não das certezas mais imediatas ou inconsistentes, mas de tudo que esteja estabelecido. O professor de filosofia seria aquele sabe questionar, questiona a existência de Deus, as possíveis evidências das percepções e dos sentidos, pois acredita ser o filósofo aquele que pergunta mas não responde. Não há nada escrito no livro, portanto nada vale, tudo pode. Há ainda aqueles que abrem os livros e que inconformados com os espaços vazios, interpretam o vazio à luz de algum sistema. Para estes a filosofia estaria sempre pronta a arranjar o desarranjado, basta-lhe um procedimento seguro. Só não vê aquele que ainda não domina as ferramentas da visão. Se apropriar das ferramentas adequadas para ler o livro do mundo e ensinar a utilizá-las com precisão constituiria a tarefa do professor de filosofia. Pouco importa o conteúdo ou se há conteúdo, a filosofia seria , em seu fazer, exercício intelectual. 21
  • 22. Mas há ainda uma outra maneira de ler o conto de Voltaire e essa me parece promissora para pensarmos as finalidades da filosofia no Ensino Médio. Seria a de entender a filosofia como livro aberto para cravarmos os sinais e os significados na ação e no exercício de interpretação e reinterpretação que envolve as questões do presente à luz de certas tradições filosóficas. Se esse for o objetivo da filosofia e de seu ensino, seria o texto filosófico o instrumento mais adequado para introduzir o aluno na aventura do perder-se de si para buscar reencontrar-se? Tentando buscar indícios para responder esta questão, façamos um pequeno passeio pela prática da filosofia em sala de aula tomando emprestado alguns depoimentos extraídos do trabalho de pesquisa de Maria Helena Prado Maddalena “Lecionar filosofia uma prática em Debate: um estudo de caso do ensino de filosofia nas Escolas Estaduais de Ensino Médio de Mogi das Cruzes”(MADDALENA, 2001) Embora várias questões elaboradas em entrevistas com professores do ensino médio nos interesse, nos limitaremos a duas: “O que é filosofia para você? Qual metodologia é usada nas aulas?” Primeira Questão : O que é filosofia para você ou o que espera das aulas de filosofia? Professor I A filosofia é a busca do conhecimento, a busca de respostas, a busca da sabedoria, a busca de acertar. Seria mais ou menos isso... a busca de acertar. Com todos os erros que acontecem na vida, mas estamos em busca de fazer os erros o menos mal, o mais certo. Professor II Olha, eu tenho uma expectativa... eu gostaria muito de levar o aluno, um pouquinho, ao raciocínio abstrato; não consegue abstrair-se nada. Terceiro colegial eles não conseguem tirar uma reflexão de um filme, de uma música..., eu pelo pouco tempo que tenho de uma aula, faço um debate para poder ver as coisas na sociedade, tentar refletir, que as coisas que estão aí nem sempre são aquilo que está sendo apresentado, mas existe algo por trás que a gente tem que descobrir. Eu sonho muito com a filosofia, inclusive com a filosofia individual, enquanto filosofia clínica. Professor III A filosofia é uma forma de conhecimento. O que eu tenho passado aos alunos é que a reflexão contribui para ciência, porque a ciência analisa de uma forma e a filosofia de outra, porque a filosofia não está presa a um só aspecto - ela analisa os fatos em seus vários aspectos. A reflexão é importante para todo o mundo; então, todos nós temos que filosofar. Nós todos temos que ser filósofos no sentido de estar sempre refletindo, pensando. Professor IV A concepção que eu tenho de filosofia, enquanto disciplina para o ensino médio, ela tem a funcionalidade de estruturar outras disciplinas. A filosofia faz a análise de todas as ciências, sempre no ponto de vista filosófico. Neste sentido, a filosofia é extremanente importante, porque ela vai dar uma totalidade diferente para a ciência, das visões que se tem em relação à ciência e das visões que a maioria dos professores têm em relação às suas próprias disciplinas. Então a filosofia vai 22
  • 23. despertar um senso crítico-filosófico nos alunos, para que eles possam enxergar as diversas disciplinas que assistem de forma diferente, para que não sejam conduzidos a terem uma visão apenas unilateral das ciências. Professor V Para mim é tudo. Ela está vinculada a todas as áreas de nossa vida, em todas as disciplinas, em toda a parte. Tem quem pense que a filosofia é uma coisa assim sofisticada, um “bicho de sete cabeças. Antigamente havia essa idéia, até um tempo atrás, de que a filosofia era coisa para elite, mas não é. Ela está em tudo, tudo o que se faz, se usa a filosofia. Professor VI É primordial, é fundamental. É justamente a filosofia que vai trazer novamente à tona os valores que estão perdidos. É justamente este o papel da filosofia; num momento de crise, num momento que o senso comum não consegue responder mais nada, entra a filosofia. Ela foi desprezada muito tempo, não lhe deram a devida atenção; professor de filosofia no Estado não tem capacitação, não tem um cursinho, não tem nenhuma palestra para se inteirar. Eu acho isso um horror, um descaso muito grande, porque eles ficam com medo de que o aluno faça greve, mas isso não é verdade. A filosofia ensina a criticar, mas de uma maneira racional, de uma maneira organizada, que não tende à baderna. Eles não tem que ficar com medo disso. Professor VII Particularmente, eu gosto muito. Eu sou realizada; acho muito importante, na atualidade abrir a mente dos jovens, apesar da apatia dos jovens, que não gostam de pensar. Eles acham que a filosofia não serve para nada, não cai no vestibular. Eu acho que o ser humano, a própria sociedade, preparou o homem para ter, não para ser. Tudo visa a utilidade, o para que serve, o que eu vou ganhar com isso, e não o que eu vou ser, o que vai me enriquecer em termos de pessoa, de ser humano. Infelizmente, é isso que está faltando na cabecinha deles; eles estão muito na visão capitalista, do ter, e estão deixando o lado do ser. Nos diversos depoimentos acerca do que é filosofia ou da finalidade de seu ensino é fácil observar que permanece a crença de um certo poder redentor da filosofia, seja enquanto conhecimento que se opõe ao cientificismo, seja enquanto forma de se recuperar valores esquecidos, ou mesmo enquanto crítica do capitalismo e da sociedade de consumo. A filosofia como exercício de abstração e análise crítica caracteriza o processo do filosofar, embora algumas expressões utilizadas mereçam atenção, pois revelam ser esses procedimentos essenciais da filosofia que precisam ser acordados ou despertados no aluno quase que de forma espontaneísta: “Eles não conseguem tirar uma reflexão de um filme...” - “A filosofia vai dar uma totalidade diferente às ciências” – “todos nós temos que ser filósofos no sentido de estar pensando refletindo” – “A filosofia vai trazer à tona os valores que estão perdidos” – “Acho importante(...) abrir a mente dos jovens.” Vejamos pois os meios ou caminhos escolhidos para atingir tais objetivos: Professor I 23
  • 24. No primeiro ano eu sentia muita dificuldade, durante os primeiros seis meses, porque quando eu sai da faculdade, às vezes eu queria passar a filosofia como era na faculdade, mas a gente vê que no segundo grau é completamente diferente. Você tem que colocar o aluno no contexto definindo o que é a filosofia... Olha a metodologia, geralmente é a aula expositiva, discussões, debates, sem dar respostas prontas, mas fazendo com que cada um dê sua opinião e pergunte o “porquê” das coisas. Sempre falando, às vezes com filmes, colocando situações que a gente vive. Por exemplo, um dos filmes que eu trabalhei com a questão das emoções, da razão, da intuição, que foi um filme novo, “O sexto sentido”. Então deu para trabalhar com um lado intuitivo. Para mostrar que quando as coisas acontecem, acontecem sempre em cima de causa e efeito. Então eu identifiquei esse nome técnico com os alunos – causa e efeito- que para eles é muito novo. Não é um acontecimento traz outro- nada vêm do além- então tento sempre colocar coisas que chamem atenção e aproveito o interesse deles naquilo que eles colocam com certa evidência. Professor II Normalmente eu adoto alguns livros básicos para o meu trabalho, “Um outro olhar”, que eu gosto muito, da Sônia Maria Ribeiro de Souza. “O filosofando”, “O mundo de Sofia”, e um outro, muito interativo, da Angélica Sátiro e Mirian Wuensch. Esse livro deveria estar na mão de todos os alunos, pelas atividades... é difícil estar usando, porque você acaba tendo que passar muita coisa na lousa, com uma aula... Professor III Olha, eu tenho feito mais aula expositiva, isso devido à dificuldade que os alunos têm para interpretar, para ler, escrever – nos terceiros anos a gente encontra erros bárbaros: que eu vou fazer? Dá desânimo Professor IV Eu trabalho com temas, no meu planejamento eu tenho temas que eu trabalho no bimestre. Por exemplo no primeiro bimestre eu trabalho com a cultura- abordo as questões do desenvolvimento da própria antropologia, da antropologia filosófica, da antropologia cultural, e aí, bem no início, a questão da relação linguagem com o conhecimento, o desenvolvimento do processo, como se processou a própria abstração... Eu pego Gramsci, pego Marx, faço a análise do pensamento político, econômico, para que eles possam entender o que se passa hoje, sempre fazendo uma análise histórica. Há uma necessidade...as aulas do terceiro ano permitem a você abordar a questão histórica, contextualizar, porque há uma dificuldade tremenda no conhecimento da história, não há bagagem de história, a não ser o conhecimento mais comum e superficial que todos tem. Não uso livro-texto, eu uso aí uma miscelânea...a gente que já tem uma certa experiência, nunca usa um referencial só. Nem sempre textos de filosofia; são artigos de jornal do Gilberto Dimenstein, do Marcelo Coelho, da Marilena Felinto, que são textos interessantes. Esses são mais textos de jornais, e eu trabalho com outros textos, também. Tem uma revistinha muito interessante, produzida em Porto Alegre, se chama Mundo Jovem. É uma revista produzida pela Pastoral da Juventude Operária da Igreja Católica, em que eles produzem essa revista é muito interessante; então 24
  • 25. você tem ali... a própria revista dá trabalhar com os alunos. Então tem várias temáticas, separadas em textos. A própria revista nem grampeada é, que é para você destacar para poder trabalhar. Então tem aspectos assim: filosofia – e aí tem uma análise, tem questões, muito interessante esta revista... Professor V Olha, para eu trabalhar em sala de aula, é muito difícil. Eu trabalho com dois livros- eu gosto de trabalhar com apostilas, porque os livros eles (os alunos) falam que não podem comprar, então eu tiro xerox para eles. Os livros são “Temas de Filosofia” de Maria Lúcia Arruda Aranha e Maria Helena Pires Martins e “Um outro olhar” de Sonia Maria Ribeiro de Souza. Esse livro é muito bom, os alunos gostam dele porque ele traz poesia, traz música, coisas que estão mais perto deles. São temas atuais, não tem aquela coisa do passado, que eram mais textos que eles tinham que pegar em outras fontes. Aí não, tem quase tudo que é da realidade deles – jornais, revistas, cita algumas coisas que estão ao acesso deles. Entre o trabalho com temas e capítulos, trabalho com capítulos que abordam vários temas. Por exemplo: agora eu estou trabalhando com o mito. Eu já trabalhei dois capítulos. O primeiro – Filosofia, processo e produto – e – O homem, quem é ele, afinal – o terceiro – Mito- religião e Filosofia, que estou trabalhando agora. Professor VI Eu estou buscando; montei o programa com capítulos do livro. Estou buscando uma definição melhor. Dentro dos capítulos do livro vou trabalhando dia a dia; trato dos acontecimentos atuais, vou usar vídeos da TV Cultura. É tudo uma novidade, são tentativas. Professor VII Eu faço o Programa, inclusive eu era sozinha aqui, me reunia com os professores de sociologia, para ver se os temas não se repetiam muito, conseguindo fazer um trabalho que não ficasse tão repetitivo para o aluno... Enfim a gente faz um programa, não deixando de lado a história, fazendo mais a parte histórica, e também abordando temas importantes como a ética, a política, etc... Não consigo adotar um livro didático, não. Eu uso muito o “Filosando”. Eu tenho mais ou menos preparado, na cabeça... depois de tantos anos...eu procuro sempre estar trazendo uma coisa nova. Agora estava dando uma olhada no “Convite à Filosofia” da Marilena Chauí, achei muito bom. É importante salientar que os 7 professores entrevistados pela pesquisadora, todos são licenciados em filosofia. Embora eu não pretenda fazer um análise detalhada das respostas é interessante destacar alguns elementos que nos servem aqui como pano de fundo para uma reflexão mais ampla: 1) Há em todos os depoimentos uma preocupação em fazer o aluno conhecer a história da filosofia; 2) O programa de curso é, geralmente, marcado por capítulos de livros didáticos, embora os professores não os adotem; 25
  • 26. 3) O que determina a escolha dos livros didáticos ou demais recursos utilizados não é a concepção de filosofia do autor ou os problemas que os textos apresentam, mas a presença de elementos que permitam uma certa aproximação do aluno dos temas a serem abordados: música, poemas, artigos de jornal e indicação de filmes; 4) Não há nenhuma preocupação em aproximar o aluno do texto filosófico ou da leitura filosófica de textos narrativos. A dificuldade de leitura dos alunos leva o professor a intercalar aulas expositivas que inferimos serem referentes a apresentação da história da filosofia, com aulas onde é possível discutir alguns temas capazes de mobilizar os alunos. Podemos, também, de certa forma afirmar que há uma ruptura entre o conteúdo e a forma. O conteúdo contido na tradição filosófica é tratado em aulas expositivas e forma crítica da reflexão é vivenciada em debates onde o aluno pode pensar e emitir opiniões, embora caiba ao professor “abrir a cabeça” do aluno para que este possa desvencilhar-se das respostas prontas e do senso comum. Embora não queria fazer julgamentos precipitados pareceu-se que as entrevistas com os professores mantém algumas similaridades no que se refere a forma de entender a filosofia. Apontarei aqui duas: 1) A crença que, num universo fragmentado, a filosofia enquanto atividade totalizadora, exposta em uma espécie de “epopéia do pensamento”, poderia auxiliar os alunos na busca da verdadeira sabedoria. A explicação do que é a filosofia se faz, na maioria das vezes, pela narração da grande aventura dos grandes heróis do pensamento. Cabe ao professor contar essa história em aulas expositivas, de forma linear ou não, na maioria das vezes com o auxílio do livro didático; 2) A compreensão da filosofia como atividade crítica e questionadora, capaz de fazer o aluno pensar com autonomia. A filosofia indicaria a necessidade de um trabalho de abstração e análise e, se não é possível acompanhar a abstração do texto filosófico, é possível tratar as questões polêmicas (sexo, aborto, drogas) de forma crítica. A afirmação de Walter Benjamin que a narrativa estaria se definhando pois a sabedoria(o lado épico da verdade) estaria em extinção nos conduz ao questionamento da verdade como patrimônio da tradição (seja da experiência vivida ou tradição filosófica). As transformações tecnológicas transformam nossa vida de forma abrupta e impessoal. Não seria mais possível aconselhar. Ora, se admitimos com Benjamin que o conselho extraído da experiência vivida nos parece antiquado, o que dizer do “conselho” extraído da tradição filosófica que se apresenta de forma enigmática aos alunos? O que dizer quando esta tradição é apresentada com uma narrativa historiográfica de idéias e pensamentos contada pelo professor de filosofia? Mesmo admitindo inúmeras respostas às dúvidas colocadas na história da filosofia, considerando-a como uma atividade distante de respostas prontas, o professor não crê na possibilidade da própria filosofia se perder e crê que na filosofia reside a promessa da sabedoria. 26
  • 27. Neste contexto seria pertinente, dada as dificuldades do professor trabalhar com o texto filosófico, nos perguntarmos o que efetivamente caracteriza um texto como filosófico e quais as possibilidades da narrativa. Do filosófico ao literário- fronteiras e possibilidades O Rei fartou-se de reinar sozinho e decidiu partilhar o poder com a Opinião Pública. - Chamem a Opinião Pública – ordenou aos serviçais Eles percorreram as praças da cidade e não a encontraram. Havia muito que a opinião deixara de frequentar os lugares públicos. Recolhera- se ao beco sem saída, onde furtivamente, abria só um olho, isso mesmo lá de vez em quando. Descoberta, afinal, depois de muitas buscas, ela consentiu em comparecer ao Palácio Real, onde sua Majestade, acariciando-lhe docemente o queixo, lhe disse: - Preciso de ti. A Opinião muda como entrara, muda se conservou. Perdera o uso da palavra ou preferia não exercitá-la. O rei insistia, oferecendo-lhe sequilhos e perguntando o que ela pensava disso e daquilo, se acreditava em discos voadores, horóscopos, correção monetária, essas coisas. E outras. A Opinião Pública abanava a cabeça: Não tinha opinião. - Vou te obrigar a ter opinião – disse o Rei, zangado. – Meus especialista te dirão o que deves pensar e manifestar. Não posso mais reinar sem teu concurso. Instruída devidamente sobre todas as matérias, e tendo assimilado o que é preciso achar sobre cada uma em particular e sobre a problemática geral, tu me serás indispensável. E virando-se para os serviçais: - Levem esta senhora para o curso intensivo de Conceitos Oficiais. E que ela só volte aqui depois de decorar bem as apostilas. (DRUMMOND, 1985) Quando nos perguntamos o que é literatura ou mesmo o que é filosofia tendemos a afirmar que o campo da racionalidade e dos sistemas explicativos seria o campo da filosofia e o espaço das emoções e dos afetos seria o campo da arte e da literatura, capaz de nos arrebatar. Aqui convém questionar: Estariam as relações entre filosofia e literatura marcadas com certezas claras e distintas, como no cogito cartesiano? O que, então, caracteriza o texto filosófico? Essa caracterização não é simples porque esbarra na caracterização da própria filosofia. Alguns referenciais para traçar essa distinção podem ser encontrados nas obras de G.G Granger e Frederick Cossutta. Para esses pensadores a especificidade do texto filosófico seria a construção de um universo de significação que tem sua raíz na experiência vivida, mas se desloca da mesma através de conceitos. Enquanto o artista cria significações e nos faz vivê-las, o filósofo transpõe o vivido em termos de abstrações conceituais. Independentemente dos mecanismos de construção de um texto filosófico, seja por meio de uma cadeia dedutivas de argumentação ou por estilizações subjetivas e metafóricas, o que nos permite identificar um texto como filosófico é a possibilidade da construção e reconstrução dos conceitos. No universo conceitual 27
  • 28. estaria a instância mediadora do vivido e do pensado, do particular e do universal, do concreto e do abstrato que permite ao filósofo deslocar, atribuir sentidos, destruir e construir significações. A elaboração dos conceitos no interior do texto filosófico permite-nos distinguir filosofia e literatura. Na literatura temos a suspensão dos referenciais do vivido e a substituição destas referências do discurso descritivo por um equivalente ficcional. A filosofia, através do conceito, propõe a reconstrução desse discurso e não simplesmente sua suspensão e substituição. Exatamente por isso, Granger alerta para o perigo do uso de metáforas na construção do texto filosófico, pois o uso excessivo da imagem interrompe a exposição abstrata e a substitui por um equivalente concreto, a metáfora alude às imagens que podem ser compreendidas sem exatidão, a situação poética poderia ser um problema para o rigor filosófico e, consequentemente, para os mecanismos da demonstração filosófica necessários para a reconstrução do vivido. De forma geral, poderíamos considerar os conceitos como pontos de vista sob o qual a experiência se organiza e podem ser entendidos como feixes de explicação para as experiências, sendo assim é preciso admitir que os conceitos só podem ser criados a partir das referências vividas na experiência. Por outro lado, tais ponto de vista podem ser desligados de sua relação referencial e considerados em si. O conceito, neste caso, torna-se reflexivo, torna-se auto- referente. No texto sistemático – entendido por hora como texto filosófico- os conceitos reflexivos servem reciprocamente para a organização dos esquemas de organização da experiência. Se a filosofia ganha em rigor, paga o preço de uma abstração capaz de distanciar o conceito de seu campo referencial de experiência. Mas seria possível admitir um universo conceitual num texto de ficção? Exatamente por substituir as referências do discurso descritivo por “pseudo- referências”, o texto literário supõe uma maleabilidade em relação aos conceitos. Apresenta-se, desta forma, possibilidades de uso de conceitos e, com isso, possibilidades de diferentes esquemas para a organização da experiência. O real e a ficção se estrelaçam, a unidade da ficção não é a unidade de uma consistência sistemática, mas sim uma unidade que se configura como equivalente de uma experiência. Essa unidade pode subverter os esquemas da realidade em camadas sobrepostas no texto literário. Aqui seria preciso um esforço de leitura para o encontro com essas camadas. A literatura pode não somente apresentar conceitos, mas também problematizar conceitos e representar condensações pré-conceituais. No texto literário é possível encontrar a tematização de experiências pré-conceituais e se abrir ao universo de problematização e criação de conceitos. Talvez por esse motivo, a filosofia quando duvida da validade dos grandes sistemas explicativos se aproxima da literatura. Vemos esse exemplo em Voltaire. Ora, se admitirmos com Voltaire que a filosofia é livro a ser escrito, o que supõe uma atividade criadora e criativa, a literatura teria muito a ensinar à filosofia e poderia apontar caminhos para seu ensino. Considerando o caráter introdutório da filosofia no Ensino, o discurso narrativo poderia se configurar com uma ponte entre a realidade e o conceito e se abrir ao processo de criação de conceitos. Neste sentido é preciso aprender com Carlos Drumond de Andrade, para não corrermos o risco de transformar as salas de aulas de filosofia em “Palácios do Rei”. 28