O documento descreve uma ação judicial proposta pelo Estado de Santa Catarina contra a União e a FUNAI questionando a demarcação da Terra Indígena Morro dos Cavalos. Argumenta-se que há competência do STF para julgar o caso devido ao litígio federativo. Relata-se brevemente a história do processo demarcatório, desde 1992, destacando que originalmente abrigava uma única família indígena e que atualmente há ocupação de outro grupo.
Ação Civil sobre demarcação de terras no Morro dos Cavalos
1. ESTADO DE SANTA CATARINA
PROCURADORIA GERAL DO ESTADO
GABINETE DO PROCURADOR-GERAL DO ESTADO
EXCELENTÍSSIMOS SENHORES MINISTROS DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
ESTADO DE SANTA CATARINA, pessoa jurídica de direito público interno, inscrita no
CNPJ sob o n. 82.951.310/0001-56, com sede na Rod. SC 401, km 5, n. 4600, CEP 88032-900,
Saco Grande, Florianópolis/SC, pelo Procurador do Estado abaixo assinado, no uso de suas
atribuições constitucionais e legais, nos termos do art. 12, I, do Código de Processo Civil, art. 132 da
Constituição Federal e art. 69, I, da Lei Complementar Estadual 317/05, com endereço profissional
na Procuradoria Geral do Estado, localizada na Av. Osmar Cunha, 220, CEP 88015-100,
Florianópolis/SC, vem, perante Vossas Excelências, propor a presente
AÇÃO CÍVEL ORIGINÁRIA
em face da UNIÃO FEDERAL, pessoa jurídica de direito público, com sede na Capital
Federal, podendo ser citada no endereço da Advocacia Geral da União, Ed. Sede I - Setor de
Autarquias Sul - Quadra 3 - Lote 5/6, Ed. Multi Brasil Corporate - Brasília-DF - CEP 70.070-030 Fones: (61) 2026-9202 / 2026-9712;
e da FUNDAÇÃO NACIONAL DO ÍNDIO - FUNAI, fundação pública pertencente à
Administração Federal Indireta, com sede na Capital Federal, podendo ser citada no endereço SBS
Quadra 02, Lote 14, Ed. Cleto Meireles, CEP 70.070-120 - Brasília/DF - Telefone: (61) 3247-6000,
pelos fundamentos de fato e de direito que passa a expor:
1. COMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
O art. 102, I, "f", da Constituição Federal de 1988 estabelece uma das hipóteses de
competência originária do Supremo Tribunal Federal, verbis:
Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da
Constituição, cabendo-lhe:
I - processar e julgar, originariamente:
[...]
f) as causas e os conflitos entre a União e os Estados, a União e o Distrito Federal,
ou entre uns e outros, inclusive as respectivas entidades da administração indireta;
(grifou-se)
Trata-se de competência criada para conferir foro especial a conflitos judiciais
federativos, cujo conteúdo seja passível de demonstrar uma animosidade considerável entre os
entes da Federação mencionados. Nessa hipótese funciona o STF como um Tribunal da Federação,
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conforme denomina o professor José Afonso da Silva1. Registre-se aqui a proteção especialíssima
depositada pela Constituição na forma federativa de Estado, prevendo-a no art. 60, §4º, I, como
cláusula pétrea.
Desse modo, a causa ora posta sob exame do Poder Judiciário se dá entre o Estado de
Santa Catarina e a União, inclusive em face da FUNAI, ente da administração indireta federal,
atraindo, por assim dizer, a aplicação do art. 102, I, "f", da CRFB/1988.
Na Reclamação n. 2833, de Roraima, que versava sobre a competência para processar
e julgar litígio sobre a demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, o STF foi claro ao fixar
sua competência para julgamento da matéria. Transcreve-se a ementa do julgado:
EMENTA: RECLAMAÇÃO. USURPAÇÃO DA COMPETÊNCIA. PROCESSOS JUDICIAIS
QUE IMPUGNAM A PORTARIA Nº 820/98, DO MINISTÉRIO DA JUSTIÇA. ATO
NORMATIVO QUE DEMARCOU A RESERVA INDÍGENA DENOMINADA RAPOSA
SERRA DO SOL, NO ESTADO DE RORAIMA. - Caso em que resta evidenciada a
existência de litígio federativo em gravidade suficiente para atrair a competência
desta Corte de Justiça (alínea "f" do inciso I do art. 102 da Lei Maior). - Cabe ao
Supremo Tribunal Federal processar e julgar ação popular em que os respectivos
autores, com pretensão de resguardar o patrimônio público roraimense, postulam a
declaração da invalidade da Portaria nº 820/98, do Ministério da Justiça. Também
incumbe a esta Casa de Justiça apreciar todos os feitos processuais intimamente
relacionados com a demarcação da referida reserva indígena. - Reclamação
procedente.
(Rcl 2833, Relator(a): Min. CARLOS BRITTO, Tribunal Pleno, julgado em 14/04/2005, DJ
05-08-2005 PP-00007 EMENT VOL-02199-01 PP-00117 LEXSTF v. 27, n. 322, 2005, p.
262-275 RTJ VOL-00195-01 PP-00024)
Oportuno registrar que no referido precedente a demanda foi proposta por autores
populares, sendo que o Estado de Roraima interveio no feito durante o trâmite do processo.
No mesmo sentido foi o precedente do Plenário do STF na Reclamação n. 3.205,
relativo à usurpação de competência do STF no caso de conflito entre entes da Federação na
demarcação da Terra Indígena Ibirama Lá-Klanô, situada em Santa Catarina:
EMENTA: AGRAVO REGIMENTAL EM RECLAMAÇÃO. USURPAÇÃO DE
COMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. ART. 102, I, F, DA
CONSTITUIÇÃO FEDERAL. RECLAMAÇÃO JULGADA PROCEDENTE. AGRAVO
REGIMENTAL IMPROVIDO. I - Ação que contesta a Portaria 1.128/2003, do
Ministério da Justiça, que demarcou terras indígenas. II - Configuração do conflito
entre entes da Federação, prevista no art. 102, I, f, da CF. III - Usurpação de
competência do Supremo Tribunal Federal reconhecida. Precedentes. IV - Agravo
regimental improvido.
(Rcl 3205 AgR, Relator(a): Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Tribunal Pleno, julgado em
22/11/2007, DJe-157 DIVULG 06-12-2007 PUBLIC 07-12-2007 DJ 07-12-2007 PP-00018
EMENT VOL-02302-01 PP-00115)
1 DA SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. 35ª ed., rev. e atual. até a EC n. 68/2011. São
Paulo: Malheiros Editores, 2012. p. 562.
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Em decorrência da procedência da referida Reclamação, está tramitando no STF a
Ação Cível Originária n. 1.100, que discute a validade da demarcação de terra indígena no Município
de Ibirama/SC.
Excelências, aqui não se trata de conflito de cunho patrimonial, mas sim de interesse
manifesto do Estado no cumprimento do dever-poder de zelar pela guarda da Constituição, das leis
e das instituições democráticas e conservar o patrimônio público, conforme prescreve o art. 23, I, da
Constituição Federal.
Ademais, a "Terra Indígena Morro dos Cavalos" está cravada no Parque Estadual da
Serra do Tabuleiro, que é uma unidade de conservação ambiental estadual.
Portanto, a competência do Supremo Tribunal Federal para processar e julgar o
presente litígio federativo é manifesta, sendo corolário direto da Constituição de 1988.
2. INFORMAÇÕES PRELIMINARES
2.1. CASO CONCRETO - BREVE HISTÓRICO
Imprescindível para o perfeito entendimento da questão a narrativa dos acontecimentos
mais importantes e a indicação dos personagens decisivos que atuaram no processo administrativo
de demarcação da "Terra Indígena Morro dos Cavalo" até o presente momento.
O processo administrativo n. 08620.002359/93-62 (íntegra em anexo) foi inaugurado
em 19.03.1992, no âmbito da FUNAI, por provocação de uma ONG denominada “Centro de
Trabalho Indigenista – CTI”, representada por Maria Inês Martins Ladeira, antropóloga de
formação.
Na missiva endereçada à Diretora Geral de Assuntos Fundiários da FUNAI (fl. 02 do
PA) a interessada relata que “a comunidade Guarani de Morro dos Cavalos procurou-nos,
informando-nos que estão sendo ameaçados de expulsão por pretensos proprietários de área que é
ocupada pela comunidade há muito tempo”. Pede, ao final, a indicação de um técnico para fazer os
encaminhamentos necessários, dentre eles a demarcação da terra indígena.
Registre-se, por oportuno, que a documentação anexada à missiva inaugural do
processo demarcatório traz trabalho desenvolvido em 1975 no âmbito da Universidade Federal de
Santa Catarina que descreve a existência, na década de 1970, de uma única família de índios de
origem paraguaia da etnia Guarani Nhandéva, cujo patriarca era Júlio Moreira. Juntou, ainda,
relatório técnico de 1986 (fls. 41-47 do PA) que descreve a existência da mesma família, sendo um
grupo de "treze pessoas, sendo oito Guarani, um branco e quatro mestiças". Além disso, colacionou
levantamento topográfico realizado pela “ONG CTI” juntamente com a comunidade indígena (fl. 3840 do PA), cujo conteúdo atestaria que a área da comunidade indígena em 21.10.1991 é de
16,40 hectares.
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Autuado o processo demarcatório, por meio da Portaria n. 973/93 (fl. 52 do PA), foi
constituído grupo técnico coordenado pelo Antropólogo Wagner Antônio de Oliveira, o qual, após a
realização dos trabalhos de campo, apresentou, em outubro de 1995, relatório (fls. 57-106 do PA)
propondo a demarcação de uma área como terra indígena de 121,8 hectares.
No relatório, confirma-se, novamente, que a localidade fora habitada por uma única
família indígena, os Moreira, da etnia Guarani Nhandéva, sendo que afirma que somente uma
indígena descendente do patriarca inicial vivia no local, Rosalina Moreira, casada com um não índio
de nome Luiz Carlos Machado, que trabalhava na empresa de limpeza urbana da Prefeitura de
Palhoça e seu salário era o único rendimento da família, "que se compunha do casal, os filhos
pequenos e dois filhos de uma de suas filhas, mãe-solteira de 14 anos, teúda e manteúda de um
"branco" do bairro de Campinas, município de São José, na Grande Florianópolis". Por outro lado, o
relatório é categórico ao afirmar que, “recentemente”, ou seja, pouco antes de 1995, chegaram ao
local índios da etnia Guarani Mbyá. Posteriormente, em 1996, produziu-se relatório complementar
(fls. 108-155 do PA) no escopo de adequar o trabalho à Portaria MJ n. 14/1996.
Em 12.06.2000 e 17.07.2000, missivas de líderes de comunidades indígenas (fls. 364367 do PA) são endereçadas à FUNAI requerendo, dentre outros, a desconsideração do laudo
antropológico que delimitou a área de 121,8 ha e a formação de novo grupo de trabalho que atenda
as necessidades dos indígenas do Morro dos Cavalos.
Mediante o MEMO n. 397/DEID/DAF, de 18 de agosto de 2000 (fls. 372-377 do PA), o
Chefe do DEID, Walter Coutinho Jr., apesar de relatar que “de 1975 até 1993, esta terra indígena foi
ocupada por cerca de uma dezena de índios Nhandéva. A partir de 1994, teve início a ocupação
dos Mbyá, que hoje somam mais de uma centena. Claro está que a área identificada e delimitada
pelo GT da Portaria n. 973/93 não poderia contemplar a situação atualmente verificada naquela terra
indígena”, sugeriu que a indicação de antropólogo para coordenar novos trabalhos de
delimitação e identificação seja feita pela própria comunidade indígena ou pelas organizações
não governamentais que lhe tem assessorado. Registre-se, por justiça, que a referida autoridade
expressamente consignou que as necessidades dos índios à época (18 de agosto de 2000)
deveriam “ser supridas com propriedade, em nosso entender, fazendo uso do disposto no art. 26 da
Lei n. 6.0001, de 19.12.73” e não com o art. 231 da CF/88.
Por conseguinte, o Presidente da FUNAI emitiu a Portaria n. 838, de 16 de outubro de
2001 (fls. 390-391 do PA), que constituiu Grupo Técnico para realizar novos estudos e
levantamentos de identificação e delimitação da Terra Indígena Morro dos Cavalos, de ocupação
dos índios Guarani Mbyá. Registre-se que a Portaria sequer se refere aos índios Guarani
Nhandéva.
O Grupo Técnico foi composto por Maria Inês Ladeira, antropóloga-coordenadora;
Dafran Gomes Macário, biólogo; Antônio Alves de Santana Sobrinho, técnico em agronomia, todos
consultores privados, e, ainda, Flávio Luiz Corne, engenheiro agrimensor, da FUNAI/ERA/Bauru;
Luiz Omar Correia, administrador de empresas, FUNAI/ERA/Curitiba; Técnico do Estado de Santa
Catarina, SEAGRI/SC, a designar; Técnico do INCRA, a designar.
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Em 15.07.2002 (fl. 559 do PA), o relatório circunstanciado de identificação e delimitação
da Terra Indígena Morro dos Cavalos, juntado às fls. 396-557 do P.A., fruto de supostos trabalhos de
levantamento de dados e informações em campo ocorridos entre 19.11.2001 à 11.12.2001, foi
encaminhado à FUNAI pela antropóloga-coordenadora Maria Inês Ladeira.
Registre-se que consta na documentação apenas a participação da antropólogacoordenadora, do biólogo Dafran Gomes Macário e do técnico em agronomia Antônio Alves de
Santana Sobrinho, todos consultores privados, sendo que não há nos autos do processo
demarcatório qualquer assinatura ou notícia de participação efetiva dos demais integrantes
do Grupo de Trabalho da Portaria mencionada.
Ademais, essencial consignar que o relatório da antropóloga Maria Inês Ladeira,
entregue em 2002 à FUNAI, considerou as necessidades da comunidade indígena que vivia em
2002 na localidade do Morro dos Cavalos, como se vê dos seguintes trechos do laudo
antropológico:
Os estudos e o presente relatório, embora considerando aspectos relevantes de
documentos já existentes sobre esta Terra Indígena, procuraram, dentro dos limites
temporais e circunstanciais em que são desenvolvidos os trabalhos técnicos de um GT de
identificação e delimitação, contemplar e fundamentar os critérios e a proposta de
limites da comunidade Guarani que vive atualmente na TI Morro dos Cavalos. (p.
402 do PA)
Considerando os critérios dos Guarani, e tendo como base a realidade atual da
comunidade indígena de Morro dos Cavalos, toda a Terra Indígena proposta para
regularização deve ser considerada como tradicionalmente ocupada. (p. 504 do PA)
A área proposta de cerca de 1988 ha, conforme mapa e memorial descritivo da Terra
Indígena Morro dos Cavalos a seguir, é tradicionalmente ocupada pela população local,
nos termos da legislação vigente (parágrafo 1 do art. 231 da Constituição Federal, Lei
6001/73, decreto 1775/96 e portarias: n. 239-FUNAI/91 e 14-MJ/96). Procuramos
atender as reivindicações atuais da população indígena local e sugerimos a
continuidade dos procedimentos de regularização fundiária desta Terra Indígena, de
acordo com a planta e memorial descritivo. (p. 506 do PA)
A título de registro, o MEMO n. 013/DEID, de 13 de janeiro de 2003, da FUNAI (p. 574
do PA), solicita o pagamento de honorários para a antropóloga Maria Inês Ladeira pelos serviços
prestados como coordenadora do Grupo Técnico que realizou os estudos e levantamentos de
identificação e delimitação da TI Morro dos Cavalos/SC. Conforme o referido memorando, tais
serviços foram objeto do Contrato SA 9794/2002, vigente desde 26 de novembro de 2002, ou seja,
em total contrariedade às normais relativas aos contratos administrativos, pois primeiro foram
prestados os serviços e somente depois foi assinado o contrato.
O relatório de identificação e delimitação do Grupo Técnico coordenado pela
antropóloga Maria Inês Ladeira foi aprovado pelo Presidente da FUNAI e publicado no Diário Oficial
da União em 18.12.2002 (fls. 566-570 do PA) e no Diário Oficial do Estado de Santa Catarina em
04.02.2003 (fls. 580-584 do PA), bem como foi encaminhado ofício ao Prefeito de Palhoça para
afixá-lo na sede da Prefeitura (fls. 573-A e 573-B).
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Em que pese a forma draconiana de publicação do relatório desenvolvido, foram
apresentadas contestações por supostos interessados. Há menção no processo administrativo de
que tais contestações foram apreciadas em procedimentos apartados, sendo julgadas
improcedentes. Não há comprovação nos autos de intimação dos interessados, tampouco da própria
decisão administrativa fundamentada que negou as pretensões.
Frise-se que a FUNAI não permitiu ao Estado de Santa Catarina acesso aos autos
das contestações administrativas, conforme se verifica no ofício n. 448/DPT/2012, de 07 de maio
de 2013 (anexo), sob o argumento de que tais processos conteriam informações que atraem sigilo.
Posteriormente, em 25.10.2005, o Estado de Santa Catarina, por meio do Procurador
do Estado Loreno Weissheimer, protocolou no Ministério da Justiça memoriais (fls. 909-928 do
PA) requerendo a improcedência da pretensão de se declarar como Terra Indígena a localidade de
Morro dos Cavalos, no Município de Palhoça-SC.
Além disso, colacionou-se aos memoriais do Estado o Acórdão n. 533/2005, do TCUPlenário (fls. 929-968 do PA), que discutiu denúncia sobre possíveis irregularidades na escolha de
projeto de travessia do Morro dos Cavalos, trecho que faz parte da duplicação da rodovia BR101/Sul, haja vista que a existência de comunidades indígenas teria direcionado a escolha de projeto
de construção antieconômico, além de determinar que eventual laudo antropológico seja realizado
por profissionais isentos e não ligados à defesa dos interesses daquelas comunidades.
Por conta da intervenção do Estado de Santa Catarina, em 02 de fevereiro de 2006, a
Consultoria Jurídica do Ministério da Justiça determinou que o processo de identificação e
delimitação da terra indígena retornasse à presidência da FUNAI, sugerindo que o parecer fosse
reavaliado (fl. 898-899 do PA).
O Presidente da FUNAI Mércio Pereira Gomes, em 18 de julho de 2006, autorizou o
deslocamento da antropóloga e funcionária da FUNAI Blanca Guilhermina Rojas, para realizar
diligências quanto ao relatório de identificação da Terra Indígena Morro dos Cavalos (fl. 998 do PA).
As diligências da antropóloga Blanca Guilhermina Rojas, consubstanciadas no Parecer
n. 002/CGID-2007, de 31 de maio de 2007 (fls. 1004-1024 do PA) resumiram-se a analisar os
memoriais do Estado de Santa Catarina e o Acórdão do TCU, relatando, ainda, as pressões que
sofreu por parte de Organização Não Governamental ligada à causa indígena, sendo que não houve
nova análise aprofundada do relatório de identificação e delimitação do Grupo Técnico coordenado
pela antropológa Maria Inês Ladeira. Na verdade, o parecer foi inconclusivo, alertando a FUNAI
para a necessidade de se escolher entre as fundamentações antropológica ou de ordem legal.
Por meio do MEMO n. 034/DAF/08, de 11 de fevereiro de 2008 (fls. 1047-1061 do PA),
a Diretora de Assuntos Fundiários da FUNAI, Maria Auxiliadora Cruz de Sá Leão, afirmou não
caber à FUNAI adotar qualquer definição “quanto às escolhas de fundamentação antropológica ou
de ordem legal”, no caso da identificação das Terras Guarani, concluindo pela continuidade do
processo administrativo em decorrência da consistência antropológica do Relatório Circunstanciado
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7. ESTADO DE SANTA CATARINA
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de Identificação e Delimitação da Terra Indígena Morro dos Cavalos elaborado pelo grupo técnico
coordenado pela antropóloga Maria Inês Ladeira.
Após manifestação da Procuradoria da FUNAI pelo encaminhamento do processo
administrativo ao Ministério da Justiça (fls. 1062-1064 do PA), o Presidente da FUNAI remeteu os
autos à referida autoridade em 22.02.2008 (fl. 1066 do PA) sem qualquer intimação do Estado de
Santa Catarina quanto à decisão de não acolher seus memoriais.
Finalmente, nas fls. 1086-1087 do PA, foi editada a Portaria MJ n. 771, de 18 de abril
de 2008, que declarou como “de posse permanente dos grupos indígenas Guarani Mbyá e
Nhandéva a Terra Indígena MORRO DOS CAVALOS, com superfície aproximada de 1.988 ha (mil,
novecentos e oitenta e oito hectares) e perímetro também aproximado de 31 Km (trinta e um
quilômetros), assim delimitada [...]”.
No seu art. 2º a referida Portaria determinou que a FUNAI promova a demarcação
administrativa da Terra Indígena para posterior homologação pela Presidência da República, nos
termos do art. 19, §1º, da Lei n. 6.001/73 e do art. 5º do Decreto n. 1.775/96.
Posteriormente, foi juntado ao PA (fl. 1104) o ofício n. 1387/2009/CGMAB/DPP, do
Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT), requerendo que a homologação
pelo Presidente da República exclua dos limites da Terra Indígena a BR-101 Sul, no escopo de
garantir maior segurança operacional aos trabalhadores e usuários da Rodovia BR-101 Sul, trecho
Florianópolis/SC - Osório/RS. A FUNAI respondeu ao DNIT informando a impossibilidade de acatar
tal pretensão (fl. 1115 do PA).
Seguindo o iter procedimental, foi constituída Comissão responsável pela avaliação das
benfeitorias dos ocupantes não índios da "Terra Indígena Morro dos Cavalos". Como se observa nas
fls. 1126-1133 do PA, em 19 de outubro de 2012, foram registradas 78 ocupações de não indígenas,
sendo 69 de boa-fé e 05 de má-fé. Para 03 ocupantes foi solicitada a apresentação de
documentação comprobatória e 01 ocupação não foi possível identificar o ocupante.
Novamente, a FUNAI não permitiu ao Estado de Santa Catarina acesso aos autos
que tratam do Levantamento Fundiário da Terra Indígena Morro dos Cavalos, conforme se
verifica no ofício n. 1104/DPT/2013, de 08 de novembro de 2013 (anexo), sob o argumento de que
esse processo conteria informações de terceiros, sendo permitido acesso somente por meio de
procuração da parte interessada.
Registre-se que, recentemente, editou-se a Portaria n. 272, de 22 de março de 2013, da
Presidência da FUNAI (em anexo), publicada no Diário Oficial da União em 25.03.2013, constituindo
“Comissão de pagamento para realizar a indenização de benfeitorias consideradas de boa-fé
implantadas por ocupantes não índios na Terra Indígena Morro dos Cavalos [...]”.
No mesmo ato foi autorizado o deslocamento da Comissão de pagamento à Terra
Indígena Morro dos Cavalos, concedendo prazo de 30 dias para realização dos trabalhos a contar
de 1º de abril de 2013.
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Por fim, até o presente momento não foi homologada pela Presidência da República a
demarcação da Terra Indígena Morro dos Cavalos, ato administrativo necessário para finalizar o ato
decisório complexo do processo demarcatório.
Esses são, portanto, os atos e fatos relacionados ao processo administrativo de
identificação e demarcação da "Terra Indígena Morro dos Cavalos" e necessários para o
entendimento da matéria.
2.2. DO PEDIDO DE REVISÃO ADMINISTRATIVA AO MINISTRO DA JUSTIÇA
AINDA NÃO ANALISADO
Pontua-se de início que o Estado de Santa Catarina protocolou junto ao Ministério da
Justiça pedido de revisão administrativa nos autos do processo administrativo n.
08620.002359/93-62-FUNAI.
A petição em anexo foi protocolada em 16 de abril de 2013 e, diante das ilegalidades
registradas no processo administrativo de demarcação da "Terra Indígena Morro dos Cavalos", bem
como em virtude do precedente do Supremo Tribunal Federal no caso da Terra Indígena de Raposa
Serra do Sol, requereu-se a declaração de nulidade da Portaria MJ n. 771/2008, bem como a
garantia de participação efetiva do Estado de Santa Catarina em todas as etapas do processo
administrativo demarcatório, com a intimação pessoal do Procurador-Geral do Estado.
No mês de dezembro de 2013, o Ministério da Justiça contatou o Estado de Santa
Catarina e realizou reunião sobre a questão das terras indígenas no Estado. Em relação ao Morro
dos Cavalos, a proposta do Ministro da Justiça foi de realização de um acordo entre os índios e o
não índios ocupantes. Não houve entendimento entre as partes.
Diante da ausência de qualquer demonstração do Ministério da Justiça em apreciar o
pedido de revisão do Estado, não há outra alternativa senão a propositura da presente ação judicial.
3. DAS QUESTÕES DE FATO E DE DIREITO PROPOSTAS NESTA AÇÃO
Senhores Ministros do STF, o Estado de Santa Catarina propõe a presente ação no
escopo de impedir a demarcação definitiva da suposta "Terra Indígena Morro dos Cavalos" com
fulcro no art. 231 da Constituição Federal.
As alegações que doravante se expõem dividem-se basicamente em duas grandes
vertentes: 1) Invalidades insanáveis no processo administrativo demarcatório; e, sucessivamente,
2) Impossibilidade de aplicação do art. 231 da Constituição Federal, por total ausência fática e
jurídica de seus pressupostos e pela preponderância no caso concreto de outros direitos
fundamentais igualmente relevantes.
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9. ESTADO DE SANTA CATARINA
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Ao final, a título de reforço argumentativo, na linha de uma aproximação entre o Direito
e a realidade, evidenciam-se uma série de prognoses a respeito dos efeitos fáticos da perpetuação
da demarcação da "Terra Indígena Morro dos Cavalos".
O caso, muito pelo tempo decorrido e também pela complexidade da questão relativa
às terras indígenas no Brasil, possui uma quantidade considerável de alegações que devem ser
enfrentadas pelo Poder Judiciário, o que explica a extensão dessa petição.
Dito isto, passa-se, de pronto, a apresentar cada uma das alegações do Estado de
Santa Catarina, lembrando que não há compromisso do ente da federação em defender índios ou
não índios, mas sim o dever-poder de zelar pelo fiel cumprimento do art. 231 da Constituição
Federal de 1988 e das demais normas constitucionais.
3.1. PROCESSO ADMINISTRATIVO DEMARCATÓRIO
A Constituição de 1988 prescreve no art. 231 que compete à União demarcar as terras
tradicionalmente ocupadas pelos índios, verbis:
CAPÍTULO VIII
DOS ÍNDIOS
Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças
e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam,
competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.
Inclusive, o art. 20, XI, da CRFB/1988 impõe a titularidade da União sobre as terras
tradicionalmente ocupadas pelos índios, verbis:
Art. 20. São bens da União:
[...]
XI - as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios.
No art. 67 do Ato de Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição de 1988,
houve previsão expressa de prazo para finalização pela União das demarcações de terras
indígenas:
Art. 67. A União concluirá a demarcação das terras indígenas no prazo de cinco anos a
partir da promulgação da Constituição.
Já o Estatuto do Índio (lei federal n. 6.001/1973) estabeleceu no art. 19 a competência
para o processamento administrativo de demarcação de terras indígenas:
Art. 19. As terras indígenas, por iniciativa e sob orientação do órgão federal de
assistência ao índio, serão administrativamente demarcadas, de acordo com o
processo estabelecido em decreto do Poder Executivo.
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O Decreto Federal n. 1.775/1996 é o instrumento normativo que regula, atualmente, o
processo administrativo de demarcação de terras indígenas. Estabelece no seu art. 1º a
competência do órgão federal de assistência ao índio para a demarcação administrativa:
Art. 1º As terras indígenas, de que tratam o art. 17, I, da Lei n° 6001, de 19 de dezembro
de 1973, e o art. 231 da Constituição, serão administrativamente demarcadas por
iniciativa e sob a orientação do órgão federal de assistência ao índio, de acordo com o
disposto neste Decreto.
O órgão federal de assistência ao índio é a FUNAI, cuja lei autorizativa de criação
remonta o ano de 1967. O art. 1º da lei n. 5.371/1967 estabelece as finalidades da FUNAI, verbis:
Art. 1º Fica o Govêrno Federal autorizado a instituir uma fundação, com patrimônio
próprio e personalidade jurídica de direito privado, nos têrmos da lei civil, denominada
"Fundação Nacional do Índio", com as seguintes finalidades:
I - estabelecer as diretrizes e garantir o cumprimento da política indigenista, baseada nos
princípios a seguir enumerados:
a) respeito à pessoa do índio e as instituições e comunidades tribais;
b) garantia à posse permanente das terras que habitam e ao usufruto exclusivo dos
recursos naturais e de tôdas as utilidades nela existentes;
c) preservação do equilíbrio biológico e cultural do índio, no seu contacto com a
sociedade nacional;
d) resguardo à aculturação espontânea do índio, de forma a que sua evolução sócioeconômica se processe a salvo de mudanças bruscas;
II - gerir o Patrimônio Indígena, no sentido de sua conservação, ampliação e
valorização;
III - promover levantamentos, análises, estudos e pesquisas científicas sôbre o índio e os
grupos sociais indígenas;
IV - promover a prestação da assistência médico-sanitária aos índios;
V - promover a educação de base apropriada do índio visando à sua progressiva
integração na sociedade nacional;
VI - despertar, pelos instrumentos de divulgação, o interêsse coletivo para a causa
indigenista;
VII - exercitar o poder de polícia nas áreas reservadas e nas matérias atinentes à
proteção do índio. (grifou-se)
Já o Decreto Federal n. 7.778/2012 aprova o Estatuto da FUNAI, cujo teor dos arts. 2º a
4º afirma:
Art. 2o A FUNAI tem por finalidade:
I – proteger e promover os direitos dos povos indígenas, em nome da União;
II - formular, coordenar, articular, monitorar e garantir o cumprimento da política
indigenista do Estado brasileiro, baseada nos seguintes princípios:
a) reconhecimento da organização social, costumes, línguas, crenças e tradições dos
povos indígenas;
b) respeito ao cidadão indígena, suas comunidades e organizações;
c) garantia ao direito originário, à inalienabilidade e à indisponibilidade das terras
que tradicionalmente ocupam e ao usufruto exclusivo das riquezas nelas
existentes;
d) garantia aos povos indígenas isolados do exercício de sua liberdade e de suas
atividades tradicionais sem a obrigatoriedade de contatá-los;
e) garantia da proteção e conservação do meio ambiente nas terras indígenas;
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f) garantia de promoção de direitos sociais, econômicos e culturais aos povos indígenas;
g) garantia de participação dos povos indígenas e suas organizações em instâncias do
Estado que definam políticas públicas que lhes digam respeito;
III - administrar os bens do patrimônio indígena, exceto aqueles cuja gestão tenha
sido atribuída aos indígenas ou às suas comunidades, conforme o disposto no art.
29, podendo também administrá-los por expressa delegação dos interessados;
IV - promover e apoiar levantamentos, censos, análises, estudos e pesquisas científicas
sobre os povos indígenas visando à valorização e à divulgação de suas culturas;
V - monitorar as ações e serviços de atenção à saúde dos povos indígenas;
VI - monitorar as ações e serviços de educação diferenciada para os povos indígenas;
VII - promover e apoiar o desenvolvimento sustentável nas terras indígenas, conforme a
realidade de cada povo indígena;
VIII - despertar, por meio de instrumentos de divulgação, o interesse coletivo para a
causa indígena; e
IX - exercer o poder de polícia em defesa e proteção dos povos indígenas.
Art. 3o Compete à FUNAI exercer os poderes de assistência jurídica aos povos
indígenas.
Art. 4o A FUNAI promoverá estudos de identificação e delimitação, demarcação,
regularização fundiária e registro das terras tradicionalmente ocupadas pelos povos
indígenas. (grifou-se)
O Ministério da Justiça exarou a Portaria n. 14/1996, que estabelece regras sobre a
elaboração do Relatório circunstanciado de identificação e delimitação de Terras Indígenas a que se
refere o parágrafo 6º do artigo 2º, do Decreto n. 1.775, de 08 de janeiro de 1996.
Já por meio da Portaria n. 2.498/2011, o Ministério da Justiça determinou nos
processos demarcatórios a intimação dos entes federados cujos territórios se localizam nas áreas
em estudo para identificação e delimitação de terras indígenas, por via postal com aviso de
recebimento.
A FUNAI editou, por sua vez, a Portaria n. 116/2012, que estabelece diretrizes e
critérios a serem observados na concepção e execução das ações de demarcação de terras
indígenas.
A FUNAI normatizou, também, por meio da Instrução Normativa n. 02/2012, as
instruções para o pagamento de indenização pelas benfeitorias derivadas da ocupação de boa-fé em
terras indígenas que, doravante, serão de aplicação obrigatória, sob pena de responsabilidade.
Em resumo, é esse o plexo de normas que regulam a demarcação de terras indígenas
no Brasil.
3.1.1. INCONSTITUCIONALIDADES DAS
DEMARCAÇÃO DE TERRAS INDÍGENAS NO BRASIL
NORMAS
QUE
REGULAM
A
Passar-se-á a demonstrar as inconstitucionalidades do Estatuto do Índio e do Decreto
n. 1.775/1996 e, por conseguinte, a imprestabilidade dos demais atos normativos que regulam a
matéria de demarcação de terras indígenas no Brasil, o que torna o processo demarcatório da "Terra
Indígena Morro dos Cavalos" nulo.
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3.1.1.1. IMPOSSIBILIDADE DE A FUNAI SER O ÓRGÃO EXCLUSIVAMENTE
RESPONSÁVEL PELO PROCESSO DEMARCATÓRIO
O art. 231 da Constituição Federal definiu que cabe à União demarcar as terras
tradicionalmente ocupadas pelos índios.
Já se afigura que a Carga Magna em nenhum instante inferiu ser a FUNAI o órgão
responsável pela citada demarcação.
O Estatuto do Índio, lei n. 6.001/1973, no seu art. 19, estabelece que o órgão federal de
assistência ao índio demarcará administrativamente as terras indígenas. Aqui deve ficar claro a
maior abrangência conferida ao termo "terra indígena", pois o referido Estatuto estabeleceu três
modalidades de terras indígenas:
Art. 17. Reputam-se terras indígenas:
I - as terras ocupadas ou habitadas pelos silvícolas, a que se referem os artigos 4º, IV,
e 198, da Constituição;
II - as áreas reservadas de que trata o Capítulo III deste Título;
III - as terras de domínio das comunidades indígenas ou de silvícolas.
O Decreto n. 1.775/1996, no seu art. 1º, praticamente repetiu a redação do Estatuto do
Índio.
Portanto, é a lei produzida em tempos de regime de exceção que fixa a competência da
FUNAI para demarcar as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios. Trata-se, então, de
averiguar se o art. 19 do Estatuto do Índio foi recepcionado pela ordem constitucional de 1988.
As normas que regem a FUNAI deixam explícito o dever de tal entidade em defender
os interesses indígenas. Além disso, cabe à FUNAI gerir o patrimônio indígena e exercer o poder
de polícia nas áreas reservadas aos índios.
Excelências, diante desse rol de competências fica a pergunta: a FUNAI poderá exercer
plenamente suas finalidades institucionais sem a existência de terras indígenas? É de interesse
direto da FUNAI, e natural que assim seja, a demarcação de terras indígenas, e na maior extensão
possível, a fim de desenvolver seus escopos institucionais.
É aceitável que o órgão responsável pelo processamento da demarcação administrativa
de terras indígenas seja o mesmo que irá proteger, gerir e exercer o poder de polícia sobre tais
terras?
O bom senso e a razoabilidade afirmam que não. Mas e o ordenamento jurídico? Vai na
mesma direção.
O art. 37 da Constituição exemplarmente demarca os princípios da Administração
Pública:
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Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos
Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade,
impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:
A impessoalidade é respeitada quando a FUNAI exerce tal atribuição delegada pelo
Estatuto do Índio? Permitir que a FUNAI demarque terras indígenas é violar frontalmente a
impessoalidade inerente à Administração Pública.
Por analogia com as suspeições e impedimentos dos processos judiciais e
administrativos, pode-se afirmar que a FUNAI possui impedimento de atuar como ente responsável
pela demarcação, pois além de ter interesse direto na causa, é representante legal dos índios,
interessados diretos na demarcação.
Vê-se, desse modo, a atuação ofensiva ao princípio da moralidade administrativa.
Inclusive, pode-se concluir que os atos da FUNAI relativos à demarcação de terras indígenas são de
improbidade administrativa, conforme previsão do art. 11 da lei n. 8.429/1992:
Art. 11. Constitui ato de improbidade administrativa que atenta contra os princípios
da administração pública qualquer ação ou omissão que viole os deveres de
honestidade, imparcialidade, legalidade, e lealdade às instituições, e notadamente:
A FUNAI não é imparcial, pois ela tem um lado, a defesa dos direitos dos índios. E
vejam Senhores Ministros que a correção do ato de improbidade dos agentes da FUNAI encontra
um vácuo de legitimidade ativa, pois o ente responsável pela propositura de ação de improbidade,
no caso, é o Ministério Público Federal, órgão que possui a função constitucional, dentre outras, de
"defender judicialmente os direitos e interesses das populações indígenas", na forma do art. 129, V,
da Constituição de 1988.
A argumentação exposta demonstra a total contradição em depositar na mesma pessoa
administrativa duas funções incompatíveis.
Repita-se que a Constituição não quis que a FUNAI, exclusivamente, fizesse a
demarcação das terras indígenas. O Poder Constituinte Originário disse que compete à União e não
à FUNAI demarcar terras indígenas.
Aqui não se está a dizer que a FUNAI estaria proibida de participar de processo
administrativo demarcatório como interessada.
O que se afirma, isso sim, é o total descompasso entre a formatação constitucional dos
princípios da Administração Pública e a atribuição da FUNAI de processar exclusivamente a
demarcação de terras indígenas.
A sociedade brasileira não pode mais conviver com esse tipo de violação ao devido
processo legal administrativo. Como se demonstrará mais a frente, as conseqüências da
demarcação de terras tradicionalmente ocupadas pelos índios, atualmente, são, na maioria dos
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casos, um convite ao confronto de índios e não índios e entre o Estado Brasileiro (União) e os não
índios ocupantes de terras demarcadas, além de significar um acirramento entre a sociedade
civilizada e as comunidades indígenas, contrapondo-se ao princípio da fraternidade e aos objetivos
da Constituição de 1988 insculpidos no seu art. 3º.
Nesse sentido, o art. 19 do Estatuto do Índio não foi recepcionado pela ordem
constitucional inaugurada em 1988, acarretando na invalidação de todos os atos normativos
decorrentes, bem como na nulidade absoluta do processo demarcatório da "Terra Indígena Morro
dos Cavalos".
3.1.1.2.
DEMARCATÓRIO
DÉFICIT
DEMOCRÁTICO
DO
PROCESSO
ADMINISTRATIVO
As regras específicas do processo demarcatório são dispostas no Decreto n.
1.775/1996. Transcrevem-se seus artigos relevantes:
Art. 1º As terras indígenas, de que tratam o art. 17, I, da Lei n° 6001, de 19 de dezembro
de 1973, e o art. 231 da Constituição, serão administrativamente demarcadas por
iniciativa e sob a orientação do órgão federal de assistência ao índio, de acordo com o
disposto neste Decreto.
Art. 2° A demarcação das terras tradicionalmente ocupadas pelos índios será
fundamentada em trabalhos desenvolvidos por antropólogo de qualificação reconhecida,
que elaborará, em prazo fixado na portaria de nomeação baixada pelo titular do órgão
federal de assistência ao índio, estudo antropológico de identificação.
§ 1° O órgão federal de assistência ao índio designará grupo técnico especializado,
composto preferencialmente por servidores do próprio quadro funcional, coordenado por
antropólogo, com a finalidade de realizar estudos complementares de natureza etnohistórica, sociológica, jurídica, cartográfica, ambiental e o levantamento fundiário
necessários à delimitação.
§ 2º O levantamento fundiário de que trata o parágrafo anterior, será realizado, quando
necessário, conjuntamente com o órgão federal ou estadual específico, cujos técnicos
serão designados no prazo de vinte dias contados da data do recebimento da solicitação
do órgão federal de assistência ao índio.
§ 3° O grupo indígena envolvido, representado segundo suas formas próprias, participará
do procedimento em todas as suas fases.
§ 4° O grupo técnico solicitará, quando for o caso, a colaboração de membros da
comunidade científica ou de outros órgãos públicos para embasar os estudos de que trata
este artigo.
§ 5º No prazo de trinta dias contados da data da publicação do ato que constituir o grupo
técnico, os órgãos públicos devem, no âmbito de suas competências, e às entidades civis
é facultado, prestar-lhe informações sobre a área objeto da identificação.
§ 6° Concluídos os trabalhos de identificação e delimitação, o grupo técnico apresentará
relatório circunstanciado ao órgão federal de assistência ao índio, caracterizando a terra
indígena a ser demarcada.
§ 7° Aprovado o relatório pelo titular do órgão federal de assistência ao índio, este fará
publicar, no prazo de quinze dias contados da data que o receber, resumo do mesmo no
Diário Oficial da União e no Diário Oficial da unidade federada onde se localizar a área
sob demarcação, acompanhado de memorial descritivo e mapa da área, devendo a
publicação ser afixada na sede da Prefeitura Municipal da situação do imóvel.
§ 8° Desde o início do procedimento demarcatório até noventa dias após a publicação de
que trata o parágrafo anterior, poderão os Estados e municípios em que se localize a área
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sob demarcação e demais interessados manifestar-se, apresentando ao órgão federal de
assistência ao índio razões instruídas com todas as provas pertinentes, tais como títulos
dominiais, laudos periciais, pareceres, declarações de testemunhas, fotografias e mapas,
para o fim de pleitear indenização ou para demonstrar vícios, totais ou parciais, do
relatório de que trata o parágrafo anterior.
§ 9° Nos sessenta dias subseqüentes ao encerramento do prazo de que trata o parágrafo
anterior, o órgão federal de assistência ao índio encaminhará o respectivo procedimento
ao Ministro de Estado da Justiça, juntamente com pareceres relativos às razões e provas
apresentadas.
§ 10. Em até trinta dias após o recebimento do procedimento, o Ministro de Estado da
Justiça decidirá:
I - declarando, mediante portaria, os limites da terra indígena e determinando a sua
demarcação;
II - prescrevendo todas as diligências que julgue necessárias, as quais deverão ser
cumpridas no prazo de noventa dias;
III - desaprovando a identificação e retornando os autos ao órgão federal de assistência
ao índio, mediante decisão fundamentada, circunscrita ao não atendimento do disposto
no § 1º do art. 231 da Constituição e demais disposições pertinentes.
Art. 3° Os trabalhos de identificação e delimitação de terras indígenas realizados
anteriormente poderão ser considerados pelo órgão federal de assistência ao índio para
efeito de demarcação, desde que compatíveis com os princípios estabelecidos neste
Decreto.
Art. 4° Verificada a presença de ocupantes não índios na área sob demarcação, o órgão
fundiário federal dará prioridade ao respectivo reassentamento, segundo o levantamento
efetuado pelo grupo técnico, observada a legislação pertinente.
Art. 5° A demarcação das terras indígenas, obedecido o procedimento administrativo
deste Decreto, será homologada mediante decreto.
Art. 6° Em até trinta dias após a publicação do decreto de homologação, o órgão federal
de assistência ao índio promoverá o respectivo registro em cartório imobiliário da
comarca correspondente e na Secretaria do Patrimônio da União do Ministério da
Fazenda.
Art. 7° O órgão federal de assistência ao índio poderá, no exercício do poder de polícia
previsto no inciso VII do art. 1° da Lei n° 5.371, de 5 de dezembro de 1967, disciplinar o
ingresso e trânsito de terceiros em áreas em que se constate a presença de índios
isolados, bem como tomar as providências necessárias à proteção aos índios.
Passa-se a apontar objetivamente a inconsistência do processo administrativo
demarcatório previsto no referido Decreto Federal, especialmente pelo fato de que tal Decreto foi a
referência dos trabalhos da FUNAI na demarcação da "Terra Indígena Morro dos Cavalos".
3.1.1.2.1. VIOLAÇÃO AO PACTO FEDERATIVO
Sem olvidar que por expressa disposição constitucional cabe à União demarcar as
terras tradicionalmente ocupadas pelos índios, percebe-se nos artigos do referido Decreto uma clara
violação à forma federativa de Estado.
O art. 1º da Constituição Federal estatui a Federação Brasileira:
Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e
Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem
como fundamentos:
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As pessoas políticas, União, Estados, Municípios e Distrito Federal, devem guardar
entre si um dever de fidelidade, de lealdade recíproca, no escopo de garantir a indissolubilidade da
Federação.
A demarcação de terras indígenas significa a apropriação pela União de porções do
território estadual. Nesse sentido, a União tem o compromisso federativo de não prejudicar as
demais pessoas federativas. Trata-se do dever-poder de prestigiar o federalismo de equilíbrio,
escopo do Estado Federal, além de evidenciar um federalismo cooperativo entre a União e os
Estados-membros.
Desse modo, as competências estabelecidas na Constituição, sejam da União, dos
Estados ou dos Municípios, devem ser exercidas em conformidade ao princípio da lealdade à
federação, decorrência lógica do princípio federativo.
O princípio da lealdade à Federação foi construído pela doutrina e jurisprudência
constitucional alemã. O Ministro Gilmar Mendes, no julgamento da Petição n. 3.388, atribui função a
esse princípio:
O princípio da lealdade à Federação atua como um dos mecanismos de correção, de
alívio das tensões inerentes ao Estado Federal, junto aos que já se encontram
expressamente previstos na própria Constituição. Sua presença silenciosa, não escrita,
obriga cada parte a considerar o interesse das demais e o do conjunto. Transcende o
mero respeito formal das regras constitucionais sobre a federação, porque fomenta uma
relação construtiva, amistosa e de colaboração. Torna-se, assim, o espírito informador
das relações entre os entes da federação, dando lugar a uma ética institucional objetiva
de caráter jurídico, não apenas político e moral. (STF, 2009, p. 597-598 do Acórdão)
O Supremo Tribunal Federal no julgamento da Petição n. 3.388, que versou sobre a
demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, consignou a necessidade de ampla e efetiva
participação dos entes federados interessados, quais sejam, aqueles em cujo território estejam
encravadas as terras indígenas a serem demarcadas.
Inclusive, estabeleceu como salvaguarda o item “t” da parte dispositiva do Acórdão,
cujo teor afirma que “é assegurada a participação dos entes federados no procedimento
administrativo de demarcação de terras indígenas, situadas em seus territórios, observada a fase em
que se encontrar o procedimento”.
E essa participação é muito mais ampla do que aquela conferida pelo Decreto n.
1.775/1996.
O Ministro Menezes Direito afirma em seu voto no referido julgamento sobre a
obrigatoriedade de manifestação dos entes federados:
A manifestação dos entes federativos cujos territórios forem abrangidos pela terra
indígena não pode ser meramente facultativa, porém obrigatória, e deve ocorrer sobre o
estudo de identificação, sobre a conclusão da comissão de antropólogos e sobre o
relatório circunstanciado do grupo técnico (art. 2º, §6º), sem prejuízo do disposto no §8º
do art. 2º do Decreto n. 1.775/96. (p. 187 do Acórdão)
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O Ministro Celso de Mello, por sua vez, alerta para a necessidade de realização até
mesmo de audiência pública para se resguardar a autonomia institucional do Estado-membro em
face de substancial redução de sua base física, verbis:
O Poder Executivo da União, na realidade, pode, Senhor Presidente, mediante
utilização abusiva da demarcação administrativa de terras indígenas, comprometer,
gravemente, a incolumidade jurídica do Estado Federal brasileiro, promovendo
dramática redução da base geográfico-territorial de certa unidade federada, fazendo-o
mediante reconhecimento, como terras indígenas – pertencentes, em conseqüência, ao
patrimônio da União Federal -, de extensas áreas localizadas no Estado-membro.
Daí a necessidade, Senhor Presidente, de rígido controle jurisdicional, quando
regularmente provocado por quem se julgue injustamente lesado, do procedimento
administrativo de demarcação das terras indígenas – sem prejuízo da possibilidade, na
fase administrativa do procedimento demarcatório, de prévia audiência pública,
com ampla participação das unidades federadas interessadas -, em ordem a impedir
que a autonomia institucional do Estado-membro venha a ser afetada em
decorrência de substancial redução de sua base física, causada pelo arbitrário
reconhecimento, como área indígena, de terras cuja ocupação não se ajuste aos
parâmetros definidos no art. 231 da Constituição e, também, no Estatuto do Índio”. (p.
506-507 do Acórdão)
O Decreto n. 1.775/1996 não permite a ampla e efetiva participação dos Estados e
Municípios diretamente afetados pela demarcação de terras indígenas.
O parágrafo 8º do art. 2º do Decreto n. 1.775/1996 faculta aos Estados e Municípios
afetados manifestação em relação à demarcação proposta até 90 dias após a publicação no Diário
Oficial da União e no Diário Oficial do Estado afetado do resumo do relatório circunstanciado
demarcatório da terra indígena.
Ora, é uma ficção concluir que tal regramento permite o efetivo conhecimento dos
órgãos estaduais ou municipais da demarcação da terra indígena. Notificação de entes federativos
para, querendo, manifestarem-se em processo demarcatório por publicação no Diário Oficial?
Absolutamente inadequado.
As unidades federadas interessadas devem ser notificadas por meio que garanta a
efetiva ciência de seu representante legal. É esse o regramento da lei n. 9.784/1999, que regula o
processo administrativo federal:
Art. 26. O órgão competente perante o qual tramita o processo administrativo determinará
a intimação do interessado para ciência de decisão ou a efetivação de diligências.
[...]
§ 3o A intimação pode ser efetuada por ciência no processo, por via postal com aviso
de recebimento, por telegrama ou outro meio que assegure a certeza da ciência do
interessado.
§ 4o No caso de interessados indeterminados, desconhecidos ou com domicílio
indefinido, a intimação deve ser efetuada por meio de publicação oficial.
§ 5o As intimações serão nulas quando feitas sem observância das prescrições legais,
mas o comparecimento do administrado supre sua falta ou irregularidade.
[...]
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Art. 28. Devem ser objeto de intimação os atos do processo que resultem para o
interessado em imposição de deveres, ônus, sanções ou restrição ao exercício de direitos
e atividades e os atos de outra natureza, de seu interesse.
A lei n. 9.784/1999 regula no seu Capítulo IX a comunicação dos atos do processo
administrativo. Antes disso, o art. 3º da referida lei prevê dentre os direitos dos administrados:
Art. 3o O administrado tem os seguintes direitos perante a Administração, sem prejuízo
de outros que lhe sejam assegurados:
[...]
II - ter ciência da tramitação dos processos administrativos em que tenha a
condição de interessado, ter vista dos autos, obter cópias de documentos neles
contidos e conhecer as decisões proferidas;
[...]
Tal previsão retrata que “o processo administrativo aberto, visível, participativo, é
instrumento seguro de prevenção à arbitrariedade”2.
A busca pela participação efetiva de todos os interessados no processo administrativo
está vinculada ao dever de a Administração Pública respeitar o devido processo, o contraditório e a
ampla defesa, com matriz no art. 5º, incisos LIV e LV, da Constituição Federal. Nas palavras de
Mônica Simões:
O processo administrativo é um dos mais efetivos instrumentos de resguardo dos direitos
dos administrados, na medida em que obriga a Administração Pública a observar
determinados trâmites antes de emitir seus atos, dificultando, com isso, a ocorrência de
ampliação ou restrição injustificadas na esfera jurídica dos particulares. Torna-se
necessário, para tanto, assegurar a participação dos administrados na formação da
vontade estatal, razão pela qual a Lei n. 9.784/1999 congrega inúmeras forma de
participação individual e coletiva dos interessados no processo administrativo.
Por outro lado, o processo administrativo visa a auxiliar e sistematizar a atuação
administrativa, imprimindo-lhe maior eficiência, acerto e correção.3
Nos processos administrativos de demarcação de terras indígenas os entes federativos
devem ser comunicados da existência do processo desde o seu início, o que não é garantido pelo
Decreto n. 1.775/1996, a fim de que possam participar ativamente dos estudos de identificação da
terra indígena previsto no art. 2º do aludido Decreto.
Ocorre que o parágrafo 8º do art. 2º do Decreto n. 1.775/1996 prevê uma única
hipótese de comunicação, a publicação no Diário Oficial da União e no Diário Oficial do Estado do
resumo do relatório circunstanciado demarcatório da terra indígena. Ora, “a intimação de particulares
por edital publicado na imprensa oficial é ineficaz, o que se exige é uma conduta positiva, tanto para
FERRAZ, Sergio e DALLARI, Adilson Abreu. Processo Administrativo. 1ª ed. São Paulo: Malheiros, 2003. p. 24.
SIMÕES, Mônica Martins Toscano. O processo administrativo e a invalidação de atos viciados. São Paulo: Malheiros,
2004. p. 196.
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atender os pedidos da pessoa interessada, como para comunicação espontânea de todos os atos
processuais”4.
No momento inicial de constituição do grupo técnico, coordenado por antropólogo, e de
elaboração dos estudos de identificação, aos interessados deve ser franqueada previamente a
identificação dos integrantes do referido grupo, para que possam, inclusive, impugná-los. Outrossim,
os interessados devem ter a oportunidade de participar dos atos materiais dos estudos, como as
perícias e vistorias no local a ser demarcado.
Nas palavras de Celso Antônio Bandeira de Mello, o princípio da ampla instrução
probatório significa "não apenas o direito de oferecer e produzir provas, mas também o de, muitas
vezes, fiscalizar a produção das provas da Administração, isto é, o de estar presente, se necessário,
a fim de verificar se efetivamente se efetuaram com correção ou adequação técnica devidas"5.
Não é aceitável um processo administrativo em fase avançada sem a presença nas
fases iniciais dos elementos do processo, como as partes.
As unidades federadas devem ser intimadas na forma do art. 26, §3º, da lei n.
9.784/1999, ou seja, por via postal com aviso de recebimento, por telegrama ou outro meio que
assegure a certeza da ciência. Essa intimação deve se dar no início do processo e se repetir nos
atos cruciais do procedimento, tais como indicação dos integrantes do grupo técnico, informação
sobre as datas dos atos materiais dos estudos, tais como perícias e vistorias, apresentação do
relatório de identificação.
A não observância dessas regras de intimação leva à nulidade processual, pois assente
o prejuízo causado às unidades federadas.
A lei 9.784/1999, no seu art. 26, §4º, é clara ao permitir a comunicação de atos por
publicação oficial somente no caso de interessados indeterminados, o que não é o caso dos entes
federados.
Interessante notar que o art. 2º, §3°, do Decreto n. 1.775/1996, garante somente aos
grupos indígenas interessados a participação em todas as fases do processo administrativo. A
mesma garantia deve ser aplicada também aos entes da federação envolvidos e às demais pessoas
interessadas. A isonomia entre os interessados é afetada pelo procedimento previsto.
E não se diga que a lei n. 9.784/1999 não se aplica ao processo administrativo de
demarcação de terras indígenas por este ser especial. Há, na verdade, supremacia da lei n.
9.784/1999 sobre o Decreto n. 1.775/1996.
A lei n. 9.784/1999, como já dito, é decorrência dos mandamentos constitucionais por
devido processo legal, ampla defesa e contraditório, sendo compatível, portanto, com processos
FIGUEIREDO, Lúcia Valle (coord.). Comentários à lei federal de processo administrativo (9.784/1999). 2ª ed. Belo
Horizonte: Fórum, 2008. p. 52.
5 DE MELLO, Celso Antônio Bandeira. Curso de Direito Administrativo. 20ª ed. São Paulo: Malheiros, 2006. p. 471.
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administrativos externos, ampliativos e restritivos, como é o caso do processo demarcatório de terras
indígenas.
O art. 1º da lei n. 9.784/1999 afirma sua aplicação no âmbito da Administração Federal
direta e indireta, verbis:
Art. 1º Esta Lei estabelece normas básicas sobre o processo administrativo no âmbito da
Administração Federal direta e indireta, visando, em especial, à proteção dos direitos dos
administrados e ao melhor cumprimento dos fins da Administração.
Nesse sentido, como regra geral, são as normas da lei n. 9.784/1999 que regulam os
processos administrativos dos diversos órgãos públicos federais6. O art. 69 dessa lei revela a
hipótese de não aplicação de seus dispositivos nos casos de processos administrativos especiais,
regidos por lei própria:
Art. 69. Os processos administrativos específicos continuarão a reger-se por lei própria,
aplicando-se-lhes apenas subsidiariamente os preceitos desta Lei.
Não é sem razão que o referido dispositivo se referiu expressamente ao vocábulo “lei” e
não “norma” própria.
O Decreto n. 1.775/1996, que dispõe sobre o procedimento administrativo de
demarcação das terras indígenas, não é lei. A suposta autorização do art. 19 do Estatuto do Índio,
para que Decreto regulamente o processo demarcatório, não subsiste à exigência de lei para
processo administrativo especial.
Além disso, a lei do processo administrativo federal é posterior ao Estatuto do Índio e
ao Decreto n. 1.775/1996, aplicando-se o critério cronológico previsto no art. 2º, § 1º, da lei de
introdução ao direito brasileiro.
Não se está a dizer que o Decreto n. 1.775/1996 foi integralmente revogado ou não
pode ser aplicado aos processos demarcatórios. Na verdade, o que aqui se defende é a submissão
da norma infralegal à lei que rege os processos administrativos federais e a imperativa necessidade
de se observarem os dispositivos da lei n. 9.784/1999 nos processos demarcatórios de terras
indígenas.
Vejam que a LEI que regula o processo administrativo é clara ao permitir a
comunicação de atos por publicação oficial somente no caso de interessados indeterminados. Os
entes federados não são interessados indeterminados. A teoria das fontes ensina que DECRETO
não pode inovar a ordem jurídica, muito menos contrariar LEI.
6 A título de registro, a jurisprudência do STJ, contra legem, já decidiu que a lei n. 9.784/1999 se aplica a processos
administrativos no âmbito dos Estados e Municípios que não tenham lei própria.
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Tanto isso é verdade que o Ministério da Justiça editou a Portaria n. 2.498/2011, cujo
conteúdo determina a intimação dos entes federados por via postal com aviso de recebimento em
várias fases do processo:
Art. 1o A Fundação Nacional do Índio - FUNAI determinará a intimação dos entes
federados cujos territórios se localizam nas áreas em estudo para identificação e
delimitação de terras indígenas, por via postal com aviso de recebimento, no prazo de 5
(cinco) dias contados da data da publicação da designação do grupo técnico
especializado, nos termos do art. 2o do Decreto no 1.775, de 1996.
Parágrafo único. A intimação deverá conter:
I - informação quanto à constituição do grupo técnico especializado e a natureza dos
estudos de identificação e delimitação de terras indígenas;
II - indicação do prazo de 20 (vinte) dias para designação de técnicos para participação
no levantamento fundiário de caracterização da ocupação não indígena;
III - informação da continuidade do processo independentemente da designação de
representantes; e
IV - outras informações consideradas pertinentes pela FUNAI.
Art. 2o Concluídos os trabalhos de identificação e delimitação, a FUNAI determinará nova
intimação dos entes federados de que trata o art. 1o, por via postal com aviso de
recebimento, para fins de contestação da área sob demarcação, sem prejuízo da
publicação no Diário Oficial da União, no Diário Oficial do Estado e de sua afixação na
sede da Prefeitura Municipal, em conformidade ao disposto no § 7o do art. 2o do Decreto
no 1.775, de 1996.
Parágrafo único. A intimação de que trata o caput deverá conter:
I - cópia do relatório circunstanciado, acompanhado de memorial descritivo e mapa da
área; e
II - informação quanto à faculdade de pleitear indenização, prestar informações sobre a
área objeto de delimitação, ou demonstrar vícios, totais ou parciais, no procedimento
demarcatório, nos termos do § 8o do art. 2o do Decreto no 1.775, de 1996.
[...]
Portanto, a lei n. 9.784/1999 deve ser aplicada nos processos administrativos de
demarcação de terras indígenas, ao menos, em relação ao atos de comunicação dos interessados,
acarretando em nulidade sua inobservância.
Senhores Ministros, o ato demarcatório com fundamento no art. 231 da CF/88 é de
conseqüências drásticas, pois retira das terras os ocupantes não índios, na maioria das vezes
proprietários de longos anos, e desvincula dos Estados e Municípios seus territórios, transferindo-os
à União com afetação ao usufruto exclusivo pelas comunidades indígenas, e isso sem indenização
integral aos prejudicados.
O Pacto Federativo se enfraquece com esse tipo de processo administrativo levado a
efeito pela FUNAI. O princípio da lealdade à Federação é ofendido quando os entes federados são
alijados do processo administrativo demarcatório.
Nesse sentido, por violar o pacto federativo, o Decreto n. 1.775/1996 é imprestável
como modelo normativo de processo demarcatório de terras indígenas, o que leva à nulidade da
demarcação da "Terra Indígena Morro dos Cavalos".
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3.1.1.2.2. EXCLUSIVIDADE DO PROFISSIONAL
COORDENADOR DO PROCESSO DEMARCATÓRIO
ANTROPÓLOGO
COMO
O art. 2º do Decreto n. 1.775/1996 determina a participação imperial do profissional
antropólogo no processo demarcatório:
Art. 2° A demarcação das terras tradicionalmente ocupadas pelos índios será
fundamentada em trabalhos desenvolvidos por antropólogo de qualificação reconhecida,
que elaborará, em prazo fixado na portaria de nomeação baixada pelo titular do órgão
federal de assistência ao índio, estudo antropológico de identificação.
§ 1° O órgão federal de assistência ao índio designará grupo técnico especializado,
composto preferencialmente por servidores do próprio quadro funcional, coordenado por
antropólogo, com a finalidade de realizar estudos complementares de natureza etnohistórica, sociológica, jurídica, cartográfica, ambiental e o levantamento fundiário
necessários à delimitação.
É o antropólogo, exclusivamente, que identifica determinada terra como sendo
tradicionalmente ocupada pelos índios.
Depois, grupo técnico coordenado por antropólogo realiza estudos complementares de
natureza etno-histórica, sociológica, jurídica, cartográfica, ambiental e o levantamento fundiário
necessários à delimitação.
Ocorre que o profissional antropólogo atua de modo parcial na análise do seu objeto de
observação, no caso as comunidades indígenas.
A obra "A Perícia Antropológica em Processos Judiciais", apresentada em 1994 pela
editora da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina), demonstra claramente a incapacidade
dos antropólogos de atuarem imparcialmente como peritos.
Já na apresentação do livro, a cargo do então Presidente da Associação Brasileira de
Antropologia, Sílvio Coelho dos Santos, afirma claramente que "o desafio posto aos antropólogos
impunha maior compreensão da sistemática processual e da hermenêutica jurídica, pois era
necessário produzir laudos que permitissem a tomada de decisão pelo julgador em favor dos
indígenas"7.
Para os antropólogos seu compromisso ético é com os direitos dos indígenas, verbis:
Circunstância Atenuante ou Dirimente. Compromisso Ético do Antropólogo.
- (...) Na condição de perito, o antropólogo tem compromisso fundamental com a verdade,
que deverá ser aclarada ao juiz, para que ele possa fazer justiça. Porém, o antropólogo,
face às questões em que estejam em jogo direitos de sociedade ou de pessoas
individuais Indígenas, pode ser chamado a figurar como assistente técnico. Penso que,
estando em jogo direitos de sociedades coletivamente ou de pessoas individuais
Indígenas, o compromisso ético do antropólogo é com a defesa destes direitos,
7
SILVA, Orlando Sampaio. LUZ, Lídia e HELM, Cecília Maria Vieira (org.). A perícia antropológica em processos
judiciais. Florianópolis: Ed. da UFSC, 1994. p. 09.
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estudando, pesquisando, identificando e oferecendo razões para que estes direitos
prevaleçam.8
Há, na verdade, uma disposição por ouvir somente um dos lados, o dos índios:
A possibilidade de ouvirmos várias vozes é, certamente um ponto positivo da análise
antropológica mais contemporânea. Mas me pergunto se esta possibilidade do
antropólogo ouvir estas diferentes vozes e permitir que elas se manifestem igualmente é
desejável num laudo. Será que o laudo é um local adequado para a polifonia? Talvez nem
sempre. Será que todas estas vozes que escutamos como antropólogos podem ser
escutadas do mesmo modo pelo juiz?9
Evidencia-se, assim, a contradição entre a atividade científica para a produção de
laudos isentos e a atividade antropológica:
Temos por conseguinte, uma contradição profunda entre a profissão antropológica, que
acontece na convivência e participação, e o distanciamento imposto aos peritos judiciais,
que sublinha negativamente o envolvimento entre antropólogos e comunidades
estudadas. Caberia perguntar: como indicar especialistas, estudiosos de uma
comunidade Indígena específica se, a priori, os antropólogos são todos
suspeitos?10
Nota-se, portanto, a incapacidade do antropólogo de atuar com imparcialidade, pois tem
compromisso com a garantia e a ampliação dos direitos indígenas.
Excelências, a Constituição determinou esse poder excessivo ao profissional
antropólogo? A lei assim determinou? Como pode um Decreto restringir a um campo do
conhecimento a competência para definir questão tão relevante?
Essa foi uma decisão arbitrária e exclusiva do Poder Executivo Federal, sem qualquer
participação dos demais entes federados ou dos representantes do povo, por meio do Congresso
Nacional.
Entendeu a União que a tradicionalidade exigida pela Constituição na aplicação do seu
art. 231 somente pode ser aferida por antropólogo.
Desse modo, seguindo a linha do Decreto Federal, somente o profissional antropólogo
tem o conhecimento científico para saber: 1) se as terras são habitadas em caráter permanente por
indígenas; 2) se as terras são utilizadas para suas atividades produtivas; 3) se as terras são
imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários ao seu bem-estar; 4) e se as
terras são necessárias para a reprodução física e cultural dos indígenas, segundo seus usos,
costumes e tradições.
8 SILVA,
9
Orlando Sampaio. LUZ e outros. Op. cit. p. 34-35.
SILVA, Orlando Sampaio. LUZ e outros. Op. cit. p. 70.
10
SILVA, Orlando Sampaio. LUZ e outros. Op. cit. p. 59.
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24. ESTADO DE SANTA CATARINA
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Esses são os 4 requisitos da tradicionalidade das terras indígenas previstos no art. 231
da Constituição de 1988. Pergunta-se: somente o antropólogo tem o conhecimento para verificar a
ocorrência de tais requisitos?
A habitação permanente pode ser muito melhor respondida por um historiador, que irá
demonstrar o histórico de ocupação da região a ser demarcada.
A utilização das terras em atividades produtivas e se são imprescindíveis para a
preservação de recursos ambientais necessários ao bem-estar dos índios podem ser respondidas
por um engenheiro agrônomo e por um biólogo, respectivamente.
Somente o último requisito é que poderia ser de atribuição exclusiva de um
antropólogo, pois seria ele o profissional capacitado a dizer se as terras são necessárias para a
reprodução física e cultural dos indígenas, segundo seus usos, costumes e tradições.
O fato é que não há justificativa técnica para se fazer uma verdadeira reserva de
mercado em favor dos profissionais antropólogos.
Como bem afirma o Ministro Menezes Direito, no julgamento pelo STF da validade da
Terra Indígena Raposa Serra do Sol:
É precisamente em virtude da relevância constitucional e política do procedimento que
resulta na homologação das terras indígenas que não se pode deixar de cuidar de sua
forma e de suas etapas, para assegurar que todos os possíveis representantes dos
diversos interesses de âmbito nacional possam se manifestar e assim contribuir para a
legitimidade do processo, que não pode ficar, como tem ocorrido na prática, a cargo de
uma única pessoa ou, na melhor das hipóteses, a cargo de umas poucas pessoas com
formação antropológica. (pág. 186 do Acórdão)
Portanto, inaceitável o depósito exclusivo no profissional antropólogo da
responsabilidade de identificar terras tradicionalmente ocupadas por índios, bem como de dirigir o
grupo técnico que deve fazer estudos complementares para a finalização da área a ser demarcada,
pelo fato de que os requisitos constitucionais para caracterizar a tradicionalidade exigem outros
profissionais com conhecimento científico e com poderes equivalentes ao do antropólogo no
processo administrativo.
Nesse sentido, como o processo demarcatório da "Terra Indígena Morro dos Cavalos"
foi coordenado exclusivamente por profissional antropólogo, deve ser declarado nulo.
3.1.1.2.3. GARANTIA
DIRETAMENTE LESADOS
DE
PARTICIPAÇÃO
EFETIVA
DOS
CIDADÃOS
O processo demarcatório, tal como previsto no Decreto n. 1.775/1996, viola direitos
básicos de cidadãos brasileiros não índios.
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Assim como previsto para a participação dos entes federados interessados, os
cidadãos que perderão definitivamente suas propriedades com a transferência das terras para a
União, afetadas ao Patrimônio Indígena (art. 39 da lei n. 6.001/73 - Estatuto do Índio), são intimados
por publicação oficial.
Registre-se que esses cidadãos, ocupantes da terra indígena a ser demarcada, não são
pessoas indeterminadas. É dever do Grupo Técnico constituído para delimitar a Terra Indígena
efetuar o levantamento fundiário da área. O levantamento fundiário deve ser feito nos moldes da
Sexta Parte da Portaria do Ministério da Justiça n. 14/1996, que estabelece regras sobre a
elaboração do Relatório circunstanciado de identificação e delimitação de Terras Indígenas.
Nesse norte, o levantamento fundiário deve identificar os eventuais ocupantes não
índios; descrever a(s) área(s) por ele(s) ocupada(s), com a respectiva extensão, a(s) data(s)
dessa(s) ocupação(ções) e a descrição da(s) benfeitoria(s) realizada(s); descrever informações
sobre a natureza dessa ocupação, com a identificação dos títulos de posse e/ou domínio
eventualmente existentes, com qualificação e origem.
Portanto, se é dever do Grupo Técnico verificar a existência de ocupantes não índios,
caso se confirme tal presença, há pessoas identificadas e diretamente interessadas na demarcação
da terra indígena.
Como já dito, se há pessoas identificadas e diretamente interessadas, estas devem ser
comunicadas da existência do processo administrativo por meio que assegure a certeza da ciência
pelo interessado. A publicação oficial não é meio adequado para assegurar a ciência da pessoa
diretamente afetada pelo processo administrativo.
Dessa maneira, o Decreto n. 1.775/1996 viola o direito de participação efetiva no
processo administrativo demarcatório das pessoas diretamente afetadas pela demarcação de terras
indígenas.
Os ocupantes não índios perderão suas propriedades, na maior parte das vezes sua
moradia, e sequer têm garantido o direito de serem comunicados da existência do processo
administrativo no seu início. Na verdade, pela sistemática adotada no Decreto n. 1.775/1996, o
ocupante não índio tomará ciência inequívoca da demarcação da terra indígena quando já for o
momento de sua retirada das terras.
O agir da União, in casu, não se amolda ao devido processo legal administrativo, cujo
fundamento é garantir a participação efetiva em processo administrativo dos diretamente
interessados no seu objeto.
3.1.1.2.4. (DES)PROPORCIONALIDADE ENTRE O PROCEDIMENTO PREVISTO E A
FINALIDADE DO PROCESSO DEMARCATÓRIO
O procedimento previsto no Decreto n. 1.775/1996 para o processo demarcatório de
terras indígenas não é compatível com seu escopo.
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26. ESTADO DE SANTA CATARINA
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O princípio da proporcionalidade é totalmente desconsiderado pela normatização
federal. Notem, Senhores Ministros, que, de maneira exclusiva e injustificável, a FUNAI, órgão
federal diretamente interessado na causa indígena, produz a instrução do processo demarcatório,
cujo comando é conferido exclusivamente a profissional antropólogo. Ademais, o processo é
instruído sem a garantia de participação efetiva dos demais entes federados e dos ocupantes não
índios diretamente interessados.
A processualidade prevista no Decreto n. 1.775/1996 é precária, parcial e incapaz de
harmonizar os valores constitucionais em jogo. A eficácia do art. 231 da Constituição Federal não se
dá por meio do processo demarcatório atualmente previsto na legislação.
O que se vê, atualmente, é o exercício abusivo e equivocado dos pressupostos e
finalidades do art. 231 da CF/88.
O processo demarcatório atualmente previsto não consegue adequar os pressupostos
para a demarcação de terras indígenas do art. 231 com o nobre objetivo constitucional de garantir às
comunidades indígenas a manutenção de seus usos, tradições e costumes nas terras
tradicionalmente ocupadas em 05.10.1988.
É tão desproporcional e mal formulado que a União não conseguiu respeitar o
mandamento do art. 67 do Ato de Disposições Constitucionais Transitórias, cujo teor determina que
"A União concluirá a demarcação das terras indígenas no prazo de cinco anos a partir da
promulgação da Constituição".
O que era para ser respeitado se tornou letra morta, pois é quase impossível concluir
demarcações de terras indígenas no Brasil nos moldes previstos na legislação infraconstitucional,
especialmente pelo caráter imperial, parcial e desproporcional do processo administrativo
demarcatório.
3.1.2. PROCESSO ADMINISTRATIVO DEMARCATÓRIO DA TERRA INDÍGENA
MORRO DOS CAVALOS
Doravante, passa-se a demonstrar as invalidades encontradas no processo
demarcatório n. 08620.002359/93-62, que trata da demarcação da "Terra Indígena Morro dos
Cavalos".
3.1.2.1. PRESSUPOSTO DE FATO DA DEMARCAÇÃO DA TERRA INDÍGENA
MORRO DOS CAVALOS É INCOMPATÍVEL COM AS EXIGÊNCIAS DA CONSTITUIÇÃO
FEDERAL E DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
A Constituição Federal estabeleceu o Estatuto da Terra Indígena no Brasil, sendo
delimitado fundamentalmente no art. 231, verbis:
CAPÍTULO VIII
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27. ESTADO DE SANTA CATARINA
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DOS ÍNDIOS
Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças
e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam,
competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.
§ 1º - São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em
caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as
imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bemestar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos,
costumes e tradições.
§ 2º - As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse
permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos
nelas existentes.
§ 3º - O aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais energéticos, a
pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indígenas só podem ser efetivados
com autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas, ficando-lhes
assegurada participação nos resultados da lavra, na forma da lei.
§ 4º - As terras de que trata este artigo são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos
sobre elas, imprescritíveis.
§ 5º - É vedada a remoção dos grupos indígenas de suas terras, salvo, "ad referendum"
do Congresso Nacional, em caso de catástrofe ou epidemia que ponha em risco sua
população, ou no interesse da soberania do País, após deliberação do Congresso
Nacional, garantido, em qualquer hipótese, o retorno imediato logo que cesse o risco.
§ 6º - São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por
objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo, ou a
exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes,
ressalvado relevante interesse público da União, segundo o que dispuser lei
complementar, não gerando a nulidade e a extinção direito a indenização ou a ações
contra a União, salvo, na forma da lei, quanto às benfeitorias derivadas da ocupação de
boa fé.
§ 7º - Não se aplica às terras indígenas o disposto no art. 174, § 3º e § 4º.
Já o Estatuto do Índio (lei federal n. 6.001/1973) estabeleceu três modalidades de terras
indígenas:
Art. 17. Reputam-se terras indígenas:
I - as terras ocupadas ou habitadas pelos silvícolas, a que se referem os artigos 4º, IV,
e 198, da Constituição;
II - as áreas reservadas de que trata o Capítulo III deste Título;
III - as terras de domínio das comunidades indígenas ou de silvícolas.
Desse modo, a aplicação do art. 231 da CF/88 (na CF/67, com a EC/69, tal questão era
regulada pelo art. 198) é uma das modalidades de Terra Indígena e é a que possui conseqüências
mais drásticas aos eventuais não índios ocupantes da região demarcada, pois determina a remoção
dos não índios da área apenas com indenização de eventuais benfeitorias existentes em ocupações
de boa-fé.
Devido a isso é que a análise para a demarcação de uma terra indígena deve ser
criteriosa, a fim de se verificar a presença dos pressupostos constitucionais para aplicação do art.
231 da CF/88. No caso de ausência dos pressupostos constitucionais resta à União estabelecer, nos
termos do art. 26 do Estatuto do Índio, em qualquer parte do território nacional, áreas destinadas à
posse e ocupação pelos índios, onde possam viver e obter meios de subsistência, com direito ao
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usufruto e utilização das riquezas naturais e dos bens nelas existentes, todavia respeitando a
propriedade privada e os direitos dos ocupantes da área eleita, especialmente o dever de indenizar
justa e previamente o titular da propriedade.
Na verdade, como é fato notório, a União, por meio da FUNAI, não direciona recursos
orçamentários suficientes à solução das questões indígenas. Devido a isso, não causa espécie a
utilização pelos profissionais/militantes da causa indígena de argumentação antropológica elástica e
desprovida de cientificidade, especialmente em relação aos estritos requisitos da Constituição
Federal, a fim de garantir a ocupação de terras pelos índios de maneira a não necessitar de
volumosos recursos orçamentários da União, o que, provavelmente, impossibilitaria o
ingresso regular dos indígenas nas terras.
Isso sem contar em todas as questões sub-reptícias que permeiam a causa indígena no
Brasil, especialmente notícias de interesses internacionais relacionadas ao financiamento de
organizações não governamentais, que, por sua vez, aparelhariam ideologicamente órgão de Estado
como a FUNAI.
De toda sorte, a Portaria MJ n. 771/2008 utilizou como pressuposto de fato para
declarar a posse permanente de 1988 ha da Terra Indígena MORRO DOS CAVALOS, em favor
dos grupos indígenas Guarani Mbyá e Guarani Nhandéva, o Relatório Circunstanciado de
Identificação e Delimitação da Terra Indígena Morro dos Cavalos elaborado pelo Grupo Técnico
coordenado pela antropóloga Maria Inês Ladeira.
Ocorre que o Supremo Tribunal Federal julgou em 19.03.2009 a Petição n. 3.388,
cujo objeto versa sobre a validade da demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol.
No Acórdão publicado em 25.09.2009 e republicado em 01.07.2010, o STF, além de
resolver o caso concreto, por entender a “superlativa importância histórico-cultural” das questões
relativas à demarcação de terras indígenas, expressamente consignou que o julgado delimita os
parâmetros de interpretação constitucional quanto à demarcação de Terras Indígenas no Brasil,
inclusive estabelecendo salvaguardas institucionais. Transcreve-se a ementa do julgado:
AÇÃO POPULAR. DEMARCAÇÃO DA TERRA INDÍGENA RAPOSA SERRA DO SOL.
INEXISTÊNCIA DE VÍCIOS NO PROCESSO ADMINISTRATIVO- DEMARCATÓRIO.
OBSERVÂNCIA DOS ARTS. 231 E 232 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL, BEM COMO DA
LEI Nº 6.001/73 E SEUS DECRETOS REGULAMENTARES. CONSTITUCIONALIDADE
E LEGALIDADE DA PORTARIA Nº 534/2005, DO MINISTRO DA JUSTIÇA, ASSIM
COMO DO DECRETO PRESIDENCIAL HOMOLOGATÓRIO. RECONHECIMENTO DA
CONDIÇÃO INDÍGENA DA ÁREA DEMARCADA, EM SUA TOTALIDADE. MODELO
CONTÍNUO DE DEMARCAÇÃO. CONSTITUCIONALIDADE. REVELAÇÃO DO REGIME
CONSTITUCIONAL DE DEMARCAÇÃO DAS TERRAS INDÍGENAS. A CONSTITUIÇÃO
FEDERAL COMO ESTATUTO JURÍDICO DA CAUSA INDÍGENA. A DEMARCAÇÃO
DAS
TERRAS
INDÍGENAS
COMO
CAPÍTULO
AVANÇADO
DO
CONSTITUCIONALISMO FRATERNAL. INCLUSÃO COMUNITÁRIA PELA VIA DA
IDENTIDADE ÉTNICA. VOTO DO RELATOR QUE FAZ AGREGAR AOS
RESPECTIVOS FUNDAMENTOS SALVAGUARDAS INSTITUCIONAIS DITADAS PELA
SUPERLATIVA
IMPORTÂNCIA
HISTÓRICO-CULTURAL
DA
CAUSA.
SALVAGUARDAS AMPLIADAS A PARTIR DE VOTO-VISTA DO MINISTRO MENEZES
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DIREITO E DESLOCADAS PARA A PARTE DISPOSITIVA DA DECISÃO. [...] 4. O
SIGNIFICADO DO SUBSTANTIVO "ÍNDIOS" NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. O
substantivo "índios" é usado pela Constituição Federal de 1988 por um modo
invariavelmente plural, para exprimir a diferenciação dos aborígenes por numerosas
etnias. Propósito constitucional de retratar uma diversidade indígena tanto interétnica
quanto intra-étnica. Índios em processo de aculturação permanecem índios para o fim de
proteção constitucional. Proteção constitucional que não se limita aos silvícolas, estes,
sim, índios ainda em primitivo estádio de habitantes da selva. [...] 8. A DEMARCAÇÃO
COMO COMPETÊNCIA DO PODER EXECUTIVO DA UNIÃO. Somente à União, por atos
situados na esfera de atuação do Poder Executivo, compete instaurar, sequenciar e
concluir formalmente o processo demarcatório das terras indígenas, tanto quanto efetiválo materialmente, nada impedindo que o Presidente da República venha a consultar o
Conselho de Defesa Nacional (inciso III do § 1º do art. 91 da CF), especialmente se as
terras indígenas a demarcar coincidirem com faixa de fronteira. As competências
deferidas ao Congresso Nacional, com efeito concreto ou sem densidade normativa,
exaurem-se nos fazeres a que se referem o inciso XVI do art. 49 e o § 5º do art. 231,
ambos da Constituição Federal. 9. A DEMARCAÇÃO DE TERRAS INDÍGENAS COMO
CAPÍTULO AVANÇADO DO CONSTITUCIONALISMO FRATERNAL. Os arts. 231 e 232
da Constituição Federal são de finalidade nitidamente fraternal ou solidária, própria de
uma quadra constitucional que se volta para a efetivação de um novo tipo de igualdade: a
igualdade civil-moral de minorias, tendo em vista o proto-valor da integração comunitária.
Era constitucional compensatória de desvantagens historicamente acumuladas, a se
viabilizar por mecanismos oficiais de ações afirmativas. No caso, os índios a desfrutar de
um espaço fundiário que lhes assegure meios dignos de subsistência econômica para
mais eficazmente poderem preservar sua identidade somática, linguística e cultural.
Processo de uma aculturação que não se dilui no convívio com os não-índios, pois a
aculturação de que trata a Constituição não é perda de identidade étnica, mas somatório
de mundividências. Uma soma, e não uma subtração. Ganho, e não perda. Relações
interétnicas de mútuo proveito, a caracterizar ganhos culturais incessantemente
cumulativos. Concretização constitucional do valor da inclusão comunitária pela via da
identidade étnica. 10. O FALSO ANTAGONISMO ENTRE A QUESTÃO INDÍGENA E O
DESENVOLVIMENTO. Ao Poder Público de todas as dimensões federativas o que
incumbe não é subestimar, e muito menos hostilizar comunidades indígenas brasileiras,
mas tirar proveito delas para diversificar o potencial econômico-cultural dos seus
territórios (dos entes federativos). O desenvolvimento que se fizer sem ou contra os
índios, ali onde eles se encontrarem instalados por modo tradicional, à data da
Constituição de 1988, desrespeita o objetivo fundamental do inciso II do art. 3º da
Constituição Federal, assecuratório de um tipo de "desenvolvimento nacional" tão
ecologicamente equilibrado quanto humanizado e culturalmente diversificado, de modo a
incorporar a realidade indígena. 11. O CONTEÚDO POSITIVO DO ATO DE
DEMARCAÇÃO DAS TERRAS INDÍGENAS. 11.1. O marco temporal de ocupação. A
Constituição Federal trabalhou com data certa -- a data da promulgação dela
própria (5 de outubro de 1988) -- como insubstituível referencial para o dado da
ocupação de um determinado espaço geográfico por essa ou aquela etnia
aborígene; ou seja, para o reconhecimento, aos índios, dos direitos originários
sobre as terras que tradicionalmente ocupam. 11.2. O marco da tradicionalidade da
ocupação. É preciso que esse estar coletivamente situado em certo espaço
fundiário também ostente o caráter da perdurabilidade, no sentido anímico e
psíquico de continuidade etnográfica. A tradicionalidade da posse nativa, no
entanto, não se perde onde, ao tempo da promulgação da Lei Maior de 1988, a
reocupação apenas não ocorreu por efeito de renitente esbulho por parte de nãoíndios. Caso das "fazendas" situadas na Terra Indígena Raposa Serra do Sol, cuja
ocupação não arrefeceu nos índios sua capacidade de resistência e de afirmação
da sua peculiar presença em todo o complexo geográfico da "Raposa Serra do
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Sol". 11.3. O marco da concreta abrangência fundiária e da finalidade prática da
ocupação tradicional. Áreas indígenas são demarcadas para servir concretamente de
habitação permanente dos índios de uma determinada etnia, de par com as terras
utilizadas para suas atividades produtivas, mais as "imprescindíveis à preservação dos
recursos ambientais necessários a seu bem-estar" e ainda aquelas que se revelarem
"necessárias à reprodução física e cultural" de cada qual das comunidades étnicoindígenas, "segundo seus usos, costumes e tradições" (usos, costumes e tradições deles,
indígenas, e não usos, costumes e tradições dos não-índios). Terra indígena, no
imaginário coletivo aborígine, não é um simples objeto de direito, mas ganha a dimensão
de verdadeiro ente ou ser que resume em si toda ancestralidade, toda coetaneidade e
toda posteridade de uma etnia. Donde a proibição constitucional de se remover os índios
das terras por eles tradicionalmente ocupadas, assim como o reconhecimento do direito a
uma posse permanente e usufruto exclusivo, de parelha com a regra de que todas essas
terras "são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis" (§ 4º do
art. 231 da Constituição Federal). O que termina por fazer desse tipo tradicional de posse
um heterodoxo instituto de Direito Constitucional, e não uma ortodoxa figura de Direito
Civil. Donde a clara intelecção de que OS ARTIGOS 231 E 232 DA CONSTITUIÇÃO
FEDERAL CONSTITUEM UM COMPLETO ESTATUTO JURÍDICO DA CAUSA
INDÍGENA. 11.4. O marco do conceito fundiariamente extensivo do chamado "princípio
da proporcionalidade". A Constituição de 1988 faz dos usos, costumes e tradições
indígenas o engate lógico para a compreensão, entre outras, das semânticas da posse,
da permanência, da habitação, da produção econômica e da reprodução física e cultural
das etnias nativas. O próprio conceito do chamado "princípio da proporcionalidade",
quando aplicado ao tema da demarcação das terras indígenas, ganha um conteúdo
peculiarmente extensivo. 12. DIREITOS "ORIGINÁRIOS". Os direitos dos índios sobre as
terras que tradicionalmente ocupam foram constitucionalmente "reconhecidos", e não
simplesmente outorgados, com o que o ato de demarcação se orna de natureza
declaratória, e não propriamente constitutiva. Ato declaratório de uma situação jurídica
ativa preexistente. Essa a razão de a Carta Magna havê-los chamado de "originários", a
traduzir um direito mais antigo do que qualquer outro, de maneira a preponderar sobre
pretensos direitos adquiridos, mesmo os materializados em escrituras públicas ou títulos
de legitimação de posse em favor de não-índios. Atos, estes, que a própria Constituição
declarou como "nulos e extintos" (§ 6º do art. 231 da CF). [...] 14. A CONCILIAÇÃO
ENTRE TERRAS INDÍGENAS E A VISITA DE NÃO-ÍNDIOS, TANTO QUANTO COM A
ABERTURA DE VIAS DE COMUNICAÇÃO E A MONTAGEM DE BASES FÍSICAS PARA
A PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS PÚBLICOS OU DE RELEVÂNCIA PÚBLICA. A
exclusividade de usufruto das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nas terras indígenas
é conciliável com a eventual presença de não-índios, bem assim com a instalação de
equipamentos públicos, a abertura de estradas e outras vias de comunicação, a
montagem ou construção de bases físicas para a prestação de serviços públicos ou de
relevância pública, desde que tudo se processe sob a liderança institucional da União,
controle do Ministério Público e atuação coadjuvante de entidades tanto da Administração
Federal quanto representativas dos próprios indígenas. O que já impede os próprios
índios e suas comunidades, por exemplo, de interditar ou bloquear estradas, cobrar
pedágio pelo uso delas e inibir o regular funcionamento das repartições públicas. 15. A
RELAÇÃO DE PERTINÊNCIA ENTRE TERRAS INDÍGENAS E MEIO AMBIENTE. Há
perfeita compatibilidade entre meio ambiente e terras indígenas, ainda que estas
envolvam áreas de "conservação" e "preservação" ambiental. Essa compatibilidade é que
autoriza a dupla afetação, sob a administração do competente órgão de defesa ambiental.
16. A DEMARCAÇÃO NECESSARIAMENTE ENDÓGENA OU INTRAÉTNICA. Cada
etnia autóctone tem para si, com exclusividade, uma porção de terra compatível com sua
peculiar forma de organização social. Daí o modelo contínuo de demarcação, que é
monoétnico, excluindo-se os intervalados espaços fundiários entre uma etnia e outra.
Modelo intraétnico que subsiste mesmo nos casos de etnias lindeiras, salvo se as
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