1) José Abílio Ferreira nasceu em São José do Rio Preto em 1960 e é jornalista e participou do movimento negro na década de 1980 promovendo a literatura negra;
2) Publicou suas obras nos Cadernos Negros ressaltando a importância da afirmação da identidade negra e da formação do leitor afro-brasileiro;
3) Seu romance Antes do Carnaval retrata as experiências de jovens negros na cidade de São Paulo durante a década de 1980.
1. Abílio Ferreira (José Abílio Ferreira)
Dados biográficos
José Abílio Ferreira nasceu em São José do Rio Preto-SP, em 09 de
outubro de 1960. É jornalista e participou da arregimentação político-cultural
levada a cabo pelo movimento negro na década de 80. Foi integrante dos
encontros de escritores negros promovidos pelo Quilombhoje e outros grupos
envolvidos com afirmação da literatura negra em nosso país, bem como das
publicações resultantes desses encontros. Em sua auto-apresentação no volume
7 de Cadernos Negros, lembra o “processo de embranquecimento sofrido na
infância”, para destacar a relevância do trabalho de “afirmação da identidade da
negritude”, acrescentando que “escrever poesia é colocar, mesmo que não se
perceba, as contradições existentes na nossa mais profunda intimidade”.(1984, p.
10).
Já em depoimento no número seguinte da série, ressalta a preocupação
com a formação do leitor afro-brasileiro: “no plano da comunidade, [Cadernos
Negros] trata de refletir o leitor, que não se enxerga na maior parte da produção
do grande mercado, discutindo o sentimento que a nossa sociedade nega e
mantém submerso”.(C.N.8, p. 10).
Referências Bibliográficas
Cadernos negros 7. (org. Quilombhoje). São Paulo: Ed. dos Autores, 1984.
Cadernos negros 8. (org. Quilombhoje). São Paulo: Ed. dos Autores, 1985.
Comentário Crítico
Memória e experiência na produção literária de Abílio Ferreira
Giovanna Soalheiro Pinheiroi
Mas, a quem não fará sonhar a rua? A sua influência é
fatal na palheta dos pintores, na alma dos poetas, no cérebro
das multidões. Quem criou o reclamo? A rua! Quem
inventou a caricatura? A rua! Onde a expansão de todos os
2. sentimentos da cidade? Na rua!
A alma encantadora das ruas
No carnaval, esperança
Que gente longe
viva na lembrança
Que gente triste
possa entrar na dança.
Que gente grande
saiba ser criança
“Sonho de um Carnaval”
Compreender a escritura de Abílio Ferreira é penetrar em uma obra
inegavelmente afro-brasileira que, não raro, está repleta de magia e mistério pela
densidade alegórica que a construção literária carrega em si. Na realidade é uma
escritura da experiência, mais precisamente da experiência observada, e de certa
maneira, vivenciada pelo sujeito empírico do autor. “Onde há experiência no
sentido estrito do termo, entram em conjunção, na memória, certos conteúdos do
passado individual com outros do passado coletivo” (Walter Benjamin, obras
escolhidas III, p. 107.) Tal proposição de Benjamin esclarece, em grande medida,
a construção novelística do escritor negro aqui analisado, tendo em vista o
conjunto de sua obra que, em menor ou maior grau, arquiteta-se pelos sublimes
caminhos da memória. Além disso, a verve artística de Ferreira oscila entre o seu
ofício de jornalista, ao denunciar, com profunda racionalidade e de forma concisa,
as mazelas e vícios da nossa sociedade, mas ao mesmo tempo reverbera o
lirismo de um flâneur, mostrando-se um sensível apaixonado pelas “multidões”.
O escritor é um dos integrantes do grupo Quilombhoje, tendo publicado os
seus contos e poesias nos Cadernos Negros, série de inegável importância para a
expressão de uma literatura que se distingue dos parâmetros estéticos
apregoados pelo Cânone Ocidental, uma vez que põe em evidência os conflitos
étnicos e sociais que permeiam a vida do negro brasileiro. No ano de 1989, é
publicada a sua antologia de contos e poesia, Fogo do olhar, pela Mazza Edições,
e em 1995 a novela de formação Antes do carnaval, pela Editora Selinunte. Antes
de partirmos para um breve estudo da composição literária de Ferreira, é
imprescindível ressaltar que a sua escrita propala, antes de tudo, o isolamento e a
solidão do sujeito moderno, referindo-se ao desespero e à miséria balizada na
pele da gente negra. Nesse sentido, torna-se manifesta a menção à literatura de
Lima Barreto e João do Rio, especialmente no que tange à densidade para
observar “os anônimos heróis” e o mundo povoado pela desventura da exclusão
social e pelo preconceito. Tais escritores depositaram nas malhas das letras todo
um conjunto de pensamentos antagônicos em torno da realidade nacional, posto
que, por meio de suas experiências, desenharam um painel vivo e, ao mesmo
tempo trágico, dos fundamentos éticos e sociais responsáveis pela formação
histórica da Nação Brasileira.
3. O narrador das cidades e das “multidões”: o flâneur
Um dos temas de destaque presente na escritura de Abílio Ferreira, que
marca as narrativas tidas como modernas e pós-modernas, é o olhar diferenciado
sobre os espaços urbanos e sobre os indivíduos que neles habitam. Trata-se de
um modelo específico de narrador, o qual faz das ruas a sua própria moradia,
desenhando-a com os seus vícios, mazelas e encantos; observando os seus
detalhes íntimos e todo o contorno das avenidas e dos viadutos. Tal observador é
o flâneur, ou ainda, “O homem das multidões”, tendo este, como finalidade maior,
captar as marcas profundas presentes no corpo da cidade. (In Walter Benjamin,
OE. III. Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo, p 45).
O narrador da novela Antes do carnaval pinta as ruas com a expressividade
das palavras, fazendo-as singulares, à medida que põe as imagens no próprio
tecido narrativo:
Às cinco horas da tarde, o Viaduto do chá, ponte de ligação
entre o centro velho e o centro novo da cidade, começava a
ficar cheio de negros. Rodinhas se formavam nas esquinas da
direita com a São Bento e da Barão de Itapetininga com a
Conselheiro Crispiniano. Era o momento do rush – um corre-
corre em busca de condução para casa, uma massa de ar
cinzenta escondendo o pico dos edifícios, descendo sobre as
arvorezinhas das praças, pairando sobre as cabeças,
envolvendo as multidões apressadas. O trânsito parado,
buzinas ensurdecedoras sobrepondo-se aos outros ruídos da
cidade; de dentro dos aranha-céus, elevadores despejando
gente nas ruas, num vômito incontido. (Antes do carnaval,
p.84)
No fragmento acima, bem como em parte considerável da narrativa,
observa-se a cidade e seu conjunto de elementos como uma das personagens da
novela. Os bailes no Viaduto do Chá e as luzes dos edifícios; o movimento das
danças; as praças, e os “rapazes com os black powers redondos e brilhantes
apontados para o sol” (AC. P.85) são, a bem dizer, símbolos que representam o
entusiasmo e a união “daquela gente” que tinha, nas ruas, o seu principal ponto de
encontro. Abílio, em Antes do carnaval, soube apreender a essência da “alma
encantadora das ruasii” e traduzir os sons, as imagens e as tradições negras que
fazem da praça uma “Encruzilhada de Néon”.
A cidade deve evidentemente ser tomada como um conjunto arquitetônico
universal, mas em se tratando de uma obra que agrega as concepções de cultura
afro-brasileira, não é possível deixar de mencionar os espaços que, em sua
grande maioria, são habitados pela gente negra. Nesse sentido, as praças, os
viadutos, e até mesmo o mar, tornam-se símbolos da coletividade negra, ao se
constituírem como linhas de forças das identidades dispersas.
4. Antes do carnaval: um novo bildungsroman da identidade afro-brasileira
Assim como Conceição Evaristo, em seu bildungsroman afro-brasileiro
Ponciá Vicêncio, Abílio, do mesmo modo, percorreu os caminhos do Romance de
formação.Trata-se, na realidade, de uma sucinta novela, porém de expressiva
densidade narrativa, na medida em que incorpora as experiências de duas
personagens, as quais terão suas vidas entrelaçadas pelo destino, à consciência
crítica sobre o que é SER NEGRO. A escritura que se apresenta em Antes do
carnaval é múltipla, digressiva e coesa, pois é a montagem da narrativa,
construída ao fim e ao cabo pelo leitor, que formará o sentido do texto. A trama é
dividida em três partes: a primeira relacionada ao mundo de Clara, uma das
protagonistas da novela; a segunda pautada nas vivências de Marcelo, este
também essencial para a constituição do enredo; e a última refere-se à posição e
às ponderações, repletas de lirismo, feitas pelo narrador em torno do espaço que
norteia a grande cidade de São Paulo.
Clara e Marcelo são seres marcados por um destino comum, ou seja, desde
a infância, precisam afrontar as desventuras impostas pela sociedade que se
deseja puramente branca, no sentido mais amplo do termo. É o universo de Clara,
uma menina negra, que inicialmente é descrito pelo narrador: desde a
adolescência, assinalada pelos conflitos e pela exclusão que permeiam a sua
família, até o seu envolvimento com pessoas que não faziam parte do seu
contexto sócio-econômico e cultural. À medida que os anos passaram, a menina
transformou-se em uma jovem consciente dos conflitos e das tradições inerentes
ao seu mundo. Em muitos momentos na narrativa é possível perceber, ainda que
de forma simplesmente alusiva, as reminiscências de um passado que se pereniza
nas sublimes vozes negras, presentificadas na história, na literatura e na música:
A porta do apartamento estava entreaberta. Lá de dentro fluía
um som – Billie Holliday cantava uma música que
estranhamente não despertou nela um sentimento novo. Ao
contrário, era um sentimento antigo, longínquo, vivido em
algum momento que ela não lembrava.
Clara parou diante da mesa de som revestida de aço
inoxidável, com luzes coloridas piscando. O fato de a porta
estar aberta, a sala vazia e o aparelho de som ligado não lhe
chamou a atenção. Ela estava envolvida apenas por uma
preocupação: no meio daquele cheiro de novo que emanava
do carpete, dos estofados, dos quadros, destacava-se aquela
música pungente. Havia ali, sem dúvida, dois corpos
estranhos – Clara e a música. Mas por quê? (Antes do
carnaval, p. 62).
A música é a evocação de um tempo outro, não essencialmente do
experimentado pela personagem Clara, mas de um tempo/espaço eterno,
arraigado na memória afro-descendente. O jazz imortal de Billie Holiday remete
não somente à ancestralidade africana e à história da escravidão, mas, sobretudo,
5. às relembranças de um passado miserável de exploração, intrínseco também à
própria vida da cantora. Nesse sentido, a música torna-se, ao mesmo tempo, um
instrumento de tomada de consciência – posto que possibilita o bradar das vozes
em relação aos conflitos étnicos e sociais – e um nobre componente da memória
cultural desses povos. Não é sem motivo que o escritor negro Du Bois, no capítulo
final de As almas da gente negra, constrói um belo ensaio sobre as Sorrow Songs,
isto é, as Canções da Dor que evidenciam a vida de angústia e o sofrimento dos
negros norte-americanos.
Quando Clara se depara com o som tocado, o narrador tece o seguinte
comentário a respeito das impressões que a música lhe havia deixado: “era um
sentimento antigo, longínquo, vivido em algum momento que ela não lembrava”. A
música parece ter desencadeado em Clara uma memória involuntária, (Walter
Benjamin, OE. III), que a fez reconhecer-se na letra da canção. A existência da
personagem, assim como a de Marcelo, está indelevelmente vinculada à
lembrança da escravidão, não vivenciada por eles, mas presente, de uma outra
maneira, nos conflitos que norteiam a sociedade atual.
O menino Marcelo, também negro, vivenciou fortes momentos de amargura
e solidão: foi abandonado pela mãe e adotado por uma senhora, Dona
Alexandrina, que não pôde lutar contra os infortúnios que, inevitavelmente,
atormentariam a existência de tal personagem. Percebeu que, da mesma forma
que ela, o filho teria um destino comum aos de muitos do seu bairro: não faria
faculdade, não passaria do primeiro grau, viveria solitário, por algum tempo, pelos
caminhos tortuosos da existência:
Enquanto esteve doente, sabendo que não duraria muito,
Dona Alexandrina sofreu só de pensar em como Marcelo
viveria sem ela. Porque ela conhecia muito bem a história dos
rapazes muito jovens que trabalhavam como cavalos, com
remuneração baixíssima, cansados, mal alimentados demais
para aproveitar os estudo e desistindo por falta de dinheiro ou
por problemas de saúde na família. E, mesmo quando
conseguiam terminar o segundo grau, não suportavam pagar
um curso pré-vestibular e muito menos um curso superior,
quando conseguiam entrar na faculdade. (Antes do Carnaval,
p. 72).
Na realidade, as experiências de Marcelo contribuíram positivamente para
que ele modificasse a vida, não apenas pré-desenhada por sua mãe, mas também
resultado dos antagonismos sócio-econômicos inerentes à realidade brasileira. No
começo de sua formação chegou a negar, por influência dos amigos de escola, a
sua própria identidade, uma vez que retirou todo o cabelo crespo e passou a crer
que, a partir daquele momento, a sua vida teria outros contornos. Marcelo, do
mesmo modo que Clara, teve a sua consciência moldada pela música que, aliás, é
motivo recorrente na novela. “O tempo do soul marcou época”, afirma o narrador,
6. e é por meio dele que teremos acesso ao verdadeiro universo cultural do
personagem:
Toda semana em cada quarteirão de cada bairro da periferia,
surgia uma nova equipe de música mecânica, imitando as
grandes equipes que faziam os bailes de soul do centro da
cidade. (Antes do carnaval, p. 93).
Marcelo e Clara foram impulsionados pelos ritmos da memória, foram
levados ao mar involuntariamente para que pudessem ligar-se pelos fragmentos
de suas recordações e experiências. Ao final da narrativa é descrito, de forma
quase transcendental, o encontro “estranho” das duas personagens no mar, sendo
este, na escritura de Ferreira, o fio que conduz a herança, além de permitir uma
profunda viagem às reminiscências do passado.
O Bildungsroman enquanto gênero específico
A novela Antes do carnaval pode ser apreendida como uma narrativa
literária de caráter fortemente exemplar, pois sua estrutura encontra ressonância
nas tradições da memória e da formação, cujo narrador exerce, o que chamo, de
uma onisciência solidária: não há uma participação, em primeira pessoa, deste no
texto, mas há um denso olhar solidário a uma existência coletiva e cenas
observadas. Antes do carnaval está centrado nos anos de formação e
aprendizado de dois jovens negros, tendo em vista uma sucessiva aproximação
das tradições culturais afro-brasileiras. Lukács, em A Teoria do Romance expõe
sua concepção sobre o Romance de Formação, que em alguns pontos aproxima-
se da composição literária de Abílio Ferreira:
A humanidade, como escopo fundamental desse tipo de
configuração, requer um equilíbrio entre atividade e contemplação,
entre vontade de intervir no mundo e capacidade receptiva em
relação a ele. Chamou-se essa forma de romance de educação. Com
acerto, pois sua ação tem de ser um processo consciente,
conduzindo e direcionado por um determinado objetivo: o
desenvolvimento de qualidades humanas que jamais florescem sem
uma tal intervenção ativa dos homens e felizes acasos; pois o que
se alcança desse modo é algo por si próprio edificante e encorajador
aos demais, por si só próprio um meio de educação. A ação definida
por esse objetivo tem algo da tranqüilidade da segurança. Mas não
se trata da tranqüilidade apriorística de um mundo rematado; é a
vontade de formação. (Lukács, 2000, p. 141).
Após a leitura dessa narrativa, permanece uma indagação inevitável: trata-
se de um clássico bildungsroman europeu, nos quais os desfechos são quase
sempre plenos de beleza e felicidade? Na realidade não é possível definir o futuro
das personagens, uma vez que, a meu ver, o texto de Ferreira permanece como
uma esfinge a ser decifrado por nós, leitores. Há, sem a menor dúvida, ao final da
7. narrativa, uma consciência crítica formada pelas experiências vividas, mas ao
mesmo tempo percebe-se, de forma indireta, uma existência mutilada pela
memória histórica das catástrofes vivenciadas pela população escrava no Brasil. O
olhar do narrador desenha um jogo dialético entre passado/presente e
presente/futuro, pois, ao retratar a forma de escravidão atual – a doença profunda
e pungente da desigualdade social – confirma um processo que deverá ser
combatido, ato contínuo. Nota-se, dessa maneira, que a formação destoa de um
gênero universalizante, já que a promessa de felicidade vindoura depende
igualmente de uma análise perspicaz em torno dos conflitos que estão no cerne da
sociedade brasileira e de um olhar culturalmente diferenciado. Assim como o
romance de Conceição Evaristo, Antes do carnaval tem como desígnio maior não
somente idealizar a formação inerente à própria tradição dos povos de origem
africana, mas especialmente desmistificar uma democracia racial historicamente
construída. Seguindo a concepção de Florentina da Silva e Souza, nessa
escritura, nomeadamente afro-brasileira, há um grande desejo por parte do
narrador de agir sobre a vida do leitor, de maneira a conscientizá-lo em relação à
vida política e sócio-cultural. A idéia contida no bildungsroman afro-brasileiro
passa pela educação/formação, mas sem deixar de enfatizar as reminiscências da
diáspora negra.
Por meio do que foi exposto acima, não é difícil notar que a existência
coletiva é o ponto referencial, a partir do qual o leitor pode situar-se e interferir no
assunto narrado, contribuindo na apreensão do significado do texto. Nesse
sentido, a literatura produzida por escritores afro-brasileiros passa a ter uma
missão muita bem delineada: a de edificar mundos, não apenas verossímeis, mas
motivado pelas experiências centradas na barbárie cometida contra os negros e
que, ainda hoje, deixa profundas marcas na civilização brasileira.
A alegoria: O carnaval
O carnaval, já apresentado no título da novela, não é um simples
ornamento literário, mas é, sobretudo, uma alegoria para os possíveis encontros e
desencontros no destino da gente negra. Roberto DaMatta, em Carnavais,
malandros e heróis, faz um esboço contundente das relações sociais que se
estabelecem e que se dissolvem durante tais festividades no Brasil. Na concepção
do autor, essas comemorações são marcadas pelo relacionamento entre os
homens e Deus, possuindo, por essa razão, um sentido mais universal e
transcendente. Sendo assim, trata-se de um período de intensa renovação, no
qual vida e morte tentam se equilibrar nas cordas vacilantes do destino. Em Antes
do carnaval é necessário compreender que tudo tem início exatamente com o
“Banho da Dorotéia”: segundo o narrador, trata-se de uma festa misteriosa, já que
a maior parte das pessoas não sabia quem era Dorotéia ou a real acepção desse
ritual. O Banho era visto como uma prefiguração do carnaval – acontecia uma
semana antes dele – sendo que o seu sentido maior era o mergulho coletivo no
mar. Tal banho, a meu ver, é o fio condutor do destino de Clara e Marcelo, já que
é, por meio dele, que o primeiro encontro ocorrerá entre as duas personagens. O
caráter enigmático da narrativa nos faz apenas sugerir um sentido, mas devemos
8. caminhar pela própria ordem das coisas. As águas do mar refletem, com toda a
sua simbologia, ao começo de tudo, ao batismo e, por que não, ao renascimento
da vida. Observa-se, por meio da leitura da novela, que é nessas águas que
teremos a efetivação do processo de formação e a gênese de uma legítima
consciência étnica.
O mar
O poder mais admirável que envolve a narrativa carnavalesca iii de Abílio é a
emergência desse símbolo – O MAR – ao mesmo tempo profano e sagrado,
permitindo a purificação do corpo e do espírito e, especialmente, fazendo insurgir
crenças, valores e as mais profundas raízes ancestrais. O narrador da novela
estabelece quase que um ritual ascético, ao personificá-lo por seu alento coletivo:
No verão, em certos fins de semana, muita gente era expulsa
pela cidade em direção ao mar. Ele, sim, era mais sincero:
nunca escondera o seu fascínio e o seu perigo. Seus
humores, seu temperamento impulsivo, tudo nele era
verdadeiro e simples. A superfície refletia o interior, de modo
que ninguém se atrevia a desafiá-lo quando se mostrava irado.
E ele próprio tinha o habito de avisar a todos a sua disposição
em receber visitas. Nessas ocasiões, mostrava-se dócil,
oferecendo a todos os que o amavam o seu abraço solidário e
reconfortante. (Antes do carnaval, p. 100).
O mar é fundamental em relação ao entendimento da escritura do autor aqui
estudado, a bem dizer no que tange à sua construção poética. Tal símbolo e
quase que um leitmotiv da obra de Ferreira e expressa a dinâmica da existência; a
imagem da vida e da morte; a ambivalência entre o ser e o não ser. Como fica
manifesto no fragmento acima, é a partir dele, e ao mesmo tempo do encontro de
Clara e Marcelo nesse mesmo ambiente, que as transformações começam a se
processar.
Em um outro sentido – tomando como referência a história coletiva – o mar
possui ainda uma função mais figurativa, referindo-se à viagem percorrida pelo
Atlântico Negro, e especialmente, reverberando as vozes memoriais que
perenizam, nas profundezas dessas águas, a dor, a humilhação e, do mesmo
modo, a tradição e a riqueza ancestral dos negros no Brasil.
A escritura de Abílio mostra, antes de tudo, a sensibilidade de um prosador
poeta, este sempre presente naquele. Além de sua singular obra poética, não raro,
encontramos em seus contos e novelas, folhas preenchidas com algumas doses
lirismo. A consciência étnica, por sua vez, não se faz presente em forma de um
grito aberto, mas por meio de conflitos sócio-culturais que estão do cerne de suas
páginas escritas. O autor soube unir, à sua condição de sujeito negro, a memória
coletiva da essência africana e, ao mesmo tempo, soube registrar a formação
nítida de uma identidade afro-brasileira.
10. i
Graduanda em Letras pela UFMG
ii
O título em itálico refere-se a uma das produções literárias do escritor João do Rio, que magistralmente soube
registrar, com seu olhar de flâneur, as multidões jogadas à deriva e, ainda, o espaço urbanizado das grandes
cidades. Nesse aspecto, a composição de Abílio Ferreira assemelha-se às crônicas e contos do autor de A
alma encantadora das ruas.
iii
O termo “carnavalesco” não se refere ao tipo de Literatura carnavalizada, e sim à simbologia das
comemorações festivas em torno de tal evento. Tomo Bakhtin como referência, uma vez que em sua obra há,
antes de tudo, a descrição do processo do Carnaval, o qual dá origem à Carnavalização da Literatura. Percebe-
se, portanto, que a construção de Abílio retoma alegoricamente alguns elementos do carnaval, mas sem
provocar o riso destronante inerente à carnavalização.
Referência Bibliográfica:
BAKHTHIN, Mikhail. Problemas de poética de Dostoiévski. Rio de Janeiro, Forense, 1981.
BENJAMIN, Walter. Charles Baudelaire um lírico no auge do capitalismo. Trad. José Carlos
Martins Barbosa. São Paulo: Brasiliense, 1989.
DAMATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heróis. Rio de Janeiro: Zahar, 1981.
DU BOIS, W. E. B. As almas da gente negra. Rio de Janeiro: Lacerda Editores, 1999.
EVARISTO, Conceição. Ponciá Vicêncio. Belo Horizonte: Editora Mazza, 2005.
FERREIRA, Abílio. Antes do Carnaval. São Paulo: Editora Selinunte, 1995.
HOLLANDA, Chico Buarque de. “Sonho De Um Carnaval” . Chico Buarque de Hollanda
[Compositor]. In: ─ Chico Buarque de Hollanda: os primeiros anos. São Paulo, Som Livre.
2006
LUKÁCS, Georg. A teoria do romance. São Paulo: Editora 34, 2000.
SELIGMAN-SILVA, Márcio (Org.), História, Memória, Literatura. O Testemunho na Era das
Catástrofes: Campinas: Editora Unicamp, 2003.
SOUZA, FLORENTINA DA SILVA. Afro-descendência em cadernos negros e jornal do MNU
[Movimento Negro Unificado]. Belo Horizonte: Autêntica, 2005.
Considerações sobre as canções do tempo* na poética de Abílio Ferreira
Giovanna Soalheiro Pinheiro**
Não, nenhum cárcere detém o crepúsculo ou impede
A marcha sangrenta das horas.
Márcio Barbosa
Oh, água, voz do meu coração, chorando na areia
11. Derramando, durante toda a noite, um pranto tão triste,
Deitado, a escutar, não compreendo
A voz do meu coração ou a voz no peito do mar,
Oh água, que implora o descanso, serei eu, serei eu?
Durante toda a noite escuto a água a chorar.
Arthur Symons***
“Aqueles que antigamente caminhavam nas trevas cantavam canções – Sorrow songs
–, pois sentiam-se exaustos em seus corações. E assim, diante de cada pensamento que
escrevi neste livro, coloquei uma frase musical, a presença de um eco dessas singulares
canções antigas nas quais a alma do escravo negro falava aos homens.” (As almas da gente
negra, p. 298). Tais palavras do escritor afro-americano Du Bois são essenciais no que tange
à compreensão da poética de Abílio Ferreira, uma vez que esta é, antes de tudo, a canção
memorial que emerge da alma eterna do povo negro. Seus poemas soam, em alto grau,
como “canções da dor” e da alegria, na medida em que põem na escritura poética o tempo
resgatado pela reminiscência da escravidão e, da mesma forma, a aspiração infinita de
reavivar os laços culturais formadores da identidade africana no Brasil.
Falemos do tempo inerente a tal escritura, já que ele representa, especialmente na
produção de Ferreira, uma excursão à lúdica infância e, igualmente, um retorno à Mãe África,
a fim de resgatar uma tradição renegada pela história, como já foi pontuado acima. É bem
verdade que o tempo da memória é eterno, sendo ele a única maneira de perenizar as
vivências humanas. Devido a isso, para apreender a poesia do autor é necessário ter em
mente não apenas a mundividência pautada nas experiências de vida do povo negro, o que
fica em alto grau evidente na construção de sua prosa, mas é preciso também fazer um
movimento que vai do mundo exterior para o interior, tendo em vista o caráter peculiar de sua
expressão poética. Em meio ao lirismo que povoa a poética de Abílio, há um mergulho
profundo nas vozes daqueles que ainda fazem ecoar hoje um “grito velado”, repleto de dor
soluçante, sentimento de revolta e vontade de reconhecimento.
Neste conciso texto, serão analisados alguns poemas presentes na antologia de
contos e poesia Fogo do olhar. Mas antes disso, não podemos deixar de mencionar que, na
obra de Ferreira, a referência ao social se faz presente em forma de uma “reflexão lírica”,
como nos descreve o texto de Adorno “Palestra sobre lírica e sociedade”, em Notas de
Literatura I. Em tal texto, é possível notar uma afinidade profunda entre a forma e sua
percepção do mundo social. Para o pensador alemão as “composições líricas não são
abusivamente tomadas como objetos de teses sociológicas, mas sim quando sua referência
ao social revela nelas próprias algo de essencial, algo do fundamento de sua qualidade”
(Adorno, p.66, 2003). Portanto, na medida em que o sujeito empírico de Ferreira, de certa
maneira, se apresenta na escritura, há a revelação de uma verdade essencial intrínseca às
experiências coletivas do Atlântico negro****. Neste sentido, é possível notar um diálogo com
as produções de Cruz e Souza e Oswaldo de Camargo que, da mesma forma que o autor
aqui estudado, depositaram na poesia símbolos agudos de suas dores íntimas. Um belo
exemplo é o poema “tambores”, que nos permite mergulhar no rio do tempo e perceber a dor
cruel daqueles que vivenciam o isolamento:
Canto
Rufam os tambores
12. E a índole fundida em mim
Comove e move as imagens que já vi
Os odores são assim – invisíveis
Mas pregados no ar
a ameaçar
as pedras
do mesmo modo vivem as cores
que em silêncio
vão marcando uma presença nobre
nos espaços pobres que há (...)
(“Tambores”, p.11).
Não é difícil perceber que os sons emitidos pelos ritmos dos tambores estão na
essência dessa composição, sendo um dos motivos que permeia a obra poética de Abílio. A
bem dizer, são as melodias da própria memória coletiva do povo negro. O tambor é um
elemento intimamente ligado à musicalidade e à tradição cultural africana. Tocá-lo,
conseqüentemente, é fazer um resgate das imagens ancestrais, como fica expresso nos
versos acima, e trazê-las para o presente. Não podemos deixar de fazer referência aos
recursos estéticos utilizados pelo autor na construção de sua poesia. Alguns exemplos muito
evidentes de musicalidade são o emprego das aliterações nasais em M e N, recursos que
podem ser notados em toda configuração da poética negra aqui mencionada.
Outro belo exemplo é “lembrança da dança” que, além da referida musicalidade, nos
remete aos corpos negros chibatados pelos senhores de escravos e à tradição cultural da
dança africana:
E pensar que nossos gestos
Derramamento de braços
Corredeira de olhares
Ondulações corporais enfim
Eram nada mais que manifestação gritada
E pensar que nem pensávamos no feio das coisas
Porém tínhamos as veias já saltadas
Dilatadas pelos sons universais da euforia
E vagar pelas quebradas espontaneamente históricas
Essas bocas temporais que deglutiram nossos medos
Entre os dedos como líquido viscoso e quente
O tempo foi escapando em doses fluídas e fecundas
Canções encontros rastros descobertos
Atrás de nós alguns amores sólidos
Outros mortos
Outros simplesmente adormecidos
Todos espalhados no caminho afunilado que -
Fincado no tempo -
Nos golpeia a mente qual um espetáculo de dança
(“lembrança da dança”, p. 36).
13. A música, novamente, se faz presente no poema, mas pelo natural acalento da dança.
O sujeito poético nos permite viajar à África e, de certa maneira, vivenciar um outro tempo
em que não existiam diferenças; em que a harmonia dos corpos reverenciava o poder dos
orixás e fazia com que o povo negro transcendesse no tempo, cultivando suas raízes. Outro
sentido aceitável é o balanço dos corpos, açoitados pela tragédia da escravidão africana no
Brasil. Não se trata apenas do castigo físico, mas, sobretudo, do “açoite moral” pelo qual
foram submetidos os negros em nosso país. A música e a dança são símbolos
representantes da própria memória cultural resguardada pelas vozes poéticas que,
terminantemente, ecoam um grito de horror, em muitos momentos peculiar às próprias
marcas do corpo.
A poesia de Abílio Ferreira é repleta de imagens do passado, sendo elas apreendidas,
muitas vezes, pelos sons fluidos da música e por outros elementos da tradição ancestral.
Deixo, por fim, alguns versos de “Estória no telespelho”, nos quais a consciência bipartida e
os sonhos da infância parecem gritar e reconstruir uma identidade que, ao longo dos séculos,
foi refutada por uma suposta democracia racial. Nele, outra vez, temos presente o símbolo
do espelho – recorrente em uma parte considerável da poética afro-brasileira – construindo a
imagem ou o reflexo da voz poética que tenta, fortemente, reerguer-se.
Falemos de nós agora
Contemos nos dedos o que fomos nós
Lembra da inocência!
Pra onde foram aqueles meninos danados?
Nossas fantasias ficaram nas calças Curtas
Nos pés descalços, na bola de capotão
Éramos perfeitos atores, às vezes
Representando uma realidade que víamos
Com a consciência lambusada de doces
E auto-rejeição (...).
(“Estória no Telespelho”, p. 37).
Nos versos acima, torna-se manifesta a presença desse eu coletivo, por meio das
próprias expressões lingüísticas. A utilização da 1º pessoa do plural – “falemos de nós”,
“contemos nos dedos”, “nossas fantasias” – evidencia as dores e angústias da gente negra.
Essa voz coletiva parece endossar um passado que é inerente não apenas àquele que
ressoa o canto, mas a todos os que se sentem presentes dentro dele. O presente do
subjuntivo indica ainda a íntima necessidade de eternizar as imagens do passado na
atualidade; e em grande medida, obrigam-nos a reconhecer as diferenças, mostrando-nos a
“consciência lambusada de doces” e, portanto, a própria inocência da infância. “Estória no
telespelho” é um grito velado, mas que entoará sempre a sua mensagem, sobretudo a partir
de um mergulho no tempo, perpassando o jogo dialético entre o ontem e o hoje.
Notas:
* Na realidade, a expressão Canções do tempo é uma variante das Sorrow Songs, “Canções da Dor”,
presentes em As almas da gente negra de Du Bois.
14. **Graduanda em Letras pela UFMG
*** A canção epigrafada inicia o primeiro capítulo “Sobre as nossas lutas espirituais” presente na obra As
almas da gente negra de Du Bois.
**** In: O Atlântico negro de Paul Gilroy
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Links do autor
http://www.quilombhoje.com.br/ensaio/cuti/TextocriticoErotismoCuti.htm
http://www.scielo.br/pdf/ea/v18n50/a17v1850.pdf
Textos Selecionados
Tambores
Canto
Rufam os tambores
E a índole fundida em mim
Comove e move as imagens que já vi
Os odores são assim – invisíveis
Mas pregados no ar
a ameaçar
as pedras
do mesmo modo vivem as cores
que em silêncio
vão marcando uma presença nobre
nos espaços pobres que há (...)
(“Tambores”, p. 11)
Saga
16. é uma onda que sufoca
e estoura o peito
dilata as veias tapa os olhos
na sei se vai explodir numa lágrima
soco grito ou beijo
ah! Nem sei se os pedaços de mim vão fundir
nas saliências pequeninas duniverso.
(“Saga”, p.19)
Rio
Chorei
Pela morte do rio
A morte do rio
me deu pena de mim
Chorei
A espuma fedorenta sobre o rio
O rio coberto de branco – de luto
A morte do rio me deu pena de mim
Chorei
De ódio do branco que mata o rio.
(“Rio”, p. 21)
Lembrança da dança
E pensar que nossos gestos
Derramamento de braços
Corredeira de olhares
Ondulações corporais enfim
Eram nada mais que manifestação gritada
E pensar que nem pensávamos no feio das coisas
Porém tínhamos as veias já saltadas
Dilatadas pelos sons universais da euforia
E vagar pelas quebradas espontaneamente históricas
Essas bocas temporais que deglutiram nossos medos
Entre os dedos como líquido viscoso e quente
O tempo foi escapando em doses fluídas e fecundas
Canções encontros rastros descobertos
Atrás de nós alguns amores sólidos
Outros mortos
Outros simplesmente adormecidos
Todos espalhados no caminho afunilado que -
Fincado no tempo -
Nos golpeia a mente qual um espetáculo de dança
(“lembrança da dança”, p. 36)
17. Estória no Telespelho
Falemos de nós agora
Contemos nos dedos o que fomos nós
Lembra da inocência!
Pra onde foram aqueles meninos danados?
Nossas fantasias ficaram nas calças Curtas
Nos pés descalços, na bola de capotão
Éramos perfeitos atores, às vezes
Representando uma realidade que víamos
Com a consciência lambusada de doces
E auto-rejeição
Lembra dos planos!
Pra onde foram aqueles rapazes e garotas?
Nossas fantasias ficaram nas esquinas
Nas idas ao cinema, nos papos de madrugada
Éramos personagens inexpressivos, às vezes
Vivendo uma realidade que víamos
Com a consciência incrustada de chicletes
E pastas de alisar cabelo
Lembra das decepções!
Onde estão os nossos velhos amigos agora?
Nossas fantasias estão na cabeça
No dia-a-dia, nas visões de futuro
Somos protagonistas vulneráveis
A espera de um perfil
(“Estória no telespelho”, p. 37)
Noite
janela aberta
pra eu ver a noite
e deixar que ela me veja
tudo o que ela despeja –
a canção que se houve de longe
a luz dolorida da lua
a brisa leve e ardida
os gritos de dor
as gargalhadas iludidas –
no meu coração
janela aberta
para eu ver a noite
e deixa que Lea me veja.
(“Noite”, p. 54)