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Confissões do PastorConfissões do Pastor
Caio Fábio
Editora Record
ISBN 8501049107
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leitura edificante a todos aqueles que não tem
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gostar, abençoe autores, editoras e livrarias,
adquirindo os livros.
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Sumário (Clique)
Apresentação
Introdução
PARTE I
Confissões de Morte e Vida
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22
Capítulo 23
PARTE II
Confissões de Dúvida e Fé
Capítulo 24
Capítulo 25
Capítulo 26
Capítulo 27
Capítulo 28
Capítulo 29
Capítulo 30
Capítulo 31
Capítulo 32
Capítulo 33
Capítulo 34
Capítulo 35
Capítulo 36
Capítulo 37
PARTE III
Confissões de Desespero e Esperança
Capítulo 38
Capítulo 39
Capítulo 40
Capítulo 41
Capítulo 42
Capítulo 43
Capítulo 44
Capítulo 45
Capítulo 46
Capítulo 47
Capítulo 48
Capítulo 49
Capítulo 50
Capítulo 51
Capítulo 52
Capítulo 53
Capítulo 54
Capítulo 55
Capítulo 56
Capítulo 57
Capítulo 58
Capítulo 59
Capítulo 60
Capítulo 61
Capítulo 62
Capítulo 63
Capítulo 64
APRESENTAÇÃO
Era uma vez um jovem rebelde, arruaceiro e dissoluto que
amava “alucinadamente” as mulheres e fumava maconha e
cheirava cocaína no mesmo ritmo que dirigia sua moto — mais do
que uma alma perdida, era a promessa de um legítimo cafajeste.
Um dia, esse moço acordou aos gritos achando que estava
com uma cobra sucuri enrolada no corpo, mordendo-lhe o braço e
inoculando-lhe veneno. Era uma visão, claro, não uma cena real,
mas foi como se fosse. Caio Fábio tinha então 19 anos, já estivera
perto da morte por acidente ou suicídio, e aquela foi a última vez
que, simbolicamente, se sentiu possuído pelo demônio.
No dia seguinte, decidiu, iria nascer de novo: “Vou viver com
Jesus e ser um homem de Deus para o resto da minha vida.”
Convertido, o jovem acabou se tornando pastor protestante, assim
como seu pai, um agnóstico que certo dia, lendo a Bíblia, também
se convertera e abandonara tudo, inclusive um próspero escritório
de advocacia do qual era sócio o senador Bernardo Cabral, ex-
ministro e presidente da CPI dos precatórios.
As memórias que Caio Fábio lança agora encerram mais do
que a conversão de uma alma desgarrada que escolheu como
referência não um presbiteriano como ele, mas um santo, Santo
Agostinho, cujas Confissões pontuam como epígrafes os capítulos
do livro, criando um curioso contraponto católico a essa saga
protestante.
Encerram mais do que isso. As Confissões são também a
emocionante aventura de uma vocação pastoral sem temor e sem
preconceitos, que sobe os morros, entra nos presídios, freqüenta
palácios, catequiza traficantes, batiza governador, é perseguida
politicamente, e nada abala a sua crença de que o Evangelho é
imbatível, de que tem o poder de “mudar bichos, monstros e
pervertidos”.
No livro, como na vida, pode-se encontrar esse pastor tão
pouco ortodoxo em Bangu I convertendo Gregório, o Gordo, o
maior ladrão de carros da história do Brasil e estrategista do
Comando Vermelho. Ou batizando o perigoso traficante Isaías do
Borel, contaminado pelo vírus do HIV: “Isaías, eu te batizo em
nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo.” E pode estar também,
algumas páginas depois, na casa da maior autoridade do Estado:
“Em maio de 1994, batizei o governador do Estado, Nilo Batista, e
sua esposa, Vera Malagute Batista.” Que outro líder espiritual
seria capaz de uma ação pastoral tão arriscada, eclética e
ecumênica?
As incursões de Caio Fábio, ou melhor, sua imersão
permanente no mundo profano, na vida real, lá onde mora o
pecado, custaram-lhe incompreensões e inimizades, não só de
adversários de crença e de ética como de autoridades políticas e
administrativas. O governador Marcello Alencar, por exemplo,
abriu contra ele e sua principal obra social, a Fábrica de
Esperança, uma guerra que incluiu pesadas denúncias, uma
ocupação branca, auditorias e ameaça de interdição do espaço sob
a alegação de que ali havia tráfico de drogas.
Também com César Maia houve mal-entendidos e bate-bocas
públicos. O então prefeito chegou a apelidar Caio Fábio de “Pastor
do pó” — pelo menos até visitar a Fábrica e se convencer da
importância social do projeto, que passou então a respeitar e
apoiar.
Como se vê, o livro não é apenas a aventura de um pecador e
sua conversão. É também um pouco da história do Rio de Janeiro
dos anos 90 — com os episódios que se inscreveram em nossa
memória recente: a violência urbana, a criminalidade, a
delinqüência, o escândalo do jogo-do-bicho, a ocupação das favelas
pelo Exército, a criação da Casa da Paz de Vigário Geral, as
trapaças do bispo Macedo, o Viva Rio, a campanha do Desarme-se,
e muito mais.
Há na primeira parte do livro uma intenção edificante que
incomoda pelo menos os que não têm muita fé. Será que a ênfase
posta na perdição, naquela fase de juvenil entrega ao pecado não é
um processo retórico para valorizar e engrandecer a conversão? A
credulidade com que esse missionário investe nos pecadores barra-
pesada também pode parecer meio ingênua? Valerá a pena
converter bandidos? Não será uma opção preferencial pelo algoz
mais do que pela vítima? Essas dúvidas, que costumam ser
levantadas por sua ação pastoral, não abalam as convicções do
pastor. Ele acredita na conversão — na sua e, por conseqüência,
na dos outros. Muitas vezes recorre a Jesus para explicar algumas
de suas posições: “Jesus morreu entre ladrões, mas não os livrou
da execução.”
A sua ingenuidade pode se transformar em frio realismo. “A
vida de vocês é burra”, é capaz de dizer para um traficante. “Tenho
visto vocês morrerem todos os dias. Quem não morre vai para
Bangu I, o que é morte também. Vocês são instrumentos úteis nas
mãos de um pessoal que nunca é apanhado e que mantém essa
porcaria funcionando.” Lições como essas — muito antes de ficar
evidente que a conexão internacional do tráfico, essa, sim,
milionária, passa longe desses pés-de-chinelo cuja alma Caio
Fábio tenta salvar, já que não pode fazer o mesmo com a vida —
demonstram que esse pastor sabe onde pisa. Conversa com Deus,
não abandona o Evangelho, vive distribuindo bênçãos mas, por via
das dúvidas, conhece tudo o que se passa na vida terrena. O
espiritual sem o social é um círculo vicioso que não ajuda a
virtude. É mais fácil ser pecador com a barriga vazia.
ZUENIR VENTURA
escritor, jornalista e
editor especial do Jornal do Brasil
Aos muitos seres que me habitam a alma, os que conheci na
Terra e aqueles que apenas encontrei em sonhos e pesadelos, e
que são a matéria-prima de minha existência humana, dedico este
livro de confissões.
INTRODUÇÃO
Por que escrevi estas confissões? Talvez apenas porque nunca
as tivesse escrito antes. Pode ser, entretanto, que as tenha escrito
a fim de poder usufruir do direito de andar o mais perto possível
de um desejado estado de nudez pelo qual meu ser sempre
almejou. E quem dera pudesse eu me despir por completo. Mas
isto só seria possível se eu fosse um ser numa ilha deserta e,
então, não haveria razão nenhuma para desejar tão intensamente
tirar a roupa, pois a nudez só é percebida na presença de outros.
Além disto, jamais poderei me desnudar por completo neste
mundo, pois esse exercício sempre expõe outras almas, visto que
não existo em concubinato com meu eu apenas, mas com a
multiplicidade de outros amores e vínculos humanos, todos tendo
o direito de não desejar se despir, apenas porque hoje eu assim o
quero. Esta é a razão pela qual várias pessoas que andaram ao
meu lado nesta jornada, todos personagens reais, tiveram seus
nomes alterados.
E aquelas histórias que mesmo “cobrindo os nomes
verdadeiros”, ainda assim delatavam os seus personagens de modo
inconveniente, deixei de lado. Somente usei os nomes dos seres
históricos que a mim se aliaram ou em mim encontraram
desprazer, se tais ocorrências e fatos a eles relacionados foram
inegavelmente públicos.
Há um tempo para todo propósito e para a realização de cada
coisa neste mundo. Esta é a minha estação de fazer confissões de
morte e vida, de dúvida e fé, de desespero e esperança. E qual foi o
start deste processo em minha alma? Sem dúvida ele vem de eras
psicológicas tão longínquas, que certamente me precedem no
tempo. Talvez eu esteja apenas trazendo à luz um desejo do meu
coletivo familiar, e até de gente que já se foi há muito, mas que
partiu sem ter feito o ato de confissão que aqui faço. No que me diz
respeito, estas confissões nasceram como necessidade em mim
desde a primeira vez que registrei a consciência do encoberto, quer
tenha sido apenas um pensamento maligno, quer um sentimento
sublime ou um ato velado e sutilmente imoral, mesmo que
praticado na minha mais tenra infância. E lendo este livro, você
encontrará razões sobejas para que ele exista na forma em que
aqui está.
Historicamente falando, no entanto, faço estas confissões
fundamentado em três percepções da realidade. A primeira tem a
ver com minha total consciência do poder terapêutico que este livro
de strip-tease psicológico teve para mim e terá para você. Puxei um
fiapo na minha alma e achei uma grossíssima corda de amarrar
navio atada bem no cerne de meu ser. Desfazer esse nó foi
exercício terapêutico e tarefa de cura para o meu interior, e poderá
ser para você também. A segunda percepção tem a ver com meu
desejo compulsivo de queimar algumas pontes. Após ler este livro,
você certamente perceberá como estou encurralando minha vida
numa única opção: ser apenas o que tenho sido até aqui, em Deus,
pois quem conta as histórias que aqui narro, não pode ser
candidato a mais nada na vida, a não ser a viver unicamente da
graça e da bondade de Deus. Se um dia quis ser político, mesmo
sem jamais me ter dado conta disto, aqui desisto. Se já me passou
pela cabeça tornar-me um grande figurão da política religiosa, aqui
também me aposento antes da hora. E se, porventura, algum dia
desejei ser um homem de reputação entre meus iguais, aqui
também puxo a descarga desse dejeto e o expulso de meu ser, pois
mediante estas confissões digo quem sou, ou quase isso. Mas
saiba: andei bem perto de me entregar por completo.
A última percepção que dá base a este livro de confissões é a
de que hoje creio, muito mais do que ontem, que o poder de Deus
se aperfeiçoa na fraqueza humana. Assim, mesmo perdendo força
diante dos homens, espero sinceramente estar ganhando poder
diante de meu Criador.
Dessa forma, quanto mais vulnerável eu estiver diante de
você, mais forte estarei aos olhos de Deus e mais ajudado serei por
Seus anjos solidários e amigos.
Espero que a leitura destas minhas Confissões leve você a
fazer a confissão que mudará sua vida por completo, ou seja, que
com seus próprios lábios você passe a chamar o Filho de Deus de
Advogado na Terra e no Céu.
Caio Fábio D’Araújo Filho
Inverno, Boca Raton, Flórida, Estados Unidos da América —
1996
PARTE I
CONFISSÕES DE MORTE E VIDA
CAPÍTULO 1
“Ao dizer que atos viciosos contrários aos costumes
humanos devem ser evitados, nós levamos em
conta a variação dos hábitos de comportamento,
ou seja: a convenção mutuamente concordada de
uma cidade ou nação, confirmada pelo costume ou
pela lei. Nesse caso, qualquer pessoa que caia fora
desse padrão torna-se completamente inaceitável
para a sociedade.”
Santo Agostinho, Confissões
Meu pai olhou-me deitado no pequeno berço e não resistiu.
Colocou-me em seus braços, levou- me até o canto daquele amplo
cômodo da casa da vovó Zezé e ficou sem saber o que fazer.Ele fora
católico até os 26 anos, quando tomara uma decisão: seria
agnóstico até que alguma coisa profundamente espiritual lhe
trouxesse a certeza de que Deus era Deus, e não uma mera
abstração. Por isso mesmo, ele não podia entender o que lhe
estava acontecendo.
Sua alma fora totalmente impregnada pela idéia do sagrado.
Era como se o próprio Deus tivesse invadido os aposentos daquela
casa e feito uma convocação irresistível a papai. Lá estava ele, um
tanto desequilibrado, tentando manter-me no colo nos meus dois
dias de vida neste planeta. A muleta sobre a qual se apoiava não
lhe permitia ter certeza de que me carregaria sem me machucar.
Mas a força que vinha de dentro de sua alma era mais forte. Era
como uma ordem. Ele não tinha outra opção a não ser obedecê-la.
Tomou-me nos braços, ergueu-me ao céu e disse: “Deus, se
Tu existes e estás aqui neste quarto, ouve a minha voz. Eu Te
dedico o meu filho, meu primogênito, e peço que faças dele um
homem de Deus, um sacerdote, alguém que carregue a Tua marca
em sua vida. Mas peço que Tu não o prives do privilégio de ter
família, de criar filhos e de conhecer o amor por uma mulher. Por
isso, mesmo sem saber por que Te peço, por favor, Deus, faze dele
um pastor. Assim, ele poderá conhecer a alegria que eu estou
sentindo neste momento, de levantar meu filho nos braços, e será
também capaz de conhecer este estranho sentimento de
proximidade da divindade, que, como nunca antes, me invade
agora todo o ser.”
Ninguém jamais ficou sabendo o que ele havia feito comigo
naquele dia. Também nem ele e nem ninguém poderia imaginar
que aquele gesto estava marcado com a força divina das profecias.
Eu sei que minha existência encontrou seu sentido e sua
explicação histórica naquela oferenda agnóstica de meu pai,
dedicando-me a um Deus que ele não tinha certeza se existia.
Somente 21 anos depois daquela oração ao pôr-do-sol é que eu
viria a saber que minha vida nada mais era do que a
materialização de um desejo sagrado, de uma duvidosa, porém
apaixonada, oração paterna, e de uma vontade transcendente... de
uma profecia do amor.
Meu pai é o ser humano que mais me influenciou neste
mundo até o dia de hoje. Filho de uma estranha mistura de
histórias e experiências humanas, tem vivido sob a marca do
surpreendente, do radical, do intenso e do inusitado. Entretanto,
sua vida e a minha própria vida, por extensão, explicam-se,
obviamente, em contextos mais antigos do que nossa própria
experiência histórica. Somos apenas os subprodutos de histórias
de ancestrais fascinantes e quase mágicos em suas performances
neste mundo. E na intenção de destrinçar as teias que tecem estes
legados familiares tem-se de viajar ao século anterior ao nosso. É
para essa viagem que eu convido você.
Minha herança humana viaja em células e sonhos desde há
muito. Mas no nível de minha consciência histórica, tudo começou
com meu bisavô, um cearense de saúde férrea e de humor fino e
provocativo, que tinha uma fraqueza especial por saias. Luís
Antônio de Araújo saiu do nordeste para o Amazonas no século
passado, quando ainda era bem jovem. Nascido no ano de 1821,
em Camuci, Ceará, teve na longevidade e na força física suas mais
marcantes características. Viveu 104 anos e, aos oitenta, era
famoso por ainda ser capaz de carregar fardos de pirarucu
pesando até 120 quilos. Meu pai não conheceu o seu Araujinho,
como chamavam meu bisavô no interior do Amazonas. Com fama
de namorador e de grande contador de histórias, o velho cearense
casou-se com Maria Santana de Araújo já avançado em idade, aos
66 anos, ainda assim depois de um vastíssimo processo de seleção.
Ele e Santaninha tiveram dois filhos: João Fábio e Joana,
ambos nascidos em Nova Vista de Canutama, no alto Purus,
coração do Amazonas. Meu avô, João Fábio, nasceu quando seu
pai já tinha 68 anos e precisou lidar com a tragédia desde cedo.
Em 1893, portanto apenas cinco anos após haver se casado,
Santaninha veio a falecer, vítima de uma das muitas doenças que
matavam bestamente as pessoas nas beiras dos rios do Amazonas:
a febre negra.
Naqueles dias, o tempo passava com a mesma preguiça com
que as águas deslizavam, lentas e caudalosas, pelo rio Purus, na
região do seringal Nova Vista, onde o velho Araujinho conseguira
um emprego como extrativista de balata de borracha. Sua intenção
era trabalhar duro a fim de fazer algum dinheiro com borracha,
produto por excelência para quem quer que tivesse uma visão
clara de como a vida se desenharia nos anos por vir. O Amazonas
vivia um tempo em que a borracha era o chip de todas as
possibilidades presentes e futuras.
Apesar da pobreza do interior, havia algumas inigualáveis
compensações. Os cheiros naturais da região eram um pagamento
divino aos que insistiam em viver no lugar. Os aromas da floresta
eram extraordinários, aromas que, em geral, ainda podemos
perceber nas vilas e pequenas aldeias do interior do Amazonas.
Era fragrância de mata viva, misturada com o odor de uma flora
incomparavelmente diversificada, onde se podia perceber o cheiro
de flores jamais transformadas em perfume em lugar nenhum do
mundo.
Os imensos volumes de água também contribuíam para
acrescentar ao ar o estranho odor da vida subaquática, combinado
ao das plantas que crescem à margem dos rios. Além disso, havia
uma cheirosa sensação de frescor que vinha de toda parte. A areia
amarelada à beira dos igarapés tinha em si o cheiro forte de algo
que parecia uma mistura de enxofre com pó de café. Era um
aroma quase primal, como se a terra ainda exalasse os cheiros de
seu mais recente parto: o Amazonas.
Na pequena vila do seringal Nova Vista podia-se também
discernir o forte aroma que vinha das grandes chapas de ferro ou
das imensas bases de barro queimado, onde mulheres de cabelos
compridos, presos por prendedores feitos de caroço de tucumã,
agitavam suas colheres de pau, fazendo a farinha de mandioca
dançar incessantemente, enquanto não cansavam de contar casos
infindáveis, que não incluíam mais do que as aproximadamente
550 pessoas que viviam no lugar.
Políticos, militares e intelectuais que ocupavam espaço nas
conversas da maioria das pessoas, em qualquer cidade maior que
uma vila no sudeste do Brasil eram completamente ignorados
pelos moradores daquela região, onde as notícias já chegavam com
tamanho atraso, que os que as recebiam acabavam pensando: “Se
eu vivi dois anos sem saber que isto havia acontecido e nada
mudou na minha vida, então é porque tanto faz como tanto fez;
isso só importa num outro mundo, muito longe daqui. Pra gente
aqui, saber ou não saber quem foi eleito, quem morreu ou quem foi
preso e acusado de traição, não altera a vida em nada.” E assim
eles seguiam, fazendo seus rituais simples na liturgia do cotidiano.
Aqui e ali se fazia passar um pouco de café num coador de
pano, o que promovia rápidas interrupções na fabricação de
farinha. Em geral, essas breves paradas para o café também se
faziam acompanhar de pedaços de beiju, alimento que naqueles
dias ocupava o lugar do pão no interior do Amazonas. Foi naquele
cantão do Brasil, que hoje o mundo conhece como The Amazon
Rain Forest, que meu bisavô ficou famoso e quase mítico,
tornando-se uma espécie de lenda cabocla das beiradas do Purus.
As histórias sobre ele são muitas, mas as que mais me
fascinam têm a ver com sua força.
Havia por aquelas bandas um certo Sebastião Preto,
conhecido por ter braços fortes e musculosos e por ser o louco da
aldeia. No entanto, quando estava aliviado de seu estado de
loucura, Sabá era um homem calmo, especialmente carinhoso com
o menino João Fábio. Mas, quando a perturbação mental lhe
revirava a razão, era capaz de qualquer coisa, inclusive de
machucar aqueles de quem gostava.
Um dia, o louco amanheceu atacado e partiu para um ato
bestial. Ao perceber a presença de João Fábio na pequena praça do
vilarejo, correu alucinado para cima da criança, demonstrando a
clara intenção de estrangulá-la.
Quando o velho Araujinho percebeu Sabá correndo na
direção de seu filho, lançou-se de um salto entre o louco e o
menino, atracou-se a Sabá como se fosse uma cobra jibóia,
empurrou-o contra o muro de uma casa e tirou-lhe os pés do chão,
mantendo-o no ar, imobilizado entre a parede e o seu próprio
corpo.
— Tragam as cordas — gritou o velho Araujinho entre
estrebuchos e grunhidos. — Tragam as cordas. Não demorem —
pediu mais uma vez.
Depois que levaram o pobre louco amarrado, meu bisavô
confessou que se tivessem demorado mais um minuto, ele não
teria agüentado.
Uns dizem que ele ficou ali, imóvel, segurando Sabá no ar por
mais de cinco minutos. Outros falam que não durou tanto tempo
assim. Mas ele não largou o negro até que trouxeram as cordas e
amarraram Sebastião, vítima de uma insanidade para a qual os
tempos não tinham ainda qualquer esperança de cura à vista.
Quando as jovens de Nova Vista se referiam ao velho
Araujinho como sendo alguém de idade avançada, ele sempre
falava: “É, minha senhora, sou velhete, mas sou espertete. A
senhora quer uma demonstração?” E, assim, cessavam as
inconveniências, afinal, a mulherada sabia que aquele velhote
marcado pelo tempo, mas de saúde invicta, era realmente espertete
com o sexo feminino, dono de longa e diversificada experiência
naquela área. E as mulheres tinham certeza de que não se tratava
apenas de memória de um remoto passado. Todos sabiam, ou pelo
menos ouviam falar, das façanhas contemporâneas daquele velho
incorrigivelmente galanteador, às vezes discretamente assanhado,
e que parecia estar sempre fisicamente bem-disposto.
Araujinho viveu casado apenas cinco anos. Com a morte da
esposa, resolveu pedir ajuda a um amigo para completar a
educação dos filhos. Percebendo-se sem jeito para as atividades de
natureza doméstica e avaliando a dificuldade que seria manter em
casa o filho em idade escolar tão crítica, enquanto se embrenhava
dias na mata recolhendo o soro da borracha que escorria das veias
rasgadas das seringueiras, preferiu fazer sacrifícios de natureza
emocional a submeter João à privação do saber acadêmico, que ele
próprio não possuía, mas cuja importância reconhecia. Por isto,
entregou o filho a um tutor.
O menino João Fábio foi enviado para Fortaleza no ano de
1901, aos 12 anos de idade, onde permaneceu três anos, para
então retornar ao Purus, aos 15 anos, a fim de pegar a latinha de
coleta de balata e tentar reunir seiva de borracha para vender e
fazer dinheiro para ir estudar fora do Amazonas.
Assim, durante três anos trabalhou incessantemente,
juntando dinheiro para viajar para a Bahia, onde sonhava estudar
farmácia.
Para seu Araujinho, a volta do filho fez muito bem. Mesmo
sendo um homem aparentemente independente, era sempre
imensamente carinhoso com João Fábio e orgulhava-se de ver nele
alguém forte o suficiente para trabalhar pesado, mas inteligente o
bastante para perceber que o futuro não estaria definitivamente
ali. A companhia do filho era-lhe especialmente estimulante porque
a vida de um homem viúvo, com quase noventa anos, no interior
do Amazonas, podia ser extremamente solitária.
Naquelas bandas, um homem de paixão e fogo aceso pelas
mulheres tinha muita dificuldade para dar “saidelas rápidas”. E
quando se tratava de dar uma variada na companhia feminina, era
muito mais difícil ainda, pois todas as localidades tinham
população pequena. Assim, era difícil que alguém se escondesse da
curiosidade maldosa dos filhos do vilarejo, sempre atentos a sinais
de olhares apaixonados ou lascivos, que eventualmente se
expressavam aqui e ali, naqueles longos e solitários dias, povoados
por gente que, na maioria das vezes, nem percebia que estava
doida para achar alguma coisa excitante para fazer.
Nesse caso, a solução para quebrar o tédio, disfarçado em
resignação existencial, era namorar escondido ou descobrir quem
namorava, ou pulava a cerca, com a filha ou a mulher do vizinho.
O álibi de gente fogosa, como seu Araujinho, era sempre o
boto tucuxi.
No Amazonas, quando uma menina aparecia grávida ou os
pais percebiam que ela já não era “moça”, o boto preto era evocado
como saída moral e honrada para a deflorada donzela, uma vez
que se dizia que os botos tinham o poder de se transformar em
belos e irresistíveis rapazes, que saíam dos rios para inebriar,
seduzir e possuir as mais belas meninas das cidades ribeirinhas.
Assim, a geração de bisavô Araujinho tinha no boto um
importante aliado, funcionando sempre como cúmplice e álibi para
escorregadelas noturnas e criando o necessário espaço para que a
diversidade da experiência sexual fosse acobertada pelo mito do
boto sedutor.
O velho morreu pobre. Entretanto, ficou famoso dentro de seu
pequeno mundo, plantado à beira do rio Purus. Partiu no ano de
1925, aos 104 anos de idade, com todos os dentes intactos, sem
que chegasse a conhecer uma dor de cabeça ou qualquer forma de
doença, e sem que jamais tivesse tido o privilégio de experimentar
o significado da palavra “preguiça”.
Aquele homem centenário parecia marcado pelo signo da
longevidade, e muitos pensavam que ele ficaria ali, para bem ou
para mal, até quando quisesse estar. Ele enterrou a muitos e viu
suas façanhas serem contadas e recontadas em inúmeras tardes,
quando possivelmente se sentia como os atores de Hollywood ao
verem seus próprios filmes em matinês ou em vídeos.
E ele ainda ajudava a aumentar a lenda em torno de si
mesmo quando, num gesto de modéstia, dizia: “Parem com isso,
seus rapazinhos canela-de-sebo. Vocês ficam aí mentindo a meu
respeito. Todo mundo sabe que isso tudo foi inventado pelo
exagero dos fracotes dos avós de vocês — que Deus os tenha em
Sua presença. Eu nunca fui tão forte assim.” Depois de assim
falar, descia até a beira do rio e pegava um cesto de farinha de
sessenta quilos, que colocava naquelas costas de mais de cem
anos de idade e carregava até o alto do barranco. Assim, sua
provocação, disfarçada de modéstia, apenas reforçava o mito de
sua força junto às novas gerações.
Dizem que Luís Antônio de Araújo morreu porque quis. Teria
praticado uma espécie de eutanásia existencial.
Tendo existido por mais de um século, cansara-se
existencialmente de viver e, por isso, havia decidido que era tempo
de botar a viola no saco e recolher-se à eternidade.
Quando o velho estava com 104 anos, houve uma grande
friagem no interior do Amazonas, com a temperatura caindo ao
nível dos 13 graus centígrados. Ele saiu do quarto, deitou-se numa
rede na varanda e disse que não se levantaria mais dali até morrer.
Decidiu não se alimentar mais e nem se erguer novamente. Os
pedidos eram insistentes no sentido de que ele se alimentasse.
— O senhor está doente? Está sentindo alguma dor? — todos
perguntavam.
— Não, seus rapazinhos canela-de-sebo — dizia ele —, eu não
estou sentindo nada. Apenas acho que já vivi demais e que tá na
hora de deixar esse mundo para vocês. Portanto, me deixem em
paz. Um homem de 104 anos tem que ter o direito de morrer
quando quer.
Foram aproximadamente trinta dias de friagem. A cerração
cobria a floresta e tornava os dias longos e lúgubres. Os parentes e
amigos faziam vigília na varanda, sempre tentando empurrar-lhe
goela abaixo um pouquinho do famoso caldo de caridade, uma
sopa de farinha de mandioca cozida, temperada com alho e cebola,
tida como milagrosa e revitalizante.
Mas ele se recusava a comer. Sua decisão estava tomada e ele
não a negociaria com ninguém.
Nem mesmo com seu filho, João Fábio, que, plantado ali,
pedia reverente que o velho pai comesse alguma coisa.
Não houve jeito. No ano de 1925, seu Araujinho deixou esse
mundo da mesma forma que nele vivera: de modo obstinado e
convicto. Nunca saiu do interior do Amazonas, mas virou lenda no
coração de muitos, especialmente na casa de seu filho, João Fábio,
onde sua memória era reverenciada como a do velho Matusalém,
que viveu 965 anos, conforme o relato bíblico do livro do Gênesis.
A importância histórica e espiritual de bisavô Araujinho na
minha família é justamente a de cumprir o papel de uma figura
lendária, que vem de onde não se pode muito bem traçar as
origens, que vive sem trocar cartas com o passado, e que parece
absolutamente contente com o hoje, com o aqui e o agora, imerso
nas oportunidades que a vida abria de modo natural diante dele.
Ele nunca escreveu nada e nem tentou deixar nenhum
legado. Mas suas histórias — nem sempre reveladoras de
princípios morais ou religiosos que pudessem ser usados para
inspirar as gerações seguintes —, apesar de ambíguas, eram
plenas de uma estranha e essencial virtude: uma imensa liberdade
para existir intensamente debaixo do sol.
Foi seu Araujinho quem introduziu a força das lendas
pessoais em nossa família.
Pobre da família que não tem lendas, sejam boas ou más.
Uma família sem lendas é uma família sem alma.
Seu Araujinho também foi aquele que nos ensinou que a vida
é séria, mas que se não se fizer acompanhar por pitadas de
irreverência e de controlada irresponsabilidade, torna-se mais
tediosa do que a mesmice do rolar das inalteráveis águas barrentas
do rio Purus.
Foi dele, ainda, que os homens e mulheres da minha família
aprenderam o gosto do namoro, da paixão e da delícia dos sentidos
que se deixam estimular por cheiros e toques, fazendo a vida parar
e dando a você o direito de saborear a existência como quem se
atola nas doces carnes de uma manga-rosa.
Não se fala muito da fé de seu Araujinho. Consta que era
católico, mas não parece que para ele isso fosse coisa muito
importante. Prova disso está o catolicismo de seu filho João Fábio,
que, conquanto tenha existido de modo bastante perceptível, era,
entretanto, muito mais um humanismo generoso do que o fruto de
beatices religiosas e com cheiro de vela.
Talvez a maior de todas as demonstrações de que seu
Araujinho viveu para além da tutela espiritual do organismo
religioso esteja na estranha maneira como ele morreu:
aparentemente sem sacerdote, sem rito, sem hóstia, sem extrema-
unção e sem medo.
Morreu quando achou bom morrer, porque viveu como achou
bom viver.
CAPÍTULO 2
“Honra, poder de dar ordens e estar em comando
têm sua própria forma de dignidade, embora daí
também se origine a ânsia da auto-afirmação.
Ainda assim, na aquisição de todas estas fontes de
status social não devemos nos afastar de ti,
Senhor, nem nos desviar da Tua vontade.”
Santo Agostinho, Confissões
Foi a morte da mãe o que certamente propiciou a João Fábio
a bênção do estudo como caminho alternativo para fora da vida no
seringal Nova Vista. Além disso, o fato de seu Araujinho tê-lo
mandado para Fortaleza aos cuidados de um tutor abriu-lhe os
horizontes e inoculou nele aquele estranho gostinho por novos
espaços e relacionamentos.
A orfandade, quando se faz acompanhar de uma boa atitude
frente à vida, pode capacitar o órfão a se sentir livre para construir
mundos para além dos condicionantes da consangüinidade
imediata. Muitas vezes os órfãos têm movido este mundo.
Os anos de trabalho no seringal não permitiram que João
Fábio juntasse uma grande soma, mas renderam-lhe o suficiente
para que, em meados de 1908, zarpasse para Salvador, a fim de
ingressar no curso técnico de farmácia, profissão que para ele, que
tinha fortes laços com a população pobre do interior do estado e
que dizia querer ser útil à comunidade, parecia a mais prática.
Durante aquele período de estudos na Bahia, João Fábio
conheceu uma menina de cabelos loiros e profundos olhos azuis,
filha de uma família de ancestrais franceses que se radicara no
Brasil poucas décadas antes.
Eram os Nascimento Lavigne, gente de atitude nobre e que
prezava imensamente o valor da educação e da cultura.
A paixão foi instantânea e profunda, mas o curso de João
Fábio estava terminando e ele precisava ir ganhar a vida no
Amazonas antes que pudesse se casar com Josefina Nascimento e
levá-la para Manaus.
Embora não tenha sido fácil, João Fábio teve de propor que
ela o esperasse enquanto ele ia “fazer a vida”, prometendo voltar
para buscá-la. Zezé, como a apelidara, aceitou de pronto.
Durante seis anos eles trocaram cartas de amor e amizade,
reafirmando a intenção de passarem o resto da vida juntos.
As amigas de Zezé tentavam dissuadi-la todos os dias com
relação à fidelidade daquela espera. Com tanto rapaz bonito e de
boa família “dando sopa” em Salvador, o que Zezé estava fazendo
investindo sua juventude num rapaz pobre, do Amazonas, que se
formara em farmácia, fora embora e nunca mais voltara? Mas lá no
fundo Zezé sabia que havia encontrado o homem mais honrado
que jamais conhecera, e que ele não a enganaria.
Esperou seis anos, alimentando seu amor apenas com
memórias e cartas, até que no fim do ano de 1917, pondo termo a
um período de pura e insólita esperança, Zezé viu o navio aportar
em Salvador e dele desembarcar um João Fábio seis anos mais
velho, porém absolutamente intacto em seus motivos, sentimentos
e compromissos.
Casaram-se no fim daquele ano, foram juntos para Manaus e,
de lá, acabaram dirigindo-se a Canutama, para o seringal Nova
Vista, cuja propriedade vieram a adquirir no ano seguinte.
A vida no seringal foi cheia de dor e dramaticamente marcada
pela solidariedade aos habitantes do lugar. Lá lhes nasceram dez
filhos, mas três deles morreram ainda na infância. José e Edgar
partiram ainda em idades bem tenras, mas a dor da morte de Luís
Ricardo foi profundíssima.
Todas as histórias sobre Luís contam de um rapaz bonito,
forte e extremamente sensível, que nascera de um parto gêmeo
com Elvira. Eles eram os mais velhos dos dez filhos. Mas em 1931,
quando estavam com 12 anos, Elvira e Luís acompanharam o pai
numa viagem a Manaus, durante a qual o garoto foi atingido por
uma horrível febre e morreu ao chegar à casa de uns amigos,
deixando um imenso rombo emocional no coração de seus pais e
irmãos.
De volta ao interior, o magoado e abatido João Fábio não
esmoreceu ante a perda do filho. Mesmo com muita dor na alma,
entregou-se à atividade que ele iniciara quando chegara da Bahia,
em 1912, formado em farmácia. Muito mais do que gerir o seringal,
João Fábio dava-se inteira e gratuitamente ao cuidado dos pobres
e miseráveis que viviam naquela região.
Sua fama como homem solidário e generoso vive até hoje.
Milhares foram aqueles que o procuraram vindo de lugares
remotos, viajando dias sobre uma estreita canoa, a fim de buscar
ajuda médica e alívio para suas dores, febres, feridas, angústias e
medos.
A força de sua vida foi tão significativa, que seu professor na
faculdade de direito, na qual ele viria a se matricular em 1933 e a
concluir em 1937, Ramayana de Chevalier, chegou a descrever
com palavras míticas o seu curriculum social, texto transcrito no
álbum de nossa família.
Era o dia 4 de dezembro de 1926 quando nasceu meu pai,
Caio Fábio D’Araújo, na cidade de Canutama, no interior do
Amazonas.
Vovô Fábio foi registrá-lo com o nome da família Araújo.
Orgulhoso, falou o nome do menino, certo de ter evocado um
grande significado latino para acompanhar aquele ser humano
para o resto da vida: Caio, em latim, significa bordão, cajado ou
alegria. Ele se apegou ao último significado e desejou, de todo o
coração, que seu oitavo filho fosse um ser humano que trouxesse
felicidade a este mundo.
Enquanto ele se perdia em delírios de felicidade paterna, o
escrivão cometia um engano ortográfico que acabaria criando uma
cômica, porém interessante mudança na grafia do nome de minha
família: trocou o “de Araújo” por um inexplicável “D’Araújo”.
Apesar de ser um erro, vovô Fábio decidiu conservá-lo, como
que profeticamente percebendo que aquele seu filho viera ao
mundo marcado por estranhas intenções divinas que o fariam
escolher caminhos de trajetórias intensas e radicais para
percorrer.
Cainho, como logo passaram a chamá-lo carinhosamente em
família, viveu de modo mais que normal o primeiro ano de sua
vida. João Fábio, sempre sério, porém muito meigo com os filhos,
não hesitava em manifestar uma especial atração pelo menino.
Filhos e filhas não lhe faltavam e ele devotava algum tipo de
expressão diferenciada por todos, deixando, entretanto, que essas
diferenças existissem como segredo entre ele e cada criança. Talvez
seja por essa razão que, mesmo hoje, os filhos que ainda estão
vivos falem do pai como se fossem filhos únicos. Do pequeno
Cainho, ele dizia que seria um menino forte como fora seu pai, o
velho Araujinho.
No entanto, logo após completar seu primeiro ano de vida, a
saúde do menino foi subitamente abalada por uma estranha e
inexplicável febre. Como João Fábio estava viajando, Zezé pediu
ajuda a um farmacêutico local, a fim de enfrentar a febre com uma
injeção. Seu Ernesto foi chamado às pressas e prontamente
acorreu.
Tirando do estojo sua seringa e agulhas, perfurou a borracha
que vedava o vidro com o remédio, passou álcool nas nádegas da
criança, dividiu mentalmente o bumbum em quatro partes,
escolheu uma dele e sapecou a agulha. Tudo certo, exceto pelo fato
de que a febre não cedeu e o menino continuou a definhar no seu
bercinho.
Quando João Fábio voltou, viu, chocado, que algo estava
muito errado com seu pequeno Caio.
Sua perninha direita não se movia. Os movimentos eram
normais na outra perna, que podia ser erguida na hora do choro
ou dos movimentos espontâneos, mas a perna direita não se
movimentava, permanecendo sempre paralisada.
— Zezé, o que fizeram com esse menino? Alguém esteve aqui
cuidando dele? — perguntou o já experiente farmacêutico.
— Fábio, você não estava aqui. A criança estava com uma
febre que não cedia. Então eu chamei o seu Ernesto. Ele deu uma
injeção no menino — respondeu vovó.
João Fábio examinou cuidadosamente o bumbum do filho,
constatou a marca da entrada da agulha e olhou sofrido e grave
para esposa, mas sem nenhuma expressão de raiva na face.
— Aleijaram nosso filho — disse com voz solene e cheia de
pesar.
Saiu dali andando pesadamente, foi até a varanda e olhou
longa e perdidamente para o deslizar suave do rio Purus, que
incansavelmente ondulava suas águas em frente à cidade de
Canutama, naquela quente tarde de março de 1927.
Embora nunca tenha tomado nenhuma providência legal
contra seu Ernesto, pois conhecia bem o homem e sabia que se
tratava de pessoa de bem, o Dr. João Fábio estava certo. Caio
Fábio jamais andaria sem muleta, para o resto de sua vida. Caio,
em latim, é também bordão, cajado.
Apesar de pesaroso e frustrado com o que acontecera ao
menino, vovô cuidou de iniciar um processo de ajuda a seu filho,
sem saber que estava plantando as sementes que fariam dele um
ser humano raro, tanto no seu caráter quanto nas suas percepções
da vida.
Não era a primeira vez que vovô experimentava o gosto
amargo da dor que o atingia a partir de uma fatalidade ligada aos
filhos, porém o caso de meu pai tornou-se muito forte para ele.
Talvez isto se explique pelo fato de que as mortes de Luís Ricardo,
Edgar e José tenham-no deixado com a violenta angústia da perda,
mas sem o peso da responsabilidade de criar um filho deficiente.
Os três meninos morreram, e ele chorou e sofreu suas
mortes. Mas com Cainho era diferente. Ele estava ali, debilitado e
irremediavelmente aleijado, tendo diante de si um mundo que meu
avô percebia que seria cada vez mais competitivo e que não
ofereceria ajuda a quem não pudesse se virar sozinho.
Aquela foi a gota d’água final na decisão de mudar de
Canutama para Manaus. Ele precisava oferecer aos filhos uma boa
chance de se prepararem para os avanços deste século, que estava
apenas começando.
Em 1931 a mudança finalmente foi efetivada.
Na capital, a família foi morar num sobrado na rua Sete de
Setembro, bem no centro da cidade. No andar inferior da casa, o
Dr. Fábio tinha a sua farmácia, aberta a quem pudesse e a quem
não pudesse pagar o remédio de que necessitava.
Pelo fato de estar sempre preocupado com o bem-estar dos
muitos que dele se acercavam, vovô resolveu tentar ampliar seus
horizontes. Assim, entrou para a faculdade de direito e formou-se
já bem maduro, decidindo, em seguida, enveredar pela carreira
política.
Tendo sido eleito deputado estadual mais de uma vez e
também presidente da Assembléia Legislativa do Estado, além de
prefeito de Manaus, acabou algumas vezes na posição de
governador em exercício, situação que muito orgulhava a família,
especialmente Zezé, que casara com um menino pobre e que agora
o via alçado a posições dantes inimagináveis para os membros de
sua “francesa família baiana”.
Por ser homem inegavelmente honesto, o Dr. João Fábio
passou pela política sem nenhuma alteração no modo como
mantinha sua família e saiu da política vivendo com os mesmos
limitados recursos com os quais gerira sua vida até então.
A riqueza que ele escolheu não sofre inflação e nem pode ser
roubada, pois é aquela que mais e mais cresce quanto mais e mais
é compartilhada.
CAPÍTULO 3
“A leitura mudou meus sentimentos. Alterou
minhas preces, ó Senhor, para que fossem
dirigidas a Ti mesmo. Os livros me deram valores e
prioridades diferentes.
De repente, toda a esperança vã se tornou vazia
para mim e eu ansiava pela imortalidade da
sabedoria com um ardor incrível em meu coração.”
Santo Agostinho, Confissões
A vida na rua Sete de Setembro era divertida, porém muito
apertada em seus espaços. A diversão dos meninos Renato, Carlos,
Caio e Augusto, bem como dos filhos de criação que vovô sempre
mantinha de quebra, era jogar bolinha de gude com esferas de aço
arrancadas de rodinhas de rolimã, ou simplesmente acompanhar o
movimento da rua, tentando tirar proveito de tudo o que de
engraçado pudesse acontecer na calçada: um rosto excessivamente
feio, um par de pernas femininas desmesuradamente bonitas, um
corpo lindo de alguma garota que, quando vista de frente,
assustava pelo rosto desencontrado, fazendo o antiqüíssimo gênero
Raimunda, ou o escorregão de algum rapaz que, ao tentar passar
na frente do bonde, tropeçava no trilho e espalhava-se sobre o
paralelepípedo. Outras vezes, ainda, eles também davam gostosas
gargalhadas diante de certos velhos assanhados, que não
sossegavam ante a contemplação da juventude sedutora de alguma
menina recém-entrada na idade adulta. Enfim, a televisão era a
vida e suas múltiplas possibilidades de graça e desgraça.
Mas esta interatividade entre o balcão do sobrado — onde os
meninos ficavam fazendo suas gozações — e a calçada podia ser
perigosa, pois vovô Fábio era rigorosíssimo quanto ao tratamento
que esperava que seus filhos dispensassem aos que passavam em
frente à sua casa.
Ele não podia admitir gracinhas, gozações, galanteios,
gargalhadas e outras expressões juvenis da garotada quando
percebia que isso podia constranger os transeuntes.
Não que ele mesmo não risse, tempos depois, das coisas que
ali aconteciam. Mas no momento em que de fato ocorriam, ele
sempre pensava que as brincadeiras de seus filhos poderiam
causar incômodos irreparáveis para seus clientes ou gerar
constrangimentos às pessoas, o que, para ele, era algo
imperdoável. Por isto, não foram raras as vezes em que a
meninada entrou no cinturão quando flagrada em algum desses
atos de humorismo de calçada, em meio a risos ou simples
expressões de um prazer que delatavam alguma armação recente.
Foi duro criar todos aqueles filhos, cheios de energia, presos
naquele sobrado. Além disso, havia as visitas constantes dos que
vinham de Nova Vista, ainda procurando o filho de seu Araujinho,
que nunca se furtava a hospedar quem quer que necessitasse e
jamais se negava a tratar de graça a todo aquele que, com dor ou
desconforto físico, o buscava solicitando alguma ajuda. Por isto
mesmo, Zezé convenceu o marido a procurar um lugar mais
distante, ainda que dentro da área metropolitana da cidade de
Manaus, onde eles pudessem arranjar uma casa com quintal e
espaço suficiente para que os filhos pudessem se distrair sem criar
embaraços para o pai.
Foi assim que encontraram um lugar que havia sido um
hospital no fim do século passado e que agora estava à venda. Era
uma imensa propriedade no Alto de Nazaré. O bonde chegava lá e
os primeiros ônibus em circulação também faziam ali a sua volta
de retorno ao centro da cidade.
O casarão ia de um quarteirão ao outro. Tinha frente para a
rua Japurá e ia até a rua Apurinã.
Era um prédio bonito, que crescia em estilo quase piramidal,
iniciando com um térreo construído sobre grandes arcos,
amarrados por longos e belos trilhos de ferro, formando um
ambiente fascinante para quem quer que tivesse imaginação.
Sobre aquele andar térreo, a casa se espalhava num segundo
nível, formado por salas enormes e quartos do tamanho de
enfermarias de hospital, com janelas longas das quais saíam
varandas de ferro. A cozinha também ficava no segundo piso. Era
imensa e ao final dela, subia mais uma torre, que também
funcionava como chaminé.
Havia dois acessos para os andares superiores, que se
tornavam cada vez menores, à medida que a pirâmide ia afinando
para o mirante, no quinto e minúsculo aposento, projetado para
fora do telhado e com janelas para os quatro cantos da casa. A
vista do mirante era soberba para a época, visto que Manaus é
uma cidade plana e, naquele tempo, a altura daquela antiga casa-
hospital era algo para ser levado em consideração.
Nos fundos, havia uma escada de ferro que, estreita e
espiralada, ia derramando acessos a todos os andares. Mas no
meio do prédio, começando no porão térreo e arqueado,
esgueirava-se, de modo artisticamente sinuoso, uma das mais
encantadoras e bem torneadas escadas de madeira que alguém
poderia desejar ter dentro de casa.
No casarão da Japurá a moçada dos Araújos espalhou-se na
vida. Ali, eles fizeram camaradagem com inúmeros meninos e
meninas, que acabaram se tornando seus amigos na vida e na
morte. Os garotos subiam nas árvores do quintal e comiam
mangas, jenipapos, graviolas, pitombas, pitangas, abiu, ata, biribá
e ainda derrubavam coco e bebiam sua água quando estavam com
sede. Era o paraíso.
Foi ali também que eles organizaram peladas de futebol em
que colocavam Cainho no gol, defendendo a pequena área com sua
muleta pesada. A disputa era saber quem o teria de seu lado, pois
a vantagem de quem ficasse com seu passe era incomparável.
O garoto da muleta ficava plantado na frente do gol,
abanando sua perna de pau no ar e convidando os adversários
para virem fazer gol dentro de sua área.
— Venham, seus medrosos. Invadam minha área. Tentem
meter a bola por debaixo de minhas pernas. Será que vocês não se
garantem? — ele gritava com euforia.
Sempre que alguém se irritava com suas impertinentes
provocações e resolvia invadir a área driblando para fazer um gol
em vez de chutar de longe, geralmente se afastava reclamando das
muletadas que recebia nas canelas ou até mesmo na cabeça.
— Deixem o Caio brincar. Não percam a paciência com ele e
nem o deixem fora de qualquer competição — dizia vovô Fábio.
Por esta razão, os irmãos mais velhos, especialmente Carlos
Fábio, a quem Cainho era mais chegado, sempre o incluíam em
todos os programas, até mesmo em algumas brigas de rua.
Certa vez eles se estranharam com uns garotos que moravam
na baixada da rua Apurinã, uma cavidade impressionante, na qual
moravam várias famílias, pois como havia água em abundância ali,
era muito fácil cavar uma cacimba e abastecer a casa com água
fresca e gratuita.
A “turma do buraco” se encrespou com os Araújos e eles
saíram no tapa. No meio da briga, papai, na época com dez anos
de idade, estava tranqüilamente sentado na varanda de nossa casa
quando viu chegando seu irmão Carlos Fábio com um menino na
gravata, gritando: “Cainho, toca tua muleta na cabeça desse
desgraçado antes que ele escape da minha gravata.” Papai pegou a
muleta e sapecou-a com tanta força na cabeça do menino, que a
briga acabou na hora.
A infância para meu pai não foi exatamente fácil, mas não
chegou a ser difícil. Ele fora abençoado não só com um pai
humano e sensível, mas com uma mãe meiga e, ao mesmo tempo,
enérgica. Dona Maria Josefina de Araújo não dava descanso aos
filhos. O compromisso que ela e o marido tinham era o de dar a
cada filho, incluindo as meninas, a possibilidade de concluírem
um curso superior. Dinheiro eles não deixariam, mas cultura era
um bem imprescindível, na visão deles. Por isto, aquela mulher
franzina, de cabelos loiros e olhos azuis, não cansava de
interromper os melhores momentos de diversão dos filhos para
botar todo mundo para estudar.
Talvez a marca mais expressiva da vida no casarão-hospital
da rua Japurá tenha sido o espírito social e comunitário da vida
em família. Tal como havia sido no interior, João Fábio não
cessava de se solidarizar com as pessoas que agora o procuravam
na cidade. Não apenas remédios, que ele tirava de seu negócio,
enfraquecendo-o cada vez mais, mas também comida e moradia
eram oferendas permanentes que fazia aos necessitados que o
procuravam.
A vida na casa era uma experiência absolutamente fascinante
e, às vezes, constrangedora. A fascinação ficava por conta da
multiformidade de relacionamentos e amizades que aquele rebuliço
social propiciava a todos. Os constrangimentos tinham a ver com a
escassez de tudo, especialmente de comida, pois quando a casa
estava vazia, moravam ali cerca de quarenta pessoas. Nos
momentos de pique, chegaram a residir com os Araújos cerca de
cento e cinqüenta almas, todas mais pobres do que eles, vidas,
aliás, para as quais sua existência era sombra, água, luz, pão,
saúde e esperança.
Não foram raras as vezes em que Zezé teve de cortar as
bananas em dezenas de rodelas e oferecê-las com farinha. Cada
um podia tirar apenas uma rodelinha. O trauma dessa experiência
foi tão grande, que meu pai disse que quando ganhou seu primeiro
salário, a coisa mais urgente que fez foi comprar uma penca de
bananas e tentar comê-la sozinho.
Entre as muitas histórias daquele período há uma que bem
define a dificuldade dos membros da família em se sentirem
totalmente à vontade em casa. Dizem que, numa certa tarde, o Dr.
Fábio estava fazendo curativos nas feridas de um caboclo que
estava em sua casa buscando alívio, quando, no meio do
atendimento, sentiu uma irresistível vontade de soltar gases.
Controlou-se o quanto pôde, mas percebendo que não dava mais
para segurar, pediu licença e procurou a sala ao lado, não sem
antes avisar ao paciente que não saísse da cama. O Dr. Fábio
andou devagar, abriu as pernas e soltou um enorme pum.
Subitamente, ouviu uma voz atrás de si, cheia de perplexidade,
quase como se os anjos tivessem sido flagrados no toalete.
— E dotô também peida? — indagou o irrequieto caboclo.
Vovô virou-se para ele, tomado de estranho prazer ante a
infantil pergunta do paciente.
— Se peida? Ora, os doutores são os que mais peidam neste
mundo — respondeu.
Mas embora a vida dos Araújos fosse marcada sobretudo pelo
estudo, Caio Fábio, meu pai, não pôde ir à escola como todos os
outros. Até os oitos anos, arrastou-se pelo chão da casa.
Naquele tempo, a muleta ainda não lhe estava disponível,
pois era feita de madeira extremamente pesada e ele não tinha
força nos braços para usá-la a contento e com segurança. Por isto,
vovó Zezé tentava ajudá-lo o melhor que podia, fazendo-se de
janela entre meu pai e o mundo, uma janela tão ampla que
permitisse que as dores e alegrias que existiam fora dos portões do
casarão da Japurá pudessem ser percebidas, avaliadas e sentidas.
Aos 11 anos, finalmente a muleta deixou de ser pesada demais
para ele, assim, o caminho para o Colégio Barão do Rio Branco foi
aberto para o menino. Depois de um tempo, ele foi transferido para
o Colégio Dom Bosco, o que o forçava a fazer um percurso de seis
quilômetros de ida e volta.
Como papai chegou à escola um pouco fora da idade, sua
maior dificuldade foi ter de lidar com a estupidez de certos
mestres, que perdiam a paciência quando viam meninos mais
novos sabendo mais que ele e, em vez de procurarem saber o que
havia acontecido, simplesmente diziam: “Menino, é impressionante
como você é burro. Será que não tem vergonha de saber menos do
que esses outros colegas que são menores que você?” Ora, aquelas
perversas observações poderiam ter tido um poder terrivelmente
devastador para ele. Entretanto, o efeito foi o oposto. Caio decidiu
que nunca mais na vida ouviria nada igual.
Como ele não poderia ser o melhor nas aptidões físicas, seria
o mais destacado na área intelectual. Assim que adquiriu um
pouco mais de desenvoltura na leitura e nos básicos da aritmética,
nunca mais deixou de ser o primeiro de qualquer turma, para o
resto de sua vida.
As marcas mais preponderantes da personalidade de papai
foram perseverança e autoconfiança. Vovô sempre dizia a ele: “Meu
filho, não há nada neste mundo que você não possa fazer. Nunca
deixe que nenhum limite tire de você a ambição da auto-
superação.” Foi por isto que papai se destacou em tudo o que pôde
competir de igual para igual e se superou em tudo aquilo que os
outros consideravam ser para ele uma impossibilidade.
Aprendeu a nadar, a cavalgar, a subir em árvores, a lutar
lutas de chão — especialmente se utilizando dos rudimentos do
jiu-jítsu, recém-trazido para o Amazonas por alguns curiosos — e,
sobretudo, aprendeu a dirigir qualquer coisa, mesmo sem a
adaptação do veículo à sua condição de aleijado, o que era uma
verdadeira façanha para um rapaz sem qualquer movimento na
perna direita.
Para ele, o desafio mais difícil talvez estivesse na área do
relacionamento com o sexo oposto. A preocupação de seu pai era
como Caio se relacionaria com as meninas. Desejoso que não se
frustrasse, vovô Fábio dizia-lhe que quando o verdadeiro amor
chega, as deficiências se transformam todas em virtudes. Mas o
jovem Caio Fábio não parecia precisar desse condicionamento
psicológico para se afirmar em relação às beldades de seus dias.
Às vezes, quando ia da escola para casa, andando sob o sol
causticante do eterno verão do Amazonas, arrastando-se ao
embalo de sua pesada muleta, ele via as meninas se juntarem
sobre o estreito espaço das janelas dos velhos casarões erguidos
rente à rua, a fim de verem-no passar.
Não foram poucas as ocasiões em que ele lembra de ter
chegado perto da janela, e ouvir as meninas impiedosamente
falarem alto, umas para as outras, alguma coisa como: “Puxa, que
pena! Um garoto tão bonitinho, mas aleijado que nem um
caranguejo.” Quando ele me contou isso pela primeira vez, eu
perguntei:
— E como é que você se sentia?
Nunca esqueci sua resposta, que muitas vezes me volta à
memória, especialmente nos momentos em que tenho precisado
enfrentar a indiscrição ou mesmo a postura preconceituosa de
muitos que passam pelo meu caminho.
— É, menina, você só está dizendo isso porque você não sabe
como caranguejo é gostoso.
E foi assim que, de um modo ou outro, ele seguiu dando suas
respostas às freqüentes tentativas que a vida lhe fazia de nele
semear as sementes da inferioridade e, assim, roubar-lhe a chance
de escrever sua própria história.
Caio nunca se sentiu em desvantagem diante da vida. Ao
contrário, no fundo, no fundo, achava que Deus dera a ele uma
bênção extraordinária, fazendo-o nascer numa família feita de
gente tão humana e intelectualmente perspicaz, como seu pai e
sua mãe. Além disso, achava que sua perna morta era apenas um
detalhe em alguém tão inteligente e forte como ele.
Uma boa auto-imagem é a melhor auto-ajuda!
CAPÍTULO 4
“Eu não sabia que o mal não tem existência
própria, exceto como privação do bem, e isto no
nível em que o ser não assume o seu papel.”
Santo Agostinho, Confissões
A década de 1930 havia começado e logo cresceram os
rumores de que as coisas estavam feias na Europa. Naquele
tempo, a maioria das famílias de Manaus que tinha algum recurso
financeiro enviava seus filhos para estudar na França, na
Inglaterra ou em Portugal. Uma vez que Manaus ficava mesmo
muito longe do Rio de Janeiro, os que podiam achavam que, já que
de qualquer modo teriam grandes despesas com a educação dos
filhos, era melhor dar a eles a charmosa chance de aprender outra
língua e ainda carregar na bagagem o peso de um curso superior
na Europa.
Por muitos anos, a mentalidade dos manauenses foi
profundamente marcada pela nostalgia da passada era áurea da
borracha. Segundo a lenda, no tempo em que a exportação de
borracha trouxera riqueza à região, alguns magnatas locais
acendiam seus charutos cubanos com notas de alguns réis. A
narrativas como esta somavam-se outras acerca de como o teatro
Amazonas fora construído com material trazido de navio da
Europa e de como prédios inteiros da cidade, como a Alfândega de
Manaus, haviam sido pré-fabricados na Inglaterra e transportados
de navio para aquela orgulhosa cidade cultural, erguida no centro
da mais fascinante floresta do planeta.
Os rumores da guerra eram, obviamente, mais que fofoca
internacional. A Segunda Guerra Mundial explodiu, e o mundo
inteiro, em maior ou menor escala, foi dramaticamente afetado por
ela, inclusive a vida em Manaus.
Uma das primeiras conseqüências foi que os pais que tinham
filhos estudando na Europa mandaram ordens irrevogáveis no
sentido de que a rapaziada — havia ainda poucas moças
estudando fora do país — voltasse para casa. O efeito dessa ação
foi que a maioria, em vez de fazer o caminho de volta à terrinha,
preferiu parar no Rio ou, em segunda instância, em São Paulo,
Salvador ou mesmo em Recife, pois as opções de estudo
universitário no Amazonas ainda não eram muitas. Quem quisesse
ficar em Manaus precisava se contentar em estudar odontologia,
farmácia, ou direito, sendo a última opção considerada a melhor,
uma vez que a Faculdade de Direito do Amazonas orgulhava-se de
já ter formado profissionais que haviam se destacado fora do
estado.
Ora, foi justamente nesta época de guerra e de poucos
recursos que vovô Fábio teve de enviar Renato Fábio e Carlos Fábio
para faculdades fora do Amazonas. Renato foi direto para o Rio
estudar química industrial, recém-inaugurada como curso
superior no Brasil. Carlos Fábio foi para Salvador, cidade onde sua
mãe, dona Zezé, tinha parentes que poderiam ajudá-lo a enfrentar
as dificuldades inerentes a um curso de medicina, sua mais forte
paixão até encontrar Gildélia, baianinha mimosa, de corpinho
mignon, por quem ele caiu de amores e com que veio a casar-se.
As moças da família tinham ficado em Manaus e seus
horizontes tinham de caber dentro das limitadas ofertas da cidade.
Assim era a vida para as mulheres naqueles dias.
A grande questão de Fábio e Zezé era decidir que
oportunidades dariam aos filhos, já que com o perigo das viagens
de navio naquele tempo de guerra e com as dificuldades
financeiras da família, agravadas pela necessidade de sustentar os
rapazes que estudavam fora, ficava difícil imaginar o envio de mais
um dos filhos para longe de casa.
O jovem Caio desejava estudar engenharia civil, curso que
ainda não existia em Manaus.
Dona Zezé e o marido ponderaram longamente sobre o que
fariam com o filho. Apesar da deficiência física, Caio parecia ser
ávido intelectualmente e com grandes chances de vir a realizar
tudo aquilo que desejasse na vida. Mas como? Não havia dinheiro e
eles não queriam sofrer as angústias de não saber se o filho estaria
bem ou não vivendo longe do Amazonas. Além disso, um fato novo
surgiu. Tão logo Renato e Carlos saíram de Manaus para estudar
fora, a saúde de João Fábio começou a mostrar alguma deficiência.
Havia claros sinais de que seu coração não fora fabricado na
mesma fôrma na qual o coração centenário do velho Araujinho
tinha sido produzido. João Fábio estava mal. Cansava-se à toa e
não conseguia mais trabalhar com a mesma intensidade. Como
conhecia muito bem os sintomas físicos de sua doença, não tinha
a menor dúvida de que não duraria muito. Portanto, a coisa mais
sensata a fazer era arrumar a casa e preparar-se para a morte.
Assim sendo, chamou Caio.
— Meu filho, você é forte, apesar de ser aquele entre nós que
mais faz força para conseguir as coisas. Eu não estou bem de
saúde e sei que não tenho muito tempo. Você está apenas com 18
anos, mas é com você que eu conto agora para ajudar sua mãe e
aqueles que ainda estão sob nossa dependência. Restam-me
apenas os proventos de minhas funções públicas. Fora isso, hoje,
nosso único patrimônio é o seringal do Santo Antônio do Cainaã.
Eu preciso que você assuma a administração de tudo. Mas, para
isto, você terá que se sacrificar. Em vez de ir estudar engenharia
civil fora de Manaus, você vai ficar e estudar direito. Você é muito
inteligente e pode ser bom no que quiser. Fique aqui e tome conta
dos nossos negócios — disse-lhe.
Papai ainda não podia medir as implicações daquela decisão,
mas não tinha a menor dúvida que alteraria completamente o seu
futuro. Mas não havia escolha, e ele sabia disso. Não adiantava
muito trazer o assunto para o plano da meditação ou sugerir a
necessidade de mais tempo para pensar. A resposta tinha de ser
imediata e ele sabia que era apenas uma questão de consentir com
o prudente e dolorido veredicto paterno. Quanto ao mais, era
torcer para que a existência conspirasse a seu favor, de algum
modo.
— É claro que sim, paizinho. O senhor sabe que pode contar
comigo para o que o senhor ou mamãe vierem a precisar — meu
pai respondeu.
O cansado, mais cansado do que velho, João Fábio, foi logo
passando tudo para ele: como funcionava o esquema; quem era de
confiança e quem não era; quem pagava e quem jamais pagava;
quem ele sempre atendia e quem eram aqueles para os quais o
tratamento tinha de ser meramente comercial. Ao final daquele
rápido curso de gerenciamento de seringal, o rapaz foi enviado na
primeira embarcação disponível que saiu para o alto Purus.
Começaram ali os mais fascinantes e profundos anos de sua
juventude. Entregue à solidão dos rios e imerso em longas e
intermináveis leituras e meditações, às vezes ele viajava dez dias
para chegar ao porto, onde ainda precisava apanhar uma canoa
para remar mais um dia inteiro até alcançar o lugar que tinha de
visitar e ver como estavam os negócios. Foi ali, naquela paisagem
bucólica, repleta de nostalgia e silêncio, que ele aprendeu o valor
de se fazer acompanhar de si mesmo e de pensamentos que
interajam com a vida e com a natureza, sem jamais imaginar que a
ausência de humanos possa significar a ausência de humanidade.
Ele me dizia: “A solidão pode ser excelente companhia quando
você gosta de si próprio.” Durante aqueles meses meu pai teve a
chance de perceber como a vida no interior do estado era
miserável. Havia gente morrendo por banalidades, por doenças
para as quais já havia cura disponível na cidade. Além disso, ele
ficava chocado com a resignação e passividade das pessoas
daquela região. Era como se houvesse um carma amazônico,
bastante parecido com o hindu, que silenciosamente afirmava para
as pessoas que a morte era uma fatalidade contra a qual toda luta
era bobagem, mesmo na juventude.
Ali ele ouvia as mulheres contarem que haviam engravidado
vinte vezes e perdido 13 filhos, como se estivessem apenas
contabilizando as vezes em que o time de futebol de sua
preferência tinha perdido a final do campeonato.
E ali ele aprendeu como as grandes questões da existência
são reduzidas ao nível da banalidade quando a vida é feita apenas
de farinha de mandioca e água do rio Purus.
Ao retornar à cidade, meu pai percebeu-se extremamente
maduro diante das futilidades e expectativas vazias que norteavam
as vidas de muitos de seus companheiros, preocupados apenas
com as pernas de algumas meninas que se davam ao luxo de expor
os joelhos ou as coxas roliças e belas sob as saias ainda não tão
curtas, ou ainda com as histórias de alguns candidatos a garanhão
que se jactavam de alguma façanha libidinosa.
Ele, entretanto, não conseguia tirar da cabeça os rostos, as
vozes e as histórias radicais, ainda que estranhamente
desapaixonadas, que ouvira no Santo Antônio do Cainaã. O
seringal teria salvado sua vida ou destruído o seu futuro? Mas se
alguma coisa estivesse reservada para ele no amanhã, certamente
isso teria relação com a nova maneira de ver a vida que ele
aprendera ali, quase na fronteira do nada.
Era o ano de 1946 e Caio viajava para o seringal nos períodos
de férias, ou seja, de dezembro a março e em julho. Numa dessas
viagens ao interior, observou um homem estranho, todo
descascado, de pele avermelhada, que tentava encobrir o rosto
quando percebia a aproximação das pessoas. Achando que o
homem estava fugindo da vida, resolveu procurá-lo e indagar o que
estava acontecendo. Para seu espanto, Caio descobriu que o
homem estava com lepra, o que fizera com que a mulher e os filhos
o expulsassem de casa. Mas o pobre doente soubera que o filho do
Dr. Fábio estava no seringal e havia vindo perguntar se o jovem
poderia levá-lo para o leprosário de Manaus.
Conversaram longamente e viram que não havia a menor
chance de que ele chegasse à capital pelas vias convencionais, pois
nenhum transporte coletivo fluvial ousaria deixar que ele entrasse
para fazer a viagem. Assim, chegaram à triste conclusão que o
homem teria de remar sozinho até Manaus. Caio não tinha a
menor idéia se o leproso resistiria à viagem, mas era a única
chance. Caio prometeu que se o homem chegasse vivo, a remoção
dele para uma instituição estaria garantida. Assim, comprou
farinha em abundância e levou o pobre leproso até a beira do rio
Purus, onde disse ao homem que com aquela farinha ele poderia
fazer chibé e garantir sua sobrevivência até o porto de Manaus.
Alguns dias depois Caio apanhou um barco para Manaus e
em duas semanas estava em casa.
Durante todos aqueles dias e noites havia uma angústia
latejando dentro dele. A imagem daquele homem o perseguia como
o fazem os fantasmas, que às vezes povoam nossa consciência em
plena luz do dia.
Dois meses depois, ele estava sentado na varanda da frente
do casarão da rua Japurá quando viu aparecer aquela figura toda
coberta de trapos. Como não conseguia discernir a identidade da
pessoa, resolveu descer para ver quem era. Ao atravessar o
campinho que separava a larga fachada arqueada da casa do
portão de frente, foi identificando a presença descarnada e
semimorta do leproso de Santo Antônio do Cainaã.
Lágrimas vieram-lhe aos olhos aos borbotões. Seu sentimento
de impotência frente ao drama daquele homem plantara nele as
primeiras sementes da descrença religiosa. Se havia um Deus,
como é que Ele consentia que os homens tivessem trajetórias tão
desiguais? E que propósito poderia haver numa existência que
acontecia marcada por tão pesados e incuráveis estigmas? Caio
tomou o homem e o levou para os fundos da casa. Deu de comer a
ele e providenciou sua remoção para o leprosário do Aleixo, às
margens do rio Solimões, próximo ao ponto onde as águas dos rios
Amazonas e Negro fazem seu majestoso encontro e casamento.
A imagem daquele ser humano nunca mais lhe abandonou a
memória. Quando o carro se afastou, levando o doente para uma
lenta e repugnante morte, o jovem Caio ficou pensando que
certamente nunca mais o veria nesta existência, mas que, ao
mesmo tempo, nunca mais o esqueceria nesta vida.
Daquele dia em diante, para ele, a dor humana neste planeta
seria essa: não poder se apropriar de seus amores para sempre e
nem conseguir esquecer suas dores, para sempre.
O leproso mudou sua visão do mundo.
CAPÍTULO 5
“Meus estudos, os quais eram considerados
respeitáveis, tinham o objetivo de me levar à
distinção como advogado nas cortes de justiça,
onde a reputação de um homem é tão alta quanto
seu sucesso na arte de enganar pessoas.”
Santo Agostinho, Confissões
Em 1948, aos 21 anos, meu pai entrou para a Faculdade de
Direito do Amazonas, que funcionava em um prédio construído em
estilo europeu. De lá se podia ver perfeitamente o movimento dos
barcos que atracavam no porto. Aquele era um dos lugares mais
movimentados da cidade de Manaus. Eram pessoas entrando aos
montes nos “motores de linha”, nome dado aos barcos de madeira
que carregavam um número de pessoas em geral bem superior ao
que se esperaria que uma embarcação daquele tamanho pudesse
suportar.
O fato é que os motores saíam apinhados de gente porque a
“rede de dormir” era o instrumento de descanso mais usado pela
população. Assim, usando a rede, era possível “montar” até cinco
“andares” de pessoas dormindo umas sobre as outras nos barcos,
o que aumentava não apenas a capacidade de transporte das
embarcações, mas principalmente o perigo da viagem. E não era
raro que tragédias acontecessem, com a perda de um
extraordinário número de vidas humanas.
Ali de cima do prédio da faculdade de direito, o universitário
Caio podia aprender leis e filosofia sem jamais esquecer suas
obrigações familiares com a gerência do seringal dos Araújos.
O ritual de estudar o ano todo e passar as férias no interior,
cuidando dos negócios, permaneceu até mesmo depois de
terminado o curso.
E logo no início de sua experiência na faculdade, Caio viu-se
diante de um acontecimento desastroso, que poderia ter servido de
forte desestímulo à conquista de seu espaço no mundo
universitário. Certo dia, ao deixar a classe e dirigir-se à saída
principal do prédio, que dava para uma larga e íngreme escadaria,
construída num modesto, porém claramente definido, estilo
romano de fóruns, Caio percebeu que muita gente subia e descia
simultaneamente as escadas.
Ele parou, pensou se deveria esperar aliviar o fluxo e, por fim,
decidiu correr o risco de descer sem apoio, vez que não havia
qualquer adaptação do ambiente ao deficiente físico.
Começou a descer e percebeu que não haveria nenhum
problema. Quando já estava no meio das escadarias, alguém
passou correndo e, sem qualquer cuidado com a fragilidade de seu
equilíbrio, deu-lhe um forte esbarrão. Caio sentiu seu corpo
precipitando-se para a frente e percebeu que não havia meios de
impedir a queda. Restava-lhe, apenas, cair da melhor maneira
possível.
— Se cair se tornar inevitável, então que se caia bem — ele
viria a me dizer muitos anos depois, tirando do episódio uma lição
prática para a vida.
Largou da muleta e tratou de proteger a cabeça e as partes
mais delicadas de seu corpo. Ele estava acostumado a cair. Caíra a
vida toda. Mas não lhe era comum cair em situações que lhe
trouxessem constrangimentos sociais. Nesses contextos, ele se
arriscava o mínimo possível. De repente ele se achou estirado no
final da escada, no patamar de pedra que conduzia à calçada da
rua.
O lugar estava cheio de rapazes e moças. E como nessas
horas há sempre de tudo um pouco, uns logo correram para
ajudar, outros assumiram aquela posição de assistentes de filme,
vendo tudo, mas sem ação no mundo real, enquanto outros, ainda,
deram-se ao luxo de um pequeno riso de sarcasmo e frieza,
denotando uma estranha forma de inveja.
Ali no chão, ele pôde perceber bem as fisionomias de seus
colegas. Não ficou ressentido.
Aceitou a ajuda que lhe deram e foi andando devagar,
sentindo dores em diferentes partes do corpo, mas constatando
que não lhe havia acontecido nada mais grave, além da vergonha
de ter se esparramado em público, rebolando de alto a baixo das
escadarias da faculdade.
No entanto, aquele episódio surtiu um efeito muito positivo
sobre ele. Ao invés de se encolher dentro de um mundo de
complexos e inseguranças, sua atitude foi o oposto: decidiu que
não falaria com tom de voz inferior, que jamais deixaria de descer
as escadarias, mesmo quando estivessem eventualmente cheias de
gente, e mostraria a todos que um homem pode correr na vida,
apesar de suas próprias pernas.
O tombo trouxe forte motivação ao seu coração e empurrou-o
adiante: como sua afirmação pessoal não podia depender de sua
desenvoltura física, ele haveria de se transformar no campeão de
uma outra forma de competência. Nunca teve nota abaixo de nove
e terminou o curso com a melhor média geral da faculdade até
aquele ano de sua história.
Aprovado em concurso para procurador de justiça, optou por
ir trabalhar em Canutama, onde nascera. Para ele voltar para o
interior era como voltar para casa. Afinal, desde os 18 anos ia pelo
menos duas vezes por ano àquela região para cuidar dos interesses
da família no seringal.
Numa daquelas viagens ao interior, no ano de 1951, precisou
estender seu caminho até Borba, a fim de comparecer ao
casamento de um amigo, José Reis, que estava se casando com
Raquel, moça de rosto marcadamente amazônico e sorriso aberto.
Para o casamento também havia sido convidada Lacy Campos da
Silva, professora recém-formada da escola pública de Coari.
O casório aconteceu como de costume, com a bênção do
sacerdote católico e um arrasta-pé após a cerimônia. Os Reis eram
festeiros e não perdoavam qualquer chance de acender o candeeiro
e deixar a sanfona tocar até o nascer do dia. Como Caio não se
sentia à vontade dançando, pois dificilmente conseguiria manter
uma mulher junto à sua pesada muleta sem correr o risco de
machucá-la, resolveu ficar quieto, num dos cantos, trocando um
prosa aqui outra ali, enquanto ria de uma ou outra façanha dos
amigos pés-de-valsa, soltos no salão.
Foi daquele ponto de observação que percebeu que havia uma
outra pessoa igualmente afastada dos movimentos da festa. Ela
era morena, tinha aproximadamente 24 anos, cabelos longos e
ondulados, e dentes amplos, perceptíveis quando ela sorria — o
que, aliás, fazia com muita graça. Depois de se observarem por um
tempo, foram apresentados um ao outro pela noiva, amiga de
ambos, e que sempre nutrira o desejo de vê-los aproximados.
Não deu outra. A química da afinidade foi instantânea. Eles
conversaram a noite toda e nunca mais puderam deixar de se ver.
O namoro veio como coisa natural. Não muito tempo depois, Lacy
foi apresentada ao Dr. Fábio, já bem doente, e a dona Zezé, que a
acolheram com especial carinho. O velho farmacêutico, com
inamovível vocação para a paternidade, pôde, então, chamar o filho
e dizer-lhe: “Minha última preocupação com você acabou hoje. Eu
sempre tive receio de que você se tornasse tímido no amor em
razão de seu defeito físico. Mas agora, vendo você amando um
moça tão boa como essa, sinto-me à vontade para morrer. Deus
ouviu minhas preces.”
Do lado de Lacy, a alegria não era menor. Maria Campos da
Silva, mãe da moça, não poderia estar mais contente, exceto por
uma razão: o Dr. Caio Fábio era de família católica, e Lacy, a mãe e
o irmão, Lucilo, eram protestantes. Presbiterianos, mais
precisamente.
Naquele tempo ainda havia muito preconceito, de ambos os
grupos, um em relação ao outro.
Os católicos chamavam os crentes de bodes e de hereges
fanáticos, enquanto os protestantes, por seu turno, atacavam como
podiam: não cessavam jamais de pregar e de fazer fortíssimas
denúncias ao culto às imagens praticado pelos católicos e a muitas
outras formas de desvios bíblicos, conforme a interpretação
reformada da fé.
Mas o amor era mais forte do que os dogmas da religião. Por
isto, Caio e Lacy fizeram um pacto de respeito mútuo naquela área
e prometeram que não tentariam converter um ao outro.
A história de Lacy era totalmente diferente da de Caio. Ela
nascera em uma família muito mais simples e não pudera ter
acesso ao estudo de nível superior, chegando a concluir apenas o
curso clássico, que formava professoras primárias. Sua mãe, Maria
Campos da Silva, havia nascido no interior do Amazonas, em
1898. Do avô, Mariano, e da avó, Mariana, sabia-se muito pouco,
além do fato de que Mariana falecera cedo, quando a filha tinha
apenas quatro anos, sendo seguida pelo marido para a eternidade
dois anos depois, o que transformou Maria em uma criança
inteiramente órfã. Não fosse a bondade de uma tia que a criou, a
menina certamente teria tido futuro muito melancólico.
De Firmino, pai de Lacy, nascido em 1881, em Quixadá,
Ceará, sabia-se ainda menos. Era filho de uma mulher que se
casara aos 11 anos, chamada Isabel, com um homem bem mais
velho, o seu Deodato. Naquele tempo, esse tipo de casamento de
crianças com homens adultos, às vezes até avançados em idade,
era muito freqüente. Como nem sempre era fácil arranjar uma
esposa no interior, era comum que homens respeitáveis do lugar
encomendassem o casamento com o pai de uma menina, às vezes
ainda bebê. É possível que esse tenha sido o caso.
Maria era uma mulher muito interessante. Não tendo
nenhum antecedente protestante na família, sozinha e até contra a
opinião de amigos e vizinhos, decidiu, aos 35 anos, converter-se à
fé calvinista, tornando-se presbiteriana. Mesmo não tendo
estudado além do terceiro ano primário, desenvolveu uma certa
capacidade autodidata, especialmente depois que seu amor pela
leitura da Bíblia se manifestou.
Mas suas maiores sensibilidades eram-lhe absolutamente
inerentes. As mais impressionantes eram o seu amor pela natureza
e a sua fantástica capacidade olfativa. Para ilustrar seu fascínio
pelas belezas da criação, basta dizer que ela acordava cedo todos
os dias, por volta das quatro horas da manhã, lia a Bíblia, fazia
orações e, depois, punha-se à janela da casa, quieta, meditativa,
esperando o sol nascer. Para ela, aquele era o momento mais
bonito do dia e quem quer que o perdesse havia desprezado a
primavera da luz natural, o que lhe parecia incompreensível.
Entretanto, o que mais impressionava em Maria era sua
capacidade de discernir cheiros, aromas, fragrâncias e odores.
Quando entrava num lugar, ela não apenas sentia o cheiro
característico daquele ambiente, mas também sabia que odores,
reunidos, resultavam naquele sentir olfativo específico. Não era
raro ela dizer: “Hum! Essa moça que acabou de passar misturou
talco com pomada Minâncora e, ainda por cima, colocou Leite de
Rosas com um outro perfume no corpo. Tá cheirando a sovaco de
rico.” Ela também podia entrar num quintal, inspirar os odores na
entrada e, mesmo sem ver o que lá havia, simplesmente observar:
“Que maravilha! As mangas-rosa e os jenipapos estão maduros.
Que delícia!” Maria tinha uma maneira quase litúrgica de se
relacionar com os cheiros. Uma das coisas mais rotineiras que ela
fazia era varrer as folhas secas do quintal e jogá-las num buraco
que ela mantinha sempre aberto. Uma vez feito isso, tocava fogo
nas folhas e sentava-se de longe para inspirar o cheiro que exalava
da fogueira, dizendo: “Que coisa gostosa, cheiro de folha queimada.
Tem cheiro do quintal de minha tia.” Para ela, aquele ato
tinha dimensões espirituais. A fumaça era como um incenso de
aroma suave, que subia às narinas divinas e dava a Deus um
imenso prazer pela gratidão da memória de Maria, ao pôr-do-sol de
mais um dia em sua vida.
Essa mulher de hábitos fortes casou-se com Firmino em
1924. Mas naquela época, no interior do Amazonas, paixão e amor
ainda eram coisas secundárias quando se tratava de decidir um
vínculo conjugal. E a união de Maria e Firmino resultou em um
relacionamento muito difícil.
Firmino crescera órfão e vivera como homem livre de padrões
morais definidos. Sendo foguista de embarcações a vapor, não
parava em casa. Às vezes ficava cinco ou seis meses sem aparecer.
E nos portos onde parava, sempre se agarrava a alguma saia.
Dizem que ele tinha um apetite sexual medonho. As mulheres
que se lhe mostravam disponíveis eram imediatamente usadas, e
aquelas que não estavam assim tão “à mão” eram muitas vezes
seduzidas por sua lábia cearense. O fato é que ele teve de arcar
com as conseqüências de ações tão libertinas. Tendo conhecido
tantas caboclas diferentes e se atolado em tantos seios, cabelos e
corpos, cheio de tamanha avidez, acabou por encontrar ali não
apenas o prazer, mas, sobretudo, a dor e a morte. Naquele tempo,
a gonorréia matava, ou debilitava tanto, que levava lentamente à
morte.
Depois de muito se expor às doenças venéreas, acabou em
casa e doente, tendo de conviver, dia a dia, com o poder dos
prazeres amaldiçoados, que o tomaram pela mão até o silêncio da
última e eterna viagem.
Ainda hoje eu me lembro dela contando como havia cuidado
do marido até o fim, embora tivesse avisado que ele jamais voltaria
a tocá-la com aquelas “mãos sujas de pegar em tanta mulher”.
Foi com esse pano de fundo que Lacy entrou na vida de Caio,
e por mais que ela lutasse contra a idéia, sofria de um certo
complexo de inferioridade em relação à família dele. Some-se,
ainda, a isso tudo, a própria mentalidade protestante da época,
tomada por profundo complexo de perseguição. Para Lacy, era
difícil construir uma ponte para fora de seu pequeno mundo, uma
ponte que a transportasse para um espaço, bem maior em suas
ramificações, vínculos e oportunidades.
Por fim, em 2 de maio de 1953, Caio e Lacy casaram-se em
regime de comunhão de bens, mas sem a bênção religiosa, pois
nenhum dos dois conseguiu convencer suas famílias a consentir
com o casamento na igreja do outro. Após o casamento,
arrumaram suas trouxas e partiram para Canutama, onde Caio
exercia a função de promotor de justiça do estado, e onde Lacy
passou a lecionar no grupo escolar.
Em agosto daquele mesmo ano os dois começaram a se
preparar para notícias de desalento.
Em Manaus, os membros da família já começavam a reunir-
se em torno do leito de Dr. João Fábio, que, irreversivelmente,
começava a morrer.
CAPÍTULO 6
“Hoje tenho mais pena de uma pessoa que se
regozija no mau do que daquele que tem o
sentimento de ter sofrido ao ser impedido de
participar em prazer pernicioso ou como tendo
perdido uma fonte de felicidade miserável.”
Santo Agostinho, Confissões
João Fábio de Araújo morreu em profunda agonia. Não
conseguindo mais respirar, atacado que estava há muitos anos por
deficiências respiratórias gravíssimas resultantes de um mal
cardíaco à época incurável, veio a falecer em grande ansiedade.
Seu sofrimento foi bárbaro. O ar não lhe chegava ao peito, e ele
pedia a Deus que o aliviasse das infernais sufocações que o
desesperavam. Entre os filhos e amigos presentes o clima era de
dor e perplexidade. Como Deus podia deixar sofrer tanto um ser
humano que na vida não fizera nada além de dedicar-se, inteira e
apaixonadamente, à causa dos pobres e órfãos? Que propósito
teria Deus em tudo aquilo? Ou ainda — como era o caso das
questões de Caio Fábio — que Deus era esse (se é que havia
algum), que consentia com dor tão estúpida e sem sentido? Às
nove horas da manhã, do dia 11 de setembro de 1953, João Fábio
partiu para o eterno. O espírito daquele dia de luto foi expresso por
Arthur Virgílio em seu artigo João Fábio de Araújo, bondosa figura
de lidador, escrito em 18 de setembro e publicado em 27 do mesmo
mês no maior periódico da época em Manaus, O Jornal do
Comércio.
O povo acompanhou a pé o enterro de vovô e levou-o até o
cemitério, onde o sepultou na mesma cova em que, no ano de
1931, ele próprio enterrara seu filho Luís Ricardo.
Ainda hoje João Fábio vive em todos nós, que dele
descendemos, pois mesmo não chegando a conhecê-lo no chão
deste planeta, nunca consegui me livrar da ética que ele praticou.
De meus anos de criança, não me ficou a impressão de que meus
tios e parentes fossem pessoas que dessem muita ênfase ao certo
ou errado. O que minha memória registrou foram frases que se
faziam constantes nos lábios de todos eles, frases que apontavam
numa direção para muito além da moral. “Ele é um homem
humano”; ou ainda: “Isto não é humano”, era o que diziam com
freqüência quando emitiam seus “juízos de valores”.
As histórias de vovô me ensinaram que “ser humano” é muito
“mais certo” do que “ser correto” . Às vezes, ao contrário, para ser
humano, é até preciso ser “incorreto” com relação aos chamados
“conteúdos do comportamento preestabelecido”. Para ser humano,
mais que freqüentemente é necessário viver onde o risco de não ser
compreendido sempre se faz presente.
A “ética do humano” tem como referência padrões que não se
escrevem em códigos de conduta estudáveis, vez que são valores
que brotam de intuições do amor e da solidariedade e, nesse nível
da existência, o que menos importa é a média dos comportamentos
aceitáveis. Neste caso, o que prevalece é a disposição do coração de
enfrentar o mundo inteiro somente para não negar um sentimento
ou uma intuição, seja em favor de alguém ou de uma simples idéia.
Caio e Lacy continuaram em Canutama por mais dois anos.
O tempo passava calmo, porém tedioso, até que em julho de 1954
Lacy ficou grávida de seu primeiro filho, razão pela qual, no início
de 1955, resolveram voltar a Manaus.
Eu nasci em 15 de março de 1955, na Santa Casa de
Misericórdia de Manaus, às cinco horas da tarde de uma terça-
feira.
No mesmo dia jorrou petróleo em Nova Olinda, no rio
Madeira, quase na sua confluência com o rio Amazonas, o que fez
com que meu pai saísse do hospital gabando-se de que na sua
casa havia brotado algo igualmente precioso.
Papai e mamãe já estavam decididos quanto ao nome que eu
deveria ter. Tiveram dúvida, no início, se me chamariam Hugo ou
Caio, mas como naquela época era comum dar o nome do pai ao
primogênito, optaram por Caio mesmo. Além disso, eles gostavam
do significado latino do nome: bordão, cajado ou alegria. E, assim,
me registraram com esse nome, que na infância me trouxe
inúmeros problemas e que se tornou a razão de vários complexos
que tive de vencer no início da adolescência.
Passado o resguardo de mamãe, fomos juntos para
Canutama. Lá, além de dedicar-se ao trabalho como servidor da
justiça, papai investiu tempo numa nova arte: a marcenaria.
Começou a fazer com as próprias mãos o meu berço, bem como os
demais móveis da casa. A mesmice e o tédio do lugar permitiam
que meus pais se devotassem inteiramente a mim, o que eles
precisariam fazer de qualquer forma, pois logo comecei a dar muito
trabalho. Aos seis meses tive uma coqueluche tão forte, que eles
pensaram que eu fosse morrer. Perdia o ar por longos minutos e
ficava arroxeado a ponto de minha mãe, às vezes, pensar que eu
não fosse voltar da crise. Por causa disso, e de uma nova posição
que papai conquistara como subprocurador geral do estado, eles
decidiram voltar para Manaus de vez.
A coqueluche se foi, mas a mania de chorar ficou. Todos que
me conheceram nos primeiros anos de vida dizem que fui um
grande chorão. Além disso, sofria de uma fome insaciável e,
enquanto não era atendido nos meus clamores por comida, não
deixava ninguém em paz. E a gritaria começava muito cedo, às
quatro da matina, quando desferia os primeiros berros,
machucando os ouvidos de todos, até dos vizinhos, que às vezes
vinham se oferecer para me segurar enquanto minha mãe fazia o
mingau.
— Gagau, gagau — eu gritava, desesperado, até me trazerem
a papa das quatro da manhã.
Em 1957, papai decidiu deixar o serviço público,
abandonando, contra a opinião geral, a posição que conquistara no
estado, a fim de abrir seu próprio escritório de advocacia em
Manaus.
Sua pequena iniciativa vingou e três anos depois ele já
começava a ser visto como um dos mais promissores nomes da
profissão. Mas ele era ambicioso e não se contentou apenas com os
ganhos que o exercício do advocacia lhe rendiam.
Em 1958, criou a Colimpa S.A., uma sociedade de sete
pessoas, mínimo permitido pela lei para uma sociedade anônima
naqueles dias. Ele e o político, que entraria para sempre para a
história do Amazonas, Gilberto Mestrinho, eram os acionistas
majoritários, ainda que, legalmente, o último fosse representado
por Antônio Lindoso, cujo irmão, José Lindoso, anos depois,
durante a ditadura militar, viria a ser governador do estado.
A companhia explorava ouro na região de Parauari e seu
Adriano, um negro de Barbados que descobrira a jazida, era quem
entrava na mata para buscar a preciosidade.
Dois anos depois, em companhia de alguns amigos, papai
abriria a Compaina, que explorava borracha e castanha na região
do rio Novo Aripuanã. No mesmo ano, o então governador Gilberto
Mestrinho nomeou-o diretor comercial da Papel Amazon, empresa
de capital misto, estadual e federal.
Enquanto isso, ele seguia usando sua crescente influência
política para aumentar seu capital relacional como advogado, uma
vez que, logo no início, percebeu que saber “quem é quem”
constitui capital que poucos conseguem adquirir e menos ainda
conseguem usar bem. E isso ele sabia fazer muito eficientemente e
em proveito próprio, é claro.
CAPÍTULO 7
“Eu estava sem qualquer desejo por alimento
incorruptível, não porque eu estivesse repleto dele.
Ao contrário, quanto mais vazio dele eu estava,
mais desagradável ao paladar tal alimento se me
tornava.”
Santo Agostinho, Confissões
Papai e mamãe compraram um terreno nos fundos da casa de
vovó Zezé e construíram ali a nossa primeira casa. Os dois quintais
se encontravam e formavam um só. Para mim, as lembranças
daquele tempo são repletas de imagens mágicas. O quintal era o
mesmo do tempo da infância de meu pai e as mudanças no
ambiente não tinham sido muitas.
Naquele pedaço de chão havia tudo que as crianças
pudessem desejar para mergulhar no mundo da imaginação. Além
dos primos que viviam no casarão da vovó Zezé, havia ainda os
filhos dos vizinhos, que pulavam o muro e se perdiam em
aventuras que iam de Tarzan a Ivanhoé, do Zorro ao Fantasma e
de Robin Hood a Hércules.
Naquele mesmo período, manifestou-se o início da veneração
que eu teria por meu pai.
— Bambio, papai, tum-tum, bobó — era como eu pedia todos
os fins de tarde para ele me fazer montar em sua costa (tum-tum) e
me levar até a casa da vovó Zezé (bobó).
A fascinação que ele exercia sobre mim tinha a ver com sua
infindável paciência para brincar de luta comigo, sempre fazendo
de conta que eu ganhava, ou com a repetição incansável de
malabarismos, quando eu subia nele e me sentia um trapezista
fazendo peripécias nas alturas.
— Onde você pensa que vai, menino? — perguntava mamãe
de propósito, sempre que me via com um monte de processos
legais de papai embaixo do braço.
— Vô pu tibunal levá os pocessos po papai — era como eu
pagava a paciência que ele me devotava, com admiração.
Nós, os “filhos do quintal”, éramos um monte de meninos
com nomes comuns, mas marcados pelo segundo nome Fábio. Já
as meninas tinham tido a sorte de não ser Fábias. Os garotos eram
João, José, Paulo, eu e meu irmão Luiz. Todos Fábios. As garotas
eram Sônia, Ana e minha irmã Suely.
Tínhamos a sorte de viver naquela terra encantada. A
presença de nossas avós também era forte em nossas vidas, e eu e
meus irmãos éramos os únicos com duas de plantão e cheias de
cafuné à nossa disposição. Quando eu queria leite condensado no
meio da tarde, bastava ir ao casarão de dona Zezé. Ela sempre
tinha umas latas guardadas para fazer os nossos gostos.
Quando chegava a hora do banho, eu voltava para minha
casa, onde Mãe Velhinha, como eu acabei chamando minha avó
Maria, me aguardava para me lavar todinho. Depois do banho, no
início da noite, vinham as músicas e as histórias que ela nos
contava.
Mãe Velhinha nos marcou profundamente de modo bom e
mau. A parte boa inclui suas histórias, suas lendas amazônicas,
sua capacidade de fazer a gente sentir cheiros, sua insistência em
nos fazer gostar de animais, plantas e cores, especialmente as do
amanhecer e as do pôr-do-sol. A parte ruim tem a ver com sua
insistência em nos tirar da cama no melhor do sono, às cinco da
matina, para nos fazer ver o sol nascer.
Além disso, havia também sua chatice de dividir o mundo
entre católicos e protestantes, dizendo sempre que os primeiros
estavam irremediavelmente perdidos e os últimos inevitavelmente
salvos. Cansava. Lembro-me de às vezes ouvi-la dizer coisas do
tipo: “Que pena que dona Zezé é católica. Tão boa, mas tão
perdida.” Ou ainda: “É, que pena. Teu pai não vai para o céu.
Enquanto ele for católico, não vai mesmo.” A coisa que mais
espanta meus pais é a minha memória infantil. De fato, tenho
recordações de períodos tão longínquos quanto os meus dois anos
e meio de idade. Por exemplo, lembro-me, nitidamente, do primeiro
castigo que recebi. Papai havia dito que eu não pegasse em algo, e
eu o desobedeci sistematicamente. Ele, então, me colocou de
castigo: eu não poderia sair da sala, do quarto e da alcova, onde o
chão era de cerâmica amarela. Para fora desses limites, o chão era
de cerâmica vermelha. Por isto, a partir daquele momento, eu me
sentia em liberdade nos chãos amarelos e não nos vermelhos.
Recordo-me que, aos cinco anos, senti uma fortíssima
vontade de pegar a filha de um vizinho e sentá-la em meu colo,
sem nem saber direito por que razão aquela estranha sensação de
excitamento percorrendo meu corpo. Fiquei ali, na frente da casa
deles, sentado, com a menina no meu colo, até que fomos
flagrados. De repente, a mãe dela chegou, nos pegou, gritou, e me
chamou de tarado. Afinal, a garotinha tinha a minha idade, mas a
iniciativa tinha sido minha.
Daí em diante, a coisa correu solta. Todos os dias, depois que
chegávamos da escola, enquanto o pessoal da vizinhança fazia a
sesta, vivíamos aqueles inocentes momentos de promiscuidade
infantil, atrás das árvores, embaixo dos galinheiros, escondidos no
porão da casa de vovó, ou em qualquer brecha em que coubessem
duas crianças brincando de papai e mamãe ou de médico.
Aquelas “brincadeiras” tomaram proporções enormes em
minha mente. Aos sete anos, passava grande parte do tempo
pensando no que poderia fazer para aproveitar novas
oportunidades naquela área. Nossos pais, bem como toda a
vizinhança, pareciam absolutamente inconscientes quanto ao que
acontecia a alguns de nós. E mesmo a maioria dos “filhos do
quintal” parecia estar alheia aos jogos de sexo infantil que ali
aconteciam.
E como eu me sentia irremediavelmente masculino, não podia
nem me imaginar em qualquer papel, naquelas diversões precoces,
em que não estivesse na condição de extremamente ativo e
possuidor.
Mas o quintal e as memórais dos primeiros anos não eram
feitos só disso. Para a maioria das crianças ali, aquele era de fato
um mundo inocente e mágico. E não faltavam os ingredientes
necessários ao estímulo da fantasia naquele pedaço de chão.
Doutor Américo era a figura mais exótica que nós todos
conhecíamos naquele espaço mítico.
Era alto, magro, costelas expostas a ponto de poderem ser
contadas a distância, cabelos negros e longos, caídos sobre os
ombros. O rosto era comprido e os olhos faiscantemente
enlouquecidos.
O homem era poeta. Declamava versos de sua própria autoria
e não parava de andar nu, exibindo naturalmente seu longo pênis,
à semelhança dos grandes cavalos que pastavam no campinho em
frente ao casarão de vovó Zezé, que também tinham seus membros
sexuais pendurados à vista de todos.
Doutor Américo era o humano mais selvagem que nós todos
conhecíamos. Ele era o ponto de contato entre o animal e a alma.
Andava nu, como um bicho, mas caminhava cheio de poesia, como
poucos humanos o faziam. Não me chocava ver a nudez do poeta
mais do que a dos cavalos.
Ele também era um ser livre e vivia sua animalidade com
melodia insana. A esposa do doutor era uma mulher de traços
notadamente indígenas. Ora, ele nos falava das virtudes femininas
dela com grande poesia.
— Alexandre, o Magno da Macedônia, Sidney Galtama e Iléia
Amazônica são os nomes dos meus filhos. Mas os senhores podem
chamar a menina de Mococa — dizia o nosso vizinho diferente,
sempre fazendo alusões gratuitas aos seus três filhos, que viviam
entre nós e eram nossos amigos de fantasia no quintal.
O poeta louco marcou a mente infantil de todos nós. Além do
poeta, havia uma jibóia que era mantida no porão da vovó por um
dos muitos “filhos de criação”. Era a cobra do Xico Sobe e Desce,
como a gente chamava aquele menino que mancava de uma perna.
Ela cresceu tanto, que um dia, enquanto Xico dormia numa rede, a
bicha enroscou-se nele. O acocho foi tão forte que o Sobe e Desce
teve de sair pelo punho da rede. Xico quase morreu de susto.
Então matamos a danada num ritual dramático, cortando-lhe a
cabeça e pondo-a num vidro com álcool.
Lá em casa, no outro extremo do terreno, nós chegamos a ter
cavalos, ovelhas, um jacaré e um macaco, além de araras,
periquitos, galinhas e outros bichos, pois papai adorava satisfazer
nossas fantasias selváticas e Mãe Velhinha, mesmo que a
contragosto, acabava cuidando da bicharada.
Nossas noites eram absolutamente extraordinárias. Naquele
tempo, não havia televisão em Manaus. Entretanto, tio Carlos
Fábio, o médico, que também residia no casarão, resolveu dedicar-
se ao hobby das filmagens. Assim, comprou uma câmera de
cinema amador, um projetor e montou um estúdio de revelação em
preto-e-branco. Ele filmava brincando, brigando, correndo ou
mesmo representando algum papel, e exibia os filmes em noites
concorridíssimas, onde nós e a garotada da vizinhança nos
amontoávamos para assistir nossas versões artísticas da vida. Era
o máximo. Foi ali que fiz meus primeiros discursos.
— Esses tal de Plínio Coelhos são uns, uns, uns,... (ra,ra,ra),
uns cabra. Esses tal de Gilberto é que são bom — dizia eu,
imitando os discursos dos comícios que Mãe Velhinha me levava
para ver na praça Quatorze.
O processo de produção e revelação do filme também nos
empolgava, especialmente porque o lugar onde tio Carlos revelava
o material era o porão do casarão, onde tinha seu laboratório,
sempre trancado e sob muitas recomendações de que não deveria
ser violado.
Lembro-me que na primeira vez que nos foi dado acesso à
“sala escura”, entramos nas pontas dos pés, como se entra num
santuário que, em vez de carregar em si o sabor do sagrado,
escondia consigo o mistério do proibido. Todos estávamos calados
quando tio Carlos resolveu contar o segredo da revelação dos
filmes, guardado num produto que ficava num vidro largo e
barrigudo. Ele disse solenemente: “Aqui está o líquido da mágica
do filme.” E parou olhando para todos nós. Nossos olhos estavam
arregalados de prazer e encanto. E prosseguiu: “Agora se
preparem. Eu vou abrir.” E aí então saiu de dentro daquele vidro o
mais terrível cheiro que eu jamais sentira em todos os meus sete
anos de vida. Titio então gritou: “É o peido alemão.” Todo mundo
correu. Alemão, para nós, era símbolo de algo que matava. Nunca
me esquecerei do cheiro.
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  • 2. Confissões do PastorConfissões do Pastor Caio Fábio Editora Record ISBN 8501049107 Baixado do site do autor: http://blog-caminho.blogspot.com/ Digitalizado por ? Reeditado por SusanaCap www.semeadores.net Nossos e-books são disponibilizados gratuitamente, com a única finalidade de oferecer leitura edificante a todos aqueles que não tem condições econômicas para comprar. Se você é financeiramente privilegiado, então utilize nosso acervo apenas para avaliação, e, se gostar, abençoe autores, editoras e livrarias, adquirindo os livros. SEMEADORES DA PALAVRA e-books evangélicos
  • 3. Sumário (Clique) Apresentação Introdução PARTE I Confissões de Morte e Vida Capítulo 1 Capítulo 2 Capítulo 3 Capítulo 4 Capítulo 5 Capítulo 6 Capítulo 7 Capítulo 8 Capítulo 9 Capítulo 10 Capítulo 11 Capítulo 12 Capítulo 13 Capítulo 14 Capítulo 15 Capítulo 16 Capítulo 17 Capítulo 18 Capítulo 19 Capítulo 20 Capítulo 21 Capítulo 22
  • 4. Capítulo 23 PARTE II Confissões de Dúvida e Fé Capítulo 24 Capítulo 25 Capítulo 26 Capítulo 27 Capítulo 28 Capítulo 29 Capítulo 30 Capítulo 31 Capítulo 32 Capítulo 33 Capítulo 34 Capítulo 35 Capítulo 36 Capítulo 37 PARTE III Confissões de Desespero e Esperança Capítulo 38 Capítulo 39 Capítulo 40 Capítulo 41 Capítulo 42 Capítulo 43 Capítulo 44 Capítulo 45 Capítulo 46
  • 5. Capítulo 47 Capítulo 48 Capítulo 49 Capítulo 50 Capítulo 51 Capítulo 52 Capítulo 53 Capítulo 54 Capítulo 55 Capítulo 56 Capítulo 57 Capítulo 58 Capítulo 59 Capítulo 60 Capítulo 61 Capítulo 62 Capítulo 63 Capítulo 64
  • 6. APRESENTAÇÃO Era uma vez um jovem rebelde, arruaceiro e dissoluto que amava “alucinadamente” as mulheres e fumava maconha e cheirava cocaína no mesmo ritmo que dirigia sua moto — mais do que uma alma perdida, era a promessa de um legítimo cafajeste. Um dia, esse moço acordou aos gritos achando que estava com uma cobra sucuri enrolada no corpo, mordendo-lhe o braço e inoculando-lhe veneno. Era uma visão, claro, não uma cena real, mas foi como se fosse. Caio Fábio tinha então 19 anos, já estivera perto da morte por acidente ou suicídio, e aquela foi a última vez que, simbolicamente, se sentiu possuído pelo demônio. No dia seguinte, decidiu, iria nascer de novo: “Vou viver com Jesus e ser um homem de Deus para o resto da minha vida.” Convertido, o jovem acabou se tornando pastor protestante, assim como seu pai, um agnóstico que certo dia, lendo a Bíblia, também se convertera e abandonara tudo, inclusive um próspero escritório de advocacia do qual era sócio o senador Bernardo Cabral, ex- ministro e presidente da CPI dos precatórios. As memórias que Caio Fábio lança agora encerram mais do que a conversão de uma alma desgarrada que escolheu como referência não um presbiteriano como ele, mas um santo, Santo Agostinho, cujas Confissões pontuam como epígrafes os capítulos do livro, criando um curioso contraponto católico a essa saga protestante. Encerram mais do que isso. As Confissões são também a emocionante aventura de uma vocação pastoral sem temor e sem preconceitos, que sobe os morros, entra nos presídios, freqüenta palácios, catequiza traficantes, batiza governador, é perseguida politicamente, e nada abala a sua crença de que o Evangelho é imbatível, de que tem o poder de “mudar bichos, monstros e pervertidos”. No livro, como na vida, pode-se encontrar esse pastor tão pouco ortodoxo em Bangu I convertendo Gregório, o Gordo, o maior ladrão de carros da história do Brasil e estrategista do
  • 7. Comando Vermelho. Ou batizando o perigoso traficante Isaías do Borel, contaminado pelo vírus do HIV: “Isaías, eu te batizo em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo.” E pode estar também, algumas páginas depois, na casa da maior autoridade do Estado: “Em maio de 1994, batizei o governador do Estado, Nilo Batista, e sua esposa, Vera Malagute Batista.” Que outro líder espiritual seria capaz de uma ação pastoral tão arriscada, eclética e ecumênica? As incursões de Caio Fábio, ou melhor, sua imersão permanente no mundo profano, na vida real, lá onde mora o pecado, custaram-lhe incompreensões e inimizades, não só de adversários de crença e de ética como de autoridades políticas e administrativas. O governador Marcello Alencar, por exemplo, abriu contra ele e sua principal obra social, a Fábrica de Esperança, uma guerra que incluiu pesadas denúncias, uma ocupação branca, auditorias e ameaça de interdição do espaço sob a alegação de que ali havia tráfico de drogas. Também com César Maia houve mal-entendidos e bate-bocas públicos. O então prefeito chegou a apelidar Caio Fábio de “Pastor do pó” — pelo menos até visitar a Fábrica e se convencer da importância social do projeto, que passou então a respeitar e apoiar. Como se vê, o livro não é apenas a aventura de um pecador e sua conversão. É também um pouco da história do Rio de Janeiro dos anos 90 — com os episódios que se inscreveram em nossa memória recente: a violência urbana, a criminalidade, a delinqüência, o escândalo do jogo-do-bicho, a ocupação das favelas pelo Exército, a criação da Casa da Paz de Vigário Geral, as trapaças do bispo Macedo, o Viva Rio, a campanha do Desarme-se, e muito mais. Há na primeira parte do livro uma intenção edificante que incomoda pelo menos os que não têm muita fé. Será que a ênfase posta na perdição, naquela fase de juvenil entrega ao pecado não é um processo retórico para valorizar e engrandecer a conversão? A credulidade com que esse missionário investe nos pecadores barra- pesada também pode parecer meio ingênua? Valerá a pena converter bandidos? Não será uma opção preferencial pelo algoz mais do que pela vítima? Essas dúvidas, que costumam ser
  • 8. levantadas por sua ação pastoral, não abalam as convicções do pastor. Ele acredita na conversão — na sua e, por conseqüência, na dos outros. Muitas vezes recorre a Jesus para explicar algumas de suas posições: “Jesus morreu entre ladrões, mas não os livrou da execução.” A sua ingenuidade pode se transformar em frio realismo. “A vida de vocês é burra”, é capaz de dizer para um traficante. “Tenho visto vocês morrerem todos os dias. Quem não morre vai para Bangu I, o que é morte também. Vocês são instrumentos úteis nas mãos de um pessoal que nunca é apanhado e que mantém essa porcaria funcionando.” Lições como essas — muito antes de ficar evidente que a conexão internacional do tráfico, essa, sim, milionária, passa longe desses pés-de-chinelo cuja alma Caio Fábio tenta salvar, já que não pode fazer o mesmo com a vida — demonstram que esse pastor sabe onde pisa. Conversa com Deus, não abandona o Evangelho, vive distribuindo bênçãos mas, por via das dúvidas, conhece tudo o que se passa na vida terrena. O espiritual sem o social é um círculo vicioso que não ajuda a virtude. É mais fácil ser pecador com a barriga vazia. ZUENIR VENTURA escritor, jornalista e editor especial do Jornal do Brasil Aos muitos seres que me habitam a alma, os que conheci na Terra e aqueles que apenas encontrei em sonhos e pesadelos, e que são a matéria-prima de minha existência humana, dedico este livro de confissões. INTRODUÇÃO Por que escrevi estas confissões? Talvez apenas porque nunca as tivesse escrito antes. Pode ser, entretanto, que as tenha escrito a fim de poder usufruir do direito de andar o mais perto possível de um desejado estado de nudez pelo qual meu ser sempre almejou. E quem dera pudesse eu me despir por completo. Mas
  • 9. isto só seria possível se eu fosse um ser numa ilha deserta e, então, não haveria razão nenhuma para desejar tão intensamente tirar a roupa, pois a nudez só é percebida na presença de outros. Além disto, jamais poderei me desnudar por completo neste mundo, pois esse exercício sempre expõe outras almas, visto que não existo em concubinato com meu eu apenas, mas com a multiplicidade de outros amores e vínculos humanos, todos tendo o direito de não desejar se despir, apenas porque hoje eu assim o quero. Esta é a razão pela qual várias pessoas que andaram ao meu lado nesta jornada, todos personagens reais, tiveram seus nomes alterados. E aquelas histórias que mesmo “cobrindo os nomes verdadeiros”, ainda assim delatavam os seus personagens de modo inconveniente, deixei de lado. Somente usei os nomes dos seres históricos que a mim se aliaram ou em mim encontraram desprazer, se tais ocorrências e fatos a eles relacionados foram inegavelmente públicos. Há um tempo para todo propósito e para a realização de cada coisa neste mundo. Esta é a minha estação de fazer confissões de morte e vida, de dúvida e fé, de desespero e esperança. E qual foi o start deste processo em minha alma? Sem dúvida ele vem de eras psicológicas tão longínquas, que certamente me precedem no tempo. Talvez eu esteja apenas trazendo à luz um desejo do meu coletivo familiar, e até de gente que já se foi há muito, mas que partiu sem ter feito o ato de confissão que aqui faço. No que me diz respeito, estas confissões nasceram como necessidade em mim desde a primeira vez que registrei a consciência do encoberto, quer tenha sido apenas um pensamento maligno, quer um sentimento sublime ou um ato velado e sutilmente imoral, mesmo que praticado na minha mais tenra infância. E lendo este livro, você encontrará razões sobejas para que ele exista na forma em que aqui está. Historicamente falando, no entanto, faço estas confissões fundamentado em três percepções da realidade. A primeira tem a ver com minha total consciência do poder terapêutico que este livro de strip-tease psicológico teve para mim e terá para você. Puxei um fiapo na minha alma e achei uma grossíssima corda de amarrar navio atada bem no cerne de meu ser. Desfazer esse nó foi
  • 10. exercício terapêutico e tarefa de cura para o meu interior, e poderá ser para você também. A segunda percepção tem a ver com meu desejo compulsivo de queimar algumas pontes. Após ler este livro, você certamente perceberá como estou encurralando minha vida numa única opção: ser apenas o que tenho sido até aqui, em Deus, pois quem conta as histórias que aqui narro, não pode ser candidato a mais nada na vida, a não ser a viver unicamente da graça e da bondade de Deus. Se um dia quis ser político, mesmo sem jamais me ter dado conta disto, aqui desisto. Se já me passou pela cabeça tornar-me um grande figurão da política religiosa, aqui também me aposento antes da hora. E se, porventura, algum dia desejei ser um homem de reputação entre meus iguais, aqui também puxo a descarga desse dejeto e o expulso de meu ser, pois mediante estas confissões digo quem sou, ou quase isso. Mas saiba: andei bem perto de me entregar por completo. A última percepção que dá base a este livro de confissões é a de que hoje creio, muito mais do que ontem, que o poder de Deus se aperfeiçoa na fraqueza humana. Assim, mesmo perdendo força diante dos homens, espero sinceramente estar ganhando poder diante de meu Criador. Dessa forma, quanto mais vulnerável eu estiver diante de você, mais forte estarei aos olhos de Deus e mais ajudado serei por Seus anjos solidários e amigos. Espero que a leitura destas minhas Confissões leve você a fazer a confissão que mudará sua vida por completo, ou seja, que com seus próprios lábios você passe a chamar o Filho de Deus de Advogado na Terra e no Céu. Caio Fábio D’Araújo Filho Inverno, Boca Raton, Flórida, Estados Unidos da América — 1996
  • 11. PARTE I CONFISSÕES DE MORTE E VIDA CAPÍTULO 1 “Ao dizer que atos viciosos contrários aos costumes humanos devem ser evitados, nós levamos em conta a variação dos hábitos de comportamento, ou seja: a convenção mutuamente concordada de uma cidade ou nação, confirmada pelo costume ou pela lei. Nesse caso, qualquer pessoa que caia fora desse padrão torna-se completamente inaceitável para a sociedade.” Santo Agostinho, Confissões Meu pai olhou-me deitado no pequeno berço e não resistiu. Colocou-me em seus braços, levou- me até o canto daquele amplo cômodo da casa da vovó Zezé e ficou sem saber o que fazer.Ele fora católico até os 26 anos, quando tomara uma decisão: seria agnóstico até que alguma coisa profundamente espiritual lhe trouxesse a certeza de que Deus era Deus, e não uma mera abstração. Por isso mesmo, ele não podia entender o que lhe estava acontecendo. Sua alma fora totalmente impregnada pela idéia do sagrado. Era como se o próprio Deus tivesse invadido os aposentos daquela casa e feito uma convocação irresistível a papai. Lá estava ele, um tanto desequilibrado, tentando manter-me no colo nos meus dois dias de vida neste planeta. A muleta sobre a qual se apoiava não lhe permitia ter certeza de que me carregaria sem me machucar. Mas a força que vinha de dentro de sua alma era mais forte. Era
  • 12. como uma ordem. Ele não tinha outra opção a não ser obedecê-la. Tomou-me nos braços, ergueu-me ao céu e disse: “Deus, se Tu existes e estás aqui neste quarto, ouve a minha voz. Eu Te dedico o meu filho, meu primogênito, e peço que faças dele um homem de Deus, um sacerdote, alguém que carregue a Tua marca em sua vida. Mas peço que Tu não o prives do privilégio de ter família, de criar filhos e de conhecer o amor por uma mulher. Por isso, mesmo sem saber por que Te peço, por favor, Deus, faze dele um pastor. Assim, ele poderá conhecer a alegria que eu estou sentindo neste momento, de levantar meu filho nos braços, e será também capaz de conhecer este estranho sentimento de proximidade da divindade, que, como nunca antes, me invade agora todo o ser.” Ninguém jamais ficou sabendo o que ele havia feito comigo naquele dia. Também nem ele e nem ninguém poderia imaginar que aquele gesto estava marcado com a força divina das profecias. Eu sei que minha existência encontrou seu sentido e sua explicação histórica naquela oferenda agnóstica de meu pai, dedicando-me a um Deus que ele não tinha certeza se existia. Somente 21 anos depois daquela oração ao pôr-do-sol é que eu viria a saber que minha vida nada mais era do que a materialização de um desejo sagrado, de uma duvidosa, porém apaixonada, oração paterna, e de uma vontade transcendente... de uma profecia do amor. Meu pai é o ser humano que mais me influenciou neste mundo até o dia de hoje. Filho de uma estranha mistura de histórias e experiências humanas, tem vivido sob a marca do surpreendente, do radical, do intenso e do inusitado. Entretanto, sua vida e a minha própria vida, por extensão, explicam-se, obviamente, em contextos mais antigos do que nossa própria experiência histórica. Somos apenas os subprodutos de histórias de ancestrais fascinantes e quase mágicos em suas performances neste mundo. E na intenção de destrinçar as teias que tecem estes legados familiares tem-se de viajar ao século anterior ao nosso. É para essa viagem que eu convido você. Minha herança humana viaja em células e sonhos desde há muito. Mas no nível de minha consciência histórica, tudo começou com meu bisavô, um cearense de saúde férrea e de humor fino e
  • 13. provocativo, que tinha uma fraqueza especial por saias. Luís Antônio de Araújo saiu do nordeste para o Amazonas no século passado, quando ainda era bem jovem. Nascido no ano de 1821, em Camuci, Ceará, teve na longevidade e na força física suas mais marcantes características. Viveu 104 anos e, aos oitenta, era famoso por ainda ser capaz de carregar fardos de pirarucu pesando até 120 quilos. Meu pai não conheceu o seu Araujinho, como chamavam meu bisavô no interior do Amazonas. Com fama de namorador e de grande contador de histórias, o velho cearense casou-se com Maria Santana de Araújo já avançado em idade, aos 66 anos, ainda assim depois de um vastíssimo processo de seleção. Ele e Santaninha tiveram dois filhos: João Fábio e Joana, ambos nascidos em Nova Vista de Canutama, no alto Purus, coração do Amazonas. Meu avô, João Fábio, nasceu quando seu pai já tinha 68 anos e precisou lidar com a tragédia desde cedo. Em 1893, portanto apenas cinco anos após haver se casado, Santaninha veio a falecer, vítima de uma das muitas doenças que matavam bestamente as pessoas nas beiras dos rios do Amazonas: a febre negra. Naqueles dias, o tempo passava com a mesma preguiça com que as águas deslizavam, lentas e caudalosas, pelo rio Purus, na região do seringal Nova Vista, onde o velho Araujinho conseguira um emprego como extrativista de balata de borracha. Sua intenção era trabalhar duro a fim de fazer algum dinheiro com borracha, produto por excelência para quem quer que tivesse uma visão clara de como a vida se desenharia nos anos por vir. O Amazonas vivia um tempo em que a borracha era o chip de todas as possibilidades presentes e futuras. Apesar da pobreza do interior, havia algumas inigualáveis compensações. Os cheiros naturais da região eram um pagamento divino aos que insistiam em viver no lugar. Os aromas da floresta eram extraordinários, aromas que, em geral, ainda podemos perceber nas vilas e pequenas aldeias do interior do Amazonas. Era fragrância de mata viva, misturada com o odor de uma flora incomparavelmente diversificada, onde se podia perceber o cheiro de flores jamais transformadas em perfume em lugar nenhum do mundo. Os imensos volumes de água também contribuíam para
  • 14. acrescentar ao ar o estranho odor da vida subaquática, combinado ao das plantas que crescem à margem dos rios. Além disso, havia uma cheirosa sensação de frescor que vinha de toda parte. A areia amarelada à beira dos igarapés tinha em si o cheiro forte de algo que parecia uma mistura de enxofre com pó de café. Era um aroma quase primal, como se a terra ainda exalasse os cheiros de seu mais recente parto: o Amazonas. Na pequena vila do seringal Nova Vista podia-se também discernir o forte aroma que vinha das grandes chapas de ferro ou das imensas bases de barro queimado, onde mulheres de cabelos compridos, presos por prendedores feitos de caroço de tucumã, agitavam suas colheres de pau, fazendo a farinha de mandioca dançar incessantemente, enquanto não cansavam de contar casos infindáveis, que não incluíam mais do que as aproximadamente 550 pessoas que viviam no lugar. Políticos, militares e intelectuais que ocupavam espaço nas conversas da maioria das pessoas, em qualquer cidade maior que uma vila no sudeste do Brasil eram completamente ignorados pelos moradores daquela região, onde as notícias já chegavam com tamanho atraso, que os que as recebiam acabavam pensando: “Se eu vivi dois anos sem saber que isto havia acontecido e nada mudou na minha vida, então é porque tanto faz como tanto fez; isso só importa num outro mundo, muito longe daqui. Pra gente aqui, saber ou não saber quem foi eleito, quem morreu ou quem foi preso e acusado de traição, não altera a vida em nada.” E assim eles seguiam, fazendo seus rituais simples na liturgia do cotidiano. Aqui e ali se fazia passar um pouco de café num coador de pano, o que promovia rápidas interrupções na fabricação de farinha. Em geral, essas breves paradas para o café também se faziam acompanhar de pedaços de beiju, alimento que naqueles dias ocupava o lugar do pão no interior do Amazonas. Foi naquele cantão do Brasil, que hoje o mundo conhece como The Amazon Rain Forest, que meu bisavô ficou famoso e quase mítico, tornando-se uma espécie de lenda cabocla das beiradas do Purus. As histórias sobre ele são muitas, mas as que mais me fascinam têm a ver com sua força. Havia por aquelas bandas um certo Sebastião Preto,
  • 15. conhecido por ter braços fortes e musculosos e por ser o louco da aldeia. No entanto, quando estava aliviado de seu estado de loucura, Sabá era um homem calmo, especialmente carinhoso com o menino João Fábio. Mas, quando a perturbação mental lhe revirava a razão, era capaz de qualquer coisa, inclusive de machucar aqueles de quem gostava. Um dia, o louco amanheceu atacado e partiu para um ato bestial. Ao perceber a presença de João Fábio na pequena praça do vilarejo, correu alucinado para cima da criança, demonstrando a clara intenção de estrangulá-la. Quando o velho Araujinho percebeu Sabá correndo na direção de seu filho, lançou-se de um salto entre o louco e o menino, atracou-se a Sabá como se fosse uma cobra jibóia, empurrou-o contra o muro de uma casa e tirou-lhe os pés do chão, mantendo-o no ar, imobilizado entre a parede e o seu próprio corpo. — Tragam as cordas — gritou o velho Araujinho entre estrebuchos e grunhidos. — Tragam as cordas. Não demorem — pediu mais uma vez. Depois que levaram o pobre louco amarrado, meu bisavô confessou que se tivessem demorado mais um minuto, ele não teria agüentado. Uns dizem que ele ficou ali, imóvel, segurando Sabá no ar por mais de cinco minutos. Outros falam que não durou tanto tempo assim. Mas ele não largou o negro até que trouxeram as cordas e amarraram Sebastião, vítima de uma insanidade para a qual os tempos não tinham ainda qualquer esperança de cura à vista. Quando as jovens de Nova Vista se referiam ao velho Araujinho como sendo alguém de idade avançada, ele sempre falava: “É, minha senhora, sou velhete, mas sou espertete. A senhora quer uma demonstração?” E, assim, cessavam as inconveniências, afinal, a mulherada sabia que aquele velhote marcado pelo tempo, mas de saúde invicta, era realmente espertete com o sexo feminino, dono de longa e diversificada experiência naquela área. E as mulheres tinham certeza de que não se tratava apenas de memória de um remoto passado. Todos sabiam, ou pelo menos ouviam falar, das façanhas contemporâneas daquele velho
  • 16. incorrigivelmente galanteador, às vezes discretamente assanhado, e que parecia estar sempre fisicamente bem-disposto. Araujinho viveu casado apenas cinco anos. Com a morte da esposa, resolveu pedir ajuda a um amigo para completar a educação dos filhos. Percebendo-se sem jeito para as atividades de natureza doméstica e avaliando a dificuldade que seria manter em casa o filho em idade escolar tão crítica, enquanto se embrenhava dias na mata recolhendo o soro da borracha que escorria das veias rasgadas das seringueiras, preferiu fazer sacrifícios de natureza emocional a submeter João à privação do saber acadêmico, que ele próprio não possuía, mas cuja importância reconhecia. Por isto, entregou o filho a um tutor. O menino João Fábio foi enviado para Fortaleza no ano de 1901, aos 12 anos de idade, onde permaneceu três anos, para então retornar ao Purus, aos 15 anos, a fim de pegar a latinha de coleta de balata e tentar reunir seiva de borracha para vender e fazer dinheiro para ir estudar fora do Amazonas. Assim, durante três anos trabalhou incessantemente, juntando dinheiro para viajar para a Bahia, onde sonhava estudar farmácia. Para seu Araujinho, a volta do filho fez muito bem. Mesmo sendo um homem aparentemente independente, era sempre imensamente carinhoso com João Fábio e orgulhava-se de ver nele alguém forte o suficiente para trabalhar pesado, mas inteligente o bastante para perceber que o futuro não estaria definitivamente ali. A companhia do filho era-lhe especialmente estimulante porque a vida de um homem viúvo, com quase noventa anos, no interior do Amazonas, podia ser extremamente solitária. Naquelas bandas, um homem de paixão e fogo aceso pelas mulheres tinha muita dificuldade para dar “saidelas rápidas”. E quando se tratava de dar uma variada na companhia feminina, era muito mais difícil ainda, pois todas as localidades tinham população pequena. Assim, era difícil que alguém se escondesse da curiosidade maldosa dos filhos do vilarejo, sempre atentos a sinais de olhares apaixonados ou lascivos, que eventualmente se expressavam aqui e ali, naqueles longos e solitários dias, povoados por gente que, na maioria das vezes, nem percebia que estava
  • 17. doida para achar alguma coisa excitante para fazer. Nesse caso, a solução para quebrar o tédio, disfarçado em resignação existencial, era namorar escondido ou descobrir quem namorava, ou pulava a cerca, com a filha ou a mulher do vizinho. O álibi de gente fogosa, como seu Araujinho, era sempre o boto tucuxi. No Amazonas, quando uma menina aparecia grávida ou os pais percebiam que ela já não era “moça”, o boto preto era evocado como saída moral e honrada para a deflorada donzela, uma vez que se dizia que os botos tinham o poder de se transformar em belos e irresistíveis rapazes, que saíam dos rios para inebriar, seduzir e possuir as mais belas meninas das cidades ribeirinhas. Assim, a geração de bisavô Araujinho tinha no boto um importante aliado, funcionando sempre como cúmplice e álibi para escorregadelas noturnas e criando o necessário espaço para que a diversidade da experiência sexual fosse acobertada pelo mito do boto sedutor. O velho morreu pobre. Entretanto, ficou famoso dentro de seu pequeno mundo, plantado à beira do rio Purus. Partiu no ano de 1925, aos 104 anos de idade, com todos os dentes intactos, sem que chegasse a conhecer uma dor de cabeça ou qualquer forma de doença, e sem que jamais tivesse tido o privilégio de experimentar o significado da palavra “preguiça”. Aquele homem centenário parecia marcado pelo signo da longevidade, e muitos pensavam que ele ficaria ali, para bem ou para mal, até quando quisesse estar. Ele enterrou a muitos e viu suas façanhas serem contadas e recontadas em inúmeras tardes, quando possivelmente se sentia como os atores de Hollywood ao verem seus próprios filmes em matinês ou em vídeos. E ele ainda ajudava a aumentar a lenda em torno de si mesmo quando, num gesto de modéstia, dizia: “Parem com isso, seus rapazinhos canela-de-sebo. Vocês ficam aí mentindo a meu respeito. Todo mundo sabe que isso tudo foi inventado pelo exagero dos fracotes dos avós de vocês — que Deus os tenha em Sua presença. Eu nunca fui tão forte assim.” Depois de assim falar, descia até a beira do rio e pegava um cesto de farinha de
  • 18. sessenta quilos, que colocava naquelas costas de mais de cem anos de idade e carregava até o alto do barranco. Assim, sua provocação, disfarçada de modéstia, apenas reforçava o mito de sua força junto às novas gerações. Dizem que Luís Antônio de Araújo morreu porque quis. Teria praticado uma espécie de eutanásia existencial. Tendo existido por mais de um século, cansara-se existencialmente de viver e, por isso, havia decidido que era tempo de botar a viola no saco e recolher-se à eternidade. Quando o velho estava com 104 anos, houve uma grande friagem no interior do Amazonas, com a temperatura caindo ao nível dos 13 graus centígrados. Ele saiu do quarto, deitou-se numa rede na varanda e disse que não se levantaria mais dali até morrer. Decidiu não se alimentar mais e nem se erguer novamente. Os pedidos eram insistentes no sentido de que ele se alimentasse. — O senhor está doente? Está sentindo alguma dor? — todos perguntavam. — Não, seus rapazinhos canela-de-sebo — dizia ele —, eu não estou sentindo nada. Apenas acho que já vivi demais e que tá na hora de deixar esse mundo para vocês. Portanto, me deixem em paz. Um homem de 104 anos tem que ter o direito de morrer quando quer. Foram aproximadamente trinta dias de friagem. A cerração cobria a floresta e tornava os dias longos e lúgubres. Os parentes e amigos faziam vigília na varanda, sempre tentando empurrar-lhe goela abaixo um pouquinho do famoso caldo de caridade, uma sopa de farinha de mandioca cozida, temperada com alho e cebola, tida como milagrosa e revitalizante. Mas ele se recusava a comer. Sua decisão estava tomada e ele não a negociaria com ninguém. Nem mesmo com seu filho, João Fábio, que, plantado ali, pedia reverente que o velho pai comesse alguma coisa. Não houve jeito. No ano de 1925, seu Araujinho deixou esse mundo da mesma forma que nele vivera: de modo obstinado e convicto. Nunca saiu do interior do Amazonas, mas virou lenda no
  • 19. coração de muitos, especialmente na casa de seu filho, João Fábio, onde sua memória era reverenciada como a do velho Matusalém, que viveu 965 anos, conforme o relato bíblico do livro do Gênesis. A importância histórica e espiritual de bisavô Araujinho na minha família é justamente a de cumprir o papel de uma figura lendária, que vem de onde não se pode muito bem traçar as origens, que vive sem trocar cartas com o passado, e que parece absolutamente contente com o hoje, com o aqui e o agora, imerso nas oportunidades que a vida abria de modo natural diante dele. Ele nunca escreveu nada e nem tentou deixar nenhum legado. Mas suas histórias — nem sempre reveladoras de princípios morais ou religiosos que pudessem ser usados para inspirar as gerações seguintes —, apesar de ambíguas, eram plenas de uma estranha e essencial virtude: uma imensa liberdade para existir intensamente debaixo do sol. Foi seu Araujinho quem introduziu a força das lendas pessoais em nossa família. Pobre da família que não tem lendas, sejam boas ou más. Uma família sem lendas é uma família sem alma. Seu Araujinho também foi aquele que nos ensinou que a vida é séria, mas que se não se fizer acompanhar por pitadas de irreverência e de controlada irresponsabilidade, torna-se mais tediosa do que a mesmice do rolar das inalteráveis águas barrentas do rio Purus. Foi dele, ainda, que os homens e mulheres da minha família aprenderam o gosto do namoro, da paixão e da delícia dos sentidos que se deixam estimular por cheiros e toques, fazendo a vida parar e dando a você o direito de saborear a existência como quem se atola nas doces carnes de uma manga-rosa. Não se fala muito da fé de seu Araujinho. Consta que era católico, mas não parece que para ele isso fosse coisa muito importante. Prova disso está o catolicismo de seu filho João Fábio, que, conquanto tenha existido de modo bastante perceptível, era, entretanto, muito mais um humanismo generoso do que o fruto de beatices religiosas e com cheiro de vela. Talvez a maior de todas as demonstrações de que seu
  • 20. Araujinho viveu para além da tutela espiritual do organismo religioso esteja na estranha maneira como ele morreu: aparentemente sem sacerdote, sem rito, sem hóstia, sem extrema- unção e sem medo. Morreu quando achou bom morrer, porque viveu como achou bom viver. CAPÍTULO 2 “Honra, poder de dar ordens e estar em comando têm sua própria forma de dignidade, embora daí também se origine a ânsia da auto-afirmação. Ainda assim, na aquisição de todas estas fontes de status social não devemos nos afastar de ti, Senhor, nem nos desviar da Tua vontade.” Santo Agostinho, Confissões Foi a morte da mãe o que certamente propiciou a João Fábio a bênção do estudo como caminho alternativo para fora da vida no seringal Nova Vista. Além disso, o fato de seu Araujinho tê-lo mandado para Fortaleza aos cuidados de um tutor abriu-lhe os horizontes e inoculou nele aquele estranho gostinho por novos espaços e relacionamentos. A orfandade, quando se faz acompanhar de uma boa atitude frente à vida, pode capacitar o órfão a se sentir livre para construir mundos para além dos condicionantes da consangüinidade imediata. Muitas vezes os órfãos têm movido este mundo. Os anos de trabalho no seringal não permitiram que João Fábio juntasse uma grande soma, mas renderam-lhe o suficiente para que, em meados de 1908, zarpasse para Salvador, a fim de ingressar no curso técnico de farmácia, profissão que para ele, que tinha fortes laços com a população pobre do interior do estado e que dizia querer ser útil à comunidade, parecia a mais prática. Durante aquele período de estudos na Bahia, João Fábio conheceu uma menina de cabelos loiros e profundos olhos azuis,
  • 21. filha de uma família de ancestrais franceses que se radicara no Brasil poucas décadas antes. Eram os Nascimento Lavigne, gente de atitude nobre e que prezava imensamente o valor da educação e da cultura. A paixão foi instantânea e profunda, mas o curso de João Fábio estava terminando e ele precisava ir ganhar a vida no Amazonas antes que pudesse se casar com Josefina Nascimento e levá-la para Manaus. Embora não tenha sido fácil, João Fábio teve de propor que ela o esperasse enquanto ele ia “fazer a vida”, prometendo voltar para buscá-la. Zezé, como a apelidara, aceitou de pronto. Durante seis anos eles trocaram cartas de amor e amizade, reafirmando a intenção de passarem o resto da vida juntos. As amigas de Zezé tentavam dissuadi-la todos os dias com relação à fidelidade daquela espera. Com tanto rapaz bonito e de boa família “dando sopa” em Salvador, o que Zezé estava fazendo investindo sua juventude num rapaz pobre, do Amazonas, que se formara em farmácia, fora embora e nunca mais voltara? Mas lá no fundo Zezé sabia que havia encontrado o homem mais honrado que jamais conhecera, e que ele não a enganaria. Esperou seis anos, alimentando seu amor apenas com memórias e cartas, até que no fim do ano de 1917, pondo termo a um período de pura e insólita esperança, Zezé viu o navio aportar em Salvador e dele desembarcar um João Fábio seis anos mais velho, porém absolutamente intacto em seus motivos, sentimentos e compromissos. Casaram-se no fim daquele ano, foram juntos para Manaus e, de lá, acabaram dirigindo-se a Canutama, para o seringal Nova Vista, cuja propriedade vieram a adquirir no ano seguinte. A vida no seringal foi cheia de dor e dramaticamente marcada pela solidariedade aos habitantes do lugar. Lá lhes nasceram dez filhos, mas três deles morreram ainda na infância. José e Edgar partiram ainda em idades bem tenras, mas a dor da morte de Luís Ricardo foi profundíssima. Todas as histórias sobre Luís contam de um rapaz bonito,
  • 22. forte e extremamente sensível, que nascera de um parto gêmeo com Elvira. Eles eram os mais velhos dos dez filhos. Mas em 1931, quando estavam com 12 anos, Elvira e Luís acompanharam o pai numa viagem a Manaus, durante a qual o garoto foi atingido por uma horrível febre e morreu ao chegar à casa de uns amigos, deixando um imenso rombo emocional no coração de seus pais e irmãos. De volta ao interior, o magoado e abatido João Fábio não esmoreceu ante a perda do filho. Mesmo com muita dor na alma, entregou-se à atividade que ele iniciara quando chegara da Bahia, em 1912, formado em farmácia. Muito mais do que gerir o seringal, João Fábio dava-se inteira e gratuitamente ao cuidado dos pobres e miseráveis que viviam naquela região. Sua fama como homem solidário e generoso vive até hoje. Milhares foram aqueles que o procuraram vindo de lugares remotos, viajando dias sobre uma estreita canoa, a fim de buscar ajuda médica e alívio para suas dores, febres, feridas, angústias e medos. A força de sua vida foi tão significativa, que seu professor na faculdade de direito, na qual ele viria a se matricular em 1933 e a concluir em 1937, Ramayana de Chevalier, chegou a descrever com palavras míticas o seu curriculum social, texto transcrito no álbum de nossa família. Era o dia 4 de dezembro de 1926 quando nasceu meu pai, Caio Fábio D’Araújo, na cidade de Canutama, no interior do Amazonas. Vovô Fábio foi registrá-lo com o nome da família Araújo. Orgulhoso, falou o nome do menino, certo de ter evocado um grande significado latino para acompanhar aquele ser humano para o resto da vida: Caio, em latim, significa bordão, cajado ou alegria. Ele se apegou ao último significado e desejou, de todo o coração, que seu oitavo filho fosse um ser humano que trouxesse felicidade a este mundo. Enquanto ele se perdia em delírios de felicidade paterna, o escrivão cometia um engano ortográfico que acabaria criando uma cômica, porém interessante mudança na grafia do nome de minha
  • 23. família: trocou o “de Araújo” por um inexplicável “D’Araújo”. Apesar de ser um erro, vovô Fábio decidiu conservá-lo, como que profeticamente percebendo que aquele seu filho viera ao mundo marcado por estranhas intenções divinas que o fariam escolher caminhos de trajetórias intensas e radicais para percorrer. Cainho, como logo passaram a chamá-lo carinhosamente em família, viveu de modo mais que normal o primeiro ano de sua vida. João Fábio, sempre sério, porém muito meigo com os filhos, não hesitava em manifestar uma especial atração pelo menino. Filhos e filhas não lhe faltavam e ele devotava algum tipo de expressão diferenciada por todos, deixando, entretanto, que essas diferenças existissem como segredo entre ele e cada criança. Talvez seja por essa razão que, mesmo hoje, os filhos que ainda estão vivos falem do pai como se fossem filhos únicos. Do pequeno Cainho, ele dizia que seria um menino forte como fora seu pai, o velho Araujinho. No entanto, logo após completar seu primeiro ano de vida, a saúde do menino foi subitamente abalada por uma estranha e inexplicável febre. Como João Fábio estava viajando, Zezé pediu ajuda a um farmacêutico local, a fim de enfrentar a febre com uma injeção. Seu Ernesto foi chamado às pressas e prontamente acorreu. Tirando do estojo sua seringa e agulhas, perfurou a borracha que vedava o vidro com o remédio, passou álcool nas nádegas da criança, dividiu mentalmente o bumbum em quatro partes, escolheu uma dele e sapecou a agulha. Tudo certo, exceto pelo fato de que a febre não cedeu e o menino continuou a definhar no seu bercinho. Quando João Fábio voltou, viu, chocado, que algo estava muito errado com seu pequeno Caio. Sua perninha direita não se movia. Os movimentos eram normais na outra perna, que podia ser erguida na hora do choro ou dos movimentos espontâneos, mas a perna direita não se movimentava, permanecendo sempre paralisada. — Zezé, o que fizeram com esse menino? Alguém esteve aqui
  • 24. cuidando dele? — perguntou o já experiente farmacêutico. — Fábio, você não estava aqui. A criança estava com uma febre que não cedia. Então eu chamei o seu Ernesto. Ele deu uma injeção no menino — respondeu vovó. João Fábio examinou cuidadosamente o bumbum do filho, constatou a marca da entrada da agulha e olhou sofrido e grave para esposa, mas sem nenhuma expressão de raiva na face. — Aleijaram nosso filho — disse com voz solene e cheia de pesar. Saiu dali andando pesadamente, foi até a varanda e olhou longa e perdidamente para o deslizar suave do rio Purus, que incansavelmente ondulava suas águas em frente à cidade de Canutama, naquela quente tarde de março de 1927. Embora nunca tenha tomado nenhuma providência legal contra seu Ernesto, pois conhecia bem o homem e sabia que se tratava de pessoa de bem, o Dr. João Fábio estava certo. Caio Fábio jamais andaria sem muleta, para o resto de sua vida. Caio, em latim, é também bordão, cajado. Apesar de pesaroso e frustrado com o que acontecera ao menino, vovô cuidou de iniciar um processo de ajuda a seu filho, sem saber que estava plantando as sementes que fariam dele um ser humano raro, tanto no seu caráter quanto nas suas percepções da vida. Não era a primeira vez que vovô experimentava o gosto amargo da dor que o atingia a partir de uma fatalidade ligada aos filhos, porém o caso de meu pai tornou-se muito forte para ele. Talvez isto se explique pelo fato de que as mortes de Luís Ricardo, Edgar e José tenham-no deixado com a violenta angústia da perda, mas sem o peso da responsabilidade de criar um filho deficiente. Os três meninos morreram, e ele chorou e sofreu suas mortes. Mas com Cainho era diferente. Ele estava ali, debilitado e irremediavelmente aleijado, tendo diante de si um mundo que meu avô percebia que seria cada vez mais competitivo e que não ofereceria ajuda a quem não pudesse se virar sozinho. Aquela foi a gota d’água final na decisão de mudar de
  • 25. Canutama para Manaus. Ele precisava oferecer aos filhos uma boa chance de se prepararem para os avanços deste século, que estava apenas começando. Em 1931 a mudança finalmente foi efetivada. Na capital, a família foi morar num sobrado na rua Sete de Setembro, bem no centro da cidade. No andar inferior da casa, o Dr. Fábio tinha a sua farmácia, aberta a quem pudesse e a quem não pudesse pagar o remédio de que necessitava. Pelo fato de estar sempre preocupado com o bem-estar dos muitos que dele se acercavam, vovô resolveu tentar ampliar seus horizontes. Assim, entrou para a faculdade de direito e formou-se já bem maduro, decidindo, em seguida, enveredar pela carreira política. Tendo sido eleito deputado estadual mais de uma vez e também presidente da Assembléia Legislativa do Estado, além de prefeito de Manaus, acabou algumas vezes na posição de governador em exercício, situação que muito orgulhava a família, especialmente Zezé, que casara com um menino pobre e que agora o via alçado a posições dantes inimagináveis para os membros de sua “francesa família baiana”. Por ser homem inegavelmente honesto, o Dr. João Fábio passou pela política sem nenhuma alteração no modo como mantinha sua família e saiu da política vivendo com os mesmos limitados recursos com os quais gerira sua vida até então. A riqueza que ele escolheu não sofre inflação e nem pode ser roubada, pois é aquela que mais e mais cresce quanto mais e mais é compartilhada.
  • 26. CAPÍTULO 3 “A leitura mudou meus sentimentos. Alterou minhas preces, ó Senhor, para que fossem dirigidas a Ti mesmo. Os livros me deram valores e prioridades diferentes. De repente, toda a esperança vã se tornou vazia para mim e eu ansiava pela imortalidade da sabedoria com um ardor incrível em meu coração.” Santo Agostinho, Confissões A vida na rua Sete de Setembro era divertida, porém muito apertada em seus espaços. A diversão dos meninos Renato, Carlos, Caio e Augusto, bem como dos filhos de criação que vovô sempre mantinha de quebra, era jogar bolinha de gude com esferas de aço arrancadas de rodinhas de rolimã, ou simplesmente acompanhar o movimento da rua, tentando tirar proveito de tudo o que de engraçado pudesse acontecer na calçada: um rosto excessivamente feio, um par de pernas femininas desmesuradamente bonitas, um corpo lindo de alguma garota que, quando vista de frente, assustava pelo rosto desencontrado, fazendo o antiqüíssimo gênero Raimunda, ou o escorregão de algum rapaz que, ao tentar passar na frente do bonde, tropeçava no trilho e espalhava-se sobre o paralelepípedo. Outras vezes, ainda, eles também davam gostosas gargalhadas diante de certos velhos assanhados, que não sossegavam ante a contemplação da juventude sedutora de alguma menina recém-entrada na idade adulta. Enfim, a televisão era a vida e suas múltiplas possibilidades de graça e desgraça. Mas esta interatividade entre o balcão do sobrado — onde os meninos ficavam fazendo suas gozações — e a calçada podia ser perigosa, pois vovô Fábio era rigorosíssimo quanto ao tratamento que esperava que seus filhos dispensassem aos que passavam em frente à sua casa. Ele não podia admitir gracinhas, gozações, galanteios, gargalhadas e outras expressões juvenis da garotada quando percebia que isso podia constranger os transeuntes.
  • 27. Não que ele mesmo não risse, tempos depois, das coisas que ali aconteciam. Mas no momento em que de fato ocorriam, ele sempre pensava que as brincadeiras de seus filhos poderiam causar incômodos irreparáveis para seus clientes ou gerar constrangimentos às pessoas, o que, para ele, era algo imperdoável. Por isto, não foram raras as vezes em que a meninada entrou no cinturão quando flagrada em algum desses atos de humorismo de calçada, em meio a risos ou simples expressões de um prazer que delatavam alguma armação recente. Foi duro criar todos aqueles filhos, cheios de energia, presos naquele sobrado. Além disso, havia as visitas constantes dos que vinham de Nova Vista, ainda procurando o filho de seu Araujinho, que nunca se furtava a hospedar quem quer que necessitasse e jamais se negava a tratar de graça a todo aquele que, com dor ou desconforto físico, o buscava solicitando alguma ajuda. Por isto mesmo, Zezé convenceu o marido a procurar um lugar mais distante, ainda que dentro da área metropolitana da cidade de Manaus, onde eles pudessem arranjar uma casa com quintal e espaço suficiente para que os filhos pudessem se distrair sem criar embaraços para o pai. Foi assim que encontraram um lugar que havia sido um hospital no fim do século passado e que agora estava à venda. Era uma imensa propriedade no Alto de Nazaré. O bonde chegava lá e os primeiros ônibus em circulação também faziam ali a sua volta de retorno ao centro da cidade. O casarão ia de um quarteirão ao outro. Tinha frente para a rua Japurá e ia até a rua Apurinã. Era um prédio bonito, que crescia em estilo quase piramidal, iniciando com um térreo construído sobre grandes arcos, amarrados por longos e belos trilhos de ferro, formando um ambiente fascinante para quem quer que tivesse imaginação. Sobre aquele andar térreo, a casa se espalhava num segundo nível, formado por salas enormes e quartos do tamanho de enfermarias de hospital, com janelas longas das quais saíam varandas de ferro. A cozinha também ficava no segundo piso. Era imensa e ao final dela, subia mais uma torre, que também funcionava como chaminé.
  • 28. Havia dois acessos para os andares superiores, que se tornavam cada vez menores, à medida que a pirâmide ia afinando para o mirante, no quinto e minúsculo aposento, projetado para fora do telhado e com janelas para os quatro cantos da casa. A vista do mirante era soberba para a época, visto que Manaus é uma cidade plana e, naquele tempo, a altura daquela antiga casa- hospital era algo para ser levado em consideração. Nos fundos, havia uma escada de ferro que, estreita e espiralada, ia derramando acessos a todos os andares. Mas no meio do prédio, começando no porão térreo e arqueado, esgueirava-se, de modo artisticamente sinuoso, uma das mais encantadoras e bem torneadas escadas de madeira que alguém poderia desejar ter dentro de casa. No casarão da Japurá a moçada dos Araújos espalhou-se na vida. Ali, eles fizeram camaradagem com inúmeros meninos e meninas, que acabaram se tornando seus amigos na vida e na morte. Os garotos subiam nas árvores do quintal e comiam mangas, jenipapos, graviolas, pitombas, pitangas, abiu, ata, biribá e ainda derrubavam coco e bebiam sua água quando estavam com sede. Era o paraíso. Foi ali também que eles organizaram peladas de futebol em que colocavam Cainho no gol, defendendo a pequena área com sua muleta pesada. A disputa era saber quem o teria de seu lado, pois a vantagem de quem ficasse com seu passe era incomparável. O garoto da muleta ficava plantado na frente do gol, abanando sua perna de pau no ar e convidando os adversários para virem fazer gol dentro de sua área. — Venham, seus medrosos. Invadam minha área. Tentem meter a bola por debaixo de minhas pernas. Será que vocês não se garantem? — ele gritava com euforia. Sempre que alguém se irritava com suas impertinentes provocações e resolvia invadir a área driblando para fazer um gol em vez de chutar de longe, geralmente se afastava reclamando das muletadas que recebia nas canelas ou até mesmo na cabeça. — Deixem o Caio brincar. Não percam a paciência com ele e nem o deixem fora de qualquer competição — dizia vovô Fábio.
  • 29. Por esta razão, os irmãos mais velhos, especialmente Carlos Fábio, a quem Cainho era mais chegado, sempre o incluíam em todos os programas, até mesmo em algumas brigas de rua. Certa vez eles se estranharam com uns garotos que moravam na baixada da rua Apurinã, uma cavidade impressionante, na qual moravam várias famílias, pois como havia água em abundância ali, era muito fácil cavar uma cacimba e abastecer a casa com água fresca e gratuita. A “turma do buraco” se encrespou com os Araújos e eles saíram no tapa. No meio da briga, papai, na época com dez anos de idade, estava tranqüilamente sentado na varanda de nossa casa quando viu chegando seu irmão Carlos Fábio com um menino na gravata, gritando: “Cainho, toca tua muleta na cabeça desse desgraçado antes que ele escape da minha gravata.” Papai pegou a muleta e sapecou-a com tanta força na cabeça do menino, que a briga acabou na hora. A infância para meu pai não foi exatamente fácil, mas não chegou a ser difícil. Ele fora abençoado não só com um pai humano e sensível, mas com uma mãe meiga e, ao mesmo tempo, enérgica. Dona Maria Josefina de Araújo não dava descanso aos filhos. O compromisso que ela e o marido tinham era o de dar a cada filho, incluindo as meninas, a possibilidade de concluírem um curso superior. Dinheiro eles não deixariam, mas cultura era um bem imprescindível, na visão deles. Por isto, aquela mulher franzina, de cabelos loiros e olhos azuis, não cansava de interromper os melhores momentos de diversão dos filhos para botar todo mundo para estudar. Talvez a marca mais expressiva da vida no casarão-hospital da rua Japurá tenha sido o espírito social e comunitário da vida em família. Tal como havia sido no interior, João Fábio não cessava de se solidarizar com as pessoas que agora o procuravam na cidade. Não apenas remédios, que ele tirava de seu negócio, enfraquecendo-o cada vez mais, mas também comida e moradia eram oferendas permanentes que fazia aos necessitados que o procuravam. A vida na casa era uma experiência absolutamente fascinante e, às vezes, constrangedora. A fascinação ficava por conta da
  • 30. multiformidade de relacionamentos e amizades que aquele rebuliço social propiciava a todos. Os constrangimentos tinham a ver com a escassez de tudo, especialmente de comida, pois quando a casa estava vazia, moravam ali cerca de quarenta pessoas. Nos momentos de pique, chegaram a residir com os Araújos cerca de cento e cinqüenta almas, todas mais pobres do que eles, vidas, aliás, para as quais sua existência era sombra, água, luz, pão, saúde e esperança. Não foram raras as vezes em que Zezé teve de cortar as bananas em dezenas de rodelas e oferecê-las com farinha. Cada um podia tirar apenas uma rodelinha. O trauma dessa experiência foi tão grande, que meu pai disse que quando ganhou seu primeiro salário, a coisa mais urgente que fez foi comprar uma penca de bananas e tentar comê-la sozinho. Entre as muitas histórias daquele período há uma que bem define a dificuldade dos membros da família em se sentirem totalmente à vontade em casa. Dizem que, numa certa tarde, o Dr. Fábio estava fazendo curativos nas feridas de um caboclo que estava em sua casa buscando alívio, quando, no meio do atendimento, sentiu uma irresistível vontade de soltar gases. Controlou-se o quanto pôde, mas percebendo que não dava mais para segurar, pediu licença e procurou a sala ao lado, não sem antes avisar ao paciente que não saísse da cama. O Dr. Fábio andou devagar, abriu as pernas e soltou um enorme pum. Subitamente, ouviu uma voz atrás de si, cheia de perplexidade, quase como se os anjos tivessem sido flagrados no toalete. — E dotô também peida? — indagou o irrequieto caboclo. Vovô virou-se para ele, tomado de estranho prazer ante a infantil pergunta do paciente. — Se peida? Ora, os doutores são os que mais peidam neste mundo — respondeu. Mas embora a vida dos Araújos fosse marcada sobretudo pelo estudo, Caio Fábio, meu pai, não pôde ir à escola como todos os outros. Até os oitos anos, arrastou-se pelo chão da casa. Naquele tempo, a muleta ainda não lhe estava disponível, pois era feita de madeira extremamente pesada e ele não tinha
  • 31. força nos braços para usá-la a contento e com segurança. Por isto, vovó Zezé tentava ajudá-lo o melhor que podia, fazendo-se de janela entre meu pai e o mundo, uma janela tão ampla que permitisse que as dores e alegrias que existiam fora dos portões do casarão da Japurá pudessem ser percebidas, avaliadas e sentidas. Aos 11 anos, finalmente a muleta deixou de ser pesada demais para ele, assim, o caminho para o Colégio Barão do Rio Branco foi aberto para o menino. Depois de um tempo, ele foi transferido para o Colégio Dom Bosco, o que o forçava a fazer um percurso de seis quilômetros de ida e volta. Como papai chegou à escola um pouco fora da idade, sua maior dificuldade foi ter de lidar com a estupidez de certos mestres, que perdiam a paciência quando viam meninos mais novos sabendo mais que ele e, em vez de procurarem saber o que havia acontecido, simplesmente diziam: “Menino, é impressionante como você é burro. Será que não tem vergonha de saber menos do que esses outros colegas que são menores que você?” Ora, aquelas perversas observações poderiam ter tido um poder terrivelmente devastador para ele. Entretanto, o efeito foi o oposto. Caio decidiu que nunca mais na vida ouviria nada igual. Como ele não poderia ser o melhor nas aptidões físicas, seria o mais destacado na área intelectual. Assim que adquiriu um pouco mais de desenvoltura na leitura e nos básicos da aritmética, nunca mais deixou de ser o primeiro de qualquer turma, para o resto de sua vida. As marcas mais preponderantes da personalidade de papai foram perseverança e autoconfiança. Vovô sempre dizia a ele: “Meu filho, não há nada neste mundo que você não possa fazer. Nunca deixe que nenhum limite tire de você a ambição da auto- superação.” Foi por isto que papai se destacou em tudo o que pôde competir de igual para igual e se superou em tudo aquilo que os outros consideravam ser para ele uma impossibilidade. Aprendeu a nadar, a cavalgar, a subir em árvores, a lutar lutas de chão — especialmente se utilizando dos rudimentos do jiu-jítsu, recém-trazido para o Amazonas por alguns curiosos — e, sobretudo, aprendeu a dirigir qualquer coisa, mesmo sem a adaptação do veículo à sua condição de aleijado, o que era uma verdadeira façanha para um rapaz sem qualquer movimento na
  • 32. perna direita. Para ele, o desafio mais difícil talvez estivesse na área do relacionamento com o sexo oposto. A preocupação de seu pai era como Caio se relacionaria com as meninas. Desejoso que não se frustrasse, vovô Fábio dizia-lhe que quando o verdadeiro amor chega, as deficiências se transformam todas em virtudes. Mas o jovem Caio Fábio não parecia precisar desse condicionamento psicológico para se afirmar em relação às beldades de seus dias. Às vezes, quando ia da escola para casa, andando sob o sol causticante do eterno verão do Amazonas, arrastando-se ao embalo de sua pesada muleta, ele via as meninas se juntarem sobre o estreito espaço das janelas dos velhos casarões erguidos rente à rua, a fim de verem-no passar. Não foram poucas as ocasiões em que ele lembra de ter chegado perto da janela, e ouvir as meninas impiedosamente falarem alto, umas para as outras, alguma coisa como: “Puxa, que pena! Um garoto tão bonitinho, mas aleijado que nem um caranguejo.” Quando ele me contou isso pela primeira vez, eu perguntei: — E como é que você se sentia? Nunca esqueci sua resposta, que muitas vezes me volta à memória, especialmente nos momentos em que tenho precisado enfrentar a indiscrição ou mesmo a postura preconceituosa de muitos que passam pelo meu caminho. — É, menina, você só está dizendo isso porque você não sabe como caranguejo é gostoso. E foi assim que, de um modo ou outro, ele seguiu dando suas respostas às freqüentes tentativas que a vida lhe fazia de nele semear as sementes da inferioridade e, assim, roubar-lhe a chance de escrever sua própria história. Caio nunca se sentiu em desvantagem diante da vida. Ao contrário, no fundo, no fundo, achava que Deus dera a ele uma bênção extraordinária, fazendo-o nascer numa família feita de gente tão humana e intelectualmente perspicaz, como seu pai e sua mãe. Além disso, achava que sua perna morta era apenas um detalhe em alguém tão inteligente e forte como ele.
  • 33. Uma boa auto-imagem é a melhor auto-ajuda! CAPÍTULO 4 “Eu não sabia que o mal não tem existência própria, exceto como privação do bem, e isto no nível em que o ser não assume o seu papel.” Santo Agostinho, Confissões A década de 1930 havia começado e logo cresceram os rumores de que as coisas estavam feias na Europa. Naquele tempo, a maioria das famílias de Manaus que tinha algum recurso financeiro enviava seus filhos para estudar na França, na Inglaterra ou em Portugal. Uma vez que Manaus ficava mesmo muito longe do Rio de Janeiro, os que podiam achavam que, já que de qualquer modo teriam grandes despesas com a educação dos filhos, era melhor dar a eles a charmosa chance de aprender outra língua e ainda carregar na bagagem o peso de um curso superior na Europa. Por muitos anos, a mentalidade dos manauenses foi profundamente marcada pela nostalgia da passada era áurea da borracha. Segundo a lenda, no tempo em que a exportação de borracha trouxera riqueza à região, alguns magnatas locais acendiam seus charutos cubanos com notas de alguns réis. A narrativas como esta somavam-se outras acerca de como o teatro Amazonas fora construído com material trazido de navio da Europa e de como prédios inteiros da cidade, como a Alfândega de Manaus, haviam sido pré-fabricados na Inglaterra e transportados de navio para aquela orgulhosa cidade cultural, erguida no centro da mais fascinante floresta do planeta. Os rumores da guerra eram, obviamente, mais que fofoca internacional. A Segunda Guerra Mundial explodiu, e o mundo inteiro, em maior ou menor escala, foi dramaticamente afetado por ela, inclusive a vida em Manaus. Uma das primeiras conseqüências foi que os pais que tinham
  • 34. filhos estudando na Europa mandaram ordens irrevogáveis no sentido de que a rapaziada — havia ainda poucas moças estudando fora do país — voltasse para casa. O efeito dessa ação foi que a maioria, em vez de fazer o caminho de volta à terrinha, preferiu parar no Rio ou, em segunda instância, em São Paulo, Salvador ou mesmo em Recife, pois as opções de estudo universitário no Amazonas ainda não eram muitas. Quem quisesse ficar em Manaus precisava se contentar em estudar odontologia, farmácia, ou direito, sendo a última opção considerada a melhor, uma vez que a Faculdade de Direito do Amazonas orgulhava-se de já ter formado profissionais que haviam se destacado fora do estado. Ora, foi justamente nesta época de guerra e de poucos recursos que vovô Fábio teve de enviar Renato Fábio e Carlos Fábio para faculdades fora do Amazonas. Renato foi direto para o Rio estudar química industrial, recém-inaugurada como curso superior no Brasil. Carlos Fábio foi para Salvador, cidade onde sua mãe, dona Zezé, tinha parentes que poderiam ajudá-lo a enfrentar as dificuldades inerentes a um curso de medicina, sua mais forte paixão até encontrar Gildélia, baianinha mimosa, de corpinho mignon, por quem ele caiu de amores e com que veio a casar-se. As moças da família tinham ficado em Manaus e seus horizontes tinham de caber dentro das limitadas ofertas da cidade. Assim era a vida para as mulheres naqueles dias. A grande questão de Fábio e Zezé era decidir que oportunidades dariam aos filhos, já que com o perigo das viagens de navio naquele tempo de guerra e com as dificuldades financeiras da família, agravadas pela necessidade de sustentar os rapazes que estudavam fora, ficava difícil imaginar o envio de mais um dos filhos para longe de casa. O jovem Caio desejava estudar engenharia civil, curso que ainda não existia em Manaus. Dona Zezé e o marido ponderaram longamente sobre o que fariam com o filho. Apesar da deficiência física, Caio parecia ser ávido intelectualmente e com grandes chances de vir a realizar tudo aquilo que desejasse na vida. Mas como? Não havia dinheiro e eles não queriam sofrer as angústias de não saber se o filho estaria
  • 35. bem ou não vivendo longe do Amazonas. Além disso, um fato novo surgiu. Tão logo Renato e Carlos saíram de Manaus para estudar fora, a saúde de João Fábio começou a mostrar alguma deficiência. Havia claros sinais de que seu coração não fora fabricado na mesma fôrma na qual o coração centenário do velho Araujinho tinha sido produzido. João Fábio estava mal. Cansava-se à toa e não conseguia mais trabalhar com a mesma intensidade. Como conhecia muito bem os sintomas físicos de sua doença, não tinha a menor dúvida de que não duraria muito. Portanto, a coisa mais sensata a fazer era arrumar a casa e preparar-se para a morte. Assim sendo, chamou Caio. — Meu filho, você é forte, apesar de ser aquele entre nós que mais faz força para conseguir as coisas. Eu não estou bem de saúde e sei que não tenho muito tempo. Você está apenas com 18 anos, mas é com você que eu conto agora para ajudar sua mãe e aqueles que ainda estão sob nossa dependência. Restam-me apenas os proventos de minhas funções públicas. Fora isso, hoje, nosso único patrimônio é o seringal do Santo Antônio do Cainaã. Eu preciso que você assuma a administração de tudo. Mas, para isto, você terá que se sacrificar. Em vez de ir estudar engenharia civil fora de Manaus, você vai ficar e estudar direito. Você é muito inteligente e pode ser bom no que quiser. Fique aqui e tome conta dos nossos negócios — disse-lhe. Papai ainda não podia medir as implicações daquela decisão, mas não tinha a menor dúvida que alteraria completamente o seu futuro. Mas não havia escolha, e ele sabia disso. Não adiantava muito trazer o assunto para o plano da meditação ou sugerir a necessidade de mais tempo para pensar. A resposta tinha de ser imediata e ele sabia que era apenas uma questão de consentir com o prudente e dolorido veredicto paterno. Quanto ao mais, era torcer para que a existência conspirasse a seu favor, de algum modo. — É claro que sim, paizinho. O senhor sabe que pode contar comigo para o que o senhor ou mamãe vierem a precisar — meu pai respondeu. O cansado, mais cansado do que velho, João Fábio, foi logo passando tudo para ele: como funcionava o esquema; quem era de
  • 36. confiança e quem não era; quem pagava e quem jamais pagava; quem ele sempre atendia e quem eram aqueles para os quais o tratamento tinha de ser meramente comercial. Ao final daquele rápido curso de gerenciamento de seringal, o rapaz foi enviado na primeira embarcação disponível que saiu para o alto Purus. Começaram ali os mais fascinantes e profundos anos de sua juventude. Entregue à solidão dos rios e imerso em longas e intermináveis leituras e meditações, às vezes ele viajava dez dias para chegar ao porto, onde ainda precisava apanhar uma canoa para remar mais um dia inteiro até alcançar o lugar que tinha de visitar e ver como estavam os negócios. Foi ali, naquela paisagem bucólica, repleta de nostalgia e silêncio, que ele aprendeu o valor de se fazer acompanhar de si mesmo e de pensamentos que interajam com a vida e com a natureza, sem jamais imaginar que a ausência de humanos possa significar a ausência de humanidade. Ele me dizia: “A solidão pode ser excelente companhia quando você gosta de si próprio.” Durante aqueles meses meu pai teve a chance de perceber como a vida no interior do estado era miserável. Havia gente morrendo por banalidades, por doenças para as quais já havia cura disponível na cidade. Além disso, ele ficava chocado com a resignação e passividade das pessoas daquela região. Era como se houvesse um carma amazônico, bastante parecido com o hindu, que silenciosamente afirmava para as pessoas que a morte era uma fatalidade contra a qual toda luta era bobagem, mesmo na juventude. Ali ele ouvia as mulheres contarem que haviam engravidado vinte vezes e perdido 13 filhos, como se estivessem apenas contabilizando as vezes em que o time de futebol de sua preferência tinha perdido a final do campeonato. E ali ele aprendeu como as grandes questões da existência são reduzidas ao nível da banalidade quando a vida é feita apenas de farinha de mandioca e água do rio Purus. Ao retornar à cidade, meu pai percebeu-se extremamente maduro diante das futilidades e expectativas vazias que norteavam as vidas de muitos de seus companheiros, preocupados apenas com as pernas de algumas meninas que se davam ao luxo de expor os joelhos ou as coxas roliças e belas sob as saias ainda não tão
  • 37. curtas, ou ainda com as histórias de alguns candidatos a garanhão que se jactavam de alguma façanha libidinosa. Ele, entretanto, não conseguia tirar da cabeça os rostos, as vozes e as histórias radicais, ainda que estranhamente desapaixonadas, que ouvira no Santo Antônio do Cainaã. O seringal teria salvado sua vida ou destruído o seu futuro? Mas se alguma coisa estivesse reservada para ele no amanhã, certamente isso teria relação com a nova maneira de ver a vida que ele aprendera ali, quase na fronteira do nada. Era o ano de 1946 e Caio viajava para o seringal nos períodos de férias, ou seja, de dezembro a março e em julho. Numa dessas viagens ao interior, observou um homem estranho, todo descascado, de pele avermelhada, que tentava encobrir o rosto quando percebia a aproximação das pessoas. Achando que o homem estava fugindo da vida, resolveu procurá-lo e indagar o que estava acontecendo. Para seu espanto, Caio descobriu que o homem estava com lepra, o que fizera com que a mulher e os filhos o expulsassem de casa. Mas o pobre doente soubera que o filho do Dr. Fábio estava no seringal e havia vindo perguntar se o jovem poderia levá-lo para o leprosário de Manaus. Conversaram longamente e viram que não havia a menor chance de que ele chegasse à capital pelas vias convencionais, pois nenhum transporte coletivo fluvial ousaria deixar que ele entrasse para fazer a viagem. Assim, chegaram à triste conclusão que o homem teria de remar sozinho até Manaus. Caio não tinha a menor idéia se o leproso resistiria à viagem, mas era a única chance. Caio prometeu que se o homem chegasse vivo, a remoção dele para uma instituição estaria garantida. Assim, comprou farinha em abundância e levou o pobre leproso até a beira do rio Purus, onde disse ao homem que com aquela farinha ele poderia fazer chibé e garantir sua sobrevivência até o porto de Manaus. Alguns dias depois Caio apanhou um barco para Manaus e em duas semanas estava em casa. Durante todos aqueles dias e noites havia uma angústia latejando dentro dele. A imagem daquele homem o perseguia como o fazem os fantasmas, que às vezes povoam nossa consciência em plena luz do dia.
  • 38. Dois meses depois, ele estava sentado na varanda da frente do casarão da rua Japurá quando viu aparecer aquela figura toda coberta de trapos. Como não conseguia discernir a identidade da pessoa, resolveu descer para ver quem era. Ao atravessar o campinho que separava a larga fachada arqueada da casa do portão de frente, foi identificando a presença descarnada e semimorta do leproso de Santo Antônio do Cainaã. Lágrimas vieram-lhe aos olhos aos borbotões. Seu sentimento de impotência frente ao drama daquele homem plantara nele as primeiras sementes da descrença religiosa. Se havia um Deus, como é que Ele consentia que os homens tivessem trajetórias tão desiguais? E que propósito poderia haver numa existência que acontecia marcada por tão pesados e incuráveis estigmas? Caio tomou o homem e o levou para os fundos da casa. Deu de comer a ele e providenciou sua remoção para o leprosário do Aleixo, às margens do rio Solimões, próximo ao ponto onde as águas dos rios Amazonas e Negro fazem seu majestoso encontro e casamento. A imagem daquele ser humano nunca mais lhe abandonou a memória. Quando o carro se afastou, levando o doente para uma lenta e repugnante morte, o jovem Caio ficou pensando que certamente nunca mais o veria nesta existência, mas que, ao mesmo tempo, nunca mais o esqueceria nesta vida. Daquele dia em diante, para ele, a dor humana neste planeta seria essa: não poder se apropriar de seus amores para sempre e nem conseguir esquecer suas dores, para sempre. O leproso mudou sua visão do mundo.
  • 39. CAPÍTULO 5 “Meus estudos, os quais eram considerados respeitáveis, tinham o objetivo de me levar à distinção como advogado nas cortes de justiça, onde a reputação de um homem é tão alta quanto seu sucesso na arte de enganar pessoas.” Santo Agostinho, Confissões Em 1948, aos 21 anos, meu pai entrou para a Faculdade de Direito do Amazonas, que funcionava em um prédio construído em estilo europeu. De lá se podia ver perfeitamente o movimento dos barcos que atracavam no porto. Aquele era um dos lugares mais movimentados da cidade de Manaus. Eram pessoas entrando aos montes nos “motores de linha”, nome dado aos barcos de madeira que carregavam um número de pessoas em geral bem superior ao que se esperaria que uma embarcação daquele tamanho pudesse suportar. O fato é que os motores saíam apinhados de gente porque a “rede de dormir” era o instrumento de descanso mais usado pela população. Assim, usando a rede, era possível “montar” até cinco “andares” de pessoas dormindo umas sobre as outras nos barcos, o que aumentava não apenas a capacidade de transporte das embarcações, mas principalmente o perigo da viagem. E não era raro que tragédias acontecessem, com a perda de um extraordinário número de vidas humanas. Ali de cima do prédio da faculdade de direito, o universitário Caio podia aprender leis e filosofia sem jamais esquecer suas obrigações familiares com a gerência do seringal dos Araújos. O ritual de estudar o ano todo e passar as férias no interior, cuidando dos negócios, permaneceu até mesmo depois de terminado o curso. E logo no início de sua experiência na faculdade, Caio viu-se diante de um acontecimento desastroso, que poderia ter servido de forte desestímulo à conquista de seu espaço no mundo universitário. Certo dia, ao deixar a classe e dirigir-se à saída
  • 40. principal do prédio, que dava para uma larga e íngreme escadaria, construída num modesto, porém claramente definido, estilo romano de fóruns, Caio percebeu que muita gente subia e descia simultaneamente as escadas. Ele parou, pensou se deveria esperar aliviar o fluxo e, por fim, decidiu correr o risco de descer sem apoio, vez que não havia qualquer adaptação do ambiente ao deficiente físico. Começou a descer e percebeu que não haveria nenhum problema. Quando já estava no meio das escadarias, alguém passou correndo e, sem qualquer cuidado com a fragilidade de seu equilíbrio, deu-lhe um forte esbarrão. Caio sentiu seu corpo precipitando-se para a frente e percebeu que não havia meios de impedir a queda. Restava-lhe, apenas, cair da melhor maneira possível. — Se cair se tornar inevitável, então que se caia bem — ele viria a me dizer muitos anos depois, tirando do episódio uma lição prática para a vida. Largou da muleta e tratou de proteger a cabeça e as partes mais delicadas de seu corpo. Ele estava acostumado a cair. Caíra a vida toda. Mas não lhe era comum cair em situações que lhe trouxessem constrangimentos sociais. Nesses contextos, ele se arriscava o mínimo possível. De repente ele se achou estirado no final da escada, no patamar de pedra que conduzia à calçada da rua. O lugar estava cheio de rapazes e moças. E como nessas horas há sempre de tudo um pouco, uns logo correram para ajudar, outros assumiram aquela posição de assistentes de filme, vendo tudo, mas sem ação no mundo real, enquanto outros, ainda, deram-se ao luxo de um pequeno riso de sarcasmo e frieza, denotando uma estranha forma de inveja. Ali no chão, ele pôde perceber bem as fisionomias de seus colegas. Não ficou ressentido. Aceitou a ajuda que lhe deram e foi andando devagar, sentindo dores em diferentes partes do corpo, mas constatando que não lhe havia acontecido nada mais grave, além da vergonha de ter se esparramado em público, rebolando de alto a baixo das
  • 41. escadarias da faculdade. No entanto, aquele episódio surtiu um efeito muito positivo sobre ele. Ao invés de se encolher dentro de um mundo de complexos e inseguranças, sua atitude foi o oposto: decidiu que não falaria com tom de voz inferior, que jamais deixaria de descer as escadarias, mesmo quando estivessem eventualmente cheias de gente, e mostraria a todos que um homem pode correr na vida, apesar de suas próprias pernas. O tombo trouxe forte motivação ao seu coração e empurrou-o adiante: como sua afirmação pessoal não podia depender de sua desenvoltura física, ele haveria de se transformar no campeão de uma outra forma de competência. Nunca teve nota abaixo de nove e terminou o curso com a melhor média geral da faculdade até aquele ano de sua história. Aprovado em concurso para procurador de justiça, optou por ir trabalhar em Canutama, onde nascera. Para ele voltar para o interior era como voltar para casa. Afinal, desde os 18 anos ia pelo menos duas vezes por ano àquela região para cuidar dos interesses da família no seringal. Numa daquelas viagens ao interior, no ano de 1951, precisou estender seu caminho até Borba, a fim de comparecer ao casamento de um amigo, José Reis, que estava se casando com Raquel, moça de rosto marcadamente amazônico e sorriso aberto. Para o casamento também havia sido convidada Lacy Campos da Silva, professora recém-formada da escola pública de Coari. O casório aconteceu como de costume, com a bênção do sacerdote católico e um arrasta-pé após a cerimônia. Os Reis eram festeiros e não perdoavam qualquer chance de acender o candeeiro e deixar a sanfona tocar até o nascer do dia. Como Caio não se sentia à vontade dançando, pois dificilmente conseguiria manter uma mulher junto à sua pesada muleta sem correr o risco de machucá-la, resolveu ficar quieto, num dos cantos, trocando um prosa aqui outra ali, enquanto ria de uma ou outra façanha dos amigos pés-de-valsa, soltos no salão. Foi daquele ponto de observação que percebeu que havia uma outra pessoa igualmente afastada dos movimentos da festa. Ela era morena, tinha aproximadamente 24 anos, cabelos longos e
  • 42. ondulados, e dentes amplos, perceptíveis quando ela sorria — o que, aliás, fazia com muita graça. Depois de se observarem por um tempo, foram apresentados um ao outro pela noiva, amiga de ambos, e que sempre nutrira o desejo de vê-los aproximados. Não deu outra. A química da afinidade foi instantânea. Eles conversaram a noite toda e nunca mais puderam deixar de se ver. O namoro veio como coisa natural. Não muito tempo depois, Lacy foi apresentada ao Dr. Fábio, já bem doente, e a dona Zezé, que a acolheram com especial carinho. O velho farmacêutico, com inamovível vocação para a paternidade, pôde, então, chamar o filho e dizer-lhe: “Minha última preocupação com você acabou hoje. Eu sempre tive receio de que você se tornasse tímido no amor em razão de seu defeito físico. Mas agora, vendo você amando um moça tão boa como essa, sinto-me à vontade para morrer. Deus ouviu minhas preces.” Do lado de Lacy, a alegria não era menor. Maria Campos da Silva, mãe da moça, não poderia estar mais contente, exceto por uma razão: o Dr. Caio Fábio era de família católica, e Lacy, a mãe e o irmão, Lucilo, eram protestantes. Presbiterianos, mais precisamente. Naquele tempo ainda havia muito preconceito, de ambos os grupos, um em relação ao outro. Os católicos chamavam os crentes de bodes e de hereges fanáticos, enquanto os protestantes, por seu turno, atacavam como podiam: não cessavam jamais de pregar e de fazer fortíssimas denúncias ao culto às imagens praticado pelos católicos e a muitas outras formas de desvios bíblicos, conforme a interpretação reformada da fé. Mas o amor era mais forte do que os dogmas da religião. Por isto, Caio e Lacy fizeram um pacto de respeito mútuo naquela área e prometeram que não tentariam converter um ao outro. A história de Lacy era totalmente diferente da de Caio. Ela nascera em uma família muito mais simples e não pudera ter acesso ao estudo de nível superior, chegando a concluir apenas o curso clássico, que formava professoras primárias. Sua mãe, Maria Campos da Silva, havia nascido no interior do Amazonas, em 1898. Do avô, Mariano, e da avó, Mariana, sabia-se muito pouco,
  • 43. além do fato de que Mariana falecera cedo, quando a filha tinha apenas quatro anos, sendo seguida pelo marido para a eternidade dois anos depois, o que transformou Maria em uma criança inteiramente órfã. Não fosse a bondade de uma tia que a criou, a menina certamente teria tido futuro muito melancólico. De Firmino, pai de Lacy, nascido em 1881, em Quixadá, Ceará, sabia-se ainda menos. Era filho de uma mulher que se casara aos 11 anos, chamada Isabel, com um homem bem mais velho, o seu Deodato. Naquele tempo, esse tipo de casamento de crianças com homens adultos, às vezes até avançados em idade, era muito freqüente. Como nem sempre era fácil arranjar uma esposa no interior, era comum que homens respeitáveis do lugar encomendassem o casamento com o pai de uma menina, às vezes ainda bebê. É possível que esse tenha sido o caso. Maria era uma mulher muito interessante. Não tendo nenhum antecedente protestante na família, sozinha e até contra a opinião de amigos e vizinhos, decidiu, aos 35 anos, converter-se à fé calvinista, tornando-se presbiteriana. Mesmo não tendo estudado além do terceiro ano primário, desenvolveu uma certa capacidade autodidata, especialmente depois que seu amor pela leitura da Bíblia se manifestou. Mas suas maiores sensibilidades eram-lhe absolutamente inerentes. As mais impressionantes eram o seu amor pela natureza e a sua fantástica capacidade olfativa. Para ilustrar seu fascínio pelas belezas da criação, basta dizer que ela acordava cedo todos os dias, por volta das quatro horas da manhã, lia a Bíblia, fazia orações e, depois, punha-se à janela da casa, quieta, meditativa, esperando o sol nascer. Para ela, aquele era o momento mais bonito do dia e quem quer que o perdesse havia desprezado a primavera da luz natural, o que lhe parecia incompreensível. Entretanto, o que mais impressionava em Maria era sua capacidade de discernir cheiros, aromas, fragrâncias e odores. Quando entrava num lugar, ela não apenas sentia o cheiro característico daquele ambiente, mas também sabia que odores, reunidos, resultavam naquele sentir olfativo específico. Não era raro ela dizer: “Hum! Essa moça que acabou de passar misturou talco com pomada Minâncora e, ainda por cima, colocou Leite de Rosas com um outro perfume no corpo. Tá cheirando a sovaco de
  • 44. rico.” Ela também podia entrar num quintal, inspirar os odores na entrada e, mesmo sem ver o que lá havia, simplesmente observar: “Que maravilha! As mangas-rosa e os jenipapos estão maduros. Que delícia!” Maria tinha uma maneira quase litúrgica de se relacionar com os cheiros. Uma das coisas mais rotineiras que ela fazia era varrer as folhas secas do quintal e jogá-las num buraco que ela mantinha sempre aberto. Uma vez feito isso, tocava fogo nas folhas e sentava-se de longe para inspirar o cheiro que exalava da fogueira, dizendo: “Que coisa gostosa, cheiro de folha queimada. Tem cheiro do quintal de minha tia.” Para ela, aquele ato tinha dimensões espirituais. A fumaça era como um incenso de aroma suave, que subia às narinas divinas e dava a Deus um imenso prazer pela gratidão da memória de Maria, ao pôr-do-sol de mais um dia em sua vida. Essa mulher de hábitos fortes casou-se com Firmino em 1924. Mas naquela época, no interior do Amazonas, paixão e amor ainda eram coisas secundárias quando se tratava de decidir um vínculo conjugal. E a união de Maria e Firmino resultou em um relacionamento muito difícil. Firmino crescera órfão e vivera como homem livre de padrões morais definidos. Sendo foguista de embarcações a vapor, não parava em casa. Às vezes ficava cinco ou seis meses sem aparecer. E nos portos onde parava, sempre se agarrava a alguma saia. Dizem que ele tinha um apetite sexual medonho. As mulheres que se lhe mostravam disponíveis eram imediatamente usadas, e aquelas que não estavam assim tão “à mão” eram muitas vezes seduzidas por sua lábia cearense. O fato é que ele teve de arcar com as conseqüências de ações tão libertinas. Tendo conhecido tantas caboclas diferentes e se atolado em tantos seios, cabelos e corpos, cheio de tamanha avidez, acabou por encontrar ali não apenas o prazer, mas, sobretudo, a dor e a morte. Naquele tempo, a gonorréia matava, ou debilitava tanto, que levava lentamente à morte. Depois de muito se expor às doenças venéreas, acabou em casa e doente, tendo de conviver, dia a dia, com o poder dos prazeres amaldiçoados, que o tomaram pela mão até o silêncio da última e eterna viagem.
  • 45. Ainda hoje eu me lembro dela contando como havia cuidado do marido até o fim, embora tivesse avisado que ele jamais voltaria a tocá-la com aquelas “mãos sujas de pegar em tanta mulher”. Foi com esse pano de fundo que Lacy entrou na vida de Caio, e por mais que ela lutasse contra a idéia, sofria de um certo complexo de inferioridade em relação à família dele. Some-se, ainda, a isso tudo, a própria mentalidade protestante da época, tomada por profundo complexo de perseguição. Para Lacy, era difícil construir uma ponte para fora de seu pequeno mundo, uma ponte que a transportasse para um espaço, bem maior em suas ramificações, vínculos e oportunidades. Por fim, em 2 de maio de 1953, Caio e Lacy casaram-se em regime de comunhão de bens, mas sem a bênção religiosa, pois nenhum dos dois conseguiu convencer suas famílias a consentir com o casamento na igreja do outro. Após o casamento, arrumaram suas trouxas e partiram para Canutama, onde Caio exercia a função de promotor de justiça do estado, e onde Lacy passou a lecionar no grupo escolar. Em agosto daquele mesmo ano os dois começaram a se preparar para notícias de desalento. Em Manaus, os membros da família já começavam a reunir- se em torno do leito de Dr. João Fábio, que, irreversivelmente, começava a morrer. CAPÍTULO 6 “Hoje tenho mais pena de uma pessoa que se regozija no mau do que daquele que tem o sentimento de ter sofrido ao ser impedido de participar em prazer pernicioso ou como tendo perdido uma fonte de felicidade miserável.” Santo Agostinho, Confissões João Fábio de Araújo morreu em profunda agonia. Não conseguindo mais respirar, atacado que estava há muitos anos por
  • 46. deficiências respiratórias gravíssimas resultantes de um mal cardíaco à época incurável, veio a falecer em grande ansiedade. Seu sofrimento foi bárbaro. O ar não lhe chegava ao peito, e ele pedia a Deus que o aliviasse das infernais sufocações que o desesperavam. Entre os filhos e amigos presentes o clima era de dor e perplexidade. Como Deus podia deixar sofrer tanto um ser humano que na vida não fizera nada além de dedicar-se, inteira e apaixonadamente, à causa dos pobres e órfãos? Que propósito teria Deus em tudo aquilo? Ou ainda — como era o caso das questões de Caio Fábio — que Deus era esse (se é que havia algum), que consentia com dor tão estúpida e sem sentido? Às nove horas da manhã, do dia 11 de setembro de 1953, João Fábio partiu para o eterno. O espírito daquele dia de luto foi expresso por Arthur Virgílio em seu artigo João Fábio de Araújo, bondosa figura de lidador, escrito em 18 de setembro e publicado em 27 do mesmo mês no maior periódico da época em Manaus, O Jornal do Comércio. O povo acompanhou a pé o enterro de vovô e levou-o até o cemitério, onde o sepultou na mesma cova em que, no ano de 1931, ele próprio enterrara seu filho Luís Ricardo. Ainda hoje João Fábio vive em todos nós, que dele descendemos, pois mesmo não chegando a conhecê-lo no chão deste planeta, nunca consegui me livrar da ética que ele praticou. De meus anos de criança, não me ficou a impressão de que meus tios e parentes fossem pessoas que dessem muita ênfase ao certo ou errado. O que minha memória registrou foram frases que se faziam constantes nos lábios de todos eles, frases que apontavam numa direção para muito além da moral. “Ele é um homem humano”; ou ainda: “Isto não é humano”, era o que diziam com freqüência quando emitiam seus “juízos de valores”. As histórias de vovô me ensinaram que “ser humano” é muito “mais certo” do que “ser correto” . Às vezes, ao contrário, para ser humano, é até preciso ser “incorreto” com relação aos chamados “conteúdos do comportamento preestabelecido”. Para ser humano, mais que freqüentemente é necessário viver onde o risco de não ser compreendido sempre se faz presente. A “ética do humano” tem como referência padrões que não se escrevem em códigos de conduta estudáveis, vez que são valores
  • 47. que brotam de intuições do amor e da solidariedade e, nesse nível da existência, o que menos importa é a média dos comportamentos aceitáveis. Neste caso, o que prevalece é a disposição do coração de enfrentar o mundo inteiro somente para não negar um sentimento ou uma intuição, seja em favor de alguém ou de uma simples idéia. Caio e Lacy continuaram em Canutama por mais dois anos. O tempo passava calmo, porém tedioso, até que em julho de 1954 Lacy ficou grávida de seu primeiro filho, razão pela qual, no início de 1955, resolveram voltar a Manaus. Eu nasci em 15 de março de 1955, na Santa Casa de Misericórdia de Manaus, às cinco horas da tarde de uma terça- feira. No mesmo dia jorrou petróleo em Nova Olinda, no rio Madeira, quase na sua confluência com o rio Amazonas, o que fez com que meu pai saísse do hospital gabando-se de que na sua casa havia brotado algo igualmente precioso. Papai e mamãe já estavam decididos quanto ao nome que eu deveria ter. Tiveram dúvida, no início, se me chamariam Hugo ou Caio, mas como naquela época era comum dar o nome do pai ao primogênito, optaram por Caio mesmo. Além disso, eles gostavam do significado latino do nome: bordão, cajado ou alegria. E, assim, me registraram com esse nome, que na infância me trouxe inúmeros problemas e que se tornou a razão de vários complexos que tive de vencer no início da adolescência. Passado o resguardo de mamãe, fomos juntos para Canutama. Lá, além de dedicar-se ao trabalho como servidor da justiça, papai investiu tempo numa nova arte: a marcenaria. Começou a fazer com as próprias mãos o meu berço, bem como os demais móveis da casa. A mesmice e o tédio do lugar permitiam que meus pais se devotassem inteiramente a mim, o que eles precisariam fazer de qualquer forma, pois logo comecei a dar muito trabalho. Aos seis meses tive uma coqueluche tão forte, que eles pensaram que eu fosse morrer. Perdia o ar por longos minutos e ficava arroxeado a ponto de minha mãe, às vezes, pensar que eu não fosse voltar da crise. Por causa disso, e de uma nova posição que papai conquistara como subprocurador geral do estado, eles decidiram voltar para Manaus de vez.
  • 48. A coqueluche se foi, mas a mania de chorar ficou. Todos que me conheceram nos primeiros anos de vida dizem que fui um grande chorão. Além disso, sofria de uma fome insaciável e, enquanto não era atendido nos meus clamores por comida, não deixava ninguém em paz. E a gritaria começava muito cedo, às quatro da matina, quando desferia os primeiros berros, machucando os ouvidos de todos, até dos vizinhos, que às vezes vinham se oferecer para me segurar enquanto minha mãe fazia o mingau. — Gagau, gagau — eu gritava, desesperado, até me trazerem a papa das quatro da manhã. Em 1957, papai decidiu deixar o serviço público, abandonando, contra a opinião geral, a posição que conquistara no estado, a fim de abrir seu próprio escritório de advocacia em Manaus. Sua pequena iniciativa vingou e três anos depois ele já começava a ser visto como um dos mais promissores nomes da profissão. Mas ele era ambicioso e não se contentou apenas com os ganhos que o exercício do advocacia lhe rendiam. Em 1958, criou a Colimpa S.A., uma sociedade de sete pessoas, mínimo permitido pela lei para uma sociedade anônima naqueles dias. Ele e o político, que entraria para sempre para a história do Amazonas, Gilberto Mestrinho, eram os acionistas majoritários, ainda que, legalmente, o último fosse representado por Antônio Lindoso, cujo irmão, José Lindoso, anos depois, durante a ditadura militar, viria a ser governador do estado. A companhia explorava ouro na região de Parauari e seu Adriano, um negro de Barbados que descobrira a jazida, era quem entrava na mata para buscar a preciosidade. Dois anos depois, em companhia de alguns amigos, papai abriria a Compaina, que explorava borracha e castanha na região do rio Novo Aripuanã. No mesmo ano, o então governador Gilberto Mestrinho nomeou-o diretor comercial da Papel Amazon, empresa de capital misto, estadual e federal. Enquanto isso, ele seguia usando sua crescente influência política para aumentar seu capital relacional como advogado, uma
  • 49. vez que, logo no início, percebeu que saber “quem é quem” constitui capital que poucos conseguem adquirir e menos ainda conseguem usar bem. E isso ele sabia fazer muito eficientemente e em proveito próprio, é claro. CAPÍTULO 7 “Eu estava sem qualquer desejo por alimento incorruptível, não porque eu estivesse repleto dele. Ao contrário, quanto mais vazio dele eu estava, mais desagradável ao paladar tal alimento se me tornava.” Santo Agostinho, Confissões Papai e mamãe compraram um terreno nos fundos da casa de vovó Zezé e construíram ali a nossa primeira casa. Os dois quintais se encontravam e formavam um só. Para mim, as lembranças daquele tempo são repletas de imagens mágicas. O quintal era o mesmo do tempo da infância de meu pai e as mudanças no ambiente não tinham sido muitas. Naquele pedaço de chão havia tudo que as crianças pudessem desejar para mergulhar no mundo da imaginação. Além dos primos que viviam no casarão da vovó Zezé, havia ainda os filhos dos vizinhos, que pulavam o muro e se perdiam em aventuras que iam de Tarzan a Ivanhoé, do Zorro ao Fantasma e de Robin Hood a Hércules. Naquele mesmo período, manifestou-se o início da veneração que eu teria por meu pai. — Bambio, papai, tum-tum, bobó — era como eu pedia todos os fins de tarde para ele me fazer montar em sua costa (tum-tum) e me levar até a casa da vovó Zezé (bobó). A fascinação que ele exercia sobre mim tinha a ver com sua infindável paciência para brincar de luta comigo, sempre fazendo de conta que eu ganhava, ou com a repetição incansável de malabarismos, quando eu subia nele e me sentia um trapezista
  • 50. fazendo peripécias nas alturas. — Onde você pensa que vai, menino? — perguntava mamãe de propósito, sempre que me via com um monte de processos legais de papai embaixo do braço. — Vô pu tibunal levá os pocessos po papai — era como eu pagava a paciência que ele me devotava, com admiração. Nós, os “filhos do quintal”, éramos um monte de meninos com nomes comuns, mas marcados pelo segundo nome Fábio. Já as meninas tinham tido a sorte de não ser Fábias. Os garotos eram João, José, Paulo, eu e meu irmão Luiz. Todos Fábios. As garotas eram Sônia, Ana e minha irmã Suely. Tínhamos a sorte de viver naquela terra encantada. A presença de nossas avós também era forte em nossas vidas, e eu e meus irmãos éramos os únicos com duas de plantão e cheias de cafuné à nossa disposição. Quando eu queria leite condensado no meio da tarde, bastava ir ao casarão de dona Zezé. Ela sempre tinha umas latas guardadas para fazer os nossos gostos. Quando chegava a hora do banho, eu voltava para minha casa, onde Mãe Velhinha, como eu acabei chamando minha avó Maria, me aguardava para me lavar todinho. Depois do banho, no início da noite, vinham as músicas e as histórias que ela nos contava. Mãe Velhinha nos marcou profundamente de modo bom e mau. A parte boa inclui suas histórias, suas lendas amazônicas, sua capacidade de fazer a gente sentir cheiros, sua insistência em nos fazer gostar de animais, plantas e cores, especialmente as do amanhecer e as do pôr-do-sol. A parte ruim tem a ver com sua insistência em nos tirar da cama no melhor do sono, às cinco da matina, para nos fazer ver o sol nascer. Além disso, havia também sua chatice de dividir o mundo entre católicos e protestantes, dizendo sempre que os primeiros estavam irremediavelmente perdidos e os últimos inevitavelmente salvos. Cansava. Lembro-me de às vezes ouvi-la dizer coisas do tipo: “Que pena que dona Zezé é católica. Tão boa, mas tão perdida.” Ou ainda: “É, que pena. Teu pai não vai para o céu. Enquanto ele for católico, não vai mesmo.” A coisa que mais
  • 51. espanta meus pais é a minha memória infantil. De fato, tenho recordações de períodos tão longínquos quanto os meus dois anos e meio de idade. Por exemplo, lembro-me, nitidamente, do primeiro castigo que recebi. Papai havia dito que eu não pegasse em algo, e eu o desobedeci sistematicamente. Ele, então, me colocou de castigo: eu não poderia sair da sala, do quarto e da alcova, onde o chão era de cerâmica amarela. Para fora desses limites, o chão era de cerâmica vermelha. Por isto, a partir daquele momento, eu me sentia em liberdade nos chãos amarelos e não nos vermelhos. Recordo-me que, aos cinco anos, senti uma fortíssima vontade de pegar a filha de um vizinho e sentá-la em meu colo, sem nem saber direito por que razão aquela estranha sensação de excitamento percorrendo meu corpo. Fiquei ali, na frente da casa deles, sentado, com a menina no meu colo, até que fomos flagrados. De repente, a mãe dela chegou, nos pegou, gritou, e me chamou de tarado. Afinal, a garotinha tinha a minha idade, mas a iniciativa tinha sido minha. Daí em diante, a coisa correu solta. Todos os dias, depois que chegávamos da escola, enquanto o pessoal da vizinhança fazia a sesta, vivíamos aqueles inocentes momentos de promiscuidade infantil, atrás das árvores, embaixo dos galinheiros, escondidos no porão da casa de vovó, ou em qualquer brecha em que coubessem duas crianças brincando de papai e mamãe ou de médico. Aquelas “brincadeiras” tomaram proporções enormes em minha mente. Aos sete anos, passava grande parte do tempo pensando no que poderia fazer para aproveitar novas oportunidades naquela área. Nossos pais, bem como toda a vizinhança, pareciam absolutamente inconscientes quanto ao que acontecia a alguns de nós. E mesmo a maioria dos “filhos do quintal” parecia estar alheia aos jogos de sexo infantil que ali aconteciam. E como eu me sentia irremediavelmente masculino, não podia nem me imaginar em qualquer papel, naquelas diversões precoces, em que não estivesse na condição de extremamente ativo e possuidor. Mas o quintal e as memórais dos primeiros anos não eram feitos só disso. Para a maioria das crianças ali, aquele era de fato
  • 52. um mundo inocente e mágico. E não faltavam os ingredientes necessários ao estímulo da fantasia naquele pedaço de chão. Doutor Américo era a figura mais exótica que nós todos conhecíamos naquele espaço mítico. Era alto, magro, costelas expostas a ponto de poderem ser contadas a distância, cabelos negros e longos, caídos sobre os ombros. O rosto era comprido e os olhos faiscantemente enlouquecidos. O homem era poeta. Declamava versos de sua própria autoria e não parava de andar nu, exibindo naturalmente seu longo pênis, à semelhança dos grandes cavalos que pastavam no campinho em frente ao casarão de vovó Zezé, que também tinham seus membros sexuais pendurados à vista de todos. Doutor Américo era o humano mais selvagem que nós todos conhecíamos. Ele era o ponto de contato entre o animal e a alma. Andava nu, como um bicho, mas caminhava cheio de poesia, como poucos humanos o faziam. Não me chocava ver a nudez do poeta mais do que a dos cavalos. Ele também era um ser livre e vivia sua animalidade com melodia insana. A esposa do doutor era uma mulher de traços notadamente indígenas. Ora, ele nos falava das virtudes femininas dela com grande poesia. — Alexandre, o Magno da Macedônia, Sidney Galtama e Iléia Amazônica são os nomes dos meus filhos. Mas os senhores podem chamar a menina de Mococa — dizia o nosso vizinho diferente, sempre fazendo alusões gratuitas aos seus três filhos, que viviam entre nós e eram nossos amigos de fantasia no quintal. O poeta louco marcou a mente infantil de todos nós. Além do poeta, havia uma jibóia que era mantida no porão da vovó por um dos muitos “filhos de criação”. Era a cobra do Xico Sobe e Desce, como a gente chamava aquele menino que mancava de uma perna. Ela cresceu tanto, que um dia, enquanto Xico dormia numa rede, a bicha enroscou-se nele. O acocho foi tão forte que o Sobe e Desce teve de sair pelo punho da rede. Xico quase morreu de susto. Então matamos a danada num ritual dramático, cortando-lhe a cabeça e pondo-a num vidro com álcool.
  • 53. Lá em casa, no outro extremo do terreno, nós chegamos a ter cavalos, ovelhas, um jacaré e um macaco, além de araras, periquitos, galinhas e outros bichos, pois papai adorava satisfazer nossas fantasias selváticas e Mãe Velhinha, mesmo que a contragosto, acabava cuidando da bicharada. Nossas noites eram absolutamente extraordinárias. Naquele tempo, não havia televisão em Manaus. Entretanto, tio Carlos Fábio, o médico, que também residia no casarão, resolveu dedicar- se ao hobby das filmagens. Assim, comprou uma câmera de cinema amador, um projetor e montou um estúdio de revelação em preto-e-branco. Ele filmava brincando, brigando, correndo ou mesmo representando algum papel, e exibia os filmes em noites concorridíssimas, onde nós e a garotada da vizinhança nos amontoávamos para assistir nossas versões artísticas da vida. Era o máximo. Foi ali que fiz meus primeiros discursos. — Esses tal de Plínio Coelhos são uns, uns, uns,... (ra,ra,ra), uns cabra. Esses tal de Gilberto é que são bom — dizia eu, imitando os discursos dos comícios que Mãe Velhinha me levava para ver na praça Quatorze. O processo de produção e revelação do filme também nos empolgava, especialmente porque o lugar onde tio Carlos revelava o material era o porão do casarão, onde tinha seu laboratório, sempre trancado e sob muitas recomendações de que não deveria ser violado. Lembro-me que na primeira vez que nos foi dado acesso à “sala escura”, entramos nas pontas dos pés, como se entra num santuário que, em vez de carregar em si o sabor do sagrado, escondia consigo o mistério do proibido. Todos estávamos calados quando tio Carlos resolveu contar o segredo da revelação dos filmes, guardado num produto que ficava num vidro largo e barrigudo. Ele disse solenemente: “Aqui está o líquido da mágica do filme.” E parou olhando para todos nós. Nossos olhos estavam arregalados de prazer e encanto. E prosseguiu: “Agora se preparem. Eu vou abrir.” E aí então saiu de dentro daquele vidro o mais terrível cheiro que eu jamais sentira em todos os meus sete anos de vida. Titio então gritou: “É o peido alemão.” Todo mundo correu. Alemão, para nós, era símbolo de algo que matava. Nunca me esquecerei do cheiro.