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História Concisa
da Filosofia Ocidental
História Concisa
da Filosofia Ocidental
Anthony Kenny
REVISÃO CIENTÍFICA
Desidério Murcho
Sociedade Portuguesa de Filosofia
Título original: A Brief History of Western Philosophy
Autor: Anthony Kenny
© Anthony Kenny, 1998
Tradução: Desidério Murcho, Fernando Martinho, Maria José Figuei-
redo, Pedro Santos e Rui Cabral
Revisão científica: Desidério Murcho
Revisão do texto: António José Massano
Capa: António Rochinha Diogo
Fotocomposição: Alfanumérico, L.da
Impressão: SIG — Sociedade Industrial Gráfica, L.da
(Bairro de S. Francisco, Lote I, 6, Camarate, 2685 Sacavém)
1.a edição: Setembro de 1999
ISBN: 972-759-???-?
Depósito legal: ??????????????????????
Temas e Debates — Actividades Editoriais, L.da
Rua Prof. Jorge da Silva Horta, 1— 1050-499 Lisboa
Tel. 762 60 03 — Fax 762 62 47
E-mail: temas@temasdebates.pt
Para Norman Kretzmann
Índice
Prefácio............................................................................................ 13
Agradecimentos ................................................................................. 17
1 Na infância da filosofia...................................................................... 19
Os Milésios ....................................................................................20
Xenófanes......................................................................................23
Heraclito.......................................................................................25
A Escola de Parménides ...................................................................28
Empédocles....................................................................................36
Os Atomistas..................................................................................39
2 A Atenas de Sócrates ........................................................................45
O Império Ateniense........................................................................45
Anaxágoras....................................................................................47
Os Sofistas.....................................................................................48
Sócrates.........................................................................................50
Eutífron ........................................................................................53
Críton ...........................................................................................57
Fédon............................................................................................57
3 A filosofia de Platão..........................................................................65
Vida e Obra....................................................................................65
A Teoria das Ideias..........................................................................67
A República de Platão......................................................................72
O Teeteto e o Sofista ........................................................................83
4 O sistema de Aristóteles....................................................................93
Discípulo de Platão, Mestre de Alexandre............................................93
A Fundação da Lógica......................................................................96
A Teoria da Arte Dramática ............................................................ 100
Filosofia Moral: Virtude e Felicidade................................................ 102
Filosofia Moral: Sabedoria e Entendimento....................................... 107
Política.........................................................................................110
Ciência e Explicação.......................................................................112
Palavras e Coisas............................................................................115
Movimento e Mudança....................................................................117
Alma, Sentidos e Intelecto.............................................................. 120
Metafísica.................................................................................... 123
5 A filosofia grega depois de Aristóteles ............................................... 129
A Era Helenística .......................................................................... 129
Epicurismo.................................................................................. 130
Estoicismo................................................................................... 133
Cepticismo................................................................................... 136
Roma e o seu Império.................................................................... 138
Jesus de Nazaré............................................................................ 140
Cristianismo e Gnosticismo............................................................ 143
Neoplatonismo............................................................................. 146
6 A filosofia cristã primitiva................................................................151
Arianismo e Ortodoxia....................................................................151
A Teologia da Incarnação ................................................................155
A Vida de Agostinho.......................................................................157
A Cidade de Deus e o Mistério da Graça .............................................161
Boécio e Filópono.......................................................................... 165
7 A filosofia medieval primitiva ...........................................................171
João Escoto Erígena.......................................................................171
Alkindi e Avicena .......................................................................... 174
O Sistema Feudal .......................................................................... 176
Santo Anselmo............................................................................. 178
Abelardo e Heloísa .........................................................................181
A Lógica de Abelardo..................................................................... 183
A Ética de Abelardo....................................................................... 185
Averróis....................................................................................... 187
Maimónides................................................................................. 189
ÍNDICE
8 Filosofia no século XIII.................................................................... 193
Uma Era de Inovação..................................................................... 193
S. Boaventura............................................................................... 197
A Lógica do Século xiii................................................................... 199
Vida e Obra de Tomás de Aquino..................................................... 201
A Teologia Natural de Tomás de Aquino ...........................................204
Matéria, Forma, Substância e Acidente.............................................205
Essência e Existência em Tomás de Aquino.......................................208
A Filosofia da Mente de Tomás de Aquino.........................................209
A Filosofia Moral de Tomás de Aquino.............................................. 212
9 Os filósofos de Oxford .................................................................... 219
A Universidade do Século xiv .......................................................... 219
Duns Escoto................................................................................. 221
A Lógica da Linguagem de Ockham..................................................228
A Teoria Política de Ockham ........................................................... 231
Os Calculadores de Oxford..............................................................234
John Wyclif..................................................................................236
10 A filosofia do Renascimento........................................................... 241
O Renascimento............................................................................ 241
O Livre-Arbítrio: Romaversus Lovaina ............................................243
O Platonismo do Renascimento.......................................................246
Maquiavel....................................................................................248
A Utopia de More.......................................................................... 251
A Reforma ................................................................................... 254
A Filosofia do Período Pós-Reforma................................................. 259
Bruno e Galileu............................................................................. 261
Francis Bacon...............................................................................263
11 A era de Descartes.........................................................................269
As Guerras Religiosas....................................................................269
A Vida de Descartes.......................................................................270
A Dúvida e o Cogito ....................................................................... 273
A Essência da Mente...................................................................... 276
Deus, Mente e Corpo ..................................................................... 278
O Mundo Material.........................................................................282
12 A filosofia inglesa no século XVII...................................................... 287
O Empirismo de Thomas Hobbes..................................................... 287
A Filosofia Política de Hobbes.........................................................290
A Teoria Política de John Locke.......................................................292
Locke, Ideias e Qualidades.............................................................. 295
Substâncias e Pessoas ....................................................................300
13 A filosofia do continente na época de Luís XIV ..................................307
Blaise Pascal ................................................................................307
Espinosa e Malebranche..................................................................311
Leibniz........................................................................................ 316
14 A filosofia britânica no século XVIII..................................................323
Berkeley ......................................................................................323
Hume e a Filosofia da Mente...........................................................329
Hume e a Causalidade....................................................................334
Reid e o Senso Comum................................................................... 337
15 O iluminismo............................................................................... 341
Os Philosophes ............................................................................. 341
Rousseau.....................................................................................343
Revolução e Romantismo............................................................... 347
16 A filosofia crítica de Kant............................................................... 351
A Revolução Copernicana de Kant.................................................... 351
A Estética Transcendental .............................................................. 354
A Analítica Transcendental: A Dedução das Categorias........................ 356
A Analítica Transcendental: O Sistema dos Princípios......................... 361
A Dialéctica Transcendental: Os Paralogismos da Razão Pura...............364
A Dialéctica Transcendental: As Antinomias da Razão Pura.................366
A Dialéctica Transcendental: Crítica da Teologia Natural.....................370
A Filosofia Moral de Kant............................................................... 373
17 O idealismo e o materialismo alemães.............................................. 377
Fichte.......................................................................................... 377
Hegel.......................................................................................... 379
Marx e os Jovens Hegelianos ..........................................................384
O Capitalismo e os seus Descontentes...............................................386
18 Os utilitaristas.............................................................................389
Jeremy Bentham...........................................................................389
O Utilitarismo de J. S. Mill .............................................................394
A Lógica de Mill............................................................................396
ÍNDICE
19 Três filósofos do século XIX ............................................................ 401
Schopenhauer............................................................................... 401
Kierkegaard.................................................................................409
Nietzsche..................................................................................... 412
20 Três mestres modernos................................................................. 417
Charles Darwin............................................................................. 417
John Henry Newman.....................................................................423
Sigmund Freud.............................................................................428
21 A Lógica e os fundamentos da Matemática........................................ 437
A Lógica de Frege.......................................................................... 437
O Logicismo de Frege....................................................................440
A Filosofia da Lógica de Frege.........................................................443
O Paradoxo de Russell ...................................................................444
A Teoria das Descrições de Russell...................................................446
Análise Lógica..............................................................................449
22 A filosofia de Wittgenstein............................................................. 453
Tractatus Logico-Philosophicus ...................................................... 453
O Positivismo Lógico.....................................................................456
As Investigações Filosóficas de Wittgenstein.....................................459
Posfácio.......................................................................................... 473
Sugestões de leitura complementar ..................................................... 479
Índice analítico................................................................................489
Prefácio
Á 52 ANOS, Bertrand Russell escreveu uma História da Filo-
sofia Ocidental num volume, que ainda é muito lida. Quando
me foi sugerido que poderia escrever um equivalente moderno, fui o
primeiro a ficar intimidado pelo desafio. Russell foi um dos maiores
filósofos do século e ganhou um prémio Nobel de literatura; como
poderia alguém aventurar-se a competir com ele? Contudo, esta obra
não é, em geral, enc arada como uma das melhores de Russell, que é
notoriamente injusto com alguns dos maiores filósofos do passado,
como Aristóteles e Kant. Além disso, Russell agia segundo pressupos-
tos sobre a natureza da filosofia e do método filosófico que hoje em dia
seriam postos em causa pela maior parte dos filósofos. Parece, na
verdade, haver espaço para um livro que ofereça uma panorâmica da
história deste tema de um ponto de vista filosófico contemporâneo.
A obra de Russell, por mais inexacta no pormenor, é aprazível e
estimulante, tendo proporcionado a muitas pessoas um primeiro gosto
pelo que há de emocionante na filosofia. Procuro neste livro atingir a
mesma audiência de Russell: escrevo para o leitor culto em geral, sem
uma formação filosófica especial, que deseja ficar a conhecer a contri-
buição dada pela filosofia para a cultura em que vivemos. Tentei evitar
o uso de quaisquer termos filosóficos sem os explicar quando surgem
pela primeira vez. Os diálogos de Platão oferecem-nos aqui um mode-
lo: Platão foi capaz de estabelecer resultados filosóficos sem usar qual-
quer vocabulário técnico, pois nenhum existia quando escreveu. Por
esta razão, entre outras, tratei algo detidamente vários dos seus diálo-
gos nos capítulos 2 e 3.
O aspecto da prosa de Russell que mais me esforcei por imitar foi a
clareza e o vigor do seu estilo. (Russell escreveu, um dia, que os seus
próprios modelos de autores de prosa eram Baedeker e John Milton.)
H
14
Um leitor que tenha acabado de chegar à filosofia achará por certo
difíceis de seguir algumas partes desta obra. Em filosofia não há águas
pouco profundas; todo o aprendiz de filósofo tem de lutar para não se
afundar. Mas fiz o meu melhor para assegurar que o leitor não terá de
enfrentar quaisquer dificuldades de compreensão que não sejam
intrínsecas ao tema.
Não é possível dar uma explicação prévia do que trata a filosofia. A
melhor maneira de aprender filosofia é ler as obras dos grandes filóso-
fos. Este livro pretende mostrar ao leitor quais os temas que interessa-
ram aos filósofos e quais os métodos por eles usados para os enfrentar.
Em si, os resumos das doutrinas filosóficas são pouco úteis: engana o
leitor quem lhe apresentar apenas as conclusões de um filósofo, sem
uma indicação dos métodos pelos quais elas foram alcançadas. Por
esta razão, apresentei — e critiquei — o melhor que pude o raciocínio
que os filósofos usam para apoiar as suas teses. Ao lançar-me assim na
discussão com os grandes espíritos do passado não pretendo faltar-
lhes ao respeito. É assim que se leva um filósofo a sério: não papa-
gueando o seu texto, mas digladiando-se com ele e aprendendo com os
seus pontos fortes e com os seus pontos fracos.
A filosofia é, simultaneamente, a mais emocionante e a mais frus-
trante das matérias. É emocionante porque é a mais ampla de todas as
disciplinas, explorando os conceitos básicos que atravessam todo o
nosso discurso e pensamento sobre qualquer tema. Além disso, pode
empreender-se o estudo da filosofia sem qualquer formação ou instru-
ção especial preliminar; qualquer pessoa que esteja disposta a pensar
muito e a seguir um raciocínio pode fazer filosofia. Mas a filosofia
também é frustrante porque, ao contrário das disciplinas científicas ou
históricas, não oferece nova informação sobre a natureza ou a socieda-
de. A filosofia não procura proporcionar conhecimento, mas com-
preensão; e a sua história mostra como tem sido difícil, mesmo para os
grandes espíritos, desenvolver uma perspectiva completa e coerente.
Pode dizer-se sem exagero que nenhum ser humano conseguiu ainda
alcançar uma compreensão completa e coerente nem mesmo da lin-
guagem que usamos para pensar os nossos pensamentos mais simples.
Não foi por acaso que o homem que muita gente considera o fundador
da filosofia enquanto disciplina autoconsciente, Sócrates, afirmou que
a única sabedoria que possuía era o conhecimento da sua própria
ignorância.
A filosofia não é ciência nem religião, apesar de historicamente ter
estado entrelaçada em ambas. Procurei mostrar como, em muitas
áreas, o pensamento filosófico surgiu da reflexão religiosa e como se
15
transformou em ciência empírica. Muitos assuntos que foram tratados
por grandes filósofos do passado já não contam hoje em dia como
filosóficos. Assim, concentrei-me nas áreas objecto dos seus esforços
que ainda hoje seriam enc aradas como filosóficas, como a ética, a
metafísica e a filosofia da mente.
Como Russell, fiz uma escolha pessoal dos filósofos a incluir nesta
história e do espaço devotado a cada um. Contudo, não me afastei
tanto quanto Russell das proporções comummente aceites no cânone
filosófico. Como Russell, incluí a discussão de não -filósofos que
influenciaram o pensamento filosófico; é por isso que Darwin e Freud
surgem na minha lista de autores. Dediquei um espaço considerável à
filosofia antiga e medieval, apesar de não tanto quanto Russell que, a
meio do seu livro, ainda não tinha passado de Alcuíno e Carlos Magno.
Terminei a narrativa por alturas da II Guerra Mundial e não tentei
abranger a filosofia continental do séculoXX.
Uma vez mais como Russell, esbocei o pano de fundo social, histó-
rico e religioso das vidas dos filósofos, mais detidamente ao tratar de
períodos remotos e muito brevemente à medida que nos aproximamos
dos tempos modernos.
Não escrevi para os filósofos profissionais, apesar de esperar, claro,
que eles achem a minha apresentação rigorosa e que se sintam à von-
tade para recomendar o meu livro aos seus estudantes como leitura
secundária. Para os que já estão familiarizados com o tema, a minha
prosa terá as marcas da minha própria formação filosófica, que come-
çou por ser na filosofia escolástica de inspiração medieval e depois na
escola da análise linguística que tem sido dominante na maior parte
deste século no mundo de língua inglesa.
A minha esperança, ao publicar este livro, é que ele possa transmi-
tir aos que sentem curiosidade pela filosofia alguma da sua emoção e
que os encaminhe para os próprios textos dos grandes pensadores do
passado.
Estou em dívida para com o corpo redactorial da Blackwell e para
com Anthony Grahame, pela assistência concedida na preparação do
livro; e para com três consultores anónimos que fizeram sugestões
úteis com vista ao seu aperfeiçoamento. Estou particularmente grato à
minha mulher, Nancy Kenny , que leu todo o livro em forma de manus-
crito, eliminando muitas passagens por serem ininteligíveis para o
não-filósofo. Tenho a certeza de que os meus leitores irão partilhar a
minha gratidão para com ela por os ter poupado a um trabalho inútil.
Janeiro de 1998
Agradecimentos
O autor e os editores agradecem reconhecidamente a autorização
para reproduzir materiais protegidos pelos direitos de autor:
T. S. Eliot: pelos versos de Four Quartets, copyright © 1943 by T. S.
Eliot, renovado em 1971 por Esme Valerie Eliot, para a Faber & Fa-
ber Ltd.
W. B. Yeats: pelos versos de «Among School Children», de Col-
lected Poems (Macmillan, 1995), agradecemos a A. P. Watt Ltd em
nome de Michael Yeats.
Os editores pedem desculpa por quaisquer erros ou omissões na
lista anterior e ficarão reconhecidos se forem avisados relativamente a
quaisquer correcções que devam ser incorporadas na próxima edição
ou reimpressão deste livro.
1
Na infância da filosofia
S MAIS ANTIGOS filósofos ocidentais eram gregos: filósofos que
falavam dialectos da língua grega e que estavam familiarizados
com os poemas gregos de Homero e Hesíodo, tendo sido ensinados a
prestar culto a deuses gregos como Zeus, Apolo e Afrodite. Estes filó-
sofos não viviam no continente grego, mas em centros afastados de
cultura grega, nas costas do Sul de Itália ou na costa ocidental do que é
hoje a Turquia, e floresceram no século V I a. C. — o século que come-
çou com a deportação dos judeus para a Babilónia ordenada pelo rei
Nabucodonosor e que acabou com a fundação da República Romana
depois da expulsão dos reis das jovens cidades.
Estes primeiros filósofos foram também os primeiros cientistas, e
muitos foram também líderes religiosos. A princípio, a distinção entre
ciência, religião e filosofia não era tão clara como viria a tornar-se em
séculos posteriores. No século V I, na Ásia Menor e na Itália grega,
havia um caldeirão intelectual no qual elementos de todas estas futu-
ras disciplinas fermentavam em conjunto. Mais tarde, os devotos
religiosos, os discípulos da filosofia e os herdeiros da ciência viriam
todos a poder olhar retrospectivamente para estes pensadores como os
seus antecessores.
Pitágoras, honrado na antiguidade por ter sido o primeiro a trazer
a filosofia para o mundo grego, ilustra na sua própria pessoa as carac-
terísticas deste período antigo. Nascido em Samos, ao largo da costa
da Turquia, emigrou para Crotona, na extremidade da península itáli-
ca. Pitágoras tem direito a ser considerado o pai da geometria enquan-
to estudo sistemático. O seu nome tornou-se familiar a muitas gera-
ções de crianças europeias em idade escolar porque lhe foi atribuída a
O
20
primeira demonstração de que o quadrado da hipotenusa de um triân-
gulo rectângulo é igual em área à soma dos quadrados dos outros dois
lados. Mas Pitágoras fundou também uma comunidade religiosa com
um conjunto de regras ascéticas e cerimoniais, a mais bem conhecida
das quais era a proibição de comer feijões. Pitágoras ensinou a doutri-
na da transmigração das almas: os seres humanos teriam almas inde-
pendentes dos seus corpos e, aquando da morte, a alma de uma pessoa
poderia migrar para outro tipo de animal. Por esta razão, ensinava os
seus discípulos a absterem-se de carne; diz-se que, uma vez, terá
impedido um homem de açoitar um cachorro por ter reconhecido nos
seus ganidos a voz de um amigo querido já falecido. Pitágoras acredi-
tava que a alma, tendo migrado sucessivamente para diferentes tipos
de animais, podia ac abar por reencarnar num ser humano. Ele próprio
afirmava lembrar-se de ter sido, alguns séculos antes, um herói no
cerco de Tróia.
Em grego, chamava-se «metempsicose» à doutrina da transmigra-
ção das almas. Fausto, na peça de Christopher Marlowe, depois de ter
vendido a alma ao diabo e estando prestes a ser levado para o Inferno
cristão, expressa o desejo desesperado de que Pitágoras tenha acerta-
do:
Ah, a metempsicose de Pitágoras! Que fosse verdade
E esta alma abandonava-me, transformando-me eu
Numa qualquer besta bruta.
Os discípulos de Pitágoras escreveram biografias suas cheias de
prodígios, atribuindo-lhe a segunda visão e o dom da bilocação e
fazendo dele filho de Apolo.
OS MILÉSIOS
A vida de Pitágoras está envolta em lendas. Sabe-se bastante mais
sobre um grupo de filósofos, aproximadamente seus contemporâneos,
que viv eram na cidade de Mileto, na Jónia, ou Ásia grega. O primeiro
deles foi Tales, que era suficientemente velho para ter podido prever
um eclipse em 585. Como Pitágoras, era um geómetra, apesar de lhe
serem atribuídos teoremas bastante simples, como o de que o diâme-
tro de um círculo divide este último em duas partes iguais. Também
como Pitágoras, Tales misturava a geometria com a religião: quando
descobriu como inscrever um triângulo rectângulo num círculo sacrifi-
21
cou um boi aos deuses. Mas a sua geometria tinha um lado prático: foi
capaz de medir a altura das pirâmides medindo as suas sombras. Tales
interessava-se também por astronomia, tendo identificado a constela-
ção da Ursa Menor, sublinhando a sua utilidade para a navegação. Foi,
diz-se, o primeiro grego a fixar a duração do ano em 365 dias e fez
estimativas dos tamanhos do Sol e da Lua.
Tales foi talvez o primeiro filósofo a levantar questões sobre a
estrutura e a natureza do cosmos como um todo. Sustentava que a
Terra repousa sobre a água, como um madeiro que flutua num regato.
(Aristóteles perguntaria, mais tarde: a água repousa sobre o quê?) Mas
a Terra e os seus habitantes não se limitavam a flutuar na água: Tales
pensava que, num certo sentido, tudo era feito de água. Mesmo na
antiguidade as pessoas não podiam fazer mais do que levantar conjec-
turas sobre as bases desta crença: seria porque todos os animais e
plantas precisam de água ou porque todas as sementes são húmidas?
Por causa da sua teoria sobre o cosmos, os autores posteriores
chamaram físico ou filósofo da natureza a Tales (physis é a palavra
grega para natureza). Apesar de ser um físico, Tales não era materia-
lista, isto é, não pensava que mais nada existisse a não ser a matéria
física. Um dos dois adágios que nos chegaram dele textualmente é
«Tudo está cheio de deuses». Uma indicação do que ele queria dizer é
talvez dada pela sua afirmação de que o íman, porque desloca o ferro,
tem alma. Tales não acreditava na doutrina da transmigração de Pitá-
goras, mas sustentava a imortalidade da alma.
Tales não foi apenas um teorizador. Foi um conselheiro político e
militar do rei Creso da Lídia e ajudou-o a passar um rio a vau desvian-
do um caudal de água. Prognosticando uma colheita de azeitona
extraordinariamente boa, arrendou todos os lagares e enriqueceu. No
entanto, adquiriu a reputação de ser um distraído, apartado das coisas
mundanas, e é assim que nos surge numa carta que um antigo autor
apócrifo simulou ter sido escrita por Mileto a Pitágoras:
Tales encontrou um destino cruel na sua velhice. Saiu do pátio de sua
casa para ver as estrelas à noite, como era seu costume, com a sua serva
e, esquecendo-se de onde se encontrava, enquanto contemplava as
estrelas, chegou à beira de um talude íngreme, de onde caiu. Foi nestas
circunstâncias que os milésios perderam o seu astrónomo. Que aqueles
que foram seus alunos, como nós, prezem a sua memória, e que esta
seja prezada pelos nossos filhos e alunos.
22
O verdadeiro autor desta carta era um jovem contemporâneo e
aluno de Tales chamado Anaximandro, um sábio que fez o primeiro
mapa do mundo e das estrelas, tendo inventado tanto o relógio de sol
como um relógio das estações. Ensinava que a Terra tinha a forma
cilíndrica, como uma secção de uma coluna. Em volta do mundo exis-
tiam anéis gigantes, cheios de fogo; cada anel tinha um buraco através
do qual o fogo podia ser visto, sendo os buracos o Sol, a Lua e as estre-
las. O tamanho do anel maior era 28 vezes
o da Terra, e o fogo avistado pelo seu orifício era o Sol. As obstruções
nos orifícios explicavam os eclipses e as fases da Lua. O fogo no inte-
rior destes anéis fora uma grande bola de chama que rodeara a Terra
primitiva e que gradualmente se desfizera em fragmentos que se ins-
creveram em coberturas como as das árvores. Os corpos celestes have-
riam de voltar ao fogo original.
As coisas a partir das quais se originam as que existem são também as
coisas em que se transformam quando se destroem, de acordo com o
que tem de ser. Pois elas ofertam justiça e reparação umas às outras
pela sua injustiça de acordo com as disposições do tempo.
A cosmogonia física está aqui misturada não tanto com a teologia,
mas com uma grande ética cósmica: os diversos elementos, tal como os
homens e os deuses, têm de se manter dentro de limites para sempre
fixados pela natureza.
Apesar de o fogo desempenhar um papel importante na cosmogonia
de Anaximandro, seria um erro pensar que ele o encarava como o
constituinte último do mundo, como a água de Tales. O elemento
básico de tudo, sustentava, não podia ser a água nem o fogo, nem nada
de semelhante, pois, caso contrário, esse elemento invadiria gradual-
mente o universo. Tinha de ser algo sem uma natureza definida, a que
chamou o «infinito» ou o «ilimitado». «O infinito é o primeiro princí-
pio das coisas que existem: é eterno e sem idade e contém todos os
mundos.»
Anaximandro foi um proponente antecipado da evolução das espé-
cies. Os seres humanos que conhecemos não podem ter sempre existi-
do, defendeu. Os outros animais são capazes de olhar por si próprios
pouco tempo depois de terem nascido, ao passo que os seres humanos
precisam de um longo período de aleitamento; se os seres humanos
tivessem originalmente sido como são agora, não poderiam ter sobre-
vivido. Anaximandro sustentou que, numa época anterior, havia ani-
mais semelhantes a peixes no interior dos quais os embriões humanos
23
cresceram até atingirem a puberdade antes de se precipitarem no
mundo. Devido a esta tese, apesar de não ser vegetariano noutros
aspectos, Anaximandro pregava contra a ingestão de peixe.
O infinito de Anaximandro era um conceito demasiado rarefeito
para alguns dos seus sucessores. O seu contemporâneo mais novo em
Mileto, Anaxímenes, apesar de concordar que o elemento último não
poderia ser o fogo nem a água, afirmava que era a partir do ar que tudo
o mais se tinha gerado. No seu estado estável o ar é invisível, mas,
quando se move e se condensa, torna-se primeiro vento, depois nuvem
e a seguir água, e, finalmente, a água condensada torna-se lama e
pedra. Presumivelmente, o ar rarefeito torna-se fogo, o que completa a
gama dos elementos. Para apoiar a sua teoria, Anaxímenes apelava à
experiência: «Os homens libertam das suas bocas tanto o calor como o
frio; pois o sopro arrefece quando é comprimido e condensado pelos
lábios, mas, quando a boca se relaxa e o ar se exala, torna-se quente
em virtude da sua rarefacção». Assim, a rarefacção e a condensação
podem gerar tudo a partir do ar subjacente. Isto é ingénuo, mas é
ciência ingénua: não é mitologia, ao contrário das narrativas clássicas
e bíblicas do dilúvio e do arco-íris.
Anaxímenes foi o primeiro defensor da Terra plana: pensava que os
corpos celestes não viajavam sob a Terra, como os seus predecessores
tinham defendido, mas que rodavam em torno das nossas cabeças
como um chapéu de feltro. Anaxímenes era também um defensor da
Lua plana e do Sol plano: «O Sol, a Lua e os outros corpos celestes,
sendo todos ígneos, viajam pelo ar por serem planos».
XENÓFANES
Tales, Anaximandro e Anaxímenes constituíram um trio de intrépi-
dos e engenhosos filósofos especulativos. Os seus interesses distin-
guem-nos mais como os antecessores dos cientistas do que dos filóso-
fos modernos. As coisas são diferentes no que respeita a Xenófanes
de Cólofon (próximo da actual Esmirna), que viveu no século V. Os
seus tópicos e métodos são reconhecivelmente os mesmos dos filósofos
das épocas posteriores. Ele foi, em particular, o primeiro filósofo da
religião, e alguns dos argumentos por ele propostos são ainda levados
a sério pelos seus sucessores.
Xenófanes detestava a religião presente nos poemas de Homero e
Hesíodo, cujas histórias blasfemavam, atribuindo aos deuses o roubo,
24
a manha, o adultério e todo o tipo de comportamento que, entre os
seres humanos, seria vergonhoso e condenável. Sendo ele próprio um
poeta, Xenófanes atacou ferozmente a teologia homérica em versos
satíricos hoje perdidos. Não que Xenófanes afirmasse possuir uma
compreensão clara sobre a natureza do divino; pelo contrário, escre-
veu que «a verdade clara sobre os deuses nenhum homem jamais viu
nem nenhum homem irá alguma vez conhecer». Mas afirmava saber
de onde vinham essas lendas dos deuses: os seres humanos têm ten-
dência para representar toda a gente e tudo o que há à sua imagem. Os
etíopes, afirmou Xenófanes, fazem os seus deuses escuros e de nariz
achatado, ao passo que os trácios os fazem de cabelo ruivo e olhos
azuis. A crença de que os deuses têm um tipo qualquer de forma
humana é um antropomorfismo infantil. «Se as vacas, os cavalos ou os
leões tivessem mãos e pudessem desenhar, os cavalos desenhariam as
formas dos deuses semelhantes a cavalos, as vacas deuses semelhantes
a vacas, fazendo os corpos dos deuses semelhantes aos seus próprios
corpos.»
Apesar de ninguém vir jamais a ter uma visão clara de Deus, Xenó-
fanes pensava que, à medida que a ciência progredisse, os mortais
poderiam aprender mais do que o que tinha originalmente sido rev e-
lado. «Há um Deus», escreveu, «o maior de entre os deuses e os
homens, dissemelhante dos mortais tanto em forma como em pensa-
mento.» Deus não era limitado nem infinito, mas completamente não
espacial: o divino é uma coisa viva que vê como um todo, pensa como
um todo e ouve como um todo.
Numa sociedade que adorava muitos deuses, Xenófanes era um
firme monoteísta. Só havia um Deus, defendia, porque Deus é a mais
poderosa de todas as coisas e, se houvesse mais de um, todos teriam de
partilhar o mesmo poder. Deus não pode ter uma origem; pois o que
vem à existência ou o faz partindo do que lhe é análogo, ou do que não
lhe é análogo — e ambas as alternativas conduzem ao absurdo no caso de
Deus. Deus não é infinito nem finito, não é mutável nem imutável. Mas,
apesar de Deus ser de certo modo impensável, não é destituído de
pensamento. Pelo contrário, «À distância e sem esforço, só com a sua
mente, Ele governa tudo o que existe».
O monoteísmo de Xenófanes é digno de nota não tanto por causa
da sua originalidade, mas por causa da sua natureza filosófica. O pro-
feta hebraico Jeremias e os autores do livro de Isaías já tinham pro-
clamado que só existia um deus verdadeiro. Mas ao passo que a sua
postura se baseava num oráculo divino, Xenófanes ofereceu uma
demonstração do seu ponto de vista por meio de argumentação racio-
25
nal. Em termos de uma distinção que não seria traçada senão séculos
depois, Isaías proclamou uma religião revelada, ao passo que Xenófa-
nes era um teólogo natural.
A filosofia da natureza de Xenófanes é menos emocionante do que a
sua filosofia da religião. As suas ideias são variações de tópicos pro-
postos pelos milésio s que o precederam. Xenófanes tomou a terra, e
não a água nem o ar, como o seu elemento último. Pensava que a terra
se prolongava até ao infinito abaixo de nós. O Sol, sustentava, origina-
va-se cada dia a partir de uma congregação de minúsculas centelhas.
Mas não era o único sol; na verdade, havia uma infinidade de sóis. A
contribuição científica mais original de Xenófanes foi ter chamado a
atenção para a existência de fósseis, apontando para o facto de em
Malta se encontrarem impressas em rochas as formas de todas as
criaturas marinhas. Com base nisto, Xenófanes concluiu que o mundo
tinha passado por um ciclo de fases alternadas terrestres e marinhas.
HERACLITO
O último e o mais famoso destes primeiros filósofos jónios foi
Heraclito, que viveu no princípio do século V na grande metrópole de
Éfeso, onde mais tarde S. Paulo viria a pregar, a residir e a ser perse-
guido. A cidade, quer no tempo de Heraclito quer no tempo de S. Pau-
lo, era dominada pelo grande templo da deusa da fertilidade, Artemi-
sa. Heraclito denunciou o culto praticado no templo: rezar a estátuas
era como sussurrar mexericos a uma casa vazia, e oferecer sacrifícios
para nos purificarmos do pecado era como tentar lavar a lama com
lama. Visitava o templo de tempos a tempos, mas só para jogar aos
dados com as crianças dali — uma companhia muito melhor do que a
dos políticos, dizia, recusando-se a desempenhar qualquer papel na
política da cidade. Foi também no templo de Artemisa que Heraclito
depositou o seu tratado em três tomos sobre filosofia e política, uma
obra, hoje perdida, notoriamente difícil — tão enigmática que algumas
pessoas a tomaram como um texto de física e outras como um tratado
político. («O que dela consigo compreender é excelente», disse Sócra-
tes mais tarde, «o que não consigo compreender pode muito bem ser
também excelente; mas só um mergulhador do mar alto poderá che-
gar-lhe ao fundo.»)
Nesse livro Heraclito falava de uma grande Palavra, ou Logos,
sempre subsistente e de acordo com a qual todas as coisas se originam.
Escrevia de modo paradoxal, afirmando que o universo é simultanea-
26
mente divisível e indivisível, gerado e não gerado, mortal e imortal,
Palavra e Eternidade, Pai e Filho, Deus e Justiça. Não admira que toda
a gente, como ele se queixava, achasse o seu Logos consideravelmente
incompreensível.
Se Xenófanes, com o seu estilo de argumentação, era semelhante
aos filósofos profissionais modernos, Heraclito estava muito mais de
acordo com a ideia popular moderna do filósofo como guru. Heraclito
não tinha senão desprezo pelos seus predecessores filosóficos. Muito
estudo, dizia, não nos ensina a ser homens sensatos; caso contrário,
teria feito de Hesíodo, Pitágoras e Xenófanes homens sensatos. Hera-
clito não argumentava, proferia: era um mestre das máximas fecundas
de ar profundo e sentido obscuro. O seu estilo délfico era talvez uma
imitação do oráculo de Apolo que, nas suas próprias palavras, «nem
fala, nem esconde, mas manifesta-se por sinais». Os seguintes adágios
contam-se entre os mais bem conhecidos de Heraclito:
O caminho a subir e a descer é um e o mesmo.
A harmonia oculta é melhor do que a manifesta.
A guerra é pai de todos e de todos é soberana; a uns apresenta-os como
deuses e a outros como homens; de uns ela faz escravos, de outros
homens livres.
Uma alma seca é mais sábia e melhor.
Para as almas, tornar-se água é a morte.
Um ébrio é um homem conduzido por um rapaz.
Os deuses são mortais, os seres humanos imortais, vivendo a sua mor-
te, morrendo a sua vida.
A alma é uma aranha e o corpo é a sua teia.
Heraclito explicava assim a última observação: tal como uma ara-
nha, no meio de uma teia, se dá conta assim que uma mosca quebra
um dos seus fios e de longe se precipita como se estivesse em aflição,
também a alma humana, se alguma parte do corpo está magoado, se
precipita imediatamente para aí, como se não conseguisse suportar a
injúria. Mas, se a alma é uma aranha diligente, também é, segundo
Heraclito, uma centelha da substância das ígneas estrelas.
Na cosmologia de Heraclito, o fogo desempenha o papel que a água
tinha em Tales e o ar em Anaxímenes. O mundo é um fogo sempre
ardente: todas as coisas vêm do fogo e vão para o fogo; «todas as coi-
sas se podem trocar pelo fogo, como os bens se trocam por ouro e o
ouro por bens». Há um caminho descendente, no qual o fogo se trans-
forma em água e a água em terra, e um caminho ascendente, no qual a
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terra se transforma em água, a água em ar e o ar em fogo. A morte da
terra é tornar-se água, a morte da água é tornar-se ar e a morte do ar é
tornar-se fogo. Há um único mundo, o mesmo para todos, e não foi
Deus nem o homem que o fizeram; sempre existiu e sempre existirá,
passando, de acordo com ciclos determinados pelo destino, por uma
fase de inflamação, que é a guerra, e uma de combustão, que é a paz.
A visão de Heraclito da transmutação dos elementos num fogo
sempre ardente conquistou a imaginação dos poetas até aos nossos
dias. T. S. Eliot, em Quatro Quartetos, decidiu glosar a afirmação de
Heraclito de que a água era a morte da terra:
Há inundação e seca
Por sobre os olhos e na boca,
Águas mortas e mortos areais
Que pela primazia guerreais.
O solo, ressequido e desventrado,
Fica de boca aberta pelo labor anulado
E ri-se sem alegria nesse exercício
— Que é da terra o final exício.
Gerard Manley Hopkins escreveu um poema intitulado «Que a
Natureza é um Fogo Heracliteano», repleto de imagens provenientes
de Heraclito:
Milhões atestados, consome-se a grande fogueira da natureza.
Mas extinto o mais formoso e mais querido, a centelha mais sua,
O homem, e o éctipo de fogo deste, a sua presença no espírito, desapa-
rece ligeiro!
Ambos estão num insondável, tudo está num sombrio enorme
Submergido. Oh! mágoa e indignação! Aparição humana, que refulgiu
Desapareceu, disjungida, uma estrela, a morte invade com o oblívio…
Perante esta situação, Hopkins busca conforto na promessa de uma
ressurreição final — uma doutrina cristã, claro, mas uma doutrina que
conhece a sua antecipação numa passagem de Heraclito que fala de
seres humanos que regressam e se tornam guardiães vigilantes dos
vivos e dos mortos. «O fogo», disse Heraclito, «virá e julgará e conde-
nará todas as coisas.»
O aspecto dos ensinamentos de Heraclito que mais impressionou os
filósofos no mundo antigo não foi tanto a visão do mundo como uma
fogueira, mas antes o corolário segundo o qual tudo no mundo estava
num estado de constante mudança e fluxo. Tudo passa, disse Heracli-
to, e nada permanece; o mundo é como um curso de água corrente. As
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águas que vemos perante nós, nas margens de um rio, não são as
mesmas em dois momentos distintos, e não podemos banhar os nossos
pés duas vezes nas mesmas águas. Até aqui, tudo bem; mas Heraclito
foi mais longe e afirmou que nem sequer podemos entrar duas vezes
no mesmo rio. Isto parece falso, quer seja tomado literalmente, quer
seja tomado alegoricamente; mas, como veremos, esta ideia foi extre-
mamente influente na filosofia grega posterior.
A ESCOLA DE PARMÉNIDES
A situação filosófica é muito diferente quando nos voltamos para
Parménides, que nasceu nos últimos anos do século VI. Apesar de ter
sido, provavelmente, um discípulo de Xenófanes, Parménides passou a
maior parte da sua vida não na Jónia mas em Itália, numa cidade
chamada Eleia, cerca de 110 quilómetros a sul de Nápoles. Diz-se que
Parménides redigiu um excelente conjunto de leis para a sua cidade,
mas nada sabemos da sua actividade política nem da sua filosofia
política. Parménides é o primeiro filósofo cujos escritos nos chegaram
em quantidade apreciável: escreveu um
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poema filosófico nuns versos desajeitados, do qual temos cerca de 120
linhas. Na sua obra não se dedicou à cosmologia, como os primeiros
milésios, nem à teologia, como Xenófanes, mas a um estudo novo e
universal que a ambos abrangia e transcendia: a disciplina a que os
filósofos posteriores chamaram ontologia. A ontologia deriva o seu
nome de uma palavra grega que, no singular, é on e, no plural, onta: é
esta palavra — o particípio presente do verbo grego ser — que define o
tema de Parménides. O seu singular poema pode reivindicar o título de
carta régia fundadora da ontologia.
Para explicar o que é a ontologia e do que trata o poema de Parmé-
nides, é necessário entrar em minúcias relativamente a questões de
gramática e de tradução. A paciência do leitor relativamente a este
pedantismo será compensada, pois entre Parménides e os dias de hoje
a ontologia viria a ter um crescimento vasto e luxuriante, de modo que
só uma compreensão firme do que Parménides queria dizer, e do que
não conseguiu dizer, nos permite traçar um percurso claro, ao longo
dos séculos, pela selva ontológica.
O tema de Parménides é o «to on», o que, traduzido literalmente,
quer dizer «o que é». Antes de explicarmos o verbo, temos de dizer
qualquer coisa sobre o artigo. Em português usamos por vezes um
adjectivo, precedido por um artigo definido, para referir uma classe de
pessoas ou coisas, como quando dizemos «os ricos», para referir as
pessoas ricas. A formulação correspondente era muito mais frequente
em grego do que em português: os gregos podiam usar a expressão «o
quente» para referir as coisas quentes e «o frio» para referir as coisas
frias. Assim, por exemplo, Anax ímenes afirmava que o ar se tornava
visível pelo quente, pelo frio, pelo húmido e pelo móvel. Em vez de um
adjectivo depois de «o», podemos, claro, usar um substantivo, em
particular um substantivo deverbal, como quando falamos, por exem-
plo, de «o assistente» para referir as pessoas que assistem (a um
espectáculo, por exemplo). Mas em grego era possível também fazer
suceder ao artigo um particípio presente propriamente dito, que em
português corresponde ao gerúndio; e é esta construção que ocorre em
«o que é», que literalmente quer dizer «o (que está) sendo». «O que é»
é aquilo que está sendo, tal como «o assistente» designa aqueles que
(por exemplo) assistem ao espectác ulo.
Uma forma verbal como «assistir» tem em português pelo menos
dois usos diferentes: pode ser um verbo no infinitivo de pleno direito,
como em «gostei de assistir ao espectáculo», ou pode ser um verbo
substantivado, como em «assistir a filmes violentos é prejudicial aos
jovens». Quando os filósofos escrevem tratados sobre o ser, usam
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geralmente a palavra como verbo substantivado: propõem-se explicar
o que é isso de
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algo ser. Não é isso, pelo menos principalmente, aquilo de que Parmé-
nides se ocupa: ele está preocupado com o que é, isto é, com seja o que
for que, por assim dizer, está sendo. Para distinguir este sentido de
«ser» do uso como verbo substantivado, e para evitar a estranheza da
tradução portuguesa literal «o que é», a tradição tem usualmente
dignificado o tema de Parménides com um S maiúsculo. Seguiremos
esta convenção, segundo a qual «o Ser» se refere a seja o que for que
está sendo, e «o ser» é o verbo ser substantivado.
Muito bem; mas se isso é o que o Ser é, para perceber do que está
Parménides a falar temos também de saber o que é o ser, isto é, o que é
isso de algo ser. Compreendemos o que é algo ser azul, ou um cacho r-
ro; mas o que é isso de algo ser apenas, sem mais? Uma possibilidade
auto-evidente é esta: ser é existir, ou, por outras palavras, o ser é a
existência. Se assim for, o Ser será, pois, tudo o que existe.
Em português, «ser» pode certamente querer dizer «existir».
Quando Hamlet se interroga «ser ou não ser, eis a questão», está a
debater-se com a ideia de pôr, ou não, fim à sua existência. Na Bíblia
podemos ler que Raquel chorava pelos seus filhos «e não sentia con-
forto por eles não serem mais». Este uso em português é poético e
arcaico, não sendo natural dizer coisas como «A Torre de Belém ainda
é, e o cinema Monumental deixou de ser», quando queremos dizer que
o primeiro edifício ainda existe, ao passo que o segundo já não. Mas a
afirmação correspondente seria perfeitamente natural em grego anti-
go; e este sentido de «ser» está certamente presente no discurso de
Parménides sobre o Ser.
Se isto fosse tudo o que está em causa, poderíamos limitar-nos a
dizer que o Ser é tudo o que existe, ou, se quisermos, tudo o que é ou,
ainda, tudo o que está sendo. Trata-se, sem dúvida, de um tema sufi-
cientemente lato. Não poderíamos censurar Parménides, como Hamlet
censurou Horácio, dizendo que
Há mais coisas nos céus e na terra
Do que sonhas na tua filosofia.
Pois tudo o que há nos céus e na Terra cairá sob a designação do Ser.
Infelizmente, contudo, as coisas são mais complicadas do que isto.
A existência não é tudo o que Parménides tem em mente quando fala
do Ser. Ele está interessado no verbo ser não apenas tal como ocorre
em frases como «Tróia já deixou de ser», mas também tal como ocorre
em qualquer tipo de frase, seja ela qual for — quer se trate de frases
como «Penélope é uma mulher», «Aquiles é um herói», «Menelau é
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louro» ou «Telémaco é alto». Compreendido deste modo, o Ser não é
apenas o que existe, mas aquilo em relação ao qual qualquer frase que
contenha «é» é verdadeira. Além disso, o ser não é apenas o existir (o
ser, sem mais), mas ser qualquer coisa, seja o que for: ser vermelho ou
azul, ser quente ou frio, e assim por diante ad nauseam. Tomado neste
sentido, o domínio do Ser é muito mais difícil de compreender.
Depois deste longo preâmbulo, estamos em condições de deitar um
olhar sobre alguns dos versos do misterioso poema de Parménides.
O que podes nomear e pensar tem de ser o Ser
Pois o Ser pode, e o nada não pode, ser.
O primeiro verso destaca a vasta extensão do Ser: se podemos
chamar Argo a um cão, ou se podemos pensar na Lua, então o Argo e
a Lua têm de ser, têm de contar como parte do Ser. Mas por que razão
nos diz o segundo verso que o nada não pode ser? Bem, qualquer
coisa que possa realmente ser tem de ser uma coisa ou outra; não
pode limitar-se a ser coisa nenhuma.
Parménides introduz, para corresponder à noção do Ser, a do Não-
Ser.
Nunca poderá suceder que o Não-Ser seja;
Não permitas ao teu espírito tal pensamento.
Se o Ser é aquilo em relação ao qual uma coisa ou outra, não impor-
ta qual, é verdadeira, então o Não-Ser é aquilo em relação ao qual
absolutamente nada é verdadeiro. Mas isto é, sem dúvida, absurdo.
Não só o Não-Ser não pode existir, não pode mesmo ser pensado.
Não poderás conhecer o Não-Ser — isso não pode fazer-se —
Nem proferi-lo; ser pensado e ser é uma só coisa.
Dada a sua definição de «ser» e «Não-Ser», Parménides tem, sem
dúvida, razão neste aspecto. Se alguém nos disser que está a pensar em
algo e lhe perguntarmos em que tipo de coisa está a pensar, ficaremos
desconcertados se essa pessoa nos disser que não se trata de nenhum
tipo de coisa. Se lhe perguntarmos então com o que se parece isso e se
essa pessoa nos disser que não se parece com nada, ficaremos descon-
certados. «Poderá então dizer-me seja o que for sobre o que está a
pensar?», podemos nós perguntar. Se essa pessoa nos disser que não,
podemos com toda a justiça concluir que ela não está realmente a
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pensar em coisa alguma — na verdade, não está sequer a pensar. Nesse
sentido, é verdade que ser pensado e ser são um e o mesmo.
Podemos concordar com Parménides até aqui; mas podemos tam-
bém fazer notar que há uma diferença importante entre dizer
O Não-Ser não pode ser pensado
e dizer
O que não existe não pode ser pensado.
A primeira frase é, no sentido explicado acima, verdadeira; a
segunda é falsa. Se fosse verdadeira, poderíamos demonstrar que as
coisas existem limitando-nos a pensar nelas; mas, ao passo que tanto
podemos pensar em leões como em unicórnios, os leões existem e os
unicórnios não. Dado o carácter enredado da sua linguagem, é difícil
ter a certeza se Parménides pensava ou não que as duas afirmações
eram equivalentes. Alguns dos filósofos posteriores acusaram-no de
fazer essa confusão; outros parecem ter sido eles próprios vítimas dela.
Concordámos com a rejeição do Não -Ser de Parménides. Mas é
mais difícil acompanhar algumas das conclusões que ele retira do
carácter inconcebível do Não-Ser e da universalidade do Ser. Eis como
Parménides continua:
Há um caminho, assinalado deste modo:
O Ser nunca nasceu e nunca morre;
Firme, imóvel, não permitirá nenhum fim
Nunca foi, nem será; sempre presente,
Uno e contínuo. Como poderia nascer
Ou de onde poderia ter -se criado? Do Não-Ser? Não —
Isso não pode dizer-se nem pensar-se; não podemos sequer
Chegar a negar que é. Que necessidade,
Anterior ou posterior, poderia o Ser do Não-Ser fazer surgir?
Portanto, tem inteiramente de ser ou não.
Nem ao Não-Ser irá a crença atribuir
Qualquer progenitura além de si mesmo […]
«Nada pode provir do nada» é um princípio que tem sido aceite por
muitos pensadores bastante menos intrépidos do que Parménides.
Mas não houve muitos que tivessem retirado a conclusão de que o Ser
não tem princípio nem fim, nem que não está sujeito à mudança tem-
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poral. Para perceber por que razão tirou Parménides esta conclusão,
temos de admitir que ele pensava que «ser água» ou «ser ar» se rela-
cionava com «ser» da mesma maneira que «correr depressa» e «correr
devagar» se relaciona com «correr». Uma pessoa que comece por
correr depressa e que depois corra devagar continua todo o tempo a
correr; analogamente, para Parménides, o que for primeiro água e
depois ar continua a ser. Quando a água de uma chaleira se evapora,
tal pode ser, nas palavras de Heraclito, a morte da água e o nascimento
do ar; mas, para Parménides, não é a morte nem o nasc imento do Ser.
Sejam quais forem as mudanças que possam ter lugar, não são mudan-
ças do ser para o não-ser; são sempre mudanças no Ser e não mudan-
ças do Ser.
O Ser tem de ser eterno, pois não poderia ter tido origem no Não-
Ser nem tornar-se no Não-Ser, pois não há tal coisa. Se o Ser pudesse
— per impossibile — provir do nada, o que poderia fazer com que isso
acontecesse num momento em vez de outro? Na verdade, o que dife-
rencia o passado do presente e do futuro? Se não é um tipo de ser, o
tempo será irreal; mas, se é um tipo de ser, então tudo será parte do
Ser, e o passado, o presente e o futuro não serão senão um Ser.
Parménides procura mostrar, com argumentos análogos, que o Ser
é indiviso e ilimitado. O que iria dividir o Ser do Ser? O Não-Ser?
Nesse caso, a divisão seria irreal. O Ser? Nesse caso não haveria div i-
são, mas o Ser contínuo. O que poderia impor limites ao Ser? O Não-
Ser não pode fazer nada a coisa alguma; e, se imaginarmos que o Ser
está limitado pelo Ser, então o Ser não alcançou ainda os seus limites.
Pensar uma coisa é pensar que é, nem mais.
À parte o Ser, seja o que for que exprimamos,
O pensamento não alcançará. Nada é ou será
Para além dos limites do Ser, visto que o decreto do Destino
O agrilhoou, inteiro e imóvel. Todas as coisas são nomes
Que a credulidade dos mortais forjou —
Nascimento e destruição, ser tudo ou nada,
Mudanças de lugar, e cores que vão e vêm.
O poema de Parménides tem duas partes: a Via da Verdade e a Via
da Aparência. A Via da Verdade contém a doutrina do Ser, que exami-
námos até agora; a Via da Aparência trata do mundo dos sentidos, o
mundo da mudança e da cor, o mundo dos nomes vazios. Não temos
de nos demorar na Via da Aparência, pois o que Parménides nos diz
sobre isso não é muito diferente das especulações cosmológicas dos
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pensadores jónicos. Foi a sua Via da Verdade que estabeleceu um
programa de acção para a filosofia dos séculos seguintes.
O problema que os filósofos posteriores enfrentaram foi o seguinte:
o senso comum sugere que o mundo contém coisas que perduram,
como montanhas rochosas, e coisas que mudam constantemente,
como cursos de água impetuosos. Por um lado, Heraclito tinha decla-
rado que, a um nível fundamental, até mesmo as coisas mais sólidas
estavam em fluxo perpétuo; por outro lado, Parménides defendeu que
até mesmo o que aparentemente é mais fugaz é, a um nível fundamen-
tal, estático e imutável. Pode qualquer das doutrinas ser refutada? Há
alguma maneira de as reconciliar? Para Platão e para os que se lhe
seguiram, responder a estas perguntas era uma das tarefas fundamen-
tais da filosofia.
Um aluno de Parménides, Melisso (acme em 441), pôs em prosa
escorreita as ideias que Parménides tinha exposto em versos opacos.
Dessas ideias extraiu duas consequências particularmente chocantes.
Uma delas era a de que a dor era irreal, pois implicava uma deficiência
do ser. A outra era a de que o espaço vazio ou o vácuo era coisa que
não existia: teria de ser parte do Não-Ser. Logo, o movimento era
impossível, pois os corpos que ocupam espaço não têm outro sítio para
onde se deslocar.
Zenão, um amigo de Parménides cerca de 25 anos mais novo que
ele, desenvolveu uma engenhosa série de paradoxos, concebidos para
mostrar, além de qualquer dúvida, que o movimento era inconcebível.
O mais conhecido destes paradoxos propõe-se demonstrar que quem
se desloca depressa nunca consegue ultrapassar quem se desloca dev a-
gar. Suponhamos que Aquiles, um atleta rápido, faz uma corrida de
100 metros com uma tartaruga que só consegue correr a ¼ da sua
velocidade, dando à tartaruga um avanço de 40 metros. Na altura em
que Aquiles tiver chegado aos 40 metros, a tartaruga estará ainda 10
metros à sua frente. Quando Aquiles tiver percorrido esses 10 metros,
a tartaruga estará 2,5 metros à sua frente. De cada vez que Aquiles
vence o hiato entre os dois, a tartaruga origina outro hiato, mais
pequeno, à sua frente; assim, parece que Aquiles não pode nunca
ultrapassar a tartaruga. Outro argumento, mais simples, procurava
mostrar que ninguém consegue correr de uma ponta a outra de um
estádio, pois, para chegar ao outro extremo, temos primeiro de chegar
a meio do estádio, para chegar a meio do estádio temos primeiro de
chegar a meio dessa distância, e assim por diante ad infinitum.
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Estes e outros argumentos de Zenão partem do princípio de que as
distâncias são infinitamente divisíveis. Esta suposição foi contestada
por alguns pensadores posteriores e aceite por outros. Aristóteles, a
quem devemos a preservação dos enigmas, foi capaz de deslindar
algumas das ambiguidades. Contudo, só depois de muitos séculos os
paradoxos conheceram soluções que satisfizessem tanto os filósofos
como os matemáticos.
Platão diz-nos que, quando Parménides era um homem de cabelos
grisalhos com 65 anos, viajou com Zenão de Eleia para assistir a um
festival em Atenas, tendo aí conhecido o jovem Sócrates. Isto teria
ocorrido por volta de 450 a. C. Alguns especialistas pensam que a
história é uma invenção com fins dramáticos; mas o encontro, se teve
lugar, inaugurou de modo esplêndido a idade de ouro da filosofia
grega em Atenas. Regressaremos já de seguida à filosofia ateniense;
entretanto, falta ainda ter em consideração outro pensador da penín-
sula italiana, Empédocles de Ácragas, e mais dois físicos jónicos, Leu-
cipo e Demócrito.
EMPÉDOCLES
Empédocles atingiu a sua plenitude em meados do século V e era
um cidadão da cidade da costa sul da Sicília que agora se chama Agri-
gento. Tem fama de ter sido um político activo, um democrata ardente
a quem foi oferecida a posição, por ele recusada, de rei da sua cidade.
Mais tarde foi banido e praticou a filosofia no exílio. Era célebre como
médico, mas, de acordo com os biógrafos antigos, tanto curava por
magia como recorrendo aos medicamentos, tendo mesmo devolvido à
vida uma mulher morta há 30 dias. Nos seus últimos anos, dizem-nos
os seus bió grafos, chegou a acreditar ser um deus, encontrando a sua
morte ao saltar para o vulcão Etna para estabelecer a sua divindade.
Quer Empédocles tenha sido um taumaturgo, quer não, merece a
sua reputação como filósofo original e imaginativo. Escreveu dois
poemas, maiores do que o de Parménides e mais fluentes, se bem que
também mais repetitivos. Um deles era sobre a ciência, e o outro sobre
a religião. Do primeiro, Da Natureza, possuímos cerca de 400 versos
dos originais 2000; do segundo, Purificações, só sobreviveram peque-
nos fragmentos.
A filosofia da natureza de Empédocles pode ser encarada como uma
síntese do pensamento dos filósofos jónicos. Como vimos, cada um
deles escolheu uma certa substância como o ingrediente básico do
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universo: para Tales, era a água; para Anaxímenes, o ar; para Xenófa-
nes, a terra; para Heraclito, o fogo. Para Empédocles, todas estas qua-
tro substâncias estavam em pé de igualdade enquanto elementos bási-
cos (ou «raízes», para usar o seu termo) do universo. Empédocles
pensava que estes elementos tinham existido desde sempre, mas que
se misturavam uns com os outros, em várias proporções, para dar
origem àquilo que constituía o mundo.
Destes quatro proveio o que foi e é e sempre será
Árvores, bestas e seres humanos, homens e mulheres, todas
As aves do ar e os peixes gerados pela água brilhante,
E também os deuses de vida longa, há muito adorados nas alturas.
Estes quatro são tudo o que há, cada um deles misturando-se
E, na mistura, a variedade do mundo alcançando.
O entrelaçamento e a mistura dos elementos, no sistema de Empé-
docles, é causado por duas forças: o Amor e a Discórdia. O Amor com-
bina os elementos, fazendo surgir uma coisa de muitas coisas, e a
Discórdia obriga-as a separarem-se, fazendo surgir muitas coisas a
partir de uma. A história é um ciclo no qual é por vezes dominante o
Amor, outras a Discórdia. Sob a influência do Amor, os elementos
unem-se numa esfera homogénea e gloriosa; depois, sob a influência
da Discórdia, separam-se em seres de diferentes tipos. Todos os seres
compostos, como os animais, as aves e os peixes, são temporariamente
criaturas que vão e vêm; só os elementos são sempiternos, e só o ciclo
cósmico não cessa nunca.
As descrições que Empédocles faz da sua cosmologia são, umas
vezes, prosaicas e, outras, poéticas. A força cósmica do Amor é muitas
vezes personificada na exultante deusa Afrodite, e as primeiras fases
do desenvolvimento cósmico são identificadas com uma era de ouro
em que ela reinava. O elemento do fogo é por vezes denominado
Hefesto, o deus-sol. Mas, apesar das suas roupagens simbólicas e
míticas, o sistema de Empédocles merece ser levado a sério enquanto
esboço de explicação científica.
Estamos habituados a considerar o sólido, o líquido e o gasoso
como os três estados fundamentais da matéria. Não era absurdo con-
siderar o fogo, e em particular o fogo solar, como um quarto estado da
matéria, de igual importância. De facto, pode dizer-se que o surgimen-
to, no nosso século, da disciplina de física do plasma (que estuda as
propriedades da matéria à temperatura solar) reconquistou para este
quarto elemento a paridade em relação aos outros três. O Amor e a
38
Discórdia podem ser identificados como os análogos antigos das forças
de atracção e repulsão que têm desempenhado um papel significativo
no desenvolvimento da física teórica ao longo dos séculos.
Empédocles sabia que a Lua brilhava por reflectir a luz; pensava,
contudo, que o mesmo se passava com o Sol. Tinha consciência de que
os eclipses do Sol eram causados pela interposição da Lua. Sabia que
as plantas se reproduziam por via sexual e defendia uma teoria elabo-
rada segundo a qual a respiração estava relacionada com o movimento
do sangue dentro do corpo. Apresentou uma teoria rudimentar da
evolução . Num estádio primitivo do mundo, defendia ele, o acaso
formou, a partir da matéria original, membros e órgãos isolados: bra-
ços sem ombros, olhos fora das órbitas, cabeças sem pescoços. Estas
partes de corpos de animais, semelhantes a peças de lego, juntaram-se,
de novo por acaso, em organismos, muitos dos quais eram monstruo-
sidades, como bois com cabeças humanas ou seres humanos com
cabeça de boi. A maioria destes organismos fortuitos era frágil ou
estéril; apenas as estruturas mais aptas sobreviveram para dar origem
à espécie humana e às outras espécies de animais que conhecemos.
Até mesmo os deuses, como vimos, eram produto dos elementos de
Empédocles. Por maioria de razão, a alma humana era um composto
material, feito de terra, ar, fogo e água. Cada elemento — e na verdade
as forças do amor e da discórdia — desempenhava o seu papel no
funcionamento dos nossos sentidos, de acordo com o princípio de que
o semelhante é percepcionado pelo semelhante.
Com a terra vemos a terra, com a água, a água,
Com o ar o ar do céu, com o fogo o fogo consumidor;
Com o Amor percepcionamos o Amor, a Discórdia com a triste Discór-
dia.
O pensamento, estranhamente, identifica-se com o movimento do
sangue à volta do coração: o sangue é uma mistura refinada de todos
os elementos, o que explica a natureza abrangente do pensamento.
O poema religioso de Empédocles intitulado Purificações torna
evidente que ele aceitava a doutrina pitagórica da metempsicose, a
transmigração das almas. A discórdia castiga os prevaricadores, atri-
buindo as suas almas a outros tipos de criaturas, terrestres ou mari-
nhas. Empédocles recomendava aos seus seguidores que se abstives-
sem de ingerir criaturas vivas, pois os corpos dos animais que come-
mos são a morada das almas castigadas. Não é claro se, para evitar
estes risc os, seria suficiente adoptar o vegetarianismo, uma vez que, do
39
ponto de vista de Empédocles, uma alma humana podia migrar para
uma planta. O melhor destino para um homem, dizia ele, era tornar-se
um leão, se a morte o transformasse em animal, e um loureiro, se o
transformasse em planta. Mas o melhor era transformar-se em deus;
aqueles que tinham mais probabilidades de conseguir este enobreci-
mento eram os videntes, os autores de hinos e os médicos.
Empédocles, que era estas três coisas, dizia ter ele próprio sofrido a
metempsicose:
Pois eu já fui um rapaz e uma rapariga,
Um arbusto e um pássaro, e um peixe mudo do mar.
A nossa existência actual pode ser miserável, e as nossas perspecti-
vas para depois da morte sombrias; mas depois da expiação dos nossos
pecados por meio da reincarnação podemos esperar o descanso eterno
à mesa dos imortais, livres de cansaços e sofrimentos. Era sem dúvida
isto que Empédocles esperava quando mergulhou no Etna.
OS ATOMISTAS
Demócrito foi o primeiro filósofo significativo a nascer no conti-
nente grego: era originário de Abdera, no extremo nordeste do territó-
rio. Foi discípulo de Leucipo, acerca de quem pouco se sabe. Na anti-
guidade, os dois filósofos são frequentemente mencionados em con-
junto, e o atomismo que os tornou a ambos famosos foi provavelmente
criação de Leucipo. Aristóteles conta-nos que Leucipo tentou reconci-
liar os dados dos sentidos com o monismo eleático, isto é, com a teoria
de que havia apenas um Ser eterno e imutável.
Leucipo pensava ter uma teoria que estava de acordo com a percepção
dos sentidos, que não iria abolir o nascer, nem a morte, nem o mov i-
mento, nem a multiplicidade das coisas. Isto concedia ele às aparên-
cias, concedendo àqu eles que defendem o uno que o movimento é
impossível sem o vazio, que o vazio é Não-Ser e não parte do Ser, por-
que o Ser era um plenum absoluto. Mas não havia unicamente um tal
Ser, mas muitos, infinitos em número e invisíveis devido à pequenez da
sua massa.
Contudo, não mais do que uma linha de Leucipo sobreviveu intacta.
Para termos acesso ao conteúdo da teoria atómica, temos de recorrer
40
ao que é possível saber a partir do seu discípulo. Demócrito era um
polímato e o prolixo autor de quase 80 tratados sobre temas que iam
desde a poesia e a harmonia à táctica militar e à teologia babilónica.
Mas é sobretudo pela sua filosofia natural que é conhecido. Conta-se
que Demócrito dizia preferir descobrir uma só explicação científica a
tornar-se rei dos Persas. Mas era também modesto nas suas aspirações
científicas: «Não tentes saber tudo», dizia ele, «senão vais acabar por
nada saber».
A característica fundamental do atomismo de Demócrito era a de
que a matéria não era infinitamente divisível. De acordo com o ato-
mismo, se tomarmos uma porção de qualquer tipo de matéria e a
dividirmos tanto quanto pudermos, teremos de parar em alguma altu-
ra, naquela altura em que chegarmos a fragmentos tão ínfimos que
sejam indivisíveis. O argumento que levou a esta conclusão parece ter
sido filosófico e não experimental. Se a matéria fosse divisível até ao
infinito, suponhamos então que esta divisão foi feita — pois se a maté-
ria for genuinamente divisível deste modo, nada de incoerente haverá
nesta suposição. Qual o tamanho dos fragmentos que resultam desta
divisão? Se tiverem alguma magnitude, então, pela hipótese da divisi-
bilidade infinita, seria possível dividi-los de novo; portanto, têm de ser
fragmentos sem extensão, como os pontos geométricos. Mas aquilo
que pode ser dividido pode ser juntado outra vez: se serrarmos um
tronco, dividindo-o em muitos pedaços, podemos voltar a juntá-los
para formar um tronco do mesmo tamanho. Mas se os nossos frag-
mentos não têm qualquer magnitude, como podem eles ter sido junta-
dos para formar a porção extensa de matéria com que começámos? A
matéria não pode consistir meramente em pontos geométricos, nem
mesmo num número infinito deles; temos de concluir, portanto, que a
divisibilidade tem um fim e que os fragmentos mais pequenos têm de
ser partículas com tamanho e forma.
Foi a estas partículas que Demócrito chamou «átomos» («átomo» é
precisamente a palavra grega que significa «indivisível»). Demócrito
pensava que os átomos eram demasiado pequenos para serem detecta-
dos pelos sentidos, que eram infinitos em número e que existiam em
infinitos tipos. Como partículas de poeira iluminadas por um raio de
sol, distribuíam-se pelo espaço vazio infinito, a que ele chamou «o
vazio». Existiam desde sempre e estavam sempre em movimento.
Entravam em colisão uns com os outros e ligavam-se uns aos outros;
alguns eram côncavos, outros convexos; alguns pareciam ganchos,
outro olhos. Os objectos de tamanho médio que nos são familiares são
complexos de átomos unidos desta maneira casual; e as diferenças
41
entre as diferentes espécies de substâncias devem-se a diferenças nos
seus átomos. Os átomos, dizia ele, diferiam no modo (como a letra A
difere da letra N), na ordem (como AN difere de NA) e na posição
(como N difere de Z).
Os críticos antigos de Demócrito queixaram-se de que apesar de ele
explicar tudo o resto apelando para o movimento dos átomos, não
tinha qualquer explicação para o próprio movimento. Outros, em sua
defesa, afirmavam que o movimento era causado por uma força de
atracção em função da qual cada átomo procurava átomos que se lhe
assemelhassem. Mas talvez uma força de atracção por explicar não seja
melhor do que um movimento por explicar. Além disso, se uma força
de atracção tivesse estado operativa ao longo de um período de tempo
infinito sem que nenhuma outra força a contrariasse (como a Discór-
dia de Empédocles), o mundo consistiria agora em complexos de áto-
mos uniformes — o que é muito diferente dos agregados ocasionais
com que Demócrito identificava os seres animados e inanimados que
conhecemos.
Para Demócrito, os átomos e o vazio eram as duas únicas realida-
des: tudo o mais era aparência. Quando os átomos se aproximam,
colidem ou se ligam uns aos outros, os agregados tomam a forma de
água ou fogo ou plantas ou seres humanos, mas tudo o que realmente
existe são os átomos no vazio, os quais lhes subjazem. Em particular,
as qualidades percepcionadas pelos sentidos são meras aparências. O
mais citado aforismo de Demócrito era:
Por convenção existem o doce e o amargo, o quente e o frio, por con-
venção existe a cor; na realidade, átomos e vazio.
Quando dizia que as qualidades sensoriais eram «por convenção»,
contam-nos os comentadores antigos, Demócrito queria dizer que as
qualidades eram relativas a nós e não pertenciam à natureza das pró-
prias coisas. Por natureza, nada é branco, preto, amarelo, vermelho,
amargo ou doce.
Demócrito explicou em pormenor como os diferentes sabores resul-
tavam dos diferentes tipos de átomos. Os sabores penetrantes resulta-
vam de átomos pequenos, finos, angulares, com reentrâncias. Os sabo-
res doces, por outro lado, têm origem em átomos maiores, de forma
mais arredondada. Se algo tem um sabor salgado, é porque os seus
átomos são grandes, ásperos, cortantes e angulares.
Não apenas os sabores e os odores, mas também as cores, os sons e
as qualidades tácteis eram explicados pelas propriedades e relações
42
dos átomos subjacentes. O conhecimento que nos é proporcionado por
todos estes sentidos — o gosto, o olfacto, a vista, a audição e o tacto —
é um conhecimento que é obscuridade. O conhecimento genuíno é
completamente diferente, sendo prerrogativa daqueles que conhecem
a teoria dos átomos e do vazio.
Demócrito escreveu quer sobre física, quer sobre ética; os aforis-
mos que nos chegaram sugerem que, como moralista, era mais edifi-
cante do que inspirador. O comentário seguinte, sensato mas pouco
entusiasmante, é representativo de muitos outros:
Satisfaz-te com o que tens e não gastes o teu tempo a sonhar com bens
que provocam a inveja e a admiração; põe os olhos nas vidas daqueles
que são pobres e vivem em sofrimento, de modo a que o que possuis
possa parecer grandioso e invejável.
Um homem que tiver sorte com o genro, dizia, ganha um filho, ao
passo que aquele que tiver azar perde uma filha — uma observação que
tem sido inconscientemente citada, muitas vezes de forma confusa,
por muitos oradores em muitos casamentos. Também muitos refor-
madores políticos têm feito eco da sua ideia de que é melhor ser pobre
numa democracia do que próspero numa ditadura.
Os aforismos de Demócrito que foram preservados não constituem
um sistema moral e não parecem ter qualquer relação com a teoria
atómica que dá forma à sua filosofia. Alguns desses aforismos, porém,
embora pareçam lacónicos e banais, são suficientes, se forem verda-
deiros, para deitar por terra sistemas inteiros de filosofia moral. Por
exemplo:
A pessoa boa não se abstém apenas de fazer o mal; nem sequer o dese-
ja.
Isto entra em conflito com o ponto de vista, muitas vezes defendi-
do, de que a virtude atinge o seu estádio mais elevado quando triunfa
sobre uma paixão que a contraria. E de novo:
É melhor sofrer o mal do que infligi-lo.
Isto não é conciliável com a teoria utilitarista, comum no mundo
moderno, segundo a qual a moral deve apenas ter em conta as conse-
quências de uma acção e não a identidade do agente.
43
No fim da antiguidade e no renascimento, Demócrito era conhecido
como o filósofo que ri, sendo Heraclito conhecido como o filósofo que
chora. Nenhuma das duas descrições parece ter bases muito sólidas.
Contudo, há comentários atribuídos a Demócrito que confirmam a sua
identificação com a boa disposição, o mais notório dos quais é o
seguinte:
Uma vida sem festejos é como uma estrada sem estalagens.
2
A Atenas de Sócrates
O IMPÉRIO ATENIENSE
Os dias mais gloriosos da Grécia Antiga tiveram lugar no século V
a. C., ao longo de 50 anos de paz entre dois períodos de guerra. O
século começara com guerras entre a Grécia e a Pérsia e terminaria
com uma guerra entre as cidades-estado da própria Grécia. No período
intermédio, floresceu a grandiosa civilização de Atenas.
A Jónia, onde tinham surgido os primeiros filósofos, estivera sob o
domínio persa desde meados do século VI. Em 499, os gregos da Jónia
rebelaram-se contra o rei persa, Dario. Depois de esmagar a revolta,
Dario invadiu a Grécia para castigar os que tinham ajudado os rebel-
des a partir da metrópole. Uma força militar constituída sobretudo por
atenienses derrotou o exército invasor em Maratona, em 490. Xerxes,
filho de Dario, enviou uma expedição mais numerosa em 484, derro-
tando um corajoso batalhão de espartanos nas Termópilas e forçando
os atenienses a fugir da sua cidade. Mas a sua armada foi derrotada
perto da ilha de Salamina por uma marinha grega unificada, e uma
vitória grega em terra, em Plateias, em 479, pôs fim à invasão.
Depois das invasões, Atenas assumiu a liderança dos aliados gre-
gos. Foram os atenienses que libertaram os gregos da Jónia, e era
Atenas, apoiada por contribuições de outras cidades, que controlava a
armada que assegurava a liberdade dos mares Egeu e Jónio. Aquilo
que começara como uma federação deu origem a um Império Atenien-
se.
Internamente, Atenas era uma democracia, o primeiro exemplo
fidedigno dessa forma de organização política. «Democracia» é, em
46
grego, a palavra que significa o governo do povo; e a democracia ate-
niense era um exemplo muito fiel de um tal regime. Atenas não era
como uma democracia moderna, na qual os cidadãos elegem repre-
sentantes que formam um governo. Em vez disso, cada cidadão tinha
o direito de participar em pessoa no governo, comparecendo numa
assembleia geral onde podia ouvir os discursos dos líderes políticos e
depois dar o seu voto. Para se ver o que isto significaria em termos
actuais, imagine-se que os membros do governo e da oposição fala-
vam na televisão durante duas horas, após o que era apresentada uma
moção e tomada uma decisão com base nos votos fornecidos por cada
espectador ao premir ou o botão do «sim», ou o botão do «não» no
televisor. Para tornar o paralelo rigoroso, teria de acrescentar-se que
apenas aos cidadãos do sexo masculino com mais de 20 anos seria
permitido premir o botão — mas não às mulheres, nem às crianças,
escravos ou estrangeiros.
Os poderes judicial e legislativo eram, em Atenas, atribuídos por sorteio
a membros da assembleia com mais de 30 anos; as leis eram aprovadas
por um painel de mil cidadãos, escolhidos apenas por um dia; e os julga-
mentos mais importantes realizavam-se perante um júri de 501 cidadãos.
Até os magistrados — aqueles a quem cabia executar as decisões do gover-
no, quer fossem judiciais, financeiras ou militares — eram maioritariamen-
te escolhidos por sorteio; apenas cerca de 100 eram eleitos.
Nunca antes ou desde então os cidadãos comuns de um Estado
participaram tão activamente no seu governo. É importante ter isto
presente quando lemos o que os filósofos gregos diziam acerca dos
méritos e deméritos das instituições democráticas. Os atenienses afir-
mavam que a sua constituição era contemporânea das reformas de
Clístenes de 508 a. C., e esse ano é muitas vezes considerado o do
nascimento da democracia.
A democracia ateniense não era incompatível com a liderança aris-
tocrática. No seu período imperial Atenas foi, por escolha popular,
governada por Péricles, sobrinho -neto de Clístenes. Péricles instituiu
um ambicioso programa de reconstrução dos templos da cidade que
tinham sido destruídos por Xerxes; ainda nos dias de hoje vêm visitan-
tes dos quatro cantos do mundo para ver as ruínas dos edifícios que
Péricles erigiu na Acrópole, a fortaleza de Atenas. As esculturas com as
quais estes templos foram decorados encontram-se entre os objectos
mais preciosos dos museus pelos quais estão hoje espalhadas. O Par-
ténon, o templo em honra da deusa virgem Atena, foi construído como
oferenda pelas vitórias nas guerras pérsicas. Os mármores Elgin que
estão no Museu Britânico, trazidos das ruínas desse templo por Lorde
47
Elgin em 1803, representam um grandioso festival ateniense, o das
Panateneias, que Parménides e Zenão tinham presenciado na época
em que se iniciavam as obras de construção. Quando o programa de
Péricles se completou, Atenas não tinha rival no mundo inteiro no que
dizia respeito à arquitectura e à escultura.
Atenas também tinha a primazia no teatro e na literatura. Ésquilo,
que tinha combatido nas guerras pérsicas, foi o grande autor na área
da tragédia; trouxe para o palco os heróis e heroínas da épica homéri-
ca, e a sua reconstituição do regresso e assassinato de Agaménon ainda
nos fascina e horroriza. Ésquilo levou também à cena as catástrofes
mais recentes de que o rei Xerxes tinha sido vítima. Dramaturgos mais
novos, como o conservador e piedoso Sófocles e o mais radical e cépti-
co Eurípedes, estabeleceram os padrões do teatro trágico. As peças de
Sófocles acerca do rei Édipo, assassino de seu pai e esposo de sua mãe,
e o retrato que Eurípedes faz de Medeia, assassina de crianç as, não só
fazem parte do reportório do século XX, como ainda perturbam a men-
talidade contemporânea. A historiografia propriamente dita começou
também neste século, tendo as Crónicas das Guerras Pérsicas, de
Heródoto, sido redigidas nos primeiros anos do século, e a narração
que Tucídides faz da guerra entre os gregos, nos últimos.
ANAXÁGORAS
Também a filosofia chegou a Atenas na época de Péricles. Anaxá-
goras de Clazómenas (perto de Esmirna) nasceu em cerca de 500 a. C.
sendo, portanto, cerca de 40 anos mais velho que Demócrito. Foi para
Atenas quando as guerras pérsicas acabaram, tendo-se tornado amigo
e colaborador de Péricles. Escreveu um tratado de filosofia natural ao
estilo dos seus antecessores jónios, reconhecendo ter uma dívida
especial para com Anaxímenes; diz-se que foi o primeiro tratado do
género a conter diagramas.
A explicação que Anaxágoras faz da origem do mundo é extraordi-
nariamente semelhante a um modelo explicativo popular hoje em dia.
No início, dizia ele, «todas as coisas estavam juntas», numa unidade
infinitamente complexa e infinitamente pequena, destituída de todas
as qualidades perceptíveis. Este seixo primevo iniciou um movimento
rotativo, expandindo-se à medida que rodava e expelindo ar e éter, e
por fim as estrelas, o Sol e a Lua. Aquando da rotação, o denso sepa-
rou-se do rarefeito, bem como o quente do frio, o claro do escuro e o
seco do húmido. As substâncias heterogéneas do nosso mundo foram
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assim formadas, tendo o denso, o húmido, o frio e o escuro confluído
naquilo que é agora a nossa Terra, e tendo-se deslocado o rarefeito, o
quente, o seco e o claro para as zonas exteriores do éter.
De certo modo, porém, defendia Anaxágoras, «tal como as coisas
eram no início, assim elas estão agora todas juntas», ou seja, em cada
coisa há uma porção de tudo o resto; há um pouco de brancura no
negro e um pouco de leveza no pesado. Isto é sobretudo óbvio no caso
do sémen, o qual tem de conter cabelo, unhas, músculos, ossos e mui-
tas outras coisas. A expansão do universo, de acordo com Anaxágoras,
continuou até ao presente, continuará no futuro e talvez esteja neste
mesmo momento gerando mundos desabitados diferentes do nosso.
O movimento que gera o desenvolvimento do universo é desenc a-
deado pelo Espírito. O Espírito é algo completamente diferente da
matéria a cuja história preside. É infinito e independente e não parti-
cipa no processo geral de mistura dos elementos; se participasse,
entraria no processo evolutivo e não poderia controlá-lo.
Entre 430 e 420, quando a popularidade de Péricles começou a
diminuir, o seu protegido Anaxágoras foi alvo de ataques. Anaxágoras
dissera que o Sol era uma bola incandescente, um pouco maior que o
Peloponeso. Isto foi considerado inconsistente com o culto do Sol
como um deus e motivou uma acusação de impiedade. Anaxágoras
fugiu para Lâmpsaco, no Helesponto, e aí viveu exilado até à sua mor-
te, em 428.
OS SOFISTAS
Anaxágoras não teve rival, no período do regime de Péricles, como
filósofo oficial de Atenas. Mas nesse período a cidade recebeu a visita
de vários fornecedores itinerantes de conhecimentos, os quais deix a-
ram uma reputação não inferior à dele. Estes professores ou conselhei-
ros itinerantes eram chamados sofistas: estavam dispostos, a troco de
dinheiro, a ensinar muitos tipos de proficiência e a servir de conselhei-
ros em vários assuntos.
Como não havia, em Atenas, um sistema público de ensino supe-
rior, cabia aos sofistas a instrução dos jovens que podiam pagar os
seus serviços nas artes e no tipo de informação de que precisariam na
vida adulta. Dada a importância da oratória pública na assembleia e
nos tribunais, a habilidade retórica era preciosa, e os sofistas eram
muito procurados para ajudar e ensinar a apresentar uma causa da
maneira mais favorável possível. Os críticos alegavam que, porque
49
estavam mais preocupados com a persuasão do que com a busca da
verdade, os sofistas não eram verdadeiros filósofos. Todavia, os
melhores deles eram perfeitamente capazes de enfrentar uma discus-
são filosófica.
O mais famoso dos sofistas foi Protágoras de Abdera, que visitou
Atenas várias vezes em meados do século V e foi contratado por Péri-
cles para redigir a constituição de uma colónia ateniense. A maior parte
do que sabemos de Protágoras chega-nos a partir das obras de Platão ,
que não gostava dos sofistas e os considerava uma má influência para os
jovens, encorajando o cepticismo, o relativismo e o cinismo. Mesmo
assim, Platão levou Protágoras a sério e empenhou-se em dar resposta
aos seus argumentos.
Protágoras era, do ponto de vista religioso, um agnóstico. «No que
diz respeito aos deuses», afirmava, «não posso ter a certeza de que
existem ou não, ou de como eles são; pois entre nós e o conhecimento
deles há muitos obstáculos, quer a dificuldade do assunto, quer a
pouca duração da vida humana.» Era mais um humanista do que um
teísta: «O homem é a medida de todas as coisas», rezava a sua máxima
mais famosa, «quer das coisas que são que o são, quer das coisas que
não são que o não são.»
Na sua interpretação mais provável, isto significa que aquilo que,
seja pela percepção, seja pelo pensamento, parece a uma determinada
pessoa ser verdade, é verdade para essa pessoa. Isto acaba com a ver-
dade objectiva: nada pode ser absolutamente verdadeiro, mas apenas
relativamente a um indivíduo. Quando as pessoas têm crenças contra-
ditórias, não é verdade que uma delas tem razão e a outra não. Demó-
crito, e depois Platão , objectaram que a doutrina de Protágoras se
autodestruía — pois se todas as crenças são verdadeiras, então entre
elas está a crença de que nem todas as crenças são verdadeiras.
Outro sofista, Górgias de Leôncio, foi discípulo de Empédocles.
Era sobretudo um professor de retórica, cujos ensaios sobre estilística
influenciaram a história da retórica grega. Mas era também um filóso-
fo, com tendências ainda mais cépticas do que Protágoras. Diz-se que
defendia que nada existe, que se há algo não pode ser conhecido e que
se algo puder ser conhecido não poderá ser comunicado por uma pes-
soa a outra.
Na altura em que Górgias visitou Atenas, em 427, tivera início uma
guerra entre Atenas e Esparta, conhecida como «guerra do Pelopone-
so». Pouco tempo depois da eclosão desta guerra, Péricles morreu e as
campanhas corriam cada vez pior para Atenas. Os reveses e as epide-
mias afectaram brutalmente os atenienses, que se tornaram cruéis e
50
sem escrúpulos em combate. Deitaram por terra qualquer pretensão
de elevação moral quando, em 426, ocuparam a ilha de Milo, chacina-
ram todos os adultos do sexo masculino e escravizaram as mulheres e
as crianças. As últimas tragédias de Eurípedes e algumas comédias do
seu contemporâneo Aristófanes exprimiram um protesto eloquente
contra a conduta dos atenienses na guerra. Esta terminou com uma
esmagadora derrota naval em Egospótamos, em 405 a. C. O Império
Ateniense chegou então ao fim, e a liderança da Grécia passou para
Esparta. Mas os grandes dias da filosofia ateniense ainda estavam para
vir.
SÓCRATES
Entre os que tinham servido na infantaria pesada ateniense estava
Sócrates, filho de Sofronisco, que tinha 38 anos quando a guerra
começou. Participou em três das mais importantes batalhas dos 11
anos de guerra e ganhou fama de corajoso. De volta a Atenas, em 406,
fez parte da Assembleia numa altura em que um grupo de generais foi
levado a julgamento por ter abandonado os corpos dos soldados mor-
tos na batalha naval de Arginusa. Era ilegal julgar os generais colecti-
vamente em vez de individualmente, mas Sócrates foi o único a votar
contra este modo de proceder, e eles foram executados.
Quando a guerra acabou, em 404, os espartanos substituíram a
democracia ateniense por uma oligarquia conhecida como «os Trinta
Tiranos», que instituíram um reinado de terror. Sócrates recebeu
ordem para prender um inocente, mas ignorou-a. Em breve pagaria o
preço da rectidão que o tinha tornado impopular tanto junto dos
democratas como dos aristocratas.
A importância de Sócrates no desenvolvimento da filosofia é tal que
todos os filósofos de que falámos até agora são agrupados pelos histo-
riadores sob a designação de «pré-socráticos». Não deixou, porém,
obra escrita; e os pormenores da sua vida, além dos principais aconte-
cimentos mais dramáticos, são ainda obscuros e objecto de controvér-
sia entre os estudiosos. Não lhe faltaram biógrafos; e, de facto, muitos
dos seus contemporâneos e sucessores escreveram diálogos em que
Sócrates desempenhava um papel primordial. A dificuldade está em
distinguir os factos sóbrios da ficção laudatória. Todos os seus biógra-
fos nos dizem que Sócrates tinha um aspecto descuidado e que era
feio, que tinha uma barriga protuberante e o nariz arrebitado; mas o
consenso não vai muito além disto. Os dois autores cujas obras sobre-
51
viveram intactas, o estudioso de história militar Xenófanes e o filósofo
idealista Platão , traçam retratos de Sócrates tão diferentes entre si
como o Jesus de S. Marcos é diferente do de S. João.
Em vida, Sócrates foi ridicularizado pelo comediógrafo Aristófanes,
que o descreveu como um excêntrico corrupto que falava de modo
ininteligível e que se interessava por curiosidades científicas com a
cabeça literalmente nas nuvens. Mas, mais do que um filósofo da natu-
reza, Sócrates parece ter sido um sofista de um tipo pouco comum.
Como os sofistas, passava muito do seu tempo a discutir e a debater
ideias com jovens abastados (alguns dos quais viriam a ocupar posi-
ções de poder quando a oligarquia substituiu a democracia). Mas, ao
contrário dos outros, Sócrates nada cobrava por isso, e o seu método
de ensino não consistia em transmitir conhecimentos mas em pergun-
tar; afirmava extrair, como uma parteira, os pensamentos de que os
seus jovens alunos estavam prenhes. Ao contrário dos sofistas, não
afirmava possuir qualquer conhecimento específico nem ser especialis-
ta no que quer que fosse.
Na Grécia clássica prestava-se muita atenção aos oráculos proferi-
dos em nome do deus Apolo pelas sacerdotisas em êxtase no templo de
Delfos. Quando lhe perguntaram se havia alguém mais sábio do que
Sócrates, uma sacerdotisa respondeu que não. Sócrates afirmava não
compreender este oráculo e questionou, sucessivamente, políticos,
poetas e peritos que afirmavam possuir vários tipos de conhecimentos.
Nenhum deles foi capaz de defender a sua reputação perante o inter-
rogatório de Sócrates; e ele concluiu que o oráculo estava correcto, na
medida em que apenas ele compreendia que a sua sabedoria não tinha
qualquer valor.
Em assuntos morais é que era mais importante procurar o conhe-
cimento genuíno e expor falsas pretensões. Pois, de acordo com Sócra-
tes, o conhecimento moral e a virtude eram uma e a mesma coisa.
Alguém que realmente soubesse o que era o bem não podia praticar o
mal; pois, se alguém praticasse o mal, tinha de ser por não saber o que
seria o bem. Ninguém resvala para o mal deliberadamente, visto que
todos querem levar uma vida boa e, assim, ser felizes. Aqueles que
praticam o mal inadvertidamente necessitam de educação, não de
punição. Este extraordinário conjunto de doutrinas é por vezes desig-
nado pelos historiadores como «O Paradoxo Socrático».
Sócrates não alegava possuir, ele próprio, o grau de sabedoria que o
impediria de praticar o mal. Em vez disso, dizia confiar numa voz
divina interior, que interv iria se alguma vez estivesse prestes a fazê-lo.
52
As autoridades discordam quanto ao conteúdo dos ensinamentos
de Sócrates, mas concordam quanto ao modo como morreu. Os inimi-
gos que ganhara pela sua probidade na política e o seu estilo de mos-
cardo por meio do qual corroía reputações contribuíram para que
fossem formuladas contra ele, ao 70 anos, uma série de acusações
susceptíveis de conduzirem à pena máxima — acusações de impiedade,
de introduzir deuses novos e de corromper a juventude ateniense.
Platão, que esteve presente no julgamento, escreveu, depois da sua
morte, uma versão dramatizada do seu discurso de defesa, ou Apolo-
gia.
O seu acusador, Meleto, afirma que Sócrates corrompe a juventude.
Quem são, então, as pessoas que formam a juventude? Em resposta,
Meleto sugere, primeiro, os juízes, a seguir os membros do conselho
legislativo, depois os membros da assembleia e, por fim, todos os
atenienses excepto Sócrates. Que sorte, surpreendentemente, para a
juventude da cidade! Sócrates pergunta, então, se é melhor viver no
meio de homens bons ou de homens maus. Qualquer pessoa preferiria,
obviamente, viver no meio de homens bons, pois é provável que os
maus lhe façam mal; mas se isto é assim, ele próprio não pode ter
motivos para, deliberadamente, corromper os jovens; e, se o estiver a
fazer sem saber, deve ser educado e não acusado.
Sócrates concentra-se então na acusação de impiedade. Está ele a
ser acusado de ateísmo, ou de introduzir novos deuses? As duas acusa-
ções não são mutuamente compatíveis e, de facto, Meleto parece estar a
confundi-lo com Anaxágoras, que disse que o Sol era feito de pedra e a
Lua de terra. Quanto à acusação de ateísmo, Sócrates pode replicar que
a sua missão como filósofo lhe foi confiada pelo próprio Deus e que a
sua campanha para desmascarar a falsa sabedoria foi levada a cabo em
obediência ao oráculo de Delfos. Aquilo que seria verdadeiramente uma
traição a Deus seria abandonar o seu posto por ter medo da morte. Se
lhe dissessem que podia ir em liberdade sob a condição de abandonar a
investigação filosófica, ele responderia: «Homens de Atenas, respeito-
vos e amo-vos; mas antes me deixarei convencer por Deus do que por
vós e, enquanto respirar e for disso capaz, não cessarei de filosofar nem
de vos exortar, mostrando-vos o caminho.»
Sócrates conclui a sua defesa fazendo notar a presença no tribunal
de muitos dos seus discípulos e das suas famílias, nenhum dos quais
tinha sido chamado a depor pela acusação. Sócrates recusa-se a fazer
como outros, apresentando em tribunal os seus filhos em lágrimas,
como objecto de compaixão; às mãos dos juízes, procura justiça e não
misericórdia.
53
Quando o veredicto foi dado, Sócrates foi condenado por uma
pequena maioria dos 501 juízes. A acusação pedia a pena de morte;
cabia ao acusado propor uma sentença alternativa. Sócrates conside-
rou a possibilidade de pedir uma pensão por bons serviços, mas mos-
trou-se disposto a aceitar uma multa de valor médio — demasiado alta
para ele poder pagar, mas que Platão e os seus amigos estariam dis-
postos a pagar por ele. Os juízes consideraram o valor da multa irrea-
listicamente pequeno e sentenciaram-no à morte.
No discurso que fez depois da leitura da sentença, Sócrates disse
aos juízes que não lhe teria sido difícil construir uma defesa que lhe
assegurasse a absolvição; mas o tipo de táctica que isso exigiria não
estaria à sua altura. «Não é difícil escapar à morte, homens, mas é
muito mais difícil escapar à maldade, que corre mais depressa que a
morte.» Sócrates, velho e lento, foi alcançado pela mais lenta destas
duas; os seus joviais acusadores foram alcançados pela mais rápida.
Durante o julgamento, nem uma única vez a sua voz divina lhe ordena-
ra que se calasse e, portanto, está satisfeito por enfrentar a morte.
Será a morte um sono sem sonhos? Um tal sono é mais abençoado
do que a maior parte das noites e dos dias da vida do mortal mais
afortunado. É a morte uma viagem para outro mundo? Quão esplêndi-
do é, poder conhecer os defuntos gloriosos e conversar com Hesíodo e
Homero! «Por mim, muitas vezes hei-de querer morrer, se isto for
verdade.» Sócrates tem tantas perguntas a fazer aos grandes homens e
mulheres do passado; e no outro mundo ninguém será condenado à
morte por fazer perguntas. «Mas já é tempo de partir — eu para mor-
rer, e vós para viver. Qual de nós terá a melhor sorte, só Deus pode vê-
lo com clareza.»
EUTÍFRON
Depois do julgamento descrito na Apologia, a execução da sentença
foi adiada. Um navio sagrado partira para a sua viagem cerimonial
anual à ilha de Delos e, até voltar a Atenas, era proibido tirar vidas
humanas. Platão registou estes dias que mediaram entre a condenação
e a execução em dois diálogos inesquecíveis, Críton e Fédon. Ninguém
sabe quanto destes diálogos é história e quanto é invenção; mas o
quadro que pintam estimulou a imaginação de muitos dos que viveram
nos séculos e milénios posteriores à morte de Sócrates.
Antes de examinarmos estas obras, devemos voltar a nossa atenção
para um diálogo curto, o Eutífron, que Platão situa imediatamente
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História da Filosofia Ocidental

  • 2.
  • 3. História Concisa da Filosofia Ocidental Anthony Kenny REVISÃO CIENTÍFICA Desidério Murcho Sociedade Portuguesa de Filosofia
  • 4. Título original: A Brief History of Western Philosophy Autor: Anthony Kenny © Anthony Kenny, 1998 Tradução: Desidério Murcho, Fernando Martinho, Maria José Figuei- redo, Pedro Santos e Rui Cabral Revisão científica: Desidério Murcho Revisão do texto: António José Massano Capa: António Rochinha Diogo Fotocomposição: Alfanumérico, L.da Impressão: SIG — Sociedade Industrial Gráfica, L.da (Bairro de S. Francisco, Lote I, 6, Camarate, 2685 Sacavém) 1.a edição: Setembro de 1999 ISBN: 972-759-???-? Depósito legal: ?????????????????????? Temas e Debates — Actividades Editoriais, L.da Rua Prof. Jorge da Silva Horta, 1— 1050-499 Lisboa Tel. 762 60 03 — Fax 762 62 47 E-mail: temas@temasdebates.pt
  • 6.
  • 7. Índice Prefácio............................................................................................ 13 Agradecimentos ................................................................................. 17 1 Na infância da filosofia...................................................................... 19 Os Milésios ....................................................................................20 Xenófanes......................................................................................23 Heraclito.......................................................................................25 A Escola de Parménides ...................................................................28 Empédocles....................................................................................36 Os Atomistas..................................................................................39 2 A Atenas de Sócrates ........................................................................45 O Império Ateniense........................................................................45 Anaxágoras....................................................................................47 Os Sofistas.....................................................................................48 Sócrates.........................................................................................50 Eutífron ........................................................................................53 Críton ...........................................................................................57 Fédon............................................................................................57 3 A filosofia de Platão..........................................................................65 Vida e Obra....................................................................................65 A Teoria das Ideias..........................................................................67 A República de Platão......................................................................72 O Teeteto e o Sofista ........................................................................83
  • 8. 4 O sistema de Aristóteles....................................................................93 Discípulo de Platão, Mestre de Alexandre............................................93 A Fundação da Lógica......................................................................96 A Teoria da Arte Dramática ............................................................ 100 Filosofia Moral: Virtude e Felicidade................................................ 102 Filosofia Moral: Sabedoria e Entendimento....................................... 107 Política.........................................................................................110 Ciência e Explicação.......................................................................112 Palavras e Coisas............................................................................115 Movimento e Mudança....................................................................117 Alma, Sentidos e Intelecto.............................................................. 120 Metafísica.................................................................................... 123 5 A filosofia grega depois de Aristóteles ............................................... 129 A Era Helenística .......................................................................... 129 Epicurismo.................................................................................. 130 Estoicismo................................................................................... 133 Cepticismo................................................................................... 136 Roma e o seu Império.................................................................... 138 Jesus de Nazaré............................................................................ 140 Cristianismo e Gnosticismo............................................................ 143 Neoplatonismo............................................................................. 146 6 A filosofia cristã primitiva................................................................151 Arianismo e Ortodoxia....................................................................151 A Teologia da Incarnação ................................................................155 A Vida de Agostinho.......................................................................157 A Cidade de Deus e o Mistério da Graça .............................................161 Boécio e Filópono.......................................................................... 165 7 A filosofia medieval primitiva ...........................................................171 João Escoto Erígena.......................................................................171 Alkindi e Avicena .......................................................................... 174 O Sistema Feudal .......................................................................... 176 Santo Anselmo............................................................................. 178 Abelardo e Heloísa .........................................................................181 A Lógica de Abelardo..................................................................... 183 A Ética de Abelardo....................................................................... 185 Averróis....................................................................................... 187 Maimónides................................................................................. 189
  • 9. ÍNDICE 8 Filosofia no século XIII.................................................................... 193 Uma Era de Inovação..................................................................... 193 S. Boaventura............................................................................... 197 A Lógica do Século xiii................................................................... 199 Vida e Obra de Tomás de Aquino..................................................... 201 A Teologia Natural de Tomás de Aquino ...........................................204 Matéria, Forma, Substância e Acidente.............................................205 Essência e Existência em Tomás de Aquino.......................................208 A Filosofia da Mente de Tomás de Aquino.........................................209 A Filosofia Moral de Tomás de Aquino.............................................. 212 9 Os filósofos de Oxford .................................................................... 219 A Universidade do Século xiv .......................................................... 219 Duns Escoto................................................................................. 221 A Lógica da Linguagem de Ockham..................................................228 A Teoria Política de Ockham ........................................................... 231 Os Calculadores de Oxford..............................................................234 John Wyclif..................................................................................236 10 A filosofia do Renascimento........................................................... 241 O Renascimento............................................................................ 241 O Livre-Arbítrio: Romaversus Lovaina ............................................243 O Platonismo do Renascimento.......................................................246 Maquiavel....................................................................................248 A Utopia de More.......................................................................... 251 A Reforma ................................................................................... 254 A Filosofia do Período Pós-Reforma................................................. 259 Bruno e Galileu............................................................................. 261 Francis Bacon...............................................................................263 11 A era de Descartes.........................................................................269 As Guerras Religiosas....................................................................269 A Vida de Descartes.......................................................................270 A Dúvida e o Cogito ....................................................................... 273 A Essência da Mente...................................................................... 276 Deus, Mente e Corpo ..................................................................... 278 O Mundo Material.........................................................................282 12 A filosofia inglesa no século XVII...................................................... 287 O Empirismo de Thomas Hobbes..................................................... 287 A Filosofia Política de Hobbes.........................................................290
  • 10. A Teoria Política de John Locke.......................................................292 Locke, Ideias e Qualidades.............................................................. 295 Substâncias e Pessoas ....................................................................300 13 A filosofia do continente na época de Luís XIV ..................................307 Blaise Pascal ................................................................................307 Espinosa e Malebranche..................................................................311 Leibniz........................................................................................ 316 14 A filosofia britânica no século XVIII..................................................323 Berkeley ......................................................................................323 Hume e a Filosofia da Mente...........................................................329 Hume e a Causalidade....................................................................334 Reid e o Senso Comum................................................................... 337 15 O iluminismo............................................................................... 341 Os Philosophes ............................................................................. 341 Rousseau.....................................................................................343 Revolução e Romantismo............................................................... 347 16 A filosofia crítica de Kant............................................................... 351 A Revolução Copernicana de Kant.................................................... 351 A Estética Transcendental .............................................................. 354 A Analítica Transcendental: A Dedução das Categorias........................ 356 A Analítica Transcendental: O Sistema dos Princípios......................... 361 A Dialéctica Transcendental: Os Paralogismos da Razão Pura...............364 A Dialéctica Transcendental: As Antinomias da Razão Pura.................366 A Dialéctica Transcendental: Crítica da Teologia Natural.....................370 A Filosofia Moral de Kant............................................................... 373 17 O idealismo e o materialismo alemães.............................................. 377 Fichte.......................................................................................... 377 Hegel.......................................................................................... 379 Marx e os Jovens Hegelianos ..........................................................384 O Capitalismo e os seus Descontentes...............................................386 18 Os utilitaristas.............................................................................389 Jeremy Bentham...........................................................................389 O Utilitarismo de J. S. Mill .............................................................394 A Lógica de Mill............................................................................396
  • 11. ÍNDICE 19 Três filósofos do século XIX ............................................................ 401 Schopenhauer............................................................................... 401 Kierkegaard.................................................................................409 Nietzsche..................................................................................... 412 20 Três mestres modernos................................................................. 417 Charles Darwin............................................................................. 417 John Henry Newman.....................................................................423 Sigmund Freud.............................................................................428 21 A Lógica e os fundamentos da Matemática........................................ 437 A Lógica de Frege.......................................................................... 437 O Logicismo de Frege....................................................................440 A Filosofia da Lógica de Frege.........................................................443 O Paradoxo de Russell ...................................................................444 A Teoria das Descrições de Russell...................................................446 Análise Lógica..............................................................................449 22 A filosofia de Wittgenstein............................................................. 453 Tractatus Logico-Philosophicus ...................................................... 453 O Positivismo Lógico.....................................................................456 As Investigações Filosóficas de Wittgenstein.....................................459 Posfácio.......................................................................................... 473 Sugestões de leitura complementar ..................................................... 479 Índice analítico................................................................................489
  • 12.
  • 13. Prefácio Á 52 ANOS, Bertrand Russell escreveu uma História da Filo- sofia Ocidental num volume, que ainda é muito lida. Quando me foi sugerido que poderia escrever um equivalente moderno, fui o primeiro a ficar intimidado pelo desafio. Russell foi um dos maiores filósofos do século e ganhou um prémio Nobel de literatura; como poderia alguém aventurar-se a competir com ele? Contudo, esta obra não é, em geral, enc arada como uma das melhores de Russell, que é notoriamente injusto com alguns dos maiores filósofos do passado, como Aristóteles e Kant. Além disso, Russell agia segundo pressupos- tos sobre a natureza da filosofia e do método filosófico que hoje em dia seriam postos em causa pela maior parte dos filósofos. Parece, na verdade, haver espaço para um livro que ofereça uma panorâmica da história deste tema de um ponto de vista filosófico contemporâneo. A obra de Russell, por mais inexacta no pormenor, é aprazível e estimulante, tendo proporcionado a muitas pessoas um primeiro gosto pelo que há de emocionante na filosofia. Procuro neste livro atingir a mesma audiência de Russell: escrevo para o leitor culto em geral, sem uma formação filosófica especial, que deseja ficar a conhecer a contri- buição dada pela filosofia para a cultura em que vivemos. Tentei evitar o uso de quaisquer termos filosóficos sem os explicar quando surgem pela primeira vez. Os diálogos de Platão oferecem-nos aqui um mode- lo: Platão foi capaz de estabelecer resultados filosóficos sem usar qual- quer vocabulário técnico, pois nenhum existia quando escreveu. Por esta razão, entre outras, tratei algo detidamente vários dos seus diálo- gos nos capítulos 2 e 3. O aspecto da prosa de Russell que mais me esforcei por imitar foi a clareza e o vigor do seu estilo. (Russell escreveu, um dia, que os seus próprios modelos de autores de prosa eram Baedeker e John Milton.) H
  • 14. 14 Um leitor que tenha acabado de chegar à filosofia achará por certo difíceis de seguir algumas partes desta obra. Em filosofia não há águas pouco profundas; todo o aprendiz de filósofo tem de lutar para não se afundar. Mas fiz o meu melhor para assegurar que o leitor não terá de enfrentar quaisquer dificuldades de compreensão que não sejam intrínsecas ao tema. Não é possível dar uma explicação prévia do que trata a filosofia. A melhor maneira de aprender filosofia é ler as obras dos grandes filóso- fos. Este livro pretende mostrar ao leitor quais os temas que interessa- ram aos filósofos e quais os métodos por eles usados para os enfrentar. Em si, os resumos das doutrinas filosóficas são pouco úteis: engana o leitor quem lhe apresentar apenas as conclusões de um filósofo, sem uma indicação dos métodos pelos quais elas foram alcançadas. Por esta razão, apresentei — e critiquei — o melhor que pude o raciocínio que os filósofos usam para apoiar as suas teses. Ao lançar-me assim na discussão com os grandes espíritos do passado não pretendo faltar- lhes ao respeito. É assim que se leva um filósofo a sério: não papa- gueando o seu texto, mas digladiando-se com ele e aprendendo com os seus pontos fortes e com os seus pontos fracos. A filosofia é, simultaneamente, a mais emocionante e a mais frus- trante das matérias. É emocionante porque é a mais ampla de todas as disciplinas, explorando os conceitos básicos que atravessam todo o nosso discurso e pensamento sobre qualquer tema. Além disso, pode empreender-se o estudo da filosofia sem qualquer formação ou instru- ção especial preliminar; qualquer pessoa que esteja disposta a pensar muito e a seguir um raciocínio pode fazer filosofia. Mas a filosofia também é frustrante porque, ao contrário das disciplinas científicas ou históricas, não oferece nova informação sobre a natureza ou a socieda- de. A filosofia não procura proporcionar conhecimento, mas com- preensão; e a sua história mostra como tem sido difícil, mesmo para os grandes espíritos, desenvolver uma perspectiva completa e coerente. Pode dizer-se sem exagero que nenhum ser humano conseguiu ainda alcançar uma compreensão completa e coerente nem mesmo da lin- guagem que usamos para pensar os nossos pensamentos mais simples. Não foi por acaso que o homem que muita gente considera o fundador da filosofia enquanto disciplina autoconsciente, Sócrates, afirmou que a única sabedoria que possuía era o conhecimento da sua própria ignorância. A filosofia não é ciência nem religião, apesar de historicamente ter estado entrelaçada em ambas. Procurei mostrar como, em muitas áreas, o pensamento filosófico surgiu da reflexão religiosa e como se
  • 15. 15 transformou em ciência empírica. Muitos assuntos que foram tratados por grandes filósofos do passado já não contam hoje em dia como filosóficos. Assim, concentrei-me nas áreas objecto dos seus esforços que ainda hoje seriam enc aradas como filosóficas, como a ética, a metafísica e a filosofia da mente. Como Russell, fiz uma escolha pessoal dos filósofos a incluir nesta história e do espaço devotado a cada um. Contudo, não me afastei tanto quanto Russell das proporções comummente aceites no cânone filosófico. Como Russell, incluí a discussão de não -filósofos que influenciaram o pensamento filosófico; é por isso que Darwin e Freud surgem na minha lista de autores. Dediquei um espaço considerável à filosofia antiga e medieval, apesar de não tanto quanto Russell que, a meio do seu livro, ainda não tinha passado de Alcuíno e Carlos Magno. Terminei a narrativa por alturas da II Guerra Mundial e não tentei abranger a filosofia continental do séculoXX. Uma vez mais como Russell, esbocei o pano de fundo social, histó- rico e religioso das vidas dos filósofos, mais detidamente ao tratar de períodos remotos e muito brevemente à medida que nos aproximamos dos tempos modernos. Não escrevi para os filósofos profissionais, apesar de esperar, claro, que eles achem a minha apresentação rigorosa e que se sintam à von- tade para recomendar o meu livro aos seus estudantes como leitura secundária. Para os que já estão familiarizados com o tema, a minha prosa terá as marcas da minha própria formação filosófica, que come- çou por ser na filosofia escolástica de inspiração medieval e depois na escola da análise linguística que tem sido dominante na maior parte deste século no mundo de língua inglesa. A minha esperança, ao publicar este livro, é que ele possa transmi- tir aos que sentem curiosidade pela filosofia alguma da sua emoção e que os encaminhe para os próprios textos dos grandes pensadores do passado. Estou em dívida para com o corpo redactorial da Blackwell e para com Anthony Grahame, pela assistência concedida na preparação do livro; e para com três consultores anónimos que fizeram sugestões úteis com vista ao seu aperfeiçoamento. Estou particularmente grato à minha mulher, Nancy Kenny , que leu todo o livro em forma de manus- crito, eliminando muitas passagens por serem ininteligíveis para o não-filósofo. Tenho a certeza de que os meus leitores irão partilhar a minha gratidão para com ela por os ter poupado a um trabalho inútil. Janeiro de 1998
  • 16.
  • 17. Agradecimentos O autor e os editores agradecem reconhecidamente a autorização para reproduzir materiais protegidos pelos direitos de autor: T. S. Eliot: pelos versos de Four Quartets, copyright © 1943 by T. S. Eliot, renovado em 1971 por Esme Valerie Eliot, para a Faber & Fa- ber Ltd. W. B. Yeats: pelos versos de «Among School Children», de Col- lected Poems (Macmillan, 1995), agradecemos a A. P. Watt Ltd em nome de Michael Yeats. Os editores pedem desculpa por quaisquer erros ou omissões na lista anterior e ficarão reconhecidos se forem avisados relativamente a quaisquer correcções que devam ser incorporadas na próxima edição ou reimpressão deste livro.
  • 18.
  • 19. 1 Na infância da filosofia S MAIS ANTIGOS filósofos ocidentais eram gregos: filósofos que falavam dialectos da língua grega e que estavam familiarizados com os poemas gregos de Homero e Hesíodo, tendo sido ensinados a prestar culto a deuses gregos como Zeus, Apolo e Afrodite. Estes filó- sofos não viviam no continente grego, mas em centros afastados de cultura grega, nas costas do Sul de Itália ou na costa ocidental do que é hoje a Turquia, e floresceram no século V I a. C. — o século que come- çou com a deportação dos judeus para a Babilónia ordenada pelo rei Nabucodonosor e que acabou com a fundação da República Romana depois da expulsão dos reis das jovens cidades. Estes primeiros filósofos foram também os primeiros cientistas, e muitos foram também líderes religiosos. A princípio, a distinção entre ciência, religião e filosofia não era tão clara como viria a tornar-se em séculos posteriores. No século V I, na Ásia Menor e na Itália grega, havia um caldeirão intelectual no qual elementos de todas estas futu- ras disciplinas fermentavam em conjunto. Mais tarde, os devotos religiosos, os discípulos da filosofia e os herdeiros da ciência viriam todos a poder olhar retrospectivamente para estes pensadores como os seus antecessores. Pitágoras, honrado na antiguidade por ter sido o primeiro a trazer a filosofia para o mundo grego, ilustra na sua própria pessoa as carac- terísticas deste período antigo. Nascido em Samos, ao largo da costa da Turquia, emigrou para Crotona, na extremidade da península itáli- ca. Pitágoras tem direito a ser considerado o pai da geometria enquan- to estudo sistemático. O seu nome tornou-se familiar a muitas gera- ções de crianças europeias em idade escolar porque lhe foi atribuída a O
  • 20. 20 primeira demonstração de que o quadrado da hipotenusa de um triân- gulo rectângulo é igual em área à soma dos quadrados dos outros dois lados. Mas Pitágoras fundou também uma comunidade religiosa com um conjunto de regras ascéticas e cerimoniais, a mais bem conhecida das quais era a proibição de comer feijões. Pitágoras ensinou a doutri- na da transmigração das almas: os seres humanos teriam almas inde- pendentes dos seus corpos e, aquando da morte, a alma de uma pessoa poderia migrar para outro tipo de animal. Por esta razão, ensinava os seus discípulos a absterem-se de carne; diz-se que, uma vez, terá impedido um homem de açoitar um cachorro por ter reconhecido nos seus ganidos a voz de um amigo querido já falecido. Pitágoras acredi- tava que a alma, tendo migrado sucessivamente para diferentes tipos de animais, podia ac abar por reencarnar num ser humano. Ele próprio afirmava lembrar-se de ter sido, alguns séculos antes, um herói no cerco de Tróia. Em grego, chamava-se «metempsicose» à doutrina da transmigra- ção das almas. Fausto, na peça de Christopher Marlowe, depois de ter vendido a alma ao diabo e estando prestes a ser levado para o Inferno cristão, expressa o desejo desesperado de que Pitágoras tenha acerta- do: Ah, a metempsicose de Pitágoras! Que fosse verdade E esta alma abandonava-me, transformando-me eu Numa qualquer besta bruta. Os discípulos de Pitágoras escreveram biografias suas cheias de prodígios, atribuindo-lhe a segunda visão e o dom da bilocação e fazendo dele filho de Apolo. OS MILÉSIOS A vida de Pitágoras está envolta em lendas. Sabe-se bastante mais sobre um grupo de filósofos, aproximadamente seus contemporâneos, que viv eram na cidade de Mileto, na Jónia, ou Ásia grega. O primeiro deles foi Tales, que era suficientemente velho para ter podido prever um eclipse em 585. Como Pitágoras, era um geómetra, apesar de lhe serem atribuídos teoremas bastante simples, como o de que o diâme- tro de um círculo divide este último em duas partes iguais. Também como Pitágoras, Tales misturava a geometria com a religião: quando descobriu como inscrever um triângulo rectângulo num círculo sacrifi-
  • 21. 21 cou um boi aos deuses. Mas a sua geometria tinha um lado prático: foi capaz de medir a altura das pirâmides medindo as suas sombras. Tales interessava-se também por astronomia, tendo identificado a constela- ção da Ursa Menor, sublinhando a sua utilidade para a navegação. Foi, diz-se, o primeiro grego a fixar a duração do ano em 365 dias e fez estimativas dos tamanhos do Sol e da Lua. Tales foi talvez o primeiro filósofo a levantar questões sobre a estrutura e a natureza do cosmos como um todo. Sustentava que a Terra repousa sobre a água, como um madeiro que flutua num regato. (Aristóteles perguntaria, mais tarde: a água repousa sobre o quê?) Mas a Terra e os seus habitantes não se limitavam a flutuar na água: Tales pensava que, num certo sentido, tudo era feito de água. Mesmo na antiguidade as pessoas não podiam fazer mais do que levantar conjec- turas sobre as bases desta crença: seria porque todos os animais e plantas precisam de água ou porque todas as sementes são húmidas? Por causa da sua teoria sobre o cosmos, os autores posteriores chamaram físico ou filósofo da natureza a Tales (physis é a palavra grega para natureza). Apesar de ser um físico, Tales não era materia- lista, isto é, não pensava que mais nada existisse a não ser a matéria física. Um dos dois adágios que nos chegaram dele textualmente é «Tudo está cheio de deuses». Uma indicação do que ele queria dizer é talvez dada pela sua afirmação de que o íman, porque desloca o ferro, tem alma. Tales não acreditava na doutrina da transmigração de Pitá- goras, mas sustentava a imortalidade da alma. Tales não foi apenas um teorizador. Foi um conselheiro político e militar do rei Creso da Lídia e ajudou-o a passar um rio a vau desvian- do um caudal de água. Prognosticando uma colheita de azeitona extraordinariamente boa, arrendou todos os lagares e enriqueceu. No entanto, adquiriu a reputação de ser um distraído, apartado das coisas mundanas, e é assim que nos surge numa carta que um antigo autor apócrifo simulou ter sido escrita por Mileto a Pitágoras: Tales encontrou um destino cruel na sua velhice. Saiu do pátio de sua casa para ver as estrelas à noite, como era seu costume, com a sua serva e, esquecendo-se de onde se encontrava, enquanto contemplava as estrelas, chegou à beira de um talude íngreme, de onde caiu. Foi nestas circunstâncias que os milésios perderam o seu astrónomo. Que aqueles que foram seus alunos, como nós, prezem a sua memória, e que esta seja prezada pelos nossos filhos e alunos.
  • 22. 22 O verdadeiro autor desta carta era um jovem contemporâneo e aluno de Tales chamado Anaximandro, um sábio que fez o primeiro mapa do mundo e das estrelas, tendo inventado tanto o relógio de sol como um relógio das estações. Ensinava que a Terra tinha a forma cilíndrica, como uma secção de uma coluna. Em volta do mundo exis- tiam anéis gigantes, cheios de fogo; cada anel tinha um buraco através do qual o fogo podia ser visto, sendo os buracos o Sol, a Lua e as estre- las. O tamanho do anel maior era 28 vezes o da Terra, e o fogo avistado pelo seu orifício era o Sol. As obstruções nos orifícios explicavam os eclipses e as fases da Lua. O fogo no inte- rior destes anéis fora uma grande bola de chama que rodeara a Terra primitiva e que gradualmente se desfizera em fragmentos que se ins- creveram em coberturas como as das árvores. Os corpos celestes have- riam de voltar ao fogo original. As coisas a partir das quais se originam as que existem são também as coisas em que se transformam quando se destroem, de acordo com o que tem de ser. Pois elas ofertam justiça e reparação umas às outras pela sua injustiça de acordo com as disposições do tempo. A cosmogonia física está aqui misturada não tanto com a teologia, mas com uma grande ética cósmica: os diversos elementos, tal como os homens e os deuses, têm de se manter dentro de limites para sempre fixados pela natureza. Apesar de o fogo desempenhar um papel importante na cosmogonia de Anaximandro, seria um erro pensar que ele o encarava como o constituinte último do mundo, como a água de Tales. O elemento básico de tudo, sustentava, não podia ser a água nem o fogo, nem nada de semelhante, pois, caso contrário, esse elemento invadiria gradual- mente o universo. Tinha de ser algo sem uma natureza definida, a que chamou o «infinito» ou o «ilimitado». «O infinito é o primeiro princí- pio das coisas que existem: é eterno e sem idade e contém todos os mundos.» Anaximandro foi um proponente antecipado da evolução das espé- cies. Os seres humanos que conhecemos não podem ter sempre existi- do, defendeu. Os outros animais são capazes de olhar por si próprios pouco tempo depois de terem nascido, ao passo que os seres humanos precisam de um longo período de aleitamento; se os seres humanos tivessem originalmente sido como são agora, não poderiam ter sobre- vivido. Anaximandro sustentou que, numa época anterior, havia ani- mais semelhantes a peixes no interior dos quais os embriões humanos
  • 23. 23 cresceram até atingirem a puberdade antes de se precipitarem no mundo. Devido a esta tese, apesar de não ser vegetariano noutros aspectos, Anaximandro pregava contra a ingestão de peixe. O infinito de Anaximandro era um conceito demasiado rarefeito para alguns dos seus sucessores. O seu contemporâneo mais novo em Mileto, Anaxímenes, apesar de concordar que o elemento último não poderia ser o fogo nem a água, afirmava que era a partir do ar que tudo o mais se tinha gerado. No seu estado estável o ar é invisível, mas, quando se move e se condensa, torna-se primeiro vento, depois nuvem e a seguir água, e, finalmente, a água condensada torna-se lama e pedra. Presumivelmente, o ar rarefeito torna-se fogo, o que completa a gama dos elementos. Para apoiar a sua teoria, Anaxímenes apelava à experiência: «Os homens libertam das suas bocas tanto o calor como o frio; pois o sopro arrefece quando é comprimido e condensado pelos lábios, mas, quando a boca se relaxa e o ar se exala, torna-se quente em virtude da sua rarefacção». Assim, a rarefacção e a condensação podem gerar tudo a partir do ar subjacente. Isto é ingénuo, mas é ciência ingénua: não é mitologia, ao contrário das narrativas clássicas e bíblicas do dilúvio e do arco-íris. Anaxímenes foi o primeiro defensor da Terra plana: pensava que os corpos celestes não viajavam sob a Terra, como os seus predecessores tinham defendido, mas que rodavam em torno das nossas cabeças como um chapéu de feltro. Anaxímenes era também um defensor da Lua plana e do Sol plano: «O Sol, a Lua e os outros corpos celestes, sendo todos ígneos, viajam pelo ar por serem planos». XENÓFANES Tales, Anaximandro e Anaxímenes constituíram um trio de intrépi- dos e engenhosos filósofos especulativos. Os seus interesses distin- guem-nos mais como os antecessores dos cientistas do que dos filóso- fos modernos. As coisas são diferentes no que respeita a Xenófanes de Cólofon (próximo da actual Esmirna), que viveu no século V. Os seus tópicos e métodos são reconhecivelmente os mesmos dos filósofos das épocas posteriores. Ele foi, em particular, o primeiro filósofo da religião, e alguns dos argumentos por ele propostos são ainda levados a sério pelos seus sucessores. Xenófanes detestava a religião presente nos poemas de Homero e Hesíodo, cujas histórias blasfemavam, atribuindo aos deuses o roubo,
  • 24. 24 a manha, o adultério e todo o tipo de comportamento que, entre os seres humanos, seria vergonhoso e condenável. Sendo ele próprio um poeta, Xenófanes atacou ferozmente a teologia homérica em versos satíricos hoje perdidos. Não que Xenófanes afirmasse possuir uma compreensão clara sobre a natureza do divino; pelo contrário, escre- veu que «a verdade clara sobre os deuses nenhum homem jamais viu nem nenhum homem irá alguma vez conhecer». Mas afirmava saber de onde vinham essas lendas dos deuses: os seres humanos têm ten- dência para representar toda a gente e tudo o que há à sua imagem. Os etíopes, afirmou Xenófanes, fazem os seus deuses escuros e de nariz achatado, ao passo que os trácios os fazem de cabelo ruivo e olhos azuis. A crença de que os deuses têm um tipo qualquer de forma humana é um antropomorfismo infantil. «Se as vacas, os cavalos ou os leões tivessem mãos e pudessem desenhar, os cavalos desenhariam as formas dos deuses semelhantes a cavalos, as vacas deuses semelhantes a vacas, fazendo os corpos dos deuses semelhantes aos seus próprios corpos.» Apesar de ninguém vir jamais a ter uma visão clara de Deus, Xenó- fanes pensava que, à medida que a ciência progredisse, os mortais poderiam aprender mais do que o que tinha originalmente sido rev e- lado. «Há um Deus», escreveu, «o maior de entre os deuses e os homens, dissemelhante dos mortais tanto em forma como em pensa- mento.» Deus não era limitado nem infinito, mas completamente não espacial: o divino é uma coisa viva que vê como um todo, pensa como um todo e ouve como um todo. Numa sociedade que adorava muitos deuses, Xenófanes era um firme monoteísta. Só havia um Deus, defendia, porque Deus é a mais poderosa de todas as coisas e, se houvesse mais de um, todos teriam de partilhar o mesmo poder. Deus não pode ter uma origem; pois o que vem à existência ou o faz partindo do que lhe é análogo, ou do que não lhe é análogo — e ambas as alternativas conduzem ao absurdo no caso de Deus. Deus não é infinito nem finito, não é mutável nem imutável. Mas, apesar de Deus ser de certo modo impensável, não é destituído de pensamento. Pelo contrário, «À distância e sem esforço, só com a sua mente, Ele governa tudo o que existe». O monoteísmo de Xenófanes é digno de nota não tanto por causa da sua originalidade, mas por causa da sua natureza filosófica. O pro- feta hebraico Jeremias e os autores do livro de Isaías já tinham pro- clamado que só existia um deus verdadeiro. Mas ao passo que a sua postura se baseava num oráculo divino, Xenófanes ofereceu uma demonstração do seu ponto de vista por meio de argumentação racio-
  • 25. 25 nal. Em termos de uma distinção que não seria traçada senão séculos depois, Isaías proclamou uma religião revelada, ao passo que Xenófa- nes era um teólogo natural. A filosofia da natureza de Xenófanes é menos emocionante do que a sua filosofia da religião. As suas ideias são variações de tópicos pro- postos pelos milésio s que o precederam. Xenófanes tomou a terra, e não a água nem o ar, como o seu elemento último. Pensava que a terra se prolongava até ao infinito abaixo de nós. O Sol, sustentava, origina- va-se cada dia a partir de uma congregação de minúsculas centelhas. Mas não era o único sol; na verdade, havia uma infinidade de sóis. A contribuição científica mais original de Xenófanes foi ter chamado a atenção para a existência de fósseis, apontando para o facto de em Malta se encontrarem impressas em rochas as formas de todas as criaturas marinhas. Com base nisto, Xenófanes concluiu que o mundo tinha passado por um ciclo de fases alternadas terrestres e marinhas. HERACLITO O último e o mais famoso destes primeiros filósofos jónios foi Heraclito, que viveu no princípio do século V na grande metrópole de Éfeso, onde mais tarde S. Paulo viria a pregar, a residir e a ser perse- guido. A cidade, quer no tempo de Heraclito quer no tempo de S. Pau- lo, era dominada pelo grande templo da deusa da fertilidade, Artemi- sa. Heraclito denunciou o culto praticado no templo: rezar a estátuas era como sussurrar mexericos a uma casa vazia, e oferecer sacrifícios para nos purificarmos do pecado era como tentar lavar a lama com lama. Visitava o templo de tempos a tempos, mas só para jogar aos dados com as crianças dali — uma companhia muito melhor do que a dos políticos, dizia, recusando-se a desempenhar qualquer papel na política da cidade. Foi também no templo de Artemisa que Heraclito depositou o seu tratado em três tomos sobre filosofia e política, uma obra, hoje perdida, notoriamente difícil — tão enigmática que algumas pessoas a tomaram como um texto de física e outras como um tratado político. («O que dela consigo compreender é excelente», disse Sócra- tes mais tarde, «o que não consigo compreender pode muito bem ser também excelente; mas só um mergulhador do mar alto poderá che- gar-lhe ao fundo.») Nesse livro Heraclito falava de uma grande Palavra, ou Logos, sempre subsistente e de acordo com a qual todas as coisas se originam. Escrevia de modo paradoxal, afirmando que o universo é simultanea-
  • 26. 26 mente divisível e indivisível, gerado e não gerado, mortal e imortal, Palavra e Eternidade, Pai e Filho, Deus e Justiça. Não admira que toda a gente, como ele se queixava, achasse o seu Logos consideravelmente incompreensível. Se Xenófanes, com o seu estilo de argumentação, era semelhante aos filósofos profissionais modernos, Heraclito estava muito mais de acordo com a ideia popular moderna do filósofo como guru. Heraclito não tinha senão desprezo pelos seus predecessores filosóficos. Muito estudo, dizia, não nos ensina a ser homens sensatos; caso contrário, teria feito de Hesíodo, Pitágoras e Xenófanes homens sensatos. Hera- clito não argumentava, proferia: era um mestre das máximas fecundas de ar profundo e sentido obscuro. O seu estilo délfico era talvez uma imitação do oráculo de Apolo que, nas suas próprias palavras, «nem fala, nem esconde, mas manifesta-se por sinais». Os seguintes adágios contam-se entre os mais bem conhecidos de Heraclito: O caminho a subir e a descer é um e o mesmo. A harmonia oculta é melhor do que a manifesta. A guerra é pai de todos e de todos é soberana; a uns apresenta-os como deuses e a outros como homens; de uns ela faz escravos, de outros homens livres. Uma alma seca é mais sábia e melhor. Para as almas, tornar-se água é a morte. Um ébrio é um homem conduzido por um rapaz. Os deuses são mortais, os seres humanos imortais, vivendo a sua mor- te, morrendo a sua vida. A alma é uma aranha e o corpo é a sua teia. Heraclito explicava assim a última observação: tal como uma ara- nha, no meio de uma teia, se dá conta assim que uma mosca quebra um dos seus fios e de longe se precipita como se estivesse em aflição, também a alma humana, se alguma parte do corpo está magoado, se precipita imediatamente para aí, como se não conseguisse suportar a injúria. Mas, se a alma é uma aranha diligente, também é, segundo Heraclito, uma centelha da substância das ígneas estrelas. Na cosmologia de Heraclito, o fogo desempenha o papel que a água tinha em Tales e o ar em Anaxímenes. O mundo é um fogo sempre ardente: todas as coisas vêm do fogo e vão para o fogo; «todas as coi- sas se podem trocar pelo fogo, como os bens se trocam por ouro e o ouro por bens». Há um caminho descendente, no qual o fogo se trans- forma em água e a água em terra, e um caminho ascendente, no qual a
  • 27. 27 terra se transforma em água, a água em ar e o ar em fogo. A morte da terra é tornar-se água, a morte da água é tornar-se ar e a morte do ar é tornar-se fogo. Há um único mundo, o mesmo para todos, e não foi Deus nem o homem que o fizeram; sempre existiu e sempre existirá, passando, de acordo com ciclos determinados pelo destino, por uma fase de inflamação, que é a guerra, e uma de combustão, que é a paz. A visão de Heraclito da transmutação dos elementos num fogo sempre ardente conquistou a imaginação dos poetas até aos nossos dias. T. S. Eliot, em Quatro Quartetos, decidiu glosar a afirmação de Heraclito de que a água era a morte da terra: Há inundação e seca Por sobre os olhos e na boca, Águas mortas e mortos areais Que pela primazia guerreais. O solo, ressequido e desventrado, Fica de boca aberta pelo labor anulado E ri-se sem alegria nesse exercício — Que é da terra o final exício. Gerard Manley Hopkins escreveu um poema intitulado «Que a Natureza é um Fogo Heracliteano», repleto de imagens provenientes de Heraclito: Milhões atestados, consome-se a grande fogueira da natureza. Mas extinto o mais formoso e mais querido, a centelha mais sua, O homem, e o éctipo de fogo deste, a sua presença no espírito, desapa- rece ligeiro! Ambos estão num insondável, tudo está num sombrio enorme Submergido. Oh! mágoa e indignação! Aparição humana, que refulgiu Desapareceu, disjungida, uma estrela, a morte invade com o oblívio… Perante esta situação, Hopkins busca conforto na promessa de uma ressurreição final — uma doutrina cristã, claro, mas uma doutrina que conhece a sua antecipação numa passagem de Heraclito que fala de seres humanos que regressam e se tornam guardiães vigilantes dos vivos e dos mortos. «O fogo», disse Heraclito, «virá e julgará e conde- nará todas as coisas.» O aspecto dos ensinamentos de Heraclito que mais impressionou os filósofos no mundo antigo não foi tanto a visão do mundo como uma fogueira, mas antes o corolário segundo o qual tudo no mundo estava num estado de constante mudança e fluxo. Tudo passa, disse Heracli- to, e nada permanece; o mundo é como um curso de água corrente. As
  • 28. 28 águas que vemos perante nós, nas margens de um rio, não são as mesmas em dois momentos distintos, e não podemos banhar os nossos pés duas vezes nas mesmas águas. Até aqui, tudo bem; mas Heraclito foi mais longe e afirmou que nem sequer podemos entrar duas vezes no mesmo rio. Isto parece falso, quer seja tomado literalmente, quer seja tomado alegoricamente; mas, como veremos, esta ideia foi extre- mamente influente na filosofia grega posterior. A ESCOLA DE PARMÉNIDES A situação filosófica é muito diferente quando nos voltamos para Parménides, que nasceu nos últimos anos do século VI. Apesar de ter sido, provavelmente, um discípulo de Xenófanes, Parménides passou a maior parte da sua vida não na Jónia mas em Itália, numa cidade chamada Eleia, cerca de 110 quilómetros a sul de Nápoles. Diz-se que Parménides redigiu um excelente conjunto de leis para a sua cidade, mas nada sabemos da sua actividade política nem da sua filosofia política. Parménides é o primeiro filósofo cujos escritos nos chegaram em quantidade apreciável: escreveu um
  • 29. 29 poema filosófico nuns versos desajeitados, do qual temos cerca de 120 linhas. Na sua obra não se dedicou à cosmologia, como os primeiros milésios, nem à teologia, como Xenófanes, mas a um estudo novo e universal que a ambos abrangia e transcendia: a disciplina a que os filósofos posteriores chamaram ontologia. A ontologia deriva o seu nome de uma palavra grega que, no singular, é on e, no plural, onta: é esta palavra — o particípio presente do verbo grego ser — que define o tema de Parménides. O seu singular poema pode reivindicar o título de carta régia fundadora da ontologia. Para explicar o que é a ontologia e do que trata o poema de Parmé- nides, é necessário entrar em minúcias relativamente a questões de gramática e de tradução. A paciência do leitor relativamente a este pedantismo será compensada, pois entre Parménides e os dias de hoje a ontologia viria a ter um crescimento vasto e luxuriante, de modo que só uma compreensão firme do que Parménides queria dizer, e do que não conseguiu dizer, nos permite traçar um percurso claro, ao longo dos séculos, pela selva ontológica. O tema de Parménides é o «to on», o que, traduzido literalmente, quer dizer «o que é». Antes de explicarmos o verbo, temos de dizer qualquer coisa sobre o artigo. Em português usamos por vezes um adjectivo, precedido por um artigo definido, para referir uma classe de pessoas ou coisas, como quando dizemos «os ricos», para referir as pessoas ricas. A formulação correspondente era muito mais frequente em grego do que em português: os gregos podiam usar a expressão «o quente» para referir as coisas quentes e «o frio» para referir as coisas frias. Assim, por exemplo, Anax ímenes afirmava que o ar se tornava visível pelo quente, pelo frio, pelo húmido e pelo móvel. Em vez de um adjectivo depois de «o», podemos, claro, usar um substantivo, em particular um substantivo deverbal, como quando falamos, por exem- plo, de «o assistente» para referir as pessoas que assistem (a um espectáculo, por exemplo). Mas em grego era possível também fazer suceder ao artigo um particípio presente propriamente dito, que em português corresponde ao gerúndio; e é esta construção que ocorre em «o que é», que literalmente quer dizer «o (que está) sendo». «O que é» é aquilo que está sendo, tal como «o assistente» designa aqueles que (por exemplo) assistem ao espectác ulo. Uma forma verbal como «assistir» tem em português pelo menos dois usos diferentes: pode ser um verbo no infinitivo de pleno direito, como em «gostei de assistir ao espectáculo», ou pode ser um verbo substantivado, como em «assistir a filmes violentos é prejudicial aos jovens». Quando os filósofos escrevem tratados sobre o ser, usam
  • 30. 30 geralmente a palavra como verbo substantivado: propõem-se explicar o que é isso de
  • 31. 31 algo ser. Não é isso, pelo menos principalmente, aquilo de que Parmé- nides se ocupa: ele está preocupado com o que é, isto é, com seja o que for que, por assim dizer, está sendo. Para distinguir este sentido de «ser» do uso como verbo substantivado, e para evitar a estranheza da tradução portuguesa literal «o que é», a tradição tem usualmente dignificado o tema de Parménides com um S maiúsculo. Seguiremos esta convenção, segundo a qual «o Ser» se refere a seja o que for que está sendo, e «o ser» é o verbo ser substantivado. Muito bem; mas se isso é o que o Ser é, para perceber do que está Parménides a falar temos também de saber o que é o ser, isto é, o que é isso de algo ser. Compreendemos o que é algo ser azul, ou um cacho r- ro; mas o que é isso de algo ser apenas, sem mais? Uma possibilidade auto-evidente é esta: ser é existir, ou, por outras palavras, o ser é a existência. Se assim for, o Ser será, pois, tudo o que existe. Em português, «ser» pode certamente querer dizer «existir». Quando Hamlet se interroga «ser ou não ser, eis a questão», está a debater-se com a ideia de pôr, ou não, fim à sua existência. Na Bíblia podemos ler que Raquel chorava pelos seus filhos «e não sentia con- forto por eles não serem mais». Este uso em português é poético e arcaico, não sendo natural dizer coisas como «A Torre de Belém ainda é, e o cinema Monumental deixou de ser», quando queremos dizer que o primeiro edifício ainda existe, ao passo que o segundo já não. Mas a afirmação correspondente seria perfeitamente natural em grego anti- go; e este sentido de «ser» está certamente presente no discurso de Parménides sobre o Ser. Se isto fosse tudo o que está em causa, poderíamos limitar-nos a dizer que o Ser é tudo o que existe, ou, se quisermos, tudo o que é ou, ainda, tudo o que está sendo. Trata-se, sem dúvida, de um tema sufi- cientemente lato. Não poderíamos censurar Parménides, como Hamlet censurou Horácio, dizendo que Há mais coisas nos céus e na terra Do que sonhas na tua filosofia. Pois tudo o que há nos céus e na Terra cairá sob a designação do Ser. Infelizmente, contudo, as coisas são mais complicadas do que isto. A existência não é tudo o que Parménides tem em mente quando fala do Ser. Ele está interessado no verbo ser não apenas tal como ocorre em frases como «Tróia já deixou de ser», mas também tal como ocorre em qualquer tipo de frase, seja ela qual for — quer se trate de frases como «Penélope é uma mulher», «Aquiles é um herói», «Menelau é
  • 32. 32 louro» ou «Telémaco é alto». Compreendido deste modo, o Ser não é apenas o que existe, mas aquilo em relação ao qual qualquer frase que contenha «é» é verdadeira. Além disso, o ser não é apenas o existir (o ser, sem mais), mas ser qualquer coisa, seja o que for: ser vermelho ou azul, ser quente ou frio, e assim por diante ad nauseam. Tomado neste sentido, o domínio do Ser é muito mais difícil de compreender. Depois deste longo preâmbulo, estamos em condições de deitar um olhar sobre alguns dos versos do misterioso poema de Parménides. O que podes nomear e pensar tem de ser o Ser Pois o Ser pode, e o nada não pode, ser. O primeiro verso destaca a vasta extensão do Ser: se podemos chamar Argo a um cão, ou se podemos pensar na Lua, então o Argo e a Lua têm de ser, têm de contar como parte do Ser. Mas por que razão nos diz o segundo verso que o nada não pode ser? Bem, qualquer coisa que possa realmente ser tem de ser uma coisa ou outra; não pode limitar-se a ser coisa nenhuma. Parménides introduz, para corresponder à noção do Ser, a do Não- Ser. Nunca poderá suceder que o Não-Ser seja; Não permitas ao teu espírito tal pensamento. Se o Ser é aquilo em relação ao qual uma coisa ou outra, não impor- ta qual, é verdadeira, então o Não-Ser é aquilo em relação ao qual absolutamente nada é verdadeiro. Mas isto é, sem dúvida, absurdo. Não só o Não-Ser não pode existir, não pode mesmo ser pensado. Não poderás conhecer o Não-Ser — isso não pode fazer-se — Nem proferi-lo; ser pensado e ser é uma só coisa. Dada a sua definição de «ser» e «Não-Ser», Parménides tem, sem dúvida, razão neste aspecto. Se alguém nos disser que está a pensar em algo e lhe perguntarmos em que tipo de coisa está a pensar, ficaremos desconcertados se essa pessoa nos disser que não se trata de nenhum tipo de coisa. Se lhe perguntarmos então com o que se parece isso e se essa pessoa nos disser que não se parece com nada, ficaremos descon- certados. «Poderá então dizer-me seja o que for sobre o que está a pensar?», podemos nós perguntar. Se essa pessoa nos disser que não, podemos com toda a justiça concluir que ela não está realmente a
  • 33. 33 pensar em coisa alguma — na verdade, não está sequer a pensar. Nesse sentido, é verdade que ser pensado e ser são um e o mesmo. Podemos concordar com Parménides até aqui; mas podemos tam- bém fazer notar que há uma diferença importante entre dizer O Não-Ser não pode ser pensado e dizer O que não existe não pode ser pensado. A primeira frase é, no sentido explicado acima, verdadeira; a segunda é falsa. Se fosse verdadeira, poderíamos demonstrar que as coisas existem limitando-nos a pensar nelas; mas, ao passo que tanto podemos pensar em leões como em unicórnios, os leões existem e os unicórnios não. Dado o carácter enredado da sua linguagem, é difícil ter a certeza se Parménides pensava ou não que as duas afirmações eram equivalentes. Alguns dos filósofos posteriores acusaram-no de fazer essa confusão; outros parecem ter sido eles próprios vítimas dela. Concordámos com a rejeição do Não -Ser de Parménides. Mas é mais difícil acompanhar algumas das conclusões que ele retira do carácter inconcebível do Não-Ser e da universalidade do Ser. Eis como Parménides continua: Há um caminho, assinalado deste modo: O Ser nunca nasceu e nunca morre; Firme, imóvel, não permitirá nenhum fim Nunca foi, nem será; sempre presente, Uno e contínuo. Como poderia nascer Ou de onde poderia ter -se criado? Do Não-Ser? Não — Isso não pode dizer-se nem pensar-se; não podemos sequer Chegar a negar que é. Que necessidade, Anterior ou posterior, poderia o Ser do Não-Ser fazer surgir? Portanto, tem inteiramente de ser ou não. Nem ao Não-Ser irá a crença atribuir Qualquer progenitura além de si mesmo […] «Nada pode provir do nada» é um princípio que tem sido aceite por muitos pensadores bastante menos intrépidos do que Parménides. Mas não houve muitos que tivessem retirado a conclusão de que o Ser não tem princípio nem fim, nem que não está sujeito à mudança tem-
  • 34. 34 poral. Para perceber por que razão tirou Parménides esta conclusão, temos de admitir que ele pensava que «ser água» ou «ser ar» se rela- cionava com «ser» da mesma maneira que «correr depressa» e «correr devagar» se relaciona com «correr». Uma pessoa que comece por correr depressa e que depois corra devagar continua todo o tempo a correr; analogamente, para Parménides, o que for primeiro água e depois ar continua a ser. Quando a água de uma chaleira se evapora, tal pode ser, nas palavras de Heraclito, a morte da água e o nascimento do ar; mas, para Parménides, não é a morte nem o nasc imento do Ser. Sejam quais forem as mudanças que possam ter lugar, não são mudan- ças do ser para o não-ser; são sempre mudanças no Ser e não mudan- ças do Ser. O Ser tem de ser eterno, pois não poderia ter tido origem no Não- Ser nem tornar-se no Não-Ser, pois não há tal coisa. Se o Ser pudesse — per impossibile — provir do nada, o que poderia fazer com que isso acontecesse num momento em vez de outro? Na verdade, o que dife- rencia o passado do presente e do futuro? Se não é um tipo de ser, o tempo será irreal; mas, se é um tipo de ser, então tudo será parte do Ser, e o passado, o presente e o futuro não serão senão um Ser. Parménides procura mostrar, com argumentos análogos, que o Ser é indiviso e ilimitado. O que iria dividir o Ser do Ser? O Não-Ser? Nesse caso, a divisão seria irreal. O Ser? Nesse caso não haveria div i- são, mas o Ser contínuo. O que poderia impor limites ao Ser? O Não- Ser não pode fazer nada a coisa alguma; e, se imaginarmos que o Ser está limitado pelo Ser, então o Ser não alcançou ainda os seus limites. Pensar uma coisa é pensar que é, nem mais. À parte o Ser, seja o que for que exprimamos, O pensamento não alcançará. Nada é ou será Para além dos limites do Ser, visto que o decreto do Destino O agrilhoou, inteiro e imóvel. Todas as coisas são nomes Que a credulidade dos mortais forjou — Nascimento e destruição, ser tudo ou nada, Mudanças de lugar, e cores que vão e vêm. O poema de Parménides tem duas partes: a Via da Verdade e a Via da Aparência. A Via da Verdade contém a doutrina do Ser, que exami- námos até agora; a Via da Aparência trata do mundo dos sentidos, o mundo da mudança e da cor, o mundo dos nomes vazios. Não temos de nos demorar na Via da Aparência, pois o que Parménides nos diz sobre isso não é muito diferente das especulações cosmológicas dos
  • 35. 35 pensadores jónicos. Foi a sua Via da Verdade que estabeleceu um programa de acção para a filosofia dos séculos seguintes. O problema que os filósofos posteriores enfrentaram foi o seguinte: o senso comum sugere que o mundo contém coisas que perduram, como montanhas rochosas, e coisas que mudam constantemente, como cursos de água impetuosos. Por um lado, Heraclito tinha decla- rado que, a um nível fundamental, até mesmo as coisas mais sólidas estavam em fluxo perpétuo; por outro lado, Parménides defendeu que até mesmo o que aparentemente é mais fugaz é, a um nível fundamen- tal, estático e imutável. Pode qualquer das doutrinas ser refutada? Há alguma maneira de as reconciliar? Para Platão e para os que se lhe seguiram, responder a estas perguntas era uma das tarefas fundamen- tais da filosofia. Um aluno de Parménides, Melisso (acme em 441), pôs em prosa escorreita as ideias que Parménides tinha exposto em versos opacos. Dessas ideias extraiu duas consequências particularmente chocantes. Uma delas era a de que a dor era irreal, pois implicava uma deficiência do ser. A outra era a de que o espaço vazio ou o vácuo era coisa que não existia: teria de ser parte do Não-Ser. Logo, o movimento era impossível, pois os corpos que ocupam espaço não têm outro sítio para onde se deslocar. Zenão, um amigo de Parménides cerca de 25 anos mais novo que ele, desenvolveu uma engenhosa série de paradoxos, concebidos para mostrar, além de qualquer dúvida, que o movimento era inconcebível. O mais conhecido destes paradoxos propõe-se demonstrar que quem se desloca depressa nunca consegue ultrapassar quem se desloca dev a- gar. Suponhamos que Aquiles, um atleta rápido, faz uma corrida de 100 metros com uma tartaruga que só consegue correr a ¼ da sua velocidade, dando à tartaruga um avanço de 40 metros. Na altura em que Aquiles tiver chegado aos 40 metros, a tartaruga estará ainda 10 metros à sua frente. Quando Aquiles tiver percorrido esses 10 metros, a tartaruga estará 2,5 metros à sua frente. De cada vez que Aquiles vence o hiato entre os dois, a tartaruga origina outro hiato, mais pequeno, à sua frente; assim, parece que Aquiles não pode nunca ultrapassar a tartaruga. Outro argumento, mais simples, procurava mostrar que ninguém consegue correr de uma ponta a outra de um estádio, pois, para chegar ao outro extremo, temos primeiro de chegar a meio do estádio, para chegar a meio do estádio temos primeiro de chegar a meio dessa distância, e assim por diante ad infinitum.
  • 36. 36 Estes e outros argumentos de Zenão partem do princípio de que as distâncias são infinitamente divisíveis. Esta suposição foi contestada por alguns pensadores posteriores e aceite por outros. Aristóteles, a quem devemos a preservação dos enigmas, foi capaz de deslindar algumas das ambiguidades. Contudo, só depois de muitos séculos os paradoxos conheceram soluções que satisfizessem tanto os filósofos como os matemáticos. Platão diz-nos que, quando Parménides era um homem de cabelos grisalhos com 65 anos, viajou com Zenão de Eleia para assistir a um festival em Atenas, tendo aí conhecido o jovem Sócrates. Isto teria ocorrido por volta de 450 a. C. Alguns especialistas pensam que a história é uma invenção com fins dramáticos; mas o encontro, se teve lugar, inaugurou de modo esplêndido a idade de ouro da filosofia grega em Atenas. Regressaremos já de seguida à filosofia ateniense; entretanto, falta ainda ter em consideração outro pensador da penín- sula italiana, Empédocles de Ácragas, e mais dois físicos jónicos, Leu- cipo e Demócrito. EMPÉDOCLES Empédocles atingiu a sua plenitude em meados do século V e era um cidadão da cidade da costa sul da Sicília que agora se chama Agri- gento. Tem fama de ter sido um político activo, um democrata ardente a quem foi oferecida a posição, por ele recusada, de rei da sua cidade. Mais tarde foi banido e praticou a filosofia no exílio. Era célebre como médico, mas, de acordo com os biógrafos antigos, tanto curava por magia como recorrendo aos medicamentos, tendo mesmo devolvido à vida uma mulher morta há 30 dias. Nos seus últimos anos, dizem-nos os seus bió grafos, chegou a acreditar ser um deus, encontrando a sua morte ao saltar para o vulcão Etna para estabelecer a sua divindade. Quer Empédocles tenha sido um taumaturgo, quer não, merece a sua reputação como filósofo original e imaginativo. Escreveu dois poemas, maiores do que o de Parménides e mais fluentes, se bem que também mais repetitivos. Um deles era sobre a ciência, e o outro sobre a religião. Do primeiro, Da Natureza, possuímos cerca de 400 versos dos originais 2000; do segundo, Purificações, só sobreviveram peque- nos fragmentos. A filosofia da natureza de Empédocles pode ser encarada como uma síntese do pensamento dos filósofos jónicos. Como vimos, cada um deles escolheu uma certa substância como o ingrediente básico do
  • 37. 37 universo: para Tales, era a água; para Anaxímenes, o ar; para Xenófa- nes, a terra; para Heraclito, o fogo. Para Empédocles, todas estas qua- tro substâncias estavam em pé de igualdade enquanto elementos bási- cos (ou «raízes», para usar o seu termo) do universo. Empédocles pensava que estes elementos tinham existido desde sempre, mas que se misturavam uns com os outros, em várias proporções, para dar origem àquilo que constituía o mundo. Destes quatro proveio o que foi e é e sempre será Árvores, bestas e seres humanos, homens e mulheres, todas As aves do ar e os peixes gerados pela água brilhante, E também os deuses de vida longa, há muito adorados nas alturas. Estes quatro são tudo o que há, cada um deles misturando-se E, na mistura, a variedade do mundo alcançando. O entrelaçamento e a mistura dos elementos, no sistema de Empé- docles, é causado por duas forças: o Amor e a Discórdia. O Amor com- bina os elementos, fazendo surgir uma coisa de muitas coisas, e a Discórdia obriga-as a separarem-se, fazendo surgir muitas coisas a partir de uma. A história é um ciclo no qual é por vezes dominante o Amor, outras a Discórdia. Sob a influência do Amor, os elementos unem-se numa esfera homogénea e gloriosa; depois, sob a influência da Discórdia, separam-se em seres de diferentes tipos. Todos os seres compostos, como os animais, as aves e os peixes, são temporariamente criaturas que vão e vêm; só os elementos são sempiternos, e só o ciclo cósmico não cessa nunca. As descrições que Empédocles faz da sua cosmologia são, umas vezes, prosaicas e, outras, poéticas. A força cósmica do Amor é muitas vezes personificada na exultante deusa Afrodite, e as primeiras fases do desenvolvimento cósmico são identificadas com uma era de ouro em que ela reinava. O elemento do fogo é por vezes denominado Hefesto, o deus-sol. Mas, apesar das suas roupagens simbólicas e míticas, o sistema de Empédocles merece ser levado a sério enquanto esboço de explicação científica. Estamos habituados a considerar o sólido, o líquido e o gasoso como os três estados fundamentais da matéria. Não era absurdo con- siderar o fogo, e em particular o fogo solar, como um quarto estado da matéria, de igual importância. De facto, pode dizer-se que o surgimen- to, no nosso século, da disciplina de física do plasma (que estuda as propriedades da matéria à temperatura solar) reconquistou para este quarto elemento a paridade em relação aos outros três. O Amor e a
  • 38. 38 Discórdia podem ser identificados como os análogos antigos das forças de atracção e repulsão que têm desempenhado um papel significativo no desenvolvimento da física teórica ao longo dos séculos. Empédocles sabia que a Lua brilhava por reflectir a luz; pensava, contudo, que o mesmo se passava com o Sol. Tinha consciência de que os eclipses do Sol eram causados pela interposição da Lua. Sabia que as plantas se reproduziam por via sexual e defendia uma teoria elabo- rada segundo a qual a respiração estava relacionada com o movimento do sangue dentro do corpo. Apresentou uma teoria rudimentar da evolução . Num estádio primitivo do mundo, defendia ele, o acaso formou, a partir da matéria original, membros e órgãos isolados: bra- ços sem ombros, olhos fora das órbitas, cabeças sem pescoços. Estas partes de corpos de animais, semelhantes a peças de lego, juntaram-se, de novo por acaso, em organismos, muitos dos quais eram monstruo- sidades, como bois com cabeças humanas ou seres humanos com cabeça de boi. A maioria destes organismos fortuitos era frágil ou estéril; apenas as estruturas mais aptas sobreviveram para dar origem à espécie humana e às outras espécies de animais que conhecemos. Até mesmo os deuses, como vimos, eram produto dos elementos de Empédocles. Por maioria de razão, a alma humana era um composto material, feito de terra, ar, fogo e água. Cada elemento — e na verdade as forças do amor e da discórdia — desempenhava o seu papel no funcionamento dos nossos sentidos, de acordo com o princípio de que o semelhante é percepcionado pelo semelhante. Com a terra vemos a terra, com a água, a água, Com o ar o ar do céu, com o fogo o fogo consumidor; Com o Amor percepcionamos o Amor, a Discórdia com a triste Discór- dia. O pensamento, estranhamente, identifica-se com o movimento do sangue à volta do coração: o sangue é uma mistura refinada de todos os elementos, o que explica a natureza abrangente do pensamento. O poema religioso de Empédocles intitulado Purificações torna evidente que ele aceitava a doutrina pitagórica da metempsicose, a transmigração das almas. A discórdia castiga os prevaricadores, atri- buindo as suas almas a outros tipos de criaturas, terrestres ou mari- nhas. Empédocles recomendava aos seus seguidores que se abstives- sem de ingerir criaturas vivas, pois os corpos dos animais que come- mos são a morada das almas castigadas. Não é claro se, para evitar estes risc os, seria suficiente adoptar o vegetarianismo, uma vez que, do
  • 39. 39 ponto de vista de Empédocles, uma alma humana podia migrar para uma planta. O melhor destino para um homem, dizia ele, era tornar-se um leão, se a morte o transformasse em animal, e um loureiro, se o transformasse em planta. Mas o melhor era transformar-se em deus; aqueles que tinham mais probabilidades de conseguir este enobreci- mento eram os videntes, os autores de hinos e os médicos. Empédocles, que era estas três coisas, dizia ter ele próprio sofrido a metempsicose: Pois eu já fui um rapaz e uma rapariga, Um arbusto e um pássaro, e um peixe mudo do mar. A nossa existência actual pode ser miserável, e as nossas perspecti- vas para depois da morte sombrias; mas depois da expiação dos nossos pecados por meio da reincarnação podemos esperar o descanso eterno à mesa dos imortais, livres de cansaços e sofrimentos. Era sem dúvida isto que Empédocles esperava quando mergulhou no Etna. OS ATOMISTAS Demócrito foi o primeiro filósofo significativo a nascer no conti- nente grego: era originário de Abdera, no extremo nordeste do territó- rio. Foi discípulo de Leucipo, acerca de quem pouco se sabe. Na anti- guidade, os dois filósofos são frequentemente mencionados em con- junto, e o atomismo que os tornou a ambos famosos foi provavelmente criação de Leucipo. Aristóteles conta-nos que Leucipo tentou reconci- liar os dados dos sentidos com o monismo eleático, isto é, com a teoria de que havia apenas um Ser eterno e imutável. Leucipo pensava ter uma teoria que estava de acordo com a percepção dos sentidos, que não iria abolir o nascer, nem a morte, nem o mov i- mento, nem a multiplicidade das coisas. Isto concedia ele às aparên- cias, concedendo àqu eles que defendem o uno que o movimento é impossível sem o vazio, que o vazio é Não-Ser e não parte do Ser, por- que o Ser era um plenum absoluto. Mas não havia unicamente um tal Ser, mas muitos, infinitos em número e invisíveis devido à pequenez da sua massa. Contudo, não mais do que uma linha de Leucipo sobreviveu intacta. Para termos acesso ao conteúdo da teoria atómica, temos de recorrer
  • 40. 40 ao que é possível saber a partir do seu discípulo. Demócrito era um polímato e o prolixo autor de quase 80 tratados sobre temas que iam desde a poesia e a harmonia à táctica militar e à teologia babilónica. Mas é sobretudo pela sua filosofia natural que é conhecido. Conta-se que Demócrito dizia preferir descobrir uma só explicação científica a tornar-se rei dos Persas. Mas era também modesto nas suas aspirações científicas: «Não tentes saber tudo», dizia ele, «senão vais acabar por nada saber». A característica fundamental do atomismo de Demócrito era a de que a matéria não era infinitamente divisível. De acordo com o ato- mismo, se tomarmos uma porção de qualquer tipo de matéria e a dividirmos tanto quanto pudermos, teremos de parar em alguma altu- ra, naquela altura em que chegarmos a fragmentos tão ínfimos que sejam indivisíveis. O argumento que levou a esta conclusão parece ter sido filosófico e não experimental. Se a matéria fosse divisível até ao infinito, suponhamos então que esta divisão foi feita — pois se a maté- ria for genuinamente divisível deste modo, nada de incoerente haverá nesta suposição. Qual o tamanho dos fragmentos que resultam desta divisão? Se tiverem alguma magnitude, então, pela hipótese da divisi- bilidade infinita, seria possível dividi-los de novo; portanto, têm de ser fragmentos sem extensão, como os pontos geométricos. Mas aquilo que pode ser dividido pode ser juntado outra vez: se serrarmos um tronco, dividindo-o em muitos pedaços, podemos voltar a juntá-los para formar um tronco do mesmo tamanho. Mas se os nossos frag- mentos não têm qualquer magnitude, como podem eles ter sido junta- dos para formar a porção extensa de matéria com que começámos? A matéria não pode consistir meramente em pontos geométricos, nem mesmo num número infinito deles; temos de concluir, portanto, que a divisibilidade tem um fim e que os fragmentos mais pequenos têm de ser partículas com tamanho e forma. Foi a estas partículas que Demócrito chamou «átomos» («átomo» é precisamente a palavra grega que significa «indivisível»). Demócrito pensava que os átomos eram demasiado pequenos para serem detecta- dos pelos sentidos, que eram infinitos em número e que existiam em infinitos tipos. Como partículas de poeira iluminadas por um raio de sol, distribuíam-se pelo espaço vazio infinito, a que ele chamou «o vazio». Existiam desde sempre e estavam sempre em movimento. Entravam em colisão uns com os outros e ligavam-se uns aos outros; alguns eram côncavos, outros convexos; alguns pareciam ganchos, outro olhos. Os objectos de tamanho médio que nos são familiares são complexos de átomos unidos desta maneira casual; e as diferenças
  • 41. 41 entre as diferentes espécies de substâncias devem-se a diferenças nos seus átomos. Os átomos, dizia ele, diferiam no modo (como a letra A difere da letra N), na ordem (como AN difere de NA) e na posição (como N difere de Z). Os críticos antigos de Demócrito queixaram-se de que apesar de ele explicar tudo o resto apelando para o movimento dos átomos, não tinha qualquer explicação para o próprio movimento. Outros, em sua defesa, afirmavam que o movimento era causado por uma força de atracção em função da qual cada átomo procurava átomos que se lhe assemelhassem. Mas talvez uma força de atracção por explicar não seja melhor do que um movimento por explicar. Além disso, se uma força de atracção tivesse estado operativa ao longo de um período de tempo infinito sem que nenhuma outra força a contrariasse (como a Discór- dia de Empédocles), o mundo consistiria agora em complexos de áto- mos uniformes — o que é muito diferente dos agregados ocasionais com que Demócrito identificava os seres animados e inanimados que conhecemos. Para Demócrito, os átomos e o vazio eram as duas únicas realida- des: tudo o mais era aparência. Quando os átomos se aproximam, colidem ou se ligam uns aos outros, os agregados tomam a forma de água ou fogo ou plantas ou seres humanos, mas tudo o que realmente existe são os átomos no vazio, os quais lhes subjazem. Em particular, as qualidades percepcionadas pelos sentidos são meras aparências. O mais citado aforismo de Demócrito era: Por convenção existem o doce e o amargo, o quente e o frio, por con- venção existe a cor; na realidade, átomos e vazio. Quando dizia que as qualidades sensoriais eram «por convenção», contam-nos os comentadores antigos, Demócrito queria dizer que as qualidades eram relativas a nós e não pertenciam à natureza das pró- prias coisas. Por natureza, nada é branco, preto, amarelo, vermelho, amargo ou doce. Demócrito explicou em pormenor como os diferentes sabores resul- tavam dos diferentes tipos de átomos. Os sabores penetrantes resulta- vam de átomos pequenos, finos, angulares, com reentrâncias. Os sabo- res doces, por outro lado, têm origem em átomos maiores, de forma mais arredondada. Se algo tem um sabor salgado, é porque os seus átomos são grandes, ásperos, cortantes e angulares. Não apenas os sabores e os odores, mas também as cores, os sons e as qualidades tácteis eram explicados pelas propriedades e relações
  • 42. 42 dos átomos subjacentes. O conhecimento que nos é proporcionado por todos estes sentidos — o gosto, o olfacto, a vista, a audição e o tacto — é um conhecimento que é obscuridade. O conhecimento genuíno é completamente diferente, sendo prerrogativa daqueles que conhecem a teoria dos átomos e do vazio. Demócrito escreveu quer sobre física, quer sobre ética; os aforis- mos que nos chegaram sugerem que, como moralista, era mais edifi- cante do que inspirador. O comentário seguinte, sensato mas pouco entusiasmante, é representativo de muitos outros: Satisfaz-te com o que tens e não gastes o teu tempo a sonhar com bens que provocam a inveja e a admiração; põe os olhos nas vidas daqueles que são pobres e vivem em sofrimento, de modo a que o que possuis possa parecer grandioso e invejável. Um homem que tiver sorte com o genro, dizia, ganha um filho, ao passo que aquele que tiver azar perde uma filha — uma observação que tem sido inconscientemente citada, muitas vezes de forma confusa, por muitos oradores em muitos casamentos. Também muitos refor- madores políticos têm feito eco da sua ideia de que é melhor ser pobre numa democracia do que próspero numa ditadura. Os aforismos de Demócrito que foram preservados não constituem um sistema moral e não parecem ter qualquer relação com a teoria atómica que dá forma à sua filosofia. Alguns desses aforismos, porém, embora pareçam lacónicos e banais, são suficientes, se forem verda- deiros, para deitar por terra sistemas inteiros de filosofia moral. Por exemplo: A pessoa boa não se abstém apenas de fazer o mal; nem sequer o dese- ja. Isto entra em conflito com o ponto de vista, muitas vezes defendi- do, de que a virtude atinge o seu estádio mais elevado quando triunfa sobre uma paixão que a contraria. E de novo: É melhor sofrer o mal do que infligi-lo. Isto não é conciliável com a teoria utilitarista, comum no mundo moderno, segundo a qual a moral deve apenas ter em conta as conse- quências de uma acção e não a identidade do agente.
  • 43. 43 No fim da antiguidade e no renascimento, Demócrito era conhecido como o filósofo que ri, sendo Heraclito conhecido como o filósofo que chora. Nenhuma das duas descrições parece ter bases muito sólidas. Contudo, há comentários atribuídos a Demócrito que confirmam a sua identificação com a boa disposição, o mais notório dos quais é o seguinte: Uma vida sem festejos é como uma estrada sem estalagens.
  • 44.
  • 45. 2 A Atenas de Sócrates O IMPÉRIO ATENIENSE Os dias mais gloriosos da Grécia Antiga tiveram lugar no século V a. C., ao longo de 50 anos de paz entre dois períodos de guerra. O século começara com guerras entre a Grécia e a Pérsia e terminaria com uma guerra entre as cidades-estado da própria Grécia. No período intermédio, floresceu a grandiosa civilização de Atenas. A Jónia, onde tinham surgido os primeiros filósofos, estivera sob o domínio persa desde meados do século VI. Em 499, os gregos da Jónia rebelaram-se contra o rei persa, Dario. Depois de esmagar a revolta, Dario invadiu a Grécia para castigar os que tinham ajudado os rebel- des a partir da metrópole. Uma força militar constituída sobretudo por atenienses derrotou o exército invasor em Maratona, em 490. Xerxes, filho de Dario, enviou uma expedição mais numerosa em 484, derro- tando um corajoso batalhão de espartanos nas Termópilas e forçando os atenienses a fugir da sua cidade. Mas a sua armada foi derrotada perto da ilha de Salamina por uma marinha grega unificada, e uma vitória grega em terra, em Plateias, em 479, pôs fim à invasão. Depois das invasões, Atenas assumiu a liderança dos aliados gre- gos. Foram os atenienses que libertaram os gregos da Jónia, e era Atenas, apoiada por contribuições de outras cidades, que controlava a armada que assegurava a liberdade dos mares Egeu e Jónio. Aquilo que começara como uma federação deu origem a um Império Atenien- se. Internamente, Atenas era uma democracia, o primeiro exemplo fidedigno dessa forma de organização política. «Democracia» é, em
  • 46. 46 grego, a palavra que significa o governo do povo; e a democracia ate- niense era um exemplo muito fiel de um tal regime. Atenas não era como uma democracia moderna, na qual os cidadãos elegem repre- sentantes que formam um governo. Em vez disso, cada cidadão tinha o direito de participar em pessoa no governo, comparecendo numa assembleia geral onde podia ouvir os discursos dos líderes políticos e depois dar o seu voto. Para se ver o que isto significaria em termos actuais, imagine-se que os membros do governo e da oposição fala- vam na televisão durante duas horas, após o que era apresentada uma moção e tomada uma decisão com base nos votos fornecidos por cada espectador ao premir ou o botão do «sim», ou o botão do «não» no televisor. Para tornar o paralelo rigoroso, teria de acrescentar-se que apenas aos cidadãos do sexo masculino com mais de 20 anos seria permitido premir o botão — mas não às mulheres, nem às crianças, escravos ou estrangeiros. Os poderes judicial e legislativo eram, em Atenas, atribuídos por sorteio a membros da assembleia com mais de 30 anos; as leis eram aprovadas por um painel de mil cidadãos, escolhidos apenas por um dia; e os julga- mentos mais importantes realizavam-se perante um júri de 501 cidadãos. Até os magistrados — aqueles a quem cabia executar as decisões do gover- no, quer fossem judiciais, financeiras ou militares — eram maioritariamen- te escolhidos por sorteio; apenas cerca de 100 eram eleitos. Nunca antes ou desde então os cidadãos comuns de um Estado participaram tão activamente no seu governo. É importante ter isto presente quando lemos o que os filósofos gregos diziam acerca dos méritos e deméritos das instituições democráticas. Os atenienses afir- mavam que a sua constituição era contemporânea das reformas de Clístenes de 508 a. C., e esse ano é muitas vezes considerado o do nascimento da democracia. A democracia ateniense não era incompatível com a liderança aris- tocrática. No seu período imperial Atenas foi, por escolha popular, governada por Péricles, sobrinho -neto de Clístenes. Péricles instituiu um ambicioso programa de reconstrução dos templos da cidade que tinham sido destruídos por Xerxes; ainda nos dias de hoje vêm visitan- tes dos quatro cantos do mundo para ver as ruínas dos edifícios que Péricles erigiu na Acrópole, a fortaleza de Atenas. As esculturas com as quais estes templos foram decorados encontram-se entre os objectos mais preciosos dos museus pelos quais estão hoje espalhadas. O Par- ténon, o templo em honra da deusa virgem Atena, foi construído como oferenda pelas vitórias nas guerras pérsicas. Os mármores Elgin que estão no Museu Britânico, trazidos das ruínas desse templo por Lorde
  • 47. 47 Elgin em 1803, representam um grandioso festival ateniense, o das Panateneias, que Parménides e Zenão tinham presenciado na época em que se iniciavam as obras de construção. Quando o programa de Péricles se completou, Atenas não tinha rival no mundo inteiro no que dizia respeito à arquitectura e à escultura. Atenas também tinha a primazia no teatro e na literatura. Ésquilo, que tinha combatido nas guerras pérsicas, foi o grande autor na área da tragédia; trouxe para o palco os heróis e heroínas da épica homéri- ca, e a sua reconstituição do regresso e assassinato de Agaménon ainda nos fascina e horroriza. Ésquilo levou também à cena as catástrofes mais recentes de que o rei Xerxes tinha sido vítima. Dramaturgos mais novos, como o conservador e piedoso Sófocles e o mais radical e cépti- co Eurípedes, estabeleceram os padrões do teatro trágico. As peças de Sófocles acerca do rei Édipo, assassino de seu pai e esposo de sua mãe, e o retrato que Eurípedes faz de Medeia, assassina de crianç as, não só fazem parte do reportório do século XX, como ainda perturbam a men- talidade contemporânea. A historiografia propriamente dita começou também neste século, tendo as Crónicas das Guerras Pérsicas, de Heródoto, sido redigidas nos primeiros anos do século, e a narração que Tucídides faz da guerra entre os gregos, nos últimos. ANAXÁGORAS Também a filosofia chegou a Atenas na época de Péricles. Anaxá- goras de Clazómenas (perto de Esmirna) nasceu em cerca de 500 a. C. sendo, portanto, cerca de 40 anos mais velho que Demócrito. Foi para Atenas quando as guerras pérsicas acabaram, tendo-se tornado amigo e colaborador de Péricles. Escreveu um tratado de filosofia natural ao estilo dos seus antecessores jónios, reconhecendo ter uma dívida especial para com Anaxímenes; diz-se que foi o primeiro tratado do género a conter diagramas. A explicação que Anaxágoras faz da origem do mundo é extraordi- nariamente semelhante a um modelo explicativo popular hoje em dia. No início, dizia ele, «todas as coisas estavam juntas», numa unidade infinitamente complexa e infinitamente pequena, destituída de todas as qualidades perceptíveis. Este seixo primevo iniciou um movimento rotativo, expandindo-se à medida que rodava e expelindo ar e éter, e por fim as estrelas, o Sol e a Lua. Aquando da rotação, o denso sepa- rou-se do rarefeito, bem como o quente do frio, o claro do escuro e o seco do húmido. As substâncias heterogéneas do nosso mundo foram
  • 48. 48 assim formadas, tendo o denso, o húmido, o frio e o escuro confluído naquilo que é agora a nossa Terra, e tendo-se deslocado o rarefeito, o quente, o seco e o claro para as zonas exteriores do éter. De certo modo, porém, defendia Anaxágoras, «tal como as coisas eram no início, assim elas estão agora todas juntas», ou seja, em cada coisa há uma porção de tudo o resto; há um pouco de brancura no negro e um pouco de leveza no pesado. Isto é sobretudo óbvio no caso do sémen, o qual tem de conter cabelo, unhas, músculos, ossos e mui- tas outras coisas. A expansão do universo, de acordo com Anaxágoras, continuou até ao presente, continuará no futuro e talvez esteja neste mesmo momento gerando mundos desabitados diferentes do nosso. O movimento que gera o desenvolvimento do universo é desenc a- deado pelo Espírito. O Espírito é algo completamente diferente da matéria a cuja história preside. É infinito e independente e não parti- cipa no processo geral de mistura dos elementos; se participasse, entraria no processo evolutivo e não poderia controlá-lo. Entre 430 e 420, quando a popularidade de Péricles começou a diminuir, o seu protegido Anaxágoras foi alvo de ataques. Anaxágoras dissera que o Sol era uma bola incandescente, um pouco maior que o Peloponeso. Isto foi considerado inconsistente com o culto do Sol como um deus e motivou uma acusação de impiedade. Anaxágoras fugiu para Lâmpsaco, no Helesponto, e aí viveu exilado até à sua mor- te, em 428. OS SOFISTAS Anaxágoras não teve rival, no período do regime de Péricles, como filósofo oficial de Atenas. Mas nesse período a cidade recebeu a visita de vários fornecedores itinerantes de conhecimentos, os quais deix a- ram uma reputação não inferior à dele. Estes professores ou conselhei- ros itinerantes eram chamados sofistas: estavam dispostos, a troco de dinheiro, a ensinar muitos tipos de proficiência e a servir de conselhei- ros em vários assuntos. Como não havia, em Atenas, um sistema público de ensino supe- rior, cabia aos sofistas a instrução dos jovens que podiam pagar os seus serviços nas artes e no tipo de informação de que precisariam na vida adulta. Dada a importância da oratória pública na assembleia e nos tribunais, a habilidade retórica era preciosa, e os sofistas eram muito procurados para ajudar e ensinar a apresentar uma causa da maneira mais favorável possível. Os críticos alegavam que, porque
  • 49. 49 estavam mais preocupados com a persuasão do que com a busca da verdade, os sofistas não eram verdadeiros filósofos. Todavia, os melhores deles eram perfeitamente capazes de enfrentar uma discus- são filosófica. O mais famoso dos sofistas foi Protágoras de Abdera, que visitou Atenas várias vezes em meados do século V e foi contratado por Péri- cles para redigir a constituição de uma colónia ateniense. A maior parte do que sabemos de Protágoras chega-nos a partir das obras de Platão , que não gostava dos sofistas e os considerava uma má influência para os jovens, encorajando o cepticismo, o relativismo e o cinismo. Mesmo assim, Platão levou Protágoras a sério e empenhou-se em dar resposta aos seus argumentos. Protágoras era, do ponto de vista religioso, um agnóstico. «No que diz respeito aos deuses», afirmava, «não posso ter a certeza de que existem ou não, ou de como eles são; pois entre nós e o conhecimento deles há muitos obstáculos, quer a dificuldade do assunto, quer a pouca duração da vida humana.» Era mais um humanista do que um teísta: «O homem é a medida de todas as coisas», rezava a sua máxima mais famosa, «quer das coisas que são que o são, quer das coisas que não são que o não são.» Na sua interpretação mais provável, isto significa que aquilo que, seja pela percepção, seja pelo pensamento, parece a uma determinada pessoa ser verdade, é verdade para essa pessoa. Isto acaba com a ver- dade objectiva: nada pode ser absolutamente verdadeiro, mas apenas relativamente a um indivíduo. Quando as pessoas têm crenças contra- ditórias, não é verdade que uma delas tem razão e a outra não. Demó- crito, e depois Platão , objectaram que a doutrina de Protágoras se autodestruía — pois se todas as crenças são verdadeiras, então entre elas está a crença de que nem todas as crenças são verdadeiras. Outro sofista, Górgias de Leôncio, foi discípulo de Empédocles. Era sobretudo um professor de retórica, cujos ensaios sobre estilística influenciaram a história da retórica grega. Mas era também um filóso- fo, com tendências ainda mais cépticas do que Protágoras. Diz-se que defendia que nada existe, que se há algo não pode ser conhecido e que se algo puder ser conhecido não poderá ser comunicado por uma pes- soa a outra. Na altura em que Górgias visitou Atenas, em 427, tivera início uma guerra entre Atenas e Esparta, conhecida como «guerra do Pelopone- so». Pouco tempo depois da eclosão desta guerra, Péricles morreu e as campanhas corriam cada vez pior para Atenas. Os reveses e as epide- mias afectaram brutalmente os atenienses, que se tornaram cruéis e
  • 50. 50 sem escrúpulos em combate. Deitaram por terra qualquer pretensão de elevação moral quando, em 426, ocuparam a ilha de Milo, chacina- ram todos os adultos do sexo masculino e escravizaram as mulheres e as crianças. As últimas tragédias de Eurípedes e algumas comédias do seu contemporâneo Aristófanes exprimiram um protesto eloquente contra a conduta dos atenienses na guerra. Esta terminou com uma esmagadora derrota naval em Egospótamos, em 405 a. C. O Império Ateniense chegou então ao fim, e a liderança da Grécia passou para Esparta. Mas os grandes dias da filosofia ateniense ainda estavam para vir. SÓCRATES Entre os que tinham servido na infantaria pesada ateniense estava Sócrates, filho de Sofronisco, que tinha 38 anos quando a guerra começou. Participou em três das mais importantes batalhas dos 11 anos de guerra e ganhou fama de corajoso. De volta a Atenas, em 406, fez parte da Assembleia numa altura em que um grupo de generais foi levado a julgamento por ter abandonado os corpos dos soldados mor- tos na batalha naval de Arginusa. Era ilegal julgar os generais colecti- vamente em vez de individualmente, mas Sócrates foi o único a votar contra este modo de proceder, e eles foram executados. Quando a guerra acabou, em 404, os espartanos substituíram a democracia ateniense por uma oligarquia conhecida como «os Trinta Tiranos», que instituíram um reinado de terror. Sócrates recebeu ordem para prender um inocente, mas ignorou-a. Em breve pagaria o preço da rectidão que o tinha tornado impopular tanto junto dos democratas como dos aristocratas. A importância de Sócrates no desenvolvimento da filosofia é tal que todos os filósofos de que falámos até agora são agrupados pelos histo- riadores sob a designação de «pré-socráticos». Não deixou, porém, obra escrita; e os pormenores da sua vida, além dos principais aconte- cimentos mais dramáticos, são ainda obscuros e objecto de controvér- sia entre os estudiosos. Não lhe faltaram biógrafos; e, de facto, muitos dos seus contemporâneos e sucessores escreveram diálogos em que Sócrates desempenhava um papel primordial. A dificuldade está em distinguir os factos sóbrios da ficção laudatória. Todos os seus biógra- fos nos dizem que Sócrates tinha um aspecto descuidado e que era feio, que tinha uma barriga protuberante e o nariz arrebitado; mas o consenso não vai muito além disto. Os dois autores cujas obras sobre-
  • 51. 51 viveram intactas, o estudioso de história militar Xenófanes e o filósofo idealista Platão , traçam retratos de Sócrates tão diferentes entre si como o Jesus de S. Marcos é diferente do de S. João. Em vida, Sócrates foi ridicularizado pelo comediógrafo Aristófanes, que o descreveu como um excêntrico corrupto que falava de modo ininteligível e que se interessava por curiosidades científicas com a cabeça literalmente nas nuvens. Mas, mais do que um filósofo da natu- reza, Sócrates parece ter sido um sofista de um tipo pouco comum. Como os sofistas, passava muito do seu tempo a discutir e a debater ideias com jovens abastados (alguns dos quais viriam a ocupar posi- ções de poder quando a oligarquia substituiu a democracia). Mas, ao contrário dos outros, Sócrates nada cobrava por isso, e o seu método de ensino não consistia em transmitir conhecimentos mas em pergun- tar; afirmava extrair, como uma parteira, os pensamentos de que os seus jovens alunos estavam prenhes. Ao contrário dos sofistas, não afirmava possuir qualquer conhecimento específico nem ser especialis- ta no que quer que fosse. Na Grécia clássica prestava-se muita atenção aos oráculos proferi- dos em nome do deus Apolo pelas sacerdotisas em êxtase no templo de Delfos. Quando lhe perguntaram se havia alguém mais sábio do que Sócrates, uma sacerdotisa respondeu que não. Sócrates afirmava não compreender este oráculo e questionou, sucessivamente, políticos, poetas e peritos que afirmavam possuir vários tipos de conhecimentos. Nenhum deles foi capaz de defender a sua reputação perante o inter- rogatório de Sócrates; e ele concluiu que o oráculo estava correcto, na medida em que apenas ele compreendia que a sua sabedoria não tinha qualquer valor. Em assuntos morais é que era mais importante procurar o conhe- cimento genuíno e expor falsas pretensões. Pois, de acordo com Sócra- tes, o conhecimento moral e a virtude eram uma e a mesma coisa. Alguém que realmente soubesse o que era o bem não podia praticar o mal; pois, se alguém praticasse o mal, tinha de ser por não saber o que seria o bem. Ninguém resvala para o mal deliberadamente, visto que todos querem levar uma vida boa e, assim, ser felizes. Aqueles que praticam o mal inadvertidamente necessitam de educação, não de punição. Este extraordinário conjunto de doutrinas é por vezes desig- nado pelos historiadores como «O Paradoxo Socrático». Sócrates não alegava possuir, ele próprio, o grau de sabedoria que o impediria de praticar o mal. Em vez disso, dizia confiar numa voz divina interior, que interv iria se alguma vez estivesse prestes a fazê-lo.
  • 52. 52 As autoridades discordam quanto ao conteúdo dos ensinamentos de Sócrates, mas concordam quanto ao modo como morreu. Os inimi- gos que ganhara pela sua probidade na política e o seu estilo de mos- cardo por meio do qual corroía reputações contribuíram para que fossem formuladas contra ele, ao 70 anos, uma série de acusações susceptíveis de conduzirem à pena máxima — acusações de impiedade, de introduzir deuses novos e de corromper a juventude ateniense. Platão, que esteve presente no julgamento, escreveu, depois da sua morte, uma versão dramatizada do seu discurso de defesa, ou Apolo- gia. O seu acusador, Meleto, afirma que Sócrates corrompe a juventude. Quem são, então, as pessoas que formam a juventude? Em resposta, Meleto sugere, primeiro, os juízes, a seguir os membros do conselho legislativo, depois os membros da assembleia e, por fim, todos os atenienses excepto Sócrates. Que sorte, surpreendentemente, para a juventude da cidade! Sócrates pergunta, então, se é melhor viver no meio de homens bons ou de homens maus. Qualquer pessoa preferiria, obviamente, viver no meio de homens bons, pois é provável que os maus lhe façam mal; mas se isto é assim, ele próprio não pode ter motivos para, deliberadamente, corromper os jovens; e, se o estiver a fazer sem saber, deve ser educado e não acusado. Sócrates concentra-se então na acusação de impiedade. Está ele a ser acusado de ateísmo, ou de introduzir novos deuses? As duas acusa- ções não são mutuamente compatíveis e, de facto, Meleto parece estar a confundi-lo com Anaxágoras, que disse que o Sol era feito de pedra e a Lua de terra. Quanto à acusação de ateísmo, Sócrates pode replicar que a sua missão como filósofo lhe foi confiada pelo próprio Deus e que a sua campanha para desmascarar a falsa sabedoria foi levada a cabo em obediência ao oráculo de Delfos. Aquilo que seria verdadeiramente uma traição a Deus seria abandonar o seu posto por ter medo da morte. Se lhe dissessem que podia ir em liberdade sob a condição de abandonar a investigação filosófica, ele responderia: «Homens de Atenas, respeito- vos e amo-vos; mas antes me deixarei convencer por Deus do que por vós e, enquanto respirar e for disso capaz, não cessarei de filosofar nem de vos exortar, mostrando-vos o caminho.» Sócrates conclui a sua defesa fazendo notar a presença no tribunal de muitos dos seus discípulos e das suas famílias, nenhum dos quais tinha sido chamado a depor pela acusação. Sócrates recusa-se a fazer como outros, apresentando em tribunal os seus filhos em lágrimas, como objecto de compaixão; às mãos dos juízes, procura justiça e não misericórdia.
  • 53. 53 Quando o veredicto foi dado, Sócrates foi condenado por uma pequena maioria dos 501 juízes. A acusação pedia a pena de morte; cabia ao acusado propor uma sentença alternativa. Sócrates conside- rou a possibilidade de pedir uma pensão por bons serviços, mas mos- trou-se disposto a aceitar uma multa de valor médio — demasiado alta para ele poder pagar, mas que Platão e os seus amigos estariam dis- postos a pagar por ele. Os juízes consideraram o valor da multa irrea- listicamente pequeno e sentenciaram-no à morte. No discurso que fez depois da leitura da sentença, Sócrates disse aos juízes que não lhe teria sido difícil construir uma defesa que lhe assegurasse a absolvição; mas o tipo de táctica que isso exigiria não estaria à sua altura. «Não é difícil escapar à morte, homens, mas é muito mais difícil escapar à maldade, que corre mais depressa que a morte.» Sócrates, velho e lento, foi alcançado pela mais lenta destas duas; os seus joviais acusadores foram alcançados pela mais rápida. Durante o julgamento, nem uma única vez a sua voz divina lhe ordena- ra que se calasse e, portanto, está satisfeito por enfrentar a morte. Será a morte um sono sem sonhos? Um tal sono é mais abençoado do que a maior parte das noites e dos dias da vida do mortal mais afortunado. É a morte uma viagem para outro mundo? Quão esplêndi- do é, poder conhecer os defuntos gloriosos e conversar com Hesíodo e Homero! «Por mim, muitas vezes hei-de querer morrer, se isto for verdade.» Sócrates tem tantas perguntas a fazer aos grandes homens e mulheres do passado; e no outro mundo ninguém será condenado à morte por fazer perguntas. «Mas já é tempo de partir — eu para mor- rer, e vós para viver. Qual de nós terá a melhor sorte, só Deus pode vê- lo com clareza.» EUTÍFRON Depois do julgamento descrito na Apologia, a execução da sentença foi adiada. Um navio sagrado partira para a sua viagem cerimonial anual à ilha de Delos e, até voltar a Atenas, era proibido tirar vidas humanas. Platão registou estes dias que mediaram entre a condenação e a execução em dois diálogos inesquecíveis, Críton e Fédon. Ninguém sabe quanto destes diálogos é história e quanto é invenção; mas o quadro que pintam estimulou a imaginação de muitos dos que viveram nos séculos e milénios posteriores à morte de Sócrates. Antes de examinarmos estas obras, devemos voltar a nossa atenção para um diálogo curto, o Eutífron, que Platão situa imediatamente