O Imperador da China fica surpreendido ao saber da existência de um rouxinol com um canto maravilhoso que vive nos bosques do seu palácio. Ele manda buscar o pássaro para cantar na corte, onde tem grande sucesso. Anos mais tarde, quando o Imperador adoece gravemente, só o canto do rouxinol verdadeiro consegue afastar a Morte.
2. Hans Cristian Andersen O Rouxinol do Imperador2
Estahistoria passou-se naChina, na
muitos anos epor isso deve serconta-
da paraasua lembrança não se perder.
O imperador da China morava no
paraciomais belodo mundo; todofeito
de porcelana tão delicada que era
preciso ter muito cuidado ate em
tocar-lhe. No jardim cresciam flores
raras, e as mais preciosas tinham um
sininhode prata pendurado, de modo
aque ninguem pudesse passar ali sem
reparar nelas.
No fundo do jardim, onde nem
sequeros jardineiros tinham chegado,
havia um bosque dearvores alússimas
que se estendia ate ao mar. Entre
aquelearvoredo vivia um rouxinol que
sabiacantarmaravilhosamente. Ate um
pobre pescador que todas as noites
vinha lançar as redes perto dali, não
podia deixar de parar aescu(a-lo.
De toda a parte vinham estran-
geiros visitar a cidade do imperador:
admiravam o palácio e o jardim, mas
todos eram de opinião que nao havia
coisa tão maravilhosacomoorouxinol.
Eescreviam sobreisso emv'arioslivros.
Umdesses livros veio ter às maos do
imperador que ficou muiússimo
surpreendido.
"O quê?", exclamava ele. "Todos
elogiam esse passarinho que vive no
meu imperio, eeu nem sequersabiada
sua existência!" Emandou chamar o maravilhoso. Finalmente, na cozinha
camareiro-mar da corte, um funciona-
rio tãoimpmtantequeaquemseatrevia
adirigir-se apalavra, so respondia "Pff'.
"Parece que ha um pássaro que
canta maravilhosamente, chamado
rouxinol. Toda agente fala nele, mas
porque e que ninguem me contou
isso?", perguntou o imperador, e
acrescentou: "Ordeno que esta noite
venha cantar na minha presença.
"Nunca ouvi falar nele" gaguejou
atrapalhadoocamareiro-mar,"masvou
à sua procura ehei-de encontra-lo".
"E fazes bem: porque se esta noite
nao estiver aqui, depois da corte ter
jantado, sereis todoscastigados."
Todos se atarefaram à procura de
noúcias sobre o rouxinol, mas nin-
guem tinha escutado esse tal cantor
encontraram uma rapariguinha que
sabia qualquer coisa.
"Ouvi-o sim; todas as noites vou
levar uns restos do jantarà minha mãe
que mora ao pe do mar, eà volta paro
sempre aescutar orouxinol: o seu
canto e comovente.11
"Minhaquerida pequena", disse
ocamareiro-mar, "sdas promovida
a primeira ajudante de cozinha se
me levares ate onde esta esse
rouxinol."
Eassimocortejodirigiu-se ao bos-
que.Ao meio do caminhoouviu-se um
mugido."Oh,e ele finalmente!", grita-
ram os pajens da corte.
"N"ao senhor, e uma vaca", disse a
rapariguita. "Temos ainda muito que
andar."
~·1..1#' ~~'-'·
r~·~ ..:
' - .,
3. Hans Cristian Andersen O Rouxinol do Imperador3
Mais adiante, as ras do charco plin-
cipiaram a coaxar. "Magrúfi.co!", excla-
mou o camareiro-mar. "Parece o sino
do templo."
"O que diz osenhor? Isto são as rãs
acoaxar", corrigiu amoça da cozinha.
"Mas j'a não falta muito."
Realmente, dát a pouco chegou-
-lhes aos ouvidos um canto suavtssimo.
"E ele, escutem! Está ali." E
apontou para um passarinho cinzento,
escondido numas moitas.
"Nunca imaginei que tivesse este
aspecto insignificante", observou o
camareiro-mar.
"Meu rouxinolzinho",disse em voz
altaarapariguinha "o nossoimperador
deseja que vas cantar diante dele".
"Com todo ogosto", respondeu o
rouxinol, e principiou a cantar uma
cancão ainda mais maravilhosa.
Quando acabou, perguntou:
"Tenho de cantar mais para o
imperador?", porque julgava que o
4. Hans Cristian Andersen O Rouxinol do Imperador4
imperador estivesse ali.
"Meu ilustflssimo rouxinol, tenho a
honra de o convidar para cantar esta
noite na corte", disse solenemente o
camareiro-mar.
"As minhas canções soam melhor
entreaverdurado bosque", respondeu
orouxinol. Masaceitou de boavontade
quandosoubeque eraesse odesejo do
imperador.
O palácio estava festivamente
ornamentado. Nos salões resplan-
deciam as lâmpadas douradas e em
cada canto as campainhas de prata das
flores raras tilintavam acima das
conversas dos cortesãos. No meio da
sala do trono estava preparado um
poleiro pintado de vermelho, onde
viriapoisar o rouxinol.
Nessa noite cantou tão melodio-
samente que ao imperador lhe chega-
ram as Yagrimas aos olhos, deslizando-
-lhe pelas faces. Então o rouxinol
cantou ainda melhor, um canto que
comoveu todos os corações.
Oimperador queria condecor'a-lo
com a sand'alia de ouro, mas o
passarinhorespondeu que não precisa-
va de outra recompensa: "Vi lágrimas
nos olhos de vossa majestade, e para
mimissovale maisdoque um tesouro."
Fez um sucesso extraordinário na
corte. As damas enchiam a boca de
'agua paralheimitaremosgorgeios. Em
todaacidade naosefalava noutracoisa.
Mas agora orouxinol não podiaafastar-
-se da corte: fizeram-lhe uma gaiola de
ouro, e quando sá1a em passeio (duas
vezes ao dia e uma vez à noite) era
acompanhado por doze pajens, cada
um dos quais segurava um fio de seda
atadoà perninha do rouxinol.
Certo dia o imperador recebeu um
grande embrulho com um letreiro:
"Rouxinol". Abriu-se a encomenda, e
saiu de ra um estojo que continha um
pequeno engenho com aforma de um
rouxinol. Eraornamentado compedras
5. Hans Cristian Andersen O Rouxinol do Imperador5
preciosas e quando se lhe dava corda,
repetia uma das canções do rouxinol
verdadeiro, movendo acauda de ouro
e prata.
"Ah! Que maravilha!", disseram
todos. "E preciso pôr os dois a can-
tarem juntos."
Eassim, organizou-se um dueto,
mas os dois rouxinois não acertavam
porque um cantavaaseu jeitoeooutro
obedecia sempre ao movimento do
maquinismo.
"Ele não tem culpa", disse o mLt-
sico imperial. "Vai perfeitamente a
compasso."
Opassarinhoartificialteveentão de
cantarsozinho, etal comooverdadeiro
alcançou enorme sucesso.Alem disso
era muito bonito, repetia trinta e três
vezes a mesma canção e as pessoas
queriam ouvi-lo maisvezes ainda; mas
o imperador ordenou que o rouxinol
de carne eosso viesse cantar. Ah, mas
para onde tinha ele ido? Aprovei-
tando-se da excitação geral tinha
voado pela janela aberta.
"Que falta de educação!", censu-
raram os cortesãos. "Mas em todo o
caso fiéamos com o melhor."
Eassim, opassarinho artificial teve
de cantar outra vez, recebendo os
maiores aplausos.
omusico imperial garantia que
ainda era melhor: "Porque reparem,
minhas senhoras e meus senhores,
com um rouxinolvivo nunca se sabia
o que ia cantar, enquanto com um
rouxinol artificialtudo está previsto; e
posstvel dar conta de tudo."
O povo tambem teve a honra de
assistir a um espectáculo, e ficou
encantado; so ovelho pescadorexcla-
mou: "Sim, canta bastante bem, mas
lú qualquercoisa que lhe falta."
Orouxinolverdadeiro foi expulso
da cidade, enquanto o rouxinol artifi-
cialmereceu as honras de estar sobre
uma almofadadesedaao lado dacama
do imperador.
Assim se passou um ano inteiro.
Oimperador,acorte etodos osoutros
chineses sabiam de cor todas as
passagens da canção e repetiam-na,
emcoro.Oque eles se divertiam!
Uma noite, porem, quando o
imperador,deitado na sua cama, escu-
tava a canção do costume, o rouxinol
artificial fez "Crac!"; ouviu-se o
estalido da corda a partir-se, e a
musica parou.
Chamou-se o relojoeiro, que, de-
pois de o examinar muito bem,
consertou-omaisou menos, mas disse
que era preciso tra(a-lo com muito
6. Hans Cristian Andersen O Rouxinol do Imperador6
cuidado porque os dentes do cilindro
estavam gastos e não era poss'1vel
substitúi-los sem estragar a musica.
Foi um grande desgosto para todo
o reino. Ficou assente que o rouxinol
sb cantasse uma vez por ano. Mas,
aparte isto, avida corrianormalmente.
Passaram-se cinco anos e o pá1s
sofreu um grande desgosto. Oimpera-
dor adoeceu gravemente,e, ao que se
dizia,iriadurarpouco.Jaestavanomea-
do um sucessor. Sealguem pediainfor-
mações sobre a doença, o camareiro-
-mar respondia "Pff', abanando a
cabeça.
P'alido echeio de frio, o imperador
estava deitado na sua grande cama
ornada de pinturas e sedas douradas.
O luar que entrava pela janela
iluminava-lhe acaracorde cera, ealiao
seu lado o rouxinolartificial.
O pobre imperador respirava com
dificuldade e sentia um peso no peito;
então abriu os olhos e viu que era a
Morte sentada sobre ele. Pusera na
cabeçaacoroa de ouro ena rnao erguia
a espada imperial. Rodeavam-no caras
estranhas: urnas horóveis e crueis,
outras muito bonitas e meigas. Eram as
n1ase as boas acções que o imperador
tinha praticado no passado.
"Musica, musica, depressa! Façam
soarogrande tambor chinês!", gritava
o imperador. "Não quero ouvir as
vossas vozes."
Mas as figuras continuavam ali e a
Morte abanava a cabeça corno urna
estatueta chinesa.
Enfao o imperadorgritou:"Canta,
meu precioso passarinho de ouro, v'a,
canta!"
Mas o passarinho estava silencioso;
ninguern lhe dera corda e sozinho nao
sabiacantar. TodososCtiadosse tinham
afastado dali,achando que ja nao havia
nada afazer. AMorte continuava afitar
o imperador com as suas grandes
brbitas vazias, numsilêncio irreal.
De repente, pela janela aberta
entrou um canto suav1ssimo: la fora
poisado numramo, estava o rouxinol
verdadeiro. Tinha vindo trazer uma
canção de conforto e de esperança.
Eenquanto ele cantava, os fantasmas
7. Hans Cristian Andersen O Rouxinol do Imperador7
iam-sedesvanecendo, osanguepulsava
com mais força nos membros do impe-
rador. Ate aMorte o escutava, e de vez
em quando escapavam-lhe as palavras:
"Continua, rouxinol, canta mais."
Orouxinol continuou a gorgear e
cantou a calma do cemitério onde
florescem rosas p'alidas, onde os lilases
inclinam sobreos t'umulos suavemente
perfumados.Enfao aMorte sentiu uma
saudade irresisúvel do seu jardim, e
voou pela janela, transformada em
nevoa branca e fria.
"Obrigado, amigo rouxinol",disse
o imperador. "Reconheci-te logo.
Como te hei-de recompensar?
Expulsei-tedacidade etuexpulsastedo
pe da minhacamaos fantasmas do mal,
e do meucoração expulsaste aMorte."
"Ja tive a minha recompensa",
respondeuorouxinol. "Vi l'agrimas nos
teus olhos quando cantei diante de ti
pela primeira vez: nunca me poderei
esquecer.Mas agora dorme, se queres
recuperarforçasesaúde.Eu vou cantar
para ti."
Embalado pelos gorgeiossuaves, o
imperador mergulhou num sono
benfazejo. Quando acordou, o sol
entrava pela janela, e ele sentia-se
descansado ecurado.
Nenhumeloscriadosvoltara porque
todos pensavam que tivesse morrido:
soorouxinolcontinuavaacantar. "Tens
de ficar para sempre ao pede mim!" ,
disse-lhe o imperador. "Canta{as sem-
preque teapetecer; quantoao rouxinol
artificial voufaie-lo embocados."
"~ao, peço-te! Ele cumpriu bem a
sua obrigação; deves conserva-lo como
dantes. Eu não posso viver aqui no
pal'acio, mas venho visitar-te: à noite
poisareinaqueleramoecantareipara ti.
Isso dar-te-'a alegria eao mesmo tempo
far-te-'a pensar; o meu canto falar-te-'a
daquelesquesão felizes edaqueles que
sofrem; cantarei sobre o bem e o mal
que esta à tua volta, mas permanece
escondido. Os passarinhos que cantam,
voam por todo o lado, sobre a cabana
do pobre pescadoresobreotelhadoelo
camponês, conhecem a vida de quem
es(a longe da corte: eu virei cantar para
ti,mas tensde me prometerumacoisa."
"Tudoo que quiseres."
"Não digas a ninguem que um
passarinho te contatudoaquiloquese
passa: deste modo, as coisasvao correr
muito melhor." Eo rouxinol voou.
Nesse momento entraram no
quartooscortesaos, julgando irencon-
trar o imperador morto. Mas ficaram
pasmados ao verem-no vestido com o
seu traje real e de espada à cintura,
dirigindo-se-lhes tranquilamente,
"Bom dia, meus senhores!"