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Waris Dirie (nome que significa flor do deserto) tem uma vida dupla – durante o
dia, é uma modelo famosa a nível internacional, e a porta-voz das Nações Unidas para os
direitos das mulheres em África. À noite, os seus sonhos levam-na de volta a casa, na
Somália.
Waris nasceu numa família tradicional de doze filhos, numa tribo de nómadas do
deserto Africano. Recorda-se da sua infância despreocupada – as brincadeiras com os
irmãos, as corridas de camelos, as mudanças da família para os novos locais de
pastagem... Até ao dia em que chegou a sua vez de conhecer a anciã que lhe iria aplicar o
antigo costume imposto à maioria das raparigas Somalis: a mutilação genital. Waris
sofreu esta tortura quando tinha apenas cinco anos de idade. Quando, já com doze anos, o
seu pai tentou negociar o seu casamento com um desconhecido de 60 anos, em troca de
cinco camelos, Waris desapareceu. Após uma extraordinária fuga pelo deserto, conseguiu
chegar a Londres, onde trabalhou como empregada do embaixador da Somália, até ao
regresso deste a África.
Sem dinheiro e com poucos conhecimentos da língua Inglesa, empregou-se então
como porteira do MacDonalds onde viria a ser descoberta por um fotógrafo de moda. A
sua história é uma fonte de inspiração e um extraordinário autorretrato de uma mulher
memorável, cuja personalidade é tão arrebatadora com a sua beleza.
Waris Dirie é uma modelo famosa e a imagem dos produtos de beleza da Revlon.
Em 1997, foi nomeada pelas nações unidas embaixadora para os direitos das mulheres, na
luta pela eliminação da prática da mutilação genital feminina. Vive atualmente em Nova
Iorque com o namorado e o filho de ambos. Os direitos cinematográficos do seu livro
foram vendidos à Rocket Pictures, a empresa de cinema de Elton John.
WARIS DIRIE e CATHLEEN MILLER
FLOR DO DESERTO
A EXTRAORDINÁRIA ODISSEIA DE UMA NÓMADA DO DESERTO
A MINHA MÃE
Connosco em pleno ciclone, sobrevivemos apenas graças à força de vontade.
Dedico, pois, este livro à mulher que me carregou aos ombros, àquela cuja determinação
é inabalável: a minha mãe, Fattuma Ahmed Aderi. Enquanto se defrontava com uma
inimaginável adversidade, sempre deu provas de fé. Dedicou-se de forma igual aos seus
doze filhos (um feito notável) e mostrou um discernimento capaz de tomar humilde o
sábio mais perspicaz.
Fez inúmeros sacrifícios, sem se queixar, e nós, os seus filhos e filhas, sabíamos
que ela nos deu sem reservas tudo o que possuía. Ela conheceu a dor intolerável de ver
morrer vários dos seus filhos, mas nunca perdeu a coragem e encontrou sempre força
para continuar a lutar pelos que lhe restavam. A sua generosidade, a sua grandeza de
alma, a sua bondade a sua beleza, são lendárias. Mãe, amo-te, respeito-te e lembro-te
com carinho; e agradeço Alá Todo-Poderoso ter-me dado uma mãe como tu. Rezo para
que Ele me ajude a honrar-te criando o meu filho como tu fizeste, infatigavelmente, com
os teus filhos.
És a saia escocesa que o jovem dândi escolheu.
És o tapete precioso que custou milhões.
Alguma vez encontrarei alguém como tu - tu, que só vi uma vez? Um guarda-chuva
parte-se; tu és forte como o ferro forjado.
És como o oiro de Nairobi, finamente moldado.
És o sol que se levanta, os primeiros raios da aurora,
Alguma vez encontrarei alguém como tu - tu, que só vi uma vez?
Poema tradicional somali
NOTA DOS AUTORES
Flor do Deserto é o relato verídico da vida de Waris Dirie, e todos os eventos
apresentados são factuais, baseados nas suas memórias. Com o intuito de respeitar a vida
privada das pessoas retratadas nesta obra, utilizámos pseudónimos para a maioria delas.
A FUGA
Arrancada ao meu sono por um ligeiro ruído, entreabri os olhos e vi apenas uma
coisa, a cabeça de um leão! Totalmente desperta e fascinada, senti os meus olhos
abrirem-se desmesuradamente como se quisessem conter o animal inteiro que estava
diante de mim. Tentei levantar-me, mas as minhas pernas fracas recusaram-se a
obedecer-me pois não comia há vários dias. Deixei-me cair contra a árvore debaixo da
qual me abrigara para me proteger daquele sol implacável em pleno meio-dia no deserto
africano. Fechei os olhos e encostei suavemente a cabeça contra a casca rugosa da árvore.
O leão estava tão próximo que sentia o seu cheiro almiscarado no ar quente. Dirigi-me a
Alá: - É o meu fim, meu Deus. Leva-me, peço-te.
A minha longa viagem através do deserto chegara ao fim. Não tinha nada para
proteger, nenhuma arma. Nem forças para correr. Mesmo na melhor das hipóteses, sabia
não conseguiria escapar ao leão subindo à árvore porque, como todos os felinos, era
certamente um excelente trepador e, com as suas garras poderosas, seria muito mais
rápido que eu. Quando eu tivesse atingido apenas meia altura - ZÁS -, uma patada e seria
o meu fim. Não sentindo qualquer espécie de medo, voltei a abrir os olhos e disse-lhe: -
Vês estou pronta. Era um belo macho, com uma juba dourada e uma longa cauda que
abanava incessantemente para repelir as moscas. Tinha uns cinco ou seis anos, era jovem
e saudável. Eu sabia que podia esmagar-me num abrir e fechar de olhos - ele era o rei.
Durante toda a minha vida tinha visto aquelas patas atacarem zebras e algumas centenas
de quilos mais pesados que eu.
O leão observou-me com os seus olhos cor de mel piscando suavemente. Fixei os
seus olhos castanhos, e ele desviou o olhar. - Vamos, acaba comigo. - Ele observou-me
novo antes de desviar o olhar. Lambeu as mandíbulas e sentou-se. Depois levantou-se de
novo, caminhou diante de mim, para a frente e para trás, com um andar sensual,
elegante. Acabou por se virar e afastar-se, certamente convicto de que os meus ossos
tinham tão pouca carne que não valia a pena comer-me. Vi-o afastar-se com grandes
passadas através do deserto, até a sua pele dourada se confundir com a areia.
Não me senti aliviada quando compreendi que o leão não me mataria, porque não
tinha tido medo. Estava pronta para morrer. Mas Deus, que sempre foi o meu melhor
amigo, tinha outros planos para mim, e uma razão para me manter viva. Perguntei-lhe: -
Qual? Toma a minha mão, conduz-me! - e levantei-me penosamente.
Tinha iniciado esta viagem de pesadelo para fugir ao meu pai. Naquela altura, eu
devia ter treze anos e vivia com a minha família, uma tribo nómada no deserto da
Somália. O meu pai anunciara o meu casamento próximo com um homem mais velho.
Sabendo que tinha de agir com rapidez, antes que o meu novo marido me viesse buscar,
dissera à minha mãe que queria fugir. O meu plano era encontrar a minha tia materna que
vivia em Mogadíscio, a capital da Somália. Claro que eu nunca tinha ido a Mogadíscio,
nem de resto a nenhuma outra cidade do género. E também nunca tinha conhecido a
minha tia. Mas com o otimismo de uma criança, sentia que de uma forma ou de outra,
como que por encanto, as coisas correriam de feição.
Enquanto o meu pai e o resto da família ainda dormiam, a minha mãe acordou-me
e disse-me: - Chegou a hora. Vai! - Eu olhei em volta para ver se havia alguma coisa que
pudesse agarrar para levar comigo, mas não havia nada, nem uma garrafa de água, nem
um jarro de leite, nem um cesto de comida. Por isso, descalça, apenas com um longo
lenço envolvendo-me o corpo, precipitei-me na noite escura do deserto.
Não sabia que direção tomar para Mogadíscio, por isso limitei-me a seguir em
frente. Lentamente a princípio, porque não via nada; avançava escorregando e
tropeçando nas raízes. Finalmente, decidi sentar-me enquanto esperava que o dia
nascesse, porque em África as serpentes abundam, e eu tinha pavor a esses animais.
Imaginava que cada raiz onde punha o pé era uma cobra venenosa. Observei o céu
iluminar-se progressivamente e, mesmo antes de o sol se levantar, ooops!, já tinha saltado
como uma gazela. Corri, corri, corri durante horas.
Por volta do meio-dia, estava perdida muito longe na areia vermelha, e muito
longe também nos meus pensamentos. Perguntei-me aonde diabo ia. Não sabia que
direção tomar. A paisagem estendia-se até ao infinito; apenas uma acácia ou um arbusto
espinhoso quebrava por vezes a uniformidade da areia. Esfomeada, sedenta e cansada,
abrandei o passo e avancei lentamente numa espécie de transe, pensando aonde me
levaria a minha nova vida, no que iria acontecer-me a seguir.
Enquanto me punha todas estas questões, pareceu-me ouvir alguém chamar:
W-A-R-I-S!... W-A-R-I-S!... - Era a voz do meu pai. Mas não vi ninguém. Pensei que era a
minha imaginação a fazer-me das suas. - W-A-R-I-S!... W-A-R-I-S!... - O grito ecoava por
toda a parte. O tom era suplicante, mas eu tinha muito medo. Se o meu pai me
apanhasse, levar-me-ia certamente de volta para casa e obrigar-me-ia a casar com o tal
homem. E provavelmente bater-me-ia ainda por cima. A voz era bastante real e estava
cada vez mais próxima. Desatei a correr, tão depressa quanto podia. Apesar do meu
avanço de várias horas, ele havia-me quase alcançado. Mais tarde, compreendi que ele
me encontrara seguindo as minhas pegadas na areia.
Pensei que ele era demasiado velho para me apanhar; eu era jovem e ágil. Para a
minha mente infantil, ele era um velho. Hoje, lembro-me, rindo, que ele devia ter cerca de
uns trinta anos. Toda a minha família estava em plena forma física, porque andávamos
sempre a correr por toda a parte; não tínhamos carro, nem qualquer tipo de transporte
público. Eu corria sempre muito depressa: para caçar animais, para ir buscar água, para
não me deixar surpreender pela escuridão e voltar a casa antes do cair da noite. Ao fim de
um bocado, tendo deixado de ouvir a voz do meu pai, abrandei o passo. Achei que, se
continuasse assim, ele cansar-se-ia e voltaria para casa. De repente voltei-me e vi-o
avançar na minha direção. Ele também me tinha visto. Aterrorizada, corri mais depressa. E
mais depressa ainda. Era um pouco como se estivéssemos a fazer surf em ondas de areia.
Eu lançava-me para o alto de uma duna enquanto ele descia deslizando pela que se
encontrava atrás de mim. Continuámos assim durante horas até que finalmente
compreendi que ele já desaparecera há algum tempo. Já não ouvia gritar o meu nome.
Com o coração a bater desordenadamente, parei e olhei em volta, escondida atrás
de um arbusto. Nada. Escutei com muita atenção. Nem um som. Atravessei um pequeno
leito rochoso e parei para descansar. O meu erro da noite anterior servira-me de lição.
Quando retomei a marcha, andei por entre as rochas onde o chão era duro e depois
mudei de direção para que o meu pai não pudesse seguir as minhas pegadas.
Ele tinha provavelmente feito meia volta tentando voltar para casa, uma vez que o
sol estava a pôr-se. No entanto, não conseguiria chegar antes do anoitecer. Teria de correr
na escuridão, tentando ouvir os sons noturnos produzidos pela nossa família até
encontrar caminho graças às vozes das crianças que gritavam e riam e aos ruídos dos
rebanhos que baliam e mugiam. No deserto, o vento transporta os sons para muito longe
e servem-nos de ponto de referência quando nos perdemos à noite.
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Depois de ter andado sobre as rochas, mudei de direção. Não importava que direção
escolhesse uma vez que, fosse como fosse, eu ignorava o caminho a tomar para chegar a
Mogadíscio. Continuei a correr até o sol se pôr, até a luz desaparecer e a noite ser tão
escura que não conseguia ver nada. Nessa altura, tinha tanta fome que já não conseguia
pensar senão em comer. Os meus pés sangravam. Sentei-me debaixo de uma árvore para
descansar e adormeci.
De manhã, o calor do sol no meu rosto acordou-me. Abri os olhos e vi a folhagem de um
belo eucalipto que se estendia para o céu. Pouco a pouco, lembrei-me da situação em que
me encontrava. Meu Deus, estou completamente só, não sei o que hei-de fazer.
Levantei-me e retomei a minha corrida. Consegui continuar assim durante vários dias, não
sei ao certo quantos. Sei apenas que o tempo já não existia para mim. Restava-me apenas
a fome, a sede, o medo e a dor. Quando estava demasiado escuro para ver, parava para
descansar. Ao meio-dia, quando o sol estava mais quente, sentava-me debaixo de uma
árvore para fazer uma curta sesta.
Foi durante uma dessas sestas que o leão me acordou. Nessa altura, já não queria saber
da minha liberdade; a única coisa que queria era voltar para junto da minha mãe. Mais do
que comida ou bebida, sentia falta dela. Apesar de ser normal para nós passarmos um ou
dois dias sem comer nem beber, eu sabia que não poderia sobreviver durante muito mais
tempo assim. Sentia-me fraca e mal conseguia mexer-me; os meus pés estavam tão
gretados e tão doridos que cada passo era um verdadeiro suplício. Quando o leão se
sentou diante de mim a lamber as mandíbulas, eu já tinha desistido. Aceitei aquela morte
rápida como uma forma de pôr termo ao meu sofrimento.
Mas ao ver os meus ossos salientes sob a pele, as minhas faces chupadas e os meus olhos
inchados, o leão afastou-se. Não sei se teve pena de um ser tão miserável, se decidiu,
pragmaticamente, que eu nem sequer daria um aperitivo de jeito, ou se Deus intercedeu
em meu favor. Pensei que, se Deus me tinha salvo a vida, não seria tão impiedoso que me
deixasse morrer em seguida de uma forma mais cruel ainda, de fome, por exemplo. Tinha
certamente outros planos para mim e implorei-lhe ajuda: - Toma a minha mão, guia-me.
- Agarrei-me ao tronco e consegui levantar-me. Retomei a minha caminhada e, alguns
minutos mais tarde, deparei com um rebanho de camelos. Havia-os por toda a parte.
Escolhi o animal que parecia ter mais leite e precipitei-me para ele. Comecei a mamar
como um bebé. O pastor do rebanho deu pela minha presença e gritou: - Sai daí, sua
cabrinha!
Ouvi o estalido de um longo chicote, mas tinha tanta fome que continuei a mamar
engolindo todo o leite que podia. O pastor precipitou-se para mim aos gritos pois sabia
que se não me amedrontasse, quando chegasse ao pé de mim já não teria mais leite. Mas
eu tinha bebido o suficiente, por isso comecei a correr. Ele perseguiu-me e atingiu-me por
duas vezes com o chicote antes de eu conseguir afastar-me. Eu era mais rápida do que ele,
e ele deteve-se amaldiçoando-me sob o sol do meio-dia.
Agora que já tinha enchido o estômago, sentia-me cheia de energia. Continuei a correr, e
corri mais ainda, até chegar a uma aldeia. Nunca tinha visto um lugar semelhante, com
edifícios e ruas de terra batida. Eu andava em plena rua, convencida de que era isso que
devia fazer, e olhava em todas as direções, boquiaberta diante daquele estranho cenário.
Uma mulher passou ao meu lado, olhou-me da cabeça aos pés e disse:
- És completamente idiota! Onde julgas que estás? - Depois dirigiu-se a outros aldeãos que
desciam a rua: - Meu Deus! Olhem-me para aquilo.
Ela apontava para os meus pés gretados e cobertos de sangue seco.
- Deve ser uma dessas pobres campónias.
Acertara em cheio. Depois gritou-me:
- Menina, se queres continuar a viver, sai do meio da rua! Sai daí! Fez-me sinal para ir para
o passeio, e depois desatou a rir.
Todos tinham ouvido e eu senti-me extremamente embaraçada. Baixei a cabeça e saí da
aldeia continuando a andar pelo meio da estrada, porque não tinha compreendido o que
mulher quisera dizer. Pouco depois apareceu um camião. BEEP! BEEP! Tive de saltar para
berma a fim de o evitar. Voltei-me, de frente para o trânsito e, ao ver os carros e camiões
que avançavam na minha direção, estendi a mão esperando que alguém parasse e me
ajudasse. Não posso dizer que estava a pedir boleia; nem sequer sabia o que essa palavra
significava. Limitei-me a permanecer no meio da estrada com a mão levantada. Um carro
passou a derrapar e quase me arrancava o braço. Pulei para a berma e continuei a
avançar, estendendo a mão com mais cuidado desta vez. Olhava para os condutores dos
carros que passavam, rezando silenciosamente para que um deles parasse e me ajudasse.
Finalmente um camião parou. Não estou orgulhosa do que se passou em seguida, do que
me aconteceu, e que posso eu fazer senão dizer a verdade? Ainda hoje, quando penso
naquele camião, lamento não ter seguido o meu instinto e continuado o meu caminho.
O camião transportava um carregamento de pedras de construção, todas lascadas e de
tamanho de bolas de softball. Havia dois homens na cabina; o motorista abriu a porta
disse-me em somali:
- Sobe, querida.
Eu sentia-me impotente e morta de medo. Eu vou para Mogadíscio - expliquei.
Levo-te aonde quiseres - disse o homem sorrindo.
Os seus dentes eram avermelhados. Eu sabia que aquela cor castanho-avermelhada não
era causada pelo tabaco, mas pelo khat; tinha visto o meu pai mastigá-lo uma vez. Esta
planta narcótica que os homens mastigam é semelhante à cocaína. As mulheres não têm o
direito de lhe tocar, e ainda bem, porque torna as pessoas loucas, sobrexcitadas,
agressivas, e destruiu inúmeras vidas.
Eu sabia que estava em maus lençóis, mas não sabia que outra coisa podia fazer, por isso
aceitei. O motorista disse-me para saltar para a traseira. A ideia de ficar separada
daqueles dois homens reconfortou-me. Por isso, instalei-me no reboque, a um canto,
sobre o monte de pedras. Nesse momento já estava escuro e fresco no deserto. Quando o
camião retomou a sua marcha, senti frio e estendi-me para me proteger do vento.
Em seguida, lembro-me apenas de que o homem que acompanhava, o motorista se
encontrava subitamente ao meu lado, ajoelhado sobre as pedras. Tinha cara de quarenta
anos e era feio, muito feio. Tão feio que estava a ficar sem cabelo; era praticamente
careca. Compensava este facto deixando crescer um bigodinho. Os seus dentes eram
ratados e faltavam alguns; os que lhe restavam estavam manchados de um
castanho-avermelhado horrível mas apesar disso ele sorria-me, exibindo-os
orgulhosamente. Por mais que eu viva, jamais esquecerei a expressão lúbrica do seu rosto.
Ainda por cima era gordo, como descobri quando baixou as calças. O seu pénis em ereção
estendeu-se na minha direção enquanto ele me segurava nas pernas tentando afastá-las.
- Oh não! Por favor, não! - Supliquei-lhe.
Enrolei as minhas pernas magrizelas como uma corda entrançada e mantive-as bem
apertadas. Lutámos durante um momento e depois, como aquilo não levava a lado
nenhum, ele levantou a mão e esbofeteou-me com força na cara. Deixei escapar um grito
agudo que se perdeu no ar enquanto o camião rolava a toda a velocidade.
- ABRE AS PUTAS DAS PERNAS!
Lutámos, ele com todo o peso do seu corpo em cima de mim enquanto as pedras lascadas
me laceravam as costas. Levantou a mão de novo e bateu-me ainda com mais força. Nesse
momento compreendi que tinha de adotar uma nova tática; ele era demasiado forte para
mim. Era evidente que aquele homem sabia o que estava a fazer. Ao contrário de mim,
experiência não lhe faltava e provavelmente violara inúmeras mulheres; eu estava
simplesmente prestes a tornar-me a sua próxima vítima. Quis desesperadamente matá-lo,
mas não tinha nenhuma arma.
Então fingi que o desejava. Disse-lhe suavemente:
- Está bem, está bem. Mas primeiro tenho de fazer chichi.
Percebi que a sua excitação aumentava - eh, aquela miúda desejava-o! - E deixou-me
levantar. Fui para o canto oposto e, agachando-me, fingi fazer chichi. Isto deu-me alguns
minutos para refletir. Quando terminei a minha pequena farsa, já tinha um plano. Agarrei
na pedra maior que pude encontrar, voltei para junto dele e deitei-me a seu lado.
Ele saltou para cima de mim e eu apertei a pedra na mão.
Levantei-a e, com todas as minhas forças, desferi-lhe um golpe em plena fronte. Ele ficou
atordoado. Atingi-o outra vez, e vi-o tombar. Como um guerreiro, eu tinha subitamente
uma força tremenda, uma força que ignorava possuir. Quando alguém tenta atacar-nos,
matar-nos, tornamo-nos bastante fortes. Não sabemos mesmo até que ponto podemos
sê-lo antes desse momento. Quando já estava estendido, atingi-o de novo e o sangue
jorrou-lhe da orelha.
O seu amigo, o motorista, viu o que se passava da cabina. Começou a gritar:
- Que merda é essa aí atrás?
Procurou um lugar para estacionar entre os arbustos. Eu sabia que se ele me apanhasse
seria o meu fim. Quando o camião abrandou, saltei para a parte de trás do reboque,
equilibrei-me nas pedras e saltei para o chão como um gato. Depois desatei a correr para
salvar a vida.
O motorista do camião era um velho. Desceu da cabina e começou a gritar:
- Mataste o meu amigo! Volta aqui! Mataste-o!
Perseguiu-me por entre os arbustos espinhosos durante um momento, e depois desistiu;
pelo menos foi o que me pareceu.
Mas na realidade ele voltou para o camião, subiu para a cabina, acendeu os faróis e
lançou-se em minha perseguição através do deserto. Os faróis iluminavam o chão à minha
volta e eu ouvia o rugido do motor. Corri tão depressa quanto pude, mas claro que o
camião ia ganhando terreno. Então comecei a correr em ziguezague no escuro. Era-lhe
impossível seguir-me, e acabou por desistir retomando a estrada.
Continuei a correr através do deserto como um animal perseguido, sem fazer a menor
ideia do sítio onde me encontrava. O sol levantou-se e continuei a correr. Finalmente fui
dar a outra estrada. Apesar de estar morta de medo com a ideia do que poderia
acontecer, decidi pedir de novo boleia para me afastar o mais rapidamente possível do
motorista do camião e do seu amigo. Não sabia o que tinha acontecido ao meu agressor, e
nunca o soube, mas acima de tudo não voltar a encontrar aqueles dois homens.
De pé na beira da estrada, à luz do sol matinal, devia estar numa linda figura. O lenço que
me envolvia era apenas um trapo sujo; tinha corrido pela areia durante vários dias e tinha
a pele e os cabelos cobertos de poeira; os meus braços e as minhas pernas pareciam
ramos frágeis que um sopro de vento poderia quebrar; tinha os pés cobertos de feridas
que poderiam rivalizar com as de um leproso. Estendi a mão, e fiz sinal ao Mercedes para
parar.
Um homem elegantemente vestido estacionou na berma da estrada. Deslizei para o
assento de couro a seu lado, e fiquei deslumbrada diante de tanto luxo.
- Para onde vais? - Perguntou-me o condutor.
- Naquela direção - disse eu apontando em frente na direção em que o carro seguia.
O homem abriu a boca, mostrando uns belos dentes brancos, e desatou a rir.
CRESCENDO COM OS ANIMAIS
Antes de eu ter fugido de casa, a minha vida girava em volta da natureza, da minha família
e dos animais que nos permitiam viver e aos quais estávamos ligados por laços muito
fortes. Desde que me lembro, sempre partilhei esta característica comum a todas as
crianças: o amor pelos animais. Na verdade, a minha memória mais longínqua diz respeito
ao meu bode Billy. Billy era o meu tesouro pessoal, representava tudo para mim, e se o
amei tanto foi talvez por ele ser, tal como eu, um bebé. Eu levava-lhe tudo o que
encontrava de bom para comer, e ele era o mais feliz e o mais rechonchudo do rebanho. A
minha mãe estava sempre a perguntar: - Por que é que aquele bode é tão gordo enquanto
os outros são tão escanzelados? - Eu cuidava bem dele, tratava-lhe do pêlo, acariciava-o e
falava com ele durante horas.
A minha relação com Billy simbolizava o nosso modo de vida na Somália. O nosso destino
estava intimamente ligado ao dos rebanhos que guardávamos. Depender dos animais
obrigava-nos a um grande respeito por eles, e esse sentimento estava presente em tudo o
que fazíamos. Todas as crianças da nossa família cuidavam dos animais, tarefa que
desempenhávamos desde que aprendíamos a andar. Crescíamos com os animais,
prosperando quando eles Prosperavam, sofrendo quando eles sofriam, morrendo quando
eles morriam. Criávamos vacas, ovelhas e cabras, mas se eu amava ternamente o meu
pequeno Billy, os camelos eram sem sombra de dúvida os animais mais importantes que
possuíamos.
O camelo é um animal lendário entre nós; a Somália orgulha-se de ter mais camelos do
que qualquer outro país do mundo; na Somália, há mais camelos do que habitantes.
Temos uma longa tradição oral e a maioria dos nossos poemas servem para transmitir, de
uma geração a outra, informações sobre o camelo, a fim de sublinhar a sua importância
17
capital para a nossa cultura. Lembro-me de a minha mãe cantar uma canção que dizia
mais
ou menos:
O
meu camelo fugiu para ir ter com um homem mau que o matará ou roubará. Por isso,
suplico-te: por
favor, traz de volta o meu camelo.
Desde muito pequena conheci a enorme importância destes animais que valem ouro na
nossa sociedade. É impossível viver no deserto sem eles.
Até a vida de um homem é mensurável em camelos: cem camelos por um homem morto,
é o preço a pagar pelo clã do assassino à família da vítima, senão o clã do homem morto
reclamará o castigo do assassino. O preço a pagar por uma esposa conta-se também em
camelos. Mas, no dia-a-dia, os camelos permitem-nos viver, pois nenhum outro animal se
adapta melhor à vida no deserto. Um camelo necessita apenas de beber uma vez por
semana, mas pode aguentar no máximo um mês sem água. Entretanto, o leite da camela
alimenta-nos e mata a nossa sede, uma enorme vantagem quando nos encontramos longe
da água. Mesmo nas temperaturas mais elevadas, os camelos conseguem sobreviver
armazenando água. Comem arbustos secos que encontramos nas nossas regiões áridas,
deixando a erva para o gado.
Também servem para nos deslocarmos pelo deserto, para transportarmos os nossos
parcos haveres e para pagarmos as nossas dívidas. Noutros países, podemos saltar para
dentro de um carro e partir, mas o nosso único transporte, para além de andar a pé, é o
camelo.
A personalidade do camelo é muito semelhante à de um cavalo; a longo prazo,
estabelece-se uma relação estreita entre o animal e o seu dono, e o camelo fará por este
último o que não faria por mais ninguém. Os homens «quebram» os jovens camelos - uma
prática perigosa -, treinam-nos para serem montados e ensinam-lhes a seguirem-se uns
aos outros. É muito importante ser-se firme com eles porque, quando sentem que o
condutor é fraco, fazem-no tombar ou dão-lhe coices.
Como a maioria dos somalis, nós levávamos uma existência de pastores nómadas. Apesar
de lutarmos constantemente pela sobrevivência, segundo os padrões do nosso país, o
valor do gado que possuíamos fazia de nós pessoas ricas. Seguindo a tradição, os rapazes
guardavam os animais maiores, bovinos e camelos, e as raparigas os outros.
Nunca permanecíamos no mesmo lugar mais do que três ou quatro semanas. Estas
deslocações constantes eram-nos impostas pela necessidade de tomar conta dos nossos
animais. Procurávamos água e comida para os manter vivos, o que, no clima seco da
Somália, não era nada fácil. A nossa casa era uma cabana de erva entrançada.
Utilizávamo-la
como uma tenda. Construíamos uma base com ramos, depois a minha mãe fazia
estruturas de erva entrançada que colocávamos sobre os ramos vergados para formar
uma cúpula com cerca de dois metros de diâmetro. Quando chegava a altura de partir,
desmontávamos a tenda e atávamos os ramos e as esteiras, com os nossos outros
pertences, ao dorso dos camelos; são uns animais inacreditavelmente fortes. Instalávamos
os bebés e as crianças mais pequenas no topo e o resto da família seguia a pé, conduzindo
os rebanhos. Quando encontrávamos um local com água e folhagem para pastagem,
montávamos de novo o acampamento.
A tenda oferecia abrigo para os bebés, sombra para o sol do meio-dia, e um lugar onde
guardar o leite fresco. À noite dormíamos ao relento, e as crianças apertavam-se umas
contra as outras sobre uma esteira. Quando o sol se punha, fazia frio; como não havia
cobertores suficientes para todas as crianças e não tínhamos muita roupa, usávamos o
calor dos nossos corpos para nos aquecermos. O meu pai dormia à parte; era o nosso
guarda, o protector da família.
Levantávamo-nos com o nascer do dia. A nossa primeira tarefa consistia em
dirigirmos-nos para a cerca onde os animais estavam guardados e tratar deles. Onde quer
que estivéssemos, cortávamos arbustos para construir as cercas nas quais os
enclausurávamos para os impedir de deambular à noite. Separávamos as crias das mães
para que não mamassem o leite todo. Eu estava encarregada de tratar das vacas, de
guardar uma parte da ordenha para fazer manteiga, mas deixava leite suficiente para as
crias. Após a ordenha, deixávamos as crias entrarem na cerca das mães para se
alimentarem.
Depois tomávamos o nosso pequeno-almoço: leite de camelo, bastante mais nutritivo do
que os outros porque contém vitamina C. A nossa região era demasiado seca para medrar
culturas, e não tínhamos legumes nem cereais. Por vezes seguíamos os javalis africanos
que conseguem farejar as raízes comestíveis e desenterrá-las com os cascos e o focinho
para obterem um belo repasto. Roubávamos-lhes uma parte do seu manjar para melhorar
o nosso regime.
O abate de animais por causa da carne era considerado um desperdício e apenas
recorríamos a isso em caso de urgência ou em ocasiões excepcionais como um casamento.
Os nossos animais eram demasiado valiosos para os matarmos ou comermos.
Criávamo-los pelo seu leite e para os trocarmos por outras mercadorias de que tínhamos
necessidade. Como base de alimentação quotidiana, tínhamos apenas leite de camelo de
manhã e ao fim do dia. Por vezes nem sequer chegava para todos, e dávamos em primeiro
lugar às crianças mais novas, depois às mais velhas, e assim sucessivamente. A minha mãe
nunca comia uma migalha do que fosse antes de todos se terem servido. Na verdade, não
me lembro de a ver comer, apesar de saber que certamente também comia. Se não
tínhamos nada para jantar, não fazíamos disso um drama, não havia razão para entrar em
pânico, nem necessidade de
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chorarmos ou de nos queixarmos. As crianças mais novas podiam fazê-lo, mas as mais
velhas conheciam as regras: íamos simplesmente deitar-nos. Fazíamos tudo para
permanecer alegres, manter a calma e a serenidade; no dia seguinte, se Deus quisesse,
encontraríamos uma solução. A nossa filosofia resumia-se à seguinte fórmula: Inch’Allah,
«Se Deus quiser». Sabíamos que as nossas vidas dependiam das forças da natureza, e só
Deus controlava essas forças.
Quando o meu pai trazia um saco de arroz, era um verdadeiro acontecimento, o que os
habitantes de outras partes do mundo consideram uma festa. Nessas ocasiões,
utilizávamos a manteiga que fazíamos batendo leite de vaca num cesto que a minha mãe
cerzira. Por vezes, trocávamos uma cabra por milho que crescia nas regiões mais húmidas
da Somália. Reduzíamo-lo a farinha para o transformar em papa de aveia, ou fazíamo-lo
estalar num recipiente sobre o fogo. Quando outras famílias se encontravam por perto,
partilhávamos sempre o que tínhamos. Se algum de nós tinha tâmaras, raízes ou matara
um animal, preparávamos tudo e cada um comia a sua parte. Aproveitávamos todos esses
momentos afortunados porque, embora estivéssemos isolados a maior parte do tempo,
deslocando-nos apenas na companhia de uma ou duas outras famílias, fazíamos parte de
uma comunidade bastante maior. De um ponto de vista prático, como não tínhamos
frigorífico, a carne e outros alimentos frescos deviam ser consumidos o mais rapidamente
possível.
Todas as manhãs, após o pequeno-almoço, tínhamos de obrigar os animais a sair da cerca.
Desde os seis anos de idade fiquei encarregada de cuidar de rebanhos com sessenta ou
setenta ovelhas e cabras. Levava um cajado comprido e partia sozinha com os meus
animais, cantando uma pequena canção para os guiar. Se algum deles se afastava do
rebanho, utilizava o cajado para o reconduzir ao caminho certo. Eles estavam impacientes
porque sabiam que sair da cerca significava que chegara o momento de comer. Era muito
importante partir cedo, a fim de encontrar o melhor lugar com água fresca e erva
abundante. Todos os dias tentava ganhar avanço sobre os outros pastores, para evitar que
os seus animais bebessem a pouca água disponível. Além disso, temia que o terreno seco
absorvesse tudo à medida que o sol se tornava mais quente. Certificava-me de que os
animais bebiam a maior quantidade de água possível, porque talvez só a encontrássemos
dali a uma semana, ou duas, ou mesmo três. Na época da seca, o mais triste era ver os
animais morrerem. Cada dia nos deslocávamos mais longe à procura de água. O rebanho
tentava seguir-nos, mas acabava por desistir. Quando os animais se iam abaixo,
experimentávamos um terrível sentimento de impotência, porque sabíamos que era o fim
e não havia nada que pudéssemos fazer.
Na Somália, ninguém possui uma pastagem; por isso, eu tinha de ser esperta e descobrir
os locais onde cresciam plantas em abundância para as minhas ovelhas e cabras. Por
instinto de sobrevivência, aprendera a reconhecer os sinais indicadores de chuva,
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perscrutava o céu à procura de nuvens. Os meus outros sentidos também
desempenhavam um
papel importante porque determinado cheiro ou uma certa impressão no ar podiam fazer
prever chuva.
Enquanto os animais pastavam, eu vigiava os predadores; há-os por toda a parte em
África. As hienas aproximavam-se furtivamente e saltavam sobre um cordeiro ou um
cabrito tresmalhado do rebanho. Eu também tinha medo dos leões e dos cães selvagens,
que se deslocavam em grupo, mas eu estava sozinha.
Observando o céu, calculava quando tinha de partir para estar de volta ao acampamento
antes do cair da noite.. Mas muitas vezes enganava-me, e tive bastantes aborrecimentos.
Enquanto tropeçava no escuro, as hienas atacavam o rebanho porque sabiam que eu não
as podia ver. Quando conseguia apanhar uma, havia outra que conseguia deslizar por
detrás de mim; e se eu a perseguia, uma terceira precipitava-se enquanto eu estava de
costas voltadas. As hienas são os piores predadores porque são obstinadas. Nunca
desistem antes de terem obtido algo. Todas as noites, ao chegar ao acampamento e antes
de encerrar os animais na cerca, contava-os várias vezes para ter a certeza de que não
faltava nenhum. Uma noite contei as minhas cabras e compreendi que faltava uma. Voltei
a contar, e contei ainda uma vez mais. Subitamente, compreendi que não tinha visto Billy
e precipitei-me por entre as cabras para o procurar. Em seguida corri para a minha mãe, a
gritar:
- Mãe, Billy não está aqui! Que hei-de fazer?
Mas claro que já era demasiado tarde, e ela limitou-se a acariciar-me a cabeça enquanto
eu chorava, compreendendo que as hienas tinham comido o meu animal favorito, tão
rechonchudo.
Acontecesse o que acontecesse, tínhamos de continuar a tomar conta do gado:
continuava a ser a nossa prioridade, apesar da seca, da doença ou da guerra. Na Somália,
os constantes problemas políticos causavam vários problemas nas cidades, mas nós
estávamos tão isolados que a maior parte do tempo ninguém nos vinha perturbar. Um
dia, quando eu tinha cerca de nove anos, um grande exército instalou o seu acampamento
próximo do nosso. Tínhamos ouvido contar histórias sobre soldados que violavam as
raparigas sós, e eu conhecia uma a quem isso acontecera. Que o exército fosse composto
por somalis ou por marcianos, Pouco nos importava, aqueles soldados não faziam parte
do nosso povo, não eram nómadas, e evitávamo-los a todo o custo.
Uma manhã o meu pai ordenou-me que fosse dar de beber aos camelos e afastei-me com
o meu rebanho. Durante a noite, o exército montara o acampamento à beira da estrada;
as tendas e os camiões estendiam-se a perder de vista. Escondida atrás de uma árvore,
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observei os soldados que abundavam, vestidos com os seus uniformes. Pensava no que
tinha acontecido à outra rapariga e estava aterrorizada. Não havia ninguém nas
redondezas para me defender, e aqueles homens poderiam fazer-me o que lhes
apetecesse. Detestei-os à primeira vista. Detestei os seus uniformes, os seus camiões, as
suas armas. Nem sequer sabia o que eles tinham vindo fazer; no que me dizia respeito,
que eles estivessem ali para salvar a Somália não mudava rigorosamente nada. Contudo,
os meus camelos precisavam de água. O único caminho que me teria permitido evitar o
acampamento militar era demasiado comprido e fazia demasiados desvios para que eu o
percorresse com o meu rebanho. Por isso, decidi desatar os camelos e deixá-los atravessar
o acampamento sozinhos: passaram pelo meio dos soldados e dirigiram-se directamente
para a água, como eu esperava. Contornei o acampamento a toda a velocidade,
escondendo-me atrás dos arbustos e das árvores, e fui ter com os meus animais ao outro
lado do oásis. Depois, quando o céu escureceu, repetimos a nossa pequena manobra e
voltámos ao acampamento sãos e salvos.
Todas as noites, depois de ter voltado ao pôr-do-sol e de ter encerrado os animais na
cerca, havia que tratar deles de novo. Pendurávamos chocalhos de madeira ao pescoço
deles.
O som desses chocalhos é verdadeira música para os nómadas que, ao crepúsculo, ouvem
aqueles sons côncavos e surdos quando a ordenha começa. Esta música serve de ponto de
referência aos viajantes que regressam a casa ao anoitecer. Durante os trabalhos a esta
hora, a grande curva do céu escurece, e surge então uma estrela brilhante, sinal de que
chegou a hora de fechar as ovelhas na sua cerca. Noutros países, este planeta é conhecido
como Vénus, o planeta do amor, mas no meu país chamamos-lhe maqa1 hidhid, o que
significa que chegou a hora de «esconder os cordeiros».
Era normalmente por esta altura que os meus aborrecimentos começavam porque, após
ter trabalhado desde o nascer-do-sol, já não conseguia manter os olhos abertos.
Caminhando ao crepúsculo, acontecia-me adormecer no meio das cabras que me
pisavam; ou então, quando me agachava para as mungir, a minha cabeça começava a
tombar. Se o meu pai me surpreendia nessas alturas, meu Deus! Eu gosto do meu pai, mas
ele podia mostrar-se verdadeiramente duro. Quando me apanhava assim a dormitar,
batia-me para me obrigar a levar o meu trabalho a sério e a aplicar-me ainda mais.
Quando terminávamos as nossas tarefas, jantávamos leite de camelo, depois
apanhávamos madeira para fazer uma fogueira e sentávamo-nos a sentir o seu calor,
conversando e rindo até ao momento em que nos íamos deitar.
Essas noites são, entre as minhas memórias da Somália, as minhas preferidas: aqueles
momentos em que me sentava com a minha mãe, o meu pai, os meus irmãos e irmãs em
volta do fogo, quando toda a gente estava saciada e ria. Esforçávamo-nos sempre por ser
optimistas. Ninguém se queixava, ninguém choramingava ou dizia: «E se conversássemos
sobre a morte?».
A vida era muito dura; precisávamos de todas as nossas forças para sobreviver e
mostrar-nos negativos teria acabado com a nossa energia vital.
Estávamos longe de qualquer aldeia, e no entanto eu nunca estava só porque brincava
com os meus irmãos e irmãs. Tinha um irmão e duas irmãs mais velhas, e vários irmãos e
irmãs mais novos. Passávamos o tempo a correr uns atrás dos outros, a trepar às árvores
como macacos, a jogar à macaca traçando linhas na areia, a apanhar pedras e a cavar
buracos para um jogo africano chamado mancala. Tínhamos mesmo a nossa própria
versão do jogo das cinco pedrinhas: atirávamos ao ar um pau enquanto tentávamos
apanhar pauzinhos em vez de pedras. Este jogo era o meu favorito porque eu era muito
boa nele, e esforçava-me sempre por convencer o meu irmão mais novo, Ali, a jogar
comigo.
No entanto, o nosso maior prazer provinha do facto de sermos crianças que viviam em
plena natureza, livres de fazer parte dela e de desfrutar da sua vista, dos seus ruídos e dos
seus odores. Observávamos grupos de leões estendidos ao comprido, aquecendo-se ao
sol, rolando de patas para o ar ou rugindo. Os leõezinhos corriam uns atrás dos outros e
brincavam exactamente como nós. Corríamos com as girafas, as zebras e as raposas. O
hírax, animal do tamanho de um coelho que é um pequeno primo do elefante, era o nosso
preferido. Esperávamo-los pacientemente no exterior das suas tocas à espera de ver
aparecer as suas cabecinhas e perseguíamo-los pela areia.
Uma vez descobri um ovo de avestruz. Decidi levá-lo para casa porque queria ver o bebé
avestruz nascer e depois guardá-lo como animal de estimação. O ovo tinha mais ou menos
o tamanho de uma bola de bowling; retirei-o do seu buraco e dirigia-me para o
acampamento quando a mãe apareceu. Lançou-se em minha perseguição e, acreditem,
era bastante rápida: as avestruzes podem atingir a velocidade de sessenta e cinco
quilómetros por hora. Alcançou-me e começou a picar-me a cabeça com o bico, ka-ka-ka.
Pensei que ia quebrar-me o crânio como um ovo. Pousei o seu futuro bebé no chão e
desatei a correr para salvar a vida.
Raramente nos encontrávamos na proximidade de áreas florestais mas, quando isso
acontecia, gostávamos muito de observar os elefantes. Ouvíamos os seus possantes
rugidos à distância e trepávamos às árvores para os ver. Como os leões, os macacos e os
humanos, os elefantes vivem em comunidade. Se há uma cria entre eles, todos os adultos
- o primo, o tio, a tia, a irmã, a mãe e os avós - tomam conta dela para que ninguém lhe
faça mal. Nós, as crianças, penduradas numa árvore, ríamos durante horas observando os
elefantes.
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Mas pouco a pouco, todos estes momentos felizes passados com a minha família
foram-se transformando em memórias. Uma das minhas irmãs mais velhas fugiu; o meu
irmão partiu para a escola, na cidade. Eu aprendi coisas tristes sobre a minha família e
sobre a vida. Deixou de chover, e tomar conta dos nossos animais tornava-se cada dia
mais difícil. A vida era cada vez mais dura, e eu também endurecia com ela.
Uma parte dessa dureza vinha-me de ver os meus irmãos e irmãs morrerem. Éramos doze
crianças na família, agora não passávamos de seis. A minha mãe teve gémeos que
morreram à nascença. Depois teve outra bela rapariga, que aos seis meses era um bebé
forte e saudável. Mas um dia a minha mãe chamou-me; corri para ela e vi-a ajoelhada
junto do bebé. Eu era apenas uma rapariguinha, mas compreendi que as coisas estavam
verdadeiramente complicadas porque o bebé não parecia nada bem. A minha mãe
ordenou-me:
- Waris, vai depressa buscar um pouco de leite de camelo! Mas eu fui incapaz de me
mexer.
Despacha-te! Eu continuava a olhar fixamente para a minha irmã, em transe, aterrorizada.
- Que se passa contigo? - gritou a minha mãe.
Finalmente consegui partir a correr, mas sabia o que me esperava no meu regresso.
Quando voltei com o leite, o bebé estava completamente imóvel e compreendi que estava
morto. Enquanto olhava para a minha irmã, a minha mãe esbofeteou-me com toda a
força. Durante algum tempo, acusou-me da morte da sua filha e acreditava que eu possuía
poderes de feiticeira. Acreditava que eu causara a morte da criança ao pousar o meu olhar
sobre ela enquanto estava em transe.
Eu não possuo tais poderes, mas um dos meus irmãos mais novos tinha dons
sobrenaturais. Todos estavam de acordo em reconhecer que ele não era uma criança
normal. Chamávamos-lhe Velho Homem porque, quando tinha apenas seis anos, os seus
cabelos já se tinham tornado completamente grisalhos. Era extremamente inteligente, e
todos os homens vinham pedir-lhe conselho. Cada um à vez, sentavam o rapaz dos
cabelos grisalhos nos joelhos e perguntavam-lhe:
- Que tens a dizer sobre a chuva para este ano?
Era uma criança, e no entanto nunca se comportou como tal. Pensava, falava e
comportava-se como um velho sábio. Todos o respeitavam, mas também o temiam
porque era evidente que ele não era um dos nossos. Ainda não passava de um rapaz novo
quando Velho Homem morreu como se tivesse queimado a sua vida inteira em apenas
alguns breves anos. Ninguém soube a causa da sua morte, mas todos acharam que fazia
sentido porque «ele não pertencia de forma alguma a este mundo».
Como em qualquer família numerosa, cada um de nós desempenhava um papel. Eu era
rebelde, reputação que adquirira comportando-me de uma forma que julgava
perfeitamente lógica e justificada, mas que parecia chocante aos olhos dos meus pais,
sobretudo do meu pai. Um dia, estava eu sentada com o meu jovem irmão Ali debaixo de
uma árvore a comer arroz misturado com leite de camelo, quando ele engole tudo
rapidamente, com sofreguidão. Como era um acontecimento raro termos arroz, eu comia
bastante lentamente. Nunca tínhamos a certeza de termos comida suficiente, e sempre
saboreei cada alimento com prazer. Restava apenas um pouco de arroz e leite na minha
taça quando, subitamente, Ali mergulhou a colher e comeu tudo até ao último grão. Sem
reflectir, agarrei numa faca que se encontrava pousada ao meu lado e espetei a lâmina na
coxa dele. Ele gritou, mas arrancou a faca e espetou-a na minha coxa, exactamente no
mesmo sítio. Ficámos os dois feridos, mas como tinha sido eu a primeira a agir, as culpas
recaíram todas sobre mim. Hoje, ainda temos duas cicatrizes idênticas, memória daquela
refeição.
Uma das primeiras manifestações desse comportamento rebelde foi provocada pela
minha vontade de possuir um par de sapatos. Toda a vida fui obcecada por sapatos. Hoje
sou modelo e, no entanto, possuo pouca roupa: um par de jeans, duas T-shirts, mas tenho
um armário cheio de sapatos de salto alto, sandálias e botas, apesar de curiosamente não
ter nada para acompanhar tudo isso. Quando era pequena, desejava desesperadamente
um par de sapatos. Nem todas as crianças da minha família tinham roupas, e não havia
dinheiro suficiente para comprarmos sapatos. No entanto, eu sonhava possuir belas
sandálias de couro como as da minha mãe. Desejava ardentemente calçar um bom par de
sapatos confortáveis para ir guardar os animais sem ter de me preocupar com as pedras e
os espinhos, as cobras e os escorpiões. Os meus pés estavam sempre feridos e marcados,
e ainda hoje tenho cicatrizes negras. Uma vez, um espinho atravessou-me o pé; outras
vezes quebravam-se na minha carne. Não havia médicos no deserto, nem medicamentos
para tratar as feridas. No entanto, devíamos continuar a andar porque tínhamos de cuidar
dos animais. Ninguém dizia: «Não posso mais». Limitávamo-nos a fazê-lo; todas as
manhãs partíamos e avançávamos a coxear, da melhor forma que podíamos.
Um dos irmãos do meu pai era um homem muito rico. O tio Ahmed vivia na cidade, em
Galcaio, mas nós tratávamos dos seus camelos e do resto dos seus rebanhos. Eu era
preferida para tomar conta das suas cabras porque fazia o meu trabalho de uma forma
muito conscienciosa, certificando-me de que os animais estavam bem alimentados e
bebidos, defendendo-os o melhor possível dos predadores. Um dia, teria eu cerca de sete
anos, o tio Ahmed visitou-nos e eu disse-lhe: - Gostaria que me comprasses um par de
sapatos.
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Ele olhou para mim e desatou a rir: - Está bem, está bem. Vou comprar-te um par de
sapatos.
Eu sabia que ele ficara surpreendido porque era pouco habitual uma rapariga pedir
alguma coisa, sobretudo algo tão extravagante como um par de sapatos.
Quando o tio Ahmed voltou a visitar-nos, eu estava bastante excitada porque chegara o
dia em que ia finalmente ter o meu primeiro par de sapatos. Na primeira ocasião,
perguntei-lhe, impaciente: - Então, trouxeste-os?
- Sim, aqui estão.
Estendeu-me um embrulho. Tirei os sapatos e observei-os: eram umas sandálias de
borracha, umas chinelas! Não as belas sandálias de couro iguais às da minha mãe, mas
umas chinelas amarelas, de má qualidade. Não quis acreditar.
- São estes os meus sapatos?! - gritei.
E atirei-lhos à cara. Quando atingiram o tio, o meu pai tentou parecer aborrecido, mas não
conseguiu resistir e desatou a rir.
O meu tio disse-lhe: - Não acredito! É assim que educas esta criança?
Atirei-me a ele e comecei a bater-lhe de tão desiludida que estava. Depois gritei: -
Trabalhei tanto e a recompensa é isto? Um par de sandálias de borracha? Bah! Prefiro
andar descalça; andarei descalça até sangrar em vez de usar esta porcaria!
O tio Ahmed olhou para mim, depois levantou os olhos para o céu e gemeu: - Oh, Alá. -
Baixou-se com um suspiro, apanhou as suas chinelas e levou-as de volta.
No entanto, eu não queria desistir tão facilmente. A partir desse dia, encarreguei cada
parente, amigo ou estranho que viajasse para Galcaio, de uma mensagem para o meu tio:
«Waris quer um par de sapatos!». Mas tive de esperar vários anos antes de o meu sonho
se realizar. Entretanto, continuei a criar as cabras do tio Ahmed e a ajudar a sua família a
tomar conta dos rebanhos, percorrendo milhares de quilómetros descalça.
Muitos anos antes deste episódio dos sapatos com o tio Ahmed, quando eu não passava
de uma rapariguinha com cerca de quatro anos, recebemos a visita de Guban, um amigo
do meu pai que nos visitava com alguma frequência. Ao anoitecer, costumava conversar
com os meus pais quando, olhando para o céu e vendo surgir a brilhante maqa1 hihid, o
meu pai disse que chegara a hora de recolher as ovelhas.
Guban respondeu: - Oh, deixa-me fazer isso por ti. Waris poderá ajudar-me.
Senti-me uma pessoa importante: um amigo do meu pai escolhera-me em vez dos rapazes
para ajudá-lo a guardar os animais. Deu-me a mão, afastámo-nos da tenda e começámos a
juntar o rebanho. Normalmente, eu teria de correr em todas as direcções como um animal
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selvagem, mas começava a escurecer e, como estava um pouco receosa, permaneci junto
de Guban. De repente, ele tirou o blusão, estendeu-o na areia e sentou-se em cima dele. E
olhei para ele, confusa, e protestei: - Por que te estás a sentar? Vai escurecer e temos de
apanhar os animais.
- Temos tempo. Faremos isso num minuto.
Estendeu-se sobre um dos lados do seu blusão e bateu com a mão no lugar vazio junto
dele. - Vem sentar-te.
Aproximei-me com relutância. Sempre gostei de histórias, e pensei que talvez fosse uma
boa ocasião para ouvir uma. - Vais contar-me uma história?
Guban bateu de novo no casaco: - Sim, se vieres sentar-te junto a mim.
Assim que me sentei junto dele, ele tentou embrulhar-me no blusão. Eu insisti
obstinadamente, erguendo-me: - Eu não quero deitar-me. Quero que me contes uma
história.
- Vem, vem. - A sua mão puxava firmemente o meu ombro. - Deita-te e observa as
estrelas. Vou contar-te uma história.
Estendi-me, com a cabeça sobre o blusão e os calcanhares na areia fria e observei a Via
Láctea. À medida que o céu passava de índigo a preto, as ovelhas corriam em círculo nossa
volta, balindo no escuro, e eu esperava ansiosamente que a história começasse. De
repente, o rosto de Guban interpôs-se entre mim e a Via Láctea. Ajoelhou-se entre as
minhas pernas e levantou secamente o pequeno pedaço de tecido que eu tinha enrolado
em volta da cintura. Depois senti algo duro e húmido pressionar contra o meu sexo. A
princípio fiquei imóvel, não compreendendo o que se passava, mas sabia que era algo de
muito mau. A pressão aumentou até se tornar numa dor aguda.
- Quero a minha mãe!
Subitamente fui inundada por um líquido quente, e um cheiro acre e nauseabundo
espalhou-se no ar da noite. Horrorizada, gritei: - Fizeste chichi em cima de mim!
Levantei-me de um salto e esfreguei o meu lenço nas pernas limpando o líquido
nauseabundo. Ele segurou-me no braço e murmurou-me num tom apaziguador: - Calma
calma. Não há problema. Tentava apenas contar-te uma história.
Libertei-me bruscamente e corri para a tenda, com Guban. atrás de mim, esforçando-se
por alcançar-me. Quando vi a minha mãe, que se encontrava junto ao fogo com o rosto
iluminado pela luz cor de laranja, precipitei-me para ela e lancei os meus braços em volta
das suas pernas.
Ela perguntou-me, inquieta: - Que se passa, Waris?
Guban chegou, ofegante, e a minha mãe olhou para ele. - Que se passa com ela? Ele riu
com desenvoltura e estendeu o braço para mim: - Oh, queria apenas contar-lhe uma
história e ela teve medo.
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Agarrei-me à minha mãe com todas as minhas forças. Queria contar-lhe o que o amigo do
meu pai acabara de me fazer, mas não encontrava palavras - nem sequer sabia o que ele
me tinha feito. Observei o seu rosto sorrindo à luz do fogo, um rosto que veria ainda
muitas vezes ao longo dos anos, e soube que o odiaria para sempre.
A minha mãe acariciou-me a cabeça e eu encostei a minha cara ao seu colo: - Acalma-te,
Waris. Pronto, pronto. Era apenas uma história, meu bebé. Não é verdadeira. - Depois
voltou-se para Guban: - Onde estão as ovelhas?
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UMA VIDA DE NÓMADA
Tendo crescido em África, eu não possuía o sentido da História que parece tão importante
noutras partes do mundo. A nossa língua, o somali, só se tornou língua escrita partir de
1973, e nunca aprendemos a ler, nem a escrever. O conhecimento era-nos transmitido
oralmente - através de poesias ou contos - e os nossos pais ensinavam-nos tudo que era
necessário saber para sobreviver. A minha mãe, por exemplo, ensinou-me a tecer
recipientes com erva seca tão comprimida que podiam conter leite; o meu pai ensinou-me
a tomar conta dos animais para que se mantivessem saudáveis. Não falávamos muito do
passado, não tínhamos tempo para isso. Só o presente nos preocupava: «Que vamos fazer
hoje as crianças estão cá todas? Os animais estão todos na cerca? Como é que vamos
comer? Onde poderemos encontrar água?».
Na Somália, vivíamos como os nossos antepassados desde há milhares de anos; nada
mudara verdadeiramente. Sendo nómadas, não tínhamos electricidade, nem telefone,
nem carro, e claro que nunca ouvíramos falar em computadores, televisão ou na
conquista espacial. Dado o nosso modo de vida e a nossa tendência para nos
preocuparmos apenas com o presente, tínhamos uma concepção do tempo muito
diferente daquela que prevalece nos países ocidentais.
Como todos os membros da minha família, não sei ao certo a minha idade; no meu país,
um bebé que nasce tem poucas hipóteses de sobreviver até ao ano seguinte, pelo que a
noção de aniversário não tem a mesma importância para nós. Quando eu era criança,
vivíamos sem emprego do tempo, sem relógio ou calendário. Seguíamos as estações e o
curso do sol, organizando as nossas deslocações em função das necessidades de água, e as
nossas jornadas segundo a duração do dia. Sabíamos as horas pela posição do sol; se a
minha sombra se estendia para oeste, era manhã; se se encontrava exactamente debaixo
de mim, e
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ao meio-dia. Próximo do final do dia, a minha sombra tornava-se mais comprida,
advertindo-me de que era altura de partir para o acampamento antes do
anoitecer.
Quando nos levantávamos de manhã, decidíamos o que faríamos nesse dia, depois
cumpríamos as nossas tarefas o melhor que podíamos até termos terminado, ou até ser
demasiado escuro para ver. Quando nos levantávamos, o nosso dia não estava planeado
com antecedência. Desde que vivo em Nova Iorque, é frequente as pessoas tirarem a
agenda e perguntarem: «Quer almoçar no dia 14 ou no dia 15?». E eu respondo sempre:
«Por que não me telefona na véspera do dia em que me quer ver?». Por mais que aponte
os meus compromissos, não consigo habituar-me a essa ideia. Quando cheguei a Londres,
ficava surpreendida quando via as pessoas olharem para o pulso e gritarem: «Tenho de ir!
». Tinha a impressão de que toda a gente corria em todos os sentidos, que tudo era
cronometrado. Em África, não conhecemos a pressa, o stress. O nosso tempo é muito
diferente, o nosso ritmo é extremamente lento e calmo. Quando se diz a alguém:
«Encontramo-nos amanhã ao meio-dia ... », isso significa por volta das quatro ou cinco
horas da tarde. Ainda hoje me recuso a usar relógio.
Quando eu era pequena, nunca me aconteceu projectar no futuro nem vasculhar o
suficiente no passado para perguntar à minha mãe como se tinha desenrolado a sua
infância. Consequentemente, sei muito pouco sobre a história da minha família, tanto
mais que parti de casa muito nova. Queria poder voltar atrás e colocar todas estas
questões, saber como vivia a minha mãe quando era pequena, de onde vinha a sua
própria mãe, como morrera o seu pai. A ideia de que posso nunca vir a conhecer toda esta
história entristece-me bastante.
No entanto, sei uma coisa sobre a minha mãe: era muito bonita. Posso dar a impressão de
ser a típica filha que adora a sua mãe, mas ela era realmente de uma beleza excepcional.
O seu rosto parecia uma escultura de Modigliani; tinha a pele tão escura e tão macia que
parecia esculpida a mármore preto. A cor da sua pele era de um negro tão intenso que
quando sorria à noite viam-se os seus dentes de uma brancura estonteante cintilarem no
ar. Tinha cabelos compridos e lisos, muito macios, que alisava com os dedos; nunca a vi
servir-se de uma escova. Era alta e elegante, características que todas as suas filhas
herdaram dela.
O seu temperamento era calmo e pouco falador. Mas quando começava a falar,
tornava-se irresistivelmente engraçada e ria muito. Contava piadas, algumas delas
divertidas, outras bastante grosseiras; havia ainda outras que não passavam de asneiras
para nos fazer rir. Por exemplo, ela olhava para mim e dizia: - Por que é que os teus olhos
desaparecem na tua cara?
Mas a brincadeira mais estúpida, a sua preferida, era chamar-me Abdohol, que significa
«boca pequena». Ela observava-me e depois dizia: - Eh, Abdohol, por que é que a tua boca
é tão pequena?
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o meu pai era muito bonito e, acreditem, sabia-o; media mais de um metro e oitenta, era
magro e tinha a pele mais clara do que a da minha mãe. Os seus cabelos eram castanhos e
os seus olhos de um castanho claro. Tendo consciência da sua beleza, era bastante
vaidoso. Costumava provocar a minha mãe: «Um dia destes vou procurar outra mulher se
tu não ... ». E anunciava o que desejava. Ou então dizia: «Começo a aborrecer-me aqui,
vou-me embora procurar outra mulher». E a minha mãe respondia-lhe no mesmo tom:
«Veremos o que consegues arranjar». Amavam-se verdadeiramente, muito, mas um dia,
infelizmente, as suas ameaças concretizaram-se.
A minha mãe crescera em Mogadíscio. O meu pai era um nómada e sempre vivera
percorrendo o deserto. Quando se conheceram, a minha mãe achara que o meu pai era
muito bonito e que passar a vida com ele de um lado para o outro era uma ideia bastante
romântica. Rapidamente haviam decidido casar-se. O meu avô tinha morrido, por isso o
meu pai foi ter com a minha avó e pediu-lhe permissão para casar com a sua filha. A
minha avó respondera: - Não, não, não! De maneira nenhuma! - E acrescentara,
dirigindo-se à sua filha: - Ele não passa de um playboy!
A minha avó não estava disposta a deixar a sua bela filha estragar a vida criando camelos
com este homem, um nómada do deserto! Mas quando a minha mãe tinha cerca de
dezasseis anos, fugiu de casa e casou com o meu pai.
Tinham partido para a outra ponta do país e haviam vivido no deserto com a família do
meu pai, o que causara bastantes problemas. A minha família materna tinha algum poder
e dinheiro e a minha mãe ignorava tudo acerca da rude vida dos nómadas. Mais grave
ainda, o meu pai pertencia à tribo Da arood, e a minha mãe à tribo Hawiye. Como os
ameríndios, os somalis encontram-se divididos em tribos, e cada um dá provas de uma
lealdade fanática para com o seu próprio grupo. Este orgulho tribal tem sido a origem de
bastantes guerras ao longo da nossa História.
Uma rivalidade particular opõe os Daaroods aos Hawiyes e a família do meu pai sempre
tratou muito mal a minha mãe, sob o pretexto de que, pertencendo a uma tribo diferente,
ela era um ser inferior. A minha mãe sentiu-se muito só durante muito tempo, mas teve
de se adaptar. Quando eu fugi e me vi separada da minha família, compreendi o que deve
ter sido a sua vida, sozinha entre os Daaroods.
A minha mãe começou a ter crianças, e deu-lhes todo o amor de que se vira privada
vivendo longe do seu povo. Agora que sou adulta, compreendo melhor o que representou
para ela trazer doze crianças ao mundo. Lembro-me dos períodos em que ela estava
grávida. Subitamente desaparecia e não a víamos durante vários dias. Depois voltava, com
um bebé nos braços. Partia sozinha para o deserto, levando consigo um objecto bastante
agudo para Cortar o cordão umbilical. Uma vez, quando acabara de desaparecer, tivemos
de levantar o
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acampamento, como sempre em busca de água. Ela teve de caminhar quatro dias pelo
deserto, carregando o recém-nascido, antes de encontrar o seu marido.
De todos os filhos, eu tinha a impressão de ser a sua favorita. Entendíamo-nos na
perfeição, e penso nela em cada dia da minha vida, pedindo a Deus que tome conta dela
até que eu própria possa fazê-lo. Quando era pequena, queria estar sempre junto dela, e
ansiava por chegar a casa para ir sentar-me ao seu lado e senti-la acariciar-me a cabeça.
A minha mãe tecia uns cestos muito bonitos, uma técnica que leva anos de prática a
aperfeiçoar. Passávamos muitas horas juntas, e ela ensinava-me a fazer pequenas
chávenas onde podia beber leite, mas quando eu tentava fazer objectos maiores, nunca
conseguia igualá-la: os meus cestos eram irregulares e cheios de buracos.
Um dia, o meu desejo de estar junto dela e a minha natural curiosidade infantil
impeliram-me a segui-la secretamente. Uma vez por mês, ela abandonava o
acampamento e partia sozinha durante a tarde. Um dia, eu disse-lhe: - Queria tanto saber
o que tu fazes, mãe, onde vais todos os meses.
Ela respondeu-me que me metesse na minha vida; em África uma criança não tem o
direito de se imiscuir nos assuntos dos seus pais. E, como habitualmente, disse-me para
ficar em casa e tomar conta dos meus irmãos e irmãs. Mas, quando ela se afastou, segui-a
à distância escondendo-me atrás dos arbustos. Ela encontrou-se com outras cinco
mulheres, que, como ela, haviam percorrido longas distâncias. Ficaram sentadas durante
várias horas, debaixo de uma grande árvore muito bonita. Era o momento da sesta. E
como o sol estava demasiado quente para fazer outra coisa, animais e pessoas
descansavam, e as mulheres podiam ter um pouco de tempo para si. As suas cabeças
estavam juntas, e ao longe faziam lembrar formigas. Vi-as comer pipocas e beberem chá.
Não faço a menor ideia do que diziam porque me encontrava demasiado longe para
ouvi-las. Como tinha muita vontade de comer milho, decidi finalmente mostrar-me.
Avançando suavemente, fui colocar-me ao lado da minha mãe. Quando me viu, ela gritou:
- De onde vens tu?
- Vim atrás de ti.
- És uma rapariga muito má!
Mas as outras mulheres desataram a rir e começaram a mimar-me: - Oh, como é bonita.
Anda cá, minha querida...
A minha mãe deixou-se enternecer, e eu pude comer pipocas.
Naquela idade, não sabia que existia um mundo diferente daquele em que nós vivíamos
com os nossos camelos e as nossas cabras. Nunca tendo viajado para países estrangeiros;
não conhecendo livros, televisão ou cinema, o meu universo limitava-se ao que ouvia à
minha volta. Não compreendi que durante a sua juventude a minha mãe poderia ter tido
uma vida diferente. Antes da independência da Somália, em 1960, a região sul do país fora
uma
colónia italiana. Em Mogadíscio, a cultura, a arquitectura e a sociedade tinham, por isso,
sofrido a influência italiana, e a minha mãe falava italiano. De vez em quando, quando
estava zangada, vociferava uma torrente de palavrões em italiano. Eu olhava para ela,
inquieta:
- o que é que estás a dizer, mãe?
- Oh, é italiano.
- italiano? O que é isso?
- Nada, mete-te na tua vida.
E fazia-me sinal para me afastar. Mais tarde, descobri que a Itália fazia parte do vasto
inundo que se estendia para além da nossa tenda.
Muitas vezes, interrogámos a minha mãe sobre as razões que a tinham levado a casar com
o meu pai.
- Por que o seguiste? Olha onde vives agora, ao passo que os teus irmãos e irmãs vivem
um pouco por toda a parte no mundo. Um dos nossos tios até é embaixador em Londres.
Por que é que fugiste com este falhado?
Ela explicava-nos que se tinha apaixonado pelo meu pai e que decidira fugir com ele ,para
poderem ficar juntos.
A minha mãe é uma mulher forte, muito forte. Apesar de tudo o que a vi suportar, nunca
a ouvi queixar-se. Nunca a ouvi dizer: «Estou farta!» ou «Não quero mais viver assim!».
Permanecia silenciosa e dura como o aço. Depois, sem que nada o fizesse prever, fazia-nos
rir com uma das suas graças idiotas. O meu objectivo é um dia vir a ser tão forte como ela;
poderei então dizer que triunfei na vida.
As ocupações da minha família eram as mesmas que as de muitos somalis, uma vez que
sessenta por cento destes são pastores nómadas. O meu pai aventurava-se
periodicamente até a uma aldeia onde vendia um animal para comprar um saco de arroz,
tecido para as nossas roupas ou cobertores. Por vezes, enviava o que tinha para vender
por alguém que ia à cidade e também fazia a lista de tudo o que queria comprar em troca.
Também ganhávamos algum dinheiro colhendo incenso, um dos presentes dos reis magos
ao Menino Jesus. Hoje em dia, ainda é um produto tão precioso como nos tempos anti-
gos. O incenso provém da Boswellia, um arbusto muito bonito que mede cerca de um
metro e cinquenta, cujos ramos se abrem vergados fazendo lembrar um guarda-chuva
aberto. Com um machado, eu dava golpes ligeiros na árvore, sem a ferir, mas o suficiente
para retirar a casca. Então escorria um líquido leitoso. Depois esperava que esse sumo
branco se solidificasse até adquirir a consistência da pastilha elástica - por vezes
mastigávamo-lo porque gostávamos do seu gosto amargo. Em seguida metíamo-lo, em
cestos e o meu pai ia vendê-lo.
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Queimávamos incenso à noite, nos nossos fogos de campo. Hoje, quando sinto aquele
cheiro, sou transportada para anos atrás. Por vezes vendem em Manhattan incenso tido
por verdadeiro. Compro-o, desesperada por reviver algumas memórias do meu país, mas
o seu cheiro não passa de uma pálida imitação que não iguala em nada o rico perfume
exótico dos fogos que ardiam à noite no deserto.
A nossa numerosa família não constituía excepção; na Somália, as mulheres têm em
média sete filhos. As crianças são de algum modo a futura pensão das pessoas mais
velhas, pois tomarão conta dos seus pais quando estes se tornarem velhos. As crianças
somalis tratam dos seus pais e avós com respeito e jamais teriam a audácia de contestar a
sua autoridade. Todos os mais velhos, incluindo irmãos e irmãs, têm direito a esse
respeito e há que obedecer aos seus desejos. Era aliás por isto que os meus actos de
rebelião eram considerados tão escandalosos.
Uma das razões desta grande natalidade - para além da ausência do controlo de
nascimentos - tem a ver com o facto de que a vida se torna mais fácil quanto mais pessoas
há para assegurarem o trabalho. Por exemplo, ter água - não água em abundância nem
água suficiente, mas simplesmente ter água - requeria um trabalho extenuante. Quando
toda a região onde nos encontrávamos estava seca, o meu pai partia em busca de água.
Atava uns enormes odres ao dorso dos camelos, que a minha mãe tecera com erva, e
deixava o acampamento. Permanecia ausente vários dias, o tempo de descobrir água,
encher os odres e fazer o caminho de regresso. Enquanto esperávamos, permanecíamos
no mesmo lugar enquanto era possível, mas tornava-se cada dia mais difícil porque
tínhamos de percorrer quilómetros sem fim para dar de beber aos rebanhos. Por vezes
partíamos antes do seu regresso, e no entanto ele encontrava-nos sempre sem a ajuda de
estradas, sinais indicadores ou mapas. Quando o meu pai estava ausente ou tinha ido
comprar comida, um de nós encarregava-se de encontrar água porque a minha mãe tinha
de permanecer no acampamento para tratar de tudo.
Por vezes esta tarefa cabia-me a mim. Eu caminhava durante dias e dias, tão longamente
quanto necessário, porque era impensável voltar sem água. Nunca teríamos voltado de
mãos a abanar, porque então não haveria esperança. Ninguém queria ouvir dizer: «Não
consegui». A minha mãe tinha-me pedido que encontrasse água, e eu devia fazê-lo.
Quando cheguei ao mundo ocidental, ficava espantada quando ouvia as pessoas
queixarem-se: «Não posso trabalhar, dói-me a cabeça».
Eu tinha vontade de lhes dizer: «Deixem-me dar-vos trabalho a sério. Depois, nunca mais
se queixarão do vosso emprego».
e Um dos meios que permitiam dispor de mais mão-de-obra para executar as tarefas
consistia em aumentar o número de mulheres e de crianças; ter várias mulheres é uma
prática corrente em África. Os meus pais, enquanto casal, eram pouco comuns pelo facto
de estarem juntos há vários anos. Mas, depois de terem tido doze crianças, um dia a
minha mãe disse ao meu pai: - Estou demasiado velha... Arranja outra mulher e deixa-me
sossegada.
Não sei se ela acreditava no que dizia; provavelmente não acreditava que o meu pai a
levasse a sério.
Mas um dia ele desapareceu. A princípio pensámos que tinha ido procurar água ou
comida e a minha mãe encarregou-se de tudo. Após dois dias de ausência, pensamos que
tinha morrido. E depois, uma noite, tão subitamente como tinha partido, voltou. Eu estava
sentada com os meus irmãos e irmãs diante da tenda. Ele avançou descontraidamente
para nós e disse: - Onde está a vossa mãe?
Respondemos-lhe que ela ainda estava a tratar dos animais. Ele dirigiu-nos um grande
sorriso: - Bem, ouçam todos! Quero apresentar-vos a minha nova mulher.
Empurrou na nossa direcção uma rapariga de dezassete anos - pouco mais velha do que
eu. Limitámo-nos a olhar para ela porque não nos teria sido permitido pronunciar uma
palavra que fosse; além disso, não saberíamos o que dizer.
Quando a minha mãe chegou, ficámos todos tensos, na expectativa do que iria passar-se.
Ela olhou para o meu pai, sem reparar na rapariga que estava no escuro, e disse-lhe:
- Oh, decidiste voltar?
O meu pai balançava-se num pé e noutro olhando em volta.
- Sim, aaahhh... sim. A propósito, apresento-te a minha mulher.
E passou os braços em volta dos ombros da sua nova esposa. Nunca esquecerei a
expressão do rosto da minha mãe à luz do fogo: parecia ter-se desmoronado. Foi então
que ela compreendeu: - Meu Deus! Perdi-o! Trocou-me por esta criança! - Ela estava
morta de ciúmes, mas tentava corajosamente não o mostrar.
Não fazíamos ideia de onde vinha a nova mulher do meu pai nem sabíamos nada acerca
dela. Mas isso não a impediu de começar imediatamente a dar-nos ordens. Depois, esta
rapariga de dezassete anos começou a mandar na minha mãe, ordenando-lhe que fizesse
isto, que lhe trouxesse aquilo, que lhe cozinhasse tal prato. O ambiente já estava bastante
tenso quando um dia ela cometeu um erro fatal: esbofeteou o meu irmão Velho Homem.
No dia em que isto aconteceu, eu encontrava-me com os meus irmãos e irmãs no nosso
esconderijo (sempre que nos deslocávamos, procurávamos uma árvore, perto da tenda,
junto da qual
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gostávamos de nos reunir; servia-nos de «quarto das crianças».) Ouvi Velho Homem
gritar, levantei-me e vi-o vir na minha direcção a chorar.
- O que foi?
Inclinei-me para ele e limpei-lhe a cara.
- Ela bateu-me, bateu-me com muita força!
Nem sequer precisei de perguntar quem, porque na nossa família nunca ninguém
levantara a mão para Velho Homem. Nem a minha mãe, nem nenhuma das crianças, nem
o meu pai, que batia em todos nós regularmente. Não havia necessidade de corrigir Velho
Homem porque ele era o mais sábio de todos nós, e comportava-se sempre de forma.
exemplar. Ao bater no meu irmão, aquela idiota ultrapassara os limites, era mais do que
eu podia suportar, e fui ter com ela:
Por que bateste no meu irmão? Ele bebeu o meu leite.
Disse estas palavras num tom altivo, como se fosse a rainha do palácio e possuísse todo o
nosso leite e todos os nossos rebanhos.
- O teu leite? Fui eu que pus esse leite na tenda e se o meu irmão o quer, se tem sede,
pode bebê-lo. Tu não tens nada que lhe bater!
- Oh, cala a boca e desaparece daqui! - Ela gritava e fez-me sinal para me afastar com um
gesto. Olhei-a abanando a cabeça. Eu tinha apenas treze anos, mas sabia que ela acabara
de cometer um erro fatal.
Os meus irmãos e irmãs esperavam-me, sentados debaixo da árvore, estendendo o ouvido
para apanhar partes da nossa discussão. Aproximei-me deles, e ao ver as suas expressões
inquisidoras, disse simplesmente: - Amanhã.
Eles acenaram.
No dia seguinte, a sorte sorriu-nos porque o meu pai partiu por dois dias. À hora da sesta,
eu levei os animais para o acampamento e fui ter com a minha irmã e dois dos meus
irmãos.
- A nova mulher do pai está a ir longe de mais. Isto parecia evidente a todos.
- Temos de fazer alguma coisa.
- Sim, mas o quê? - respondeu Ali.
- Já vão ver. Venham ajudar-me e verão.
Agarrei numa espessa corda rugosa que normalmente usávamos para atar as nossas
coisas ao dorso dos camelos quando nos deslocávamos, depois levámos a amedrontada
[mulher do meu pai para longe do acampamento, para o mato, e obrigámo-la a despir-se
corretamente. Lancei então uma das extremidades da corda por cima do ramo de uma
grande árvore e atei-lha aos tornozelos. Enquanto a içávamos do solo, ela insultava-nos,
gritava e soluçava, tudo ao mesmo tempo. Com a ajuda dos meus irmãos, puxei a corda
para que a cabeça dela ficasse suspensa a dois metros e meio do solo, certificando-me
assim de que nenhum animal selvagem a devoraria. Depois atámos a um arbusto a
extremidade livre da corda e voltámos ao acampamento, deixando a esposa do meu pai a
torcer-se e a gritar no deserto.
o meu pai voltou no dia seguinte à tarde, mais cedo do que previsto. Perguntou-nos onde
estava a sua mulherzinha. Encolhemos todos os ombros respondendo que não a tínhamos
visto. Felizmente, tínhamo-la levado suficientemente longe para que os seus gritos não
pudessem ser ouvidos. O olhar do meu pai era desconfiado. Ao escurecer, ainda não tinha
encontrado vestígios dela. Sabia que algo se passara e interrogou-nos:
- Quando é que a viram pela última vez? E hoje, viram-na? E ontem? Dissemos-lhe que ela
não voltara na noite anterior, o que, de resto, era verdade.
O meu pai entrou em pânico e começou a procurar por toda a parte freneticamente. Mas
só a encontrou na manhã seguinte. A sua jovem esposa tinha ficado durante quase dois
dias pendurada de cabeça para baixo quando finalmente ele a soltou; e não estava em
muito bom estado. Ao voltar ao acampamento, ele estava furioso e perguntou:
- Quem foi o responsável por isto?
Entreolhámo-nos em silêncio. Mas claro que ela disse: - Foi Waris quem teve a iniciativa.
O meu pai atirou-se a mim e começou a bater-me, mas todos os meus irmãos se
precipitaram em minha defesa. Sabíamos que era errado bater no próprio pai, mas não
podíamos continuar a suportar aquela situação.
Depois disto, a jovem esposa do meu pai tornou-se uma pessoa diferente. Tínhamos-lhe
dado uma lição, e ela compreendera-a bem. Tendo sentido o sangue afluir-lhe à cabeça
durante dois dias, penso que as suas ideias estavam agora mais claras; passou a
mostrar-se doce e disponível. A partir desse momento, beijava os pés da minha mãe e
servia-a com mil cuidados, como uma escrava. «O que é que eu te posso trazer? O que é
que posso fazer por ti? Não te mexas, descansa».
E eu pensei: «Ora aí está! Devias ter-te comportado assim desde o inicio, cabrinha.
Ter-nos-ias poupado uma dor inútil». Mas a vida de nómada é dura, e embora ela tivesse
menos vinte anos do que a minha mãe, a nova esposa do meu pai não era tão robusta
como ela. Finalmente, a minha mãe compreendeu que não tinha nada a temer daquela
adolescente.
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A vida de nómada é dura, mas também é muito bela, de tal forma ligada à natureza que as
duas são inseparáveis. O nome que a minha mãe me deu é justamente um desses milagres
da natureza: Waris significa «Flor do Deserto». A flor do deserto floresce onde poucas
coisas conseguem sobreviver. No meu país, por vezes não chove durante um ano inteiro.
Quando finalmente a água cai, purificando a paisagem poeirenta, as flores surgem como
por milagre. São de um amarelo-alaranjado brilhante, e é por esta razão que o amarelo
sempre foi a minha cor preferida.
Quando uma rapariga se casa, as mulheres da tribo vão apanhar essas flores no deserto.
Secam-nas e misturam-nas com água para obterem uma pasta que espalham na cara da
futura esposa, dando-lhe um brilho dourado. Coloram-lhe as mãos e os pés com hena e
realçam os olhos com khol, para o seu olhar parecer profundo e sensual. Todos estes
cosméticos, à base de plantas e ervas, são totalmente naturais. As mulheres envolvem-na
em seguida em tecidos coloridos, vermelho, rosa, laranja e amarelo, até cobrirem o corpo
todo. Quanto mais tecidos, melhor. Por vezes não têm muitos, algumas famílias são
extremamente pobres, mas não há vergonha alguma nisso; a futura esposa levará
simplesmente o que a mãe, irmãs e amigas tiverem encontrado de melhor, e o seu porte
será sempre altivo, característica comum a todas as somalis. No dia do casamento, ela
estará de uma beleza deslumbrante para receber o seu futuro esposo. Mas os homens
não o merecem.
Nesse dia, os membros da tribo trazem presentes; mas não se sentem obrigados a
comprar isto ou aquilo e não se preocupam por não poderem oferecer nada de valor.
Cada um dá o que tem: uma esteira onde o casal dormira, ou uma taça, e quando não se
tem nenhuma destas coisas, leva-se comida para a festa que se segue à cerimónia. Na
minha cultura, não existe nada de semelhante a uma lua-de-mel, e o dia a seguir ao
casamento é um dia de trabalho normal para os recém-casados; nessa altura, precisam de
todos os seus presentes para iniciarem a vida em comum.
Após meses e meses de seca, o desespero apoderava-se de nós. Reuníamo-nos então para
implorar a Deus que nos enviasse chuva. Por vezes isto resultava, outras vezes não. Houve
um ano em que não caíra ainda uma gota, apesar de ser a estação das chuvas. Metade dos
nossos animais tinham sucumbido e os outros agonizavam de sede. A minha mãe decidiu
que devíamos reunir-nos e rezar por chuva. As pessoas saíram literalmente de toda a
parte. Todos rezámos, cantámos e dançámos, tentando ser felizes e manter o espírito
positivo.
No dia seguinte, as nuvens juntaram-se e a chuva começou a cair. Então, como sempre
que chovia, o verdadeiro regozijo começou: toda a gente se despia e corria à chuva,
lavando-se pela primeira vez em muitos meses. Festejámos o acontecimento com as
nossas danças tradicionais: as mulheres batiam palmas e cantavam, as suas vozes doces e
graves ressoavam pela noite do deserto, e os homens davam grandes saltos no ar. Toda a
gente tinha trazido comida, e comemos como reis para festejar a dádiva da vida.
Nos dias que se seguiam à chuva, a savana cobre-se de flores douradas e as pastagens
tornam-se verdes. Os animais podem finalmente comer e beber até se saciarem,
proporcionando-nos a oportunidade de nos descontrairmos e gozarmos a vida. Nessas
ocasiões vamos até aos lagos recém-formados pela chuva para tomar banho e nadar. No
ar fresco, os pássaros começam a cantar e o deserto torna-se um paraíso.
Para além dos casamentos, temos poucas festas. Não há dias inscritos arbitrariamente no
calendário. A chuva que esperamos durante muito tempo é uma das causas principais
desse regozijo. No meu país, a água é muito escassa, e no entanto é a própria essência da
vida. Os nómadas do deserto têm um enorme respeito pela água, e cada gota é para eles
algo de precioso. Ainda hoje amo a água. O simples facto de olhar para ela enche-me de
alegria.
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TORNAR-SE MULHER
Chegara o momento de Aman, a minha irmã mais velha, ser excisada. Como todas as
irmãs mais novas, eu invejava-a, tinha ciúmes de a ver entrar naquele mundo dos
adultos que ainda me estava vedado. Aman era uma jovem adolescente que ultrapassara
há muito a idade normal da excisão, mas até então não surgira a ocasião. Como a minha
família se deslocava incessantemente, por uma razão ou por outra tínhamo-nos sempre
desencontrado da cigana que praticava esse ritual antigo. Um dia o meu pai encontrou-a
finalmente e pediu-lhe que viesse excisar as minhas duas irmãs mais velhas, Aman e
Halemo. Quando a mulher chegou ao acampamento, Aman havia partido em busca de
água e ela excisara apenas Halemo.
O meu pai mostrava-se cada vez mais inquieto porque Aman atingiria em breve a idade de
se casar, mas não era possível qualquer união enquanto a sua filha não tivesse sido
devidamente «preparada». Na Somália, existe uma crença segundo a qual as raparigas
têm entre as pernas coisas muito más, partes do corpo com as quais nasceram e que não
obstante são sujas e devem ser suprimidas. O clitóris, os pequenos lábios e a maior parte
dos grandes lábios são cortados e depois a ferida é cosida, deixando apenas uma cicatriz
no lugar dos órgãos genitais. Mas os detalhes deste ritual permanecem um mistério para
as raparigas, nada lhes é explicado antes da cerimónia. Sabem apenas que algo de especial
lhes acontecerá quando chegar a sua vez.
Consequentemente, todas as jovens na Somália aguardam com impaciência esta
cerimónia que lhes permite tornarem-se mulheres. Originariamente, isto passava-se
quando uma rapariga atingia a idade da puberdade, e o ritual tinha então um
determinado significado, porque doravante a jovem tornava-se fértil e capaz de gerar.
Mas, com o tempo, a excisão começou a ser praticada em raparigas cada vez mais novas,
em parte porque elas mesmas
esperavam con, impaciência aquele «momento especial», como uma criança do mundo
ocidental espera o seu aniversario ou a vinda do Pai Natal. Quando soube que a velha
cigana vinha excisar Aman, quis que ela me fizesse o mesmo. Aman era a minha bela irmã
mais velha, o meu ídolo, e tudo o que ela desejava ou tinha, eu também desejava. Na
véspera do grande acontecimento, supliquei à minha mãe puxando-a pelo braço: - Mãe,
deixa-nos fazer as duas ao mesmo tempo. Mãe, por favor, aduas!
A minha mãe afastou-me: - Cala-te, filhinha.
No entanto, Aman não me parecia demasiado impaciente. Lembro-me de a ter ouvido
murmurar: - Só espero que não suceda o mesmo que com Halemo. Mas naquela altura eu
era demasiado jovem para compreender o que isto queria dizer, quando pedi a Aman que
me explicasse, ela não me respondeu.
Muito cedo no dia seguinte, a minha mãe e uma das suas amigas vieram procurar minha
irmã para a levarem à mulher que deveria praticar a excisão. Eu insisti para as
acompanhar, mas a minha mãe disse-me para ficar onde estava e tomar conta das
crianças. Uma vez mais, segui-a tal como fizera no dia em que ela fora reunir-se com as
suas amigas, escondendo-me nos arbustos e atrás das árvores, permanecendo a uma
distância prudente.
A cigana chegou. Na nossa comunidade, é considerada uma pessoa importante, não
apenas porque possui um saber especializado, mas também porque ganha muito dinheiro
praticando a excisão. O preço a pagar por esta cerimónia representa, uma grande despesa
para a família, mas é considerado um bom investimento, uma vez que as raparigas
não-excisadas não podem ser colocadas no «mercado» do casamento. Com os órgãos
genitais intactos, são consideradas impróprias para o casamento, e passam por raparigas
fáceis e sujas que nenhum homem quereria para esposa. A cigana, como alguns lhe
chamam, é por isso um membro importante na nossa sociedade; mas eu chamo-lhe a
«Assassina» por causa de todas as raparigas que morreram por sua culpa.
Escondida atrás de uma árvore, eu observava Aman sentada no chão. Depois a minha mãe
e a sua amiga agarraram-na pelos ombros e obrigaram-na a deitar-se. A cigana meteu as
mãos entre as pernas da minha irmã, e eu vi uma expressão de dor perpassar pelo rosto
de Aman. A minha irmã era grande e tinha muita força e de repente - pum!, deu um
pontapé no peito da cigana, fazendo-a cair de costas; depois libertou-se da mulher e da
minha mãe que a Mantinham no chão, e conseguiu levantar-se. Horrorizada, vi sangue
escorrer pelas suas pernas e deixar um rasto na areia enquanto ela fugia a correr. As duas
precipitaram-se atrás dela, mas a minha irmã já estava a uma grande distância delas
quando caiu desmaiada. viraram-na de costas, no próprio sítio onde ela caíra, e
continuaram o seu trabalho. Eu já não Podia olhar, sentia-me doente, e voltei para o
acampamento.
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Agora sabia algo que teria preferido ignorar. Não compreendia o que se passara, mas
estava aterrorizada com a ideia de eu própria passar por aquilo. Não podia interrogar a
minha mãe porque sabia que não deveria ter assistido àquela cena. Quando as feridas
cicatrizaram, Aman ficou separada das outras crianças. Quando voltei a vê-la,
perguntei-lhe:
-Que tal foi?
-Foi horrível...
Depois calou-se. Suponho que preferiu não me dizer a verdade sabendo que chegaria a
minha vez de ser excisada, e que teria então muito medo em vez de esperar o momento
com impaciência.
- Seja como for, em breve chegará a tua vez e vai ser bastante em breve. Não me disse
mais nada.
A partir desse momento, temi aquele ritual ao qual teria de submeter-me e que faria de
mim uma mulher. Esforcei-me por afastar do meu espírito aquelas imagens horríveis e,
com o passar do tempo, a memória da dor que lera na cara de Aman. foi-se
desvanecendo. Acabei por me convencer estupidamente de que também queria
tornar-me mulher, juntando-me assim às minhas irmãs mais velhas.
Naquela época, deslocávamo-nos sempre na companhia de um amigo do meu pai e da sua
família. Era um homem velho e resmungão. Quando a minha irmã mais nova ou eu o
aborrecíamos, afastava-nos agitando a mão, como se estivesse a afastar moscas, e ria-se
de nós dizendo: - Afastem-se de mim, não passam de duas raparigas sujas e impuras.
Ainda nem sequer foram excisadas! - Cuspia estas palavras como se fossemos seres tão
repelentes que nem sequer suportava ver-nos pela frente. Aqueles insultos
perturbavam-me, e jurei encontrar uma forma de lhe calar a boca.
Este homem tinha um filho, um jovem adolescente chamado Jamali por quem eu estava
apaixonada. Jamali ignorava-me e só Aman lhe interessava. Acabei por lhe dizer que ele
preferia a minha irmã porque ela tinha sido excisada. Como o seu pai, Jamali certamente
não queria ter nada a ver com as rapariguinhas «sujas». Quando eu tinha cerca de cinco
anos, provoquei a minha mãe:
- Mãe, encontra-me essa mulher. Quando é que vamos tratar do assunto?
Eu pensava: É preciso acabar com isto fazer com que esta coisa misteriosa aconteça de
vez. E quis o acaso que a cigana passasse de novo pelas redondezas alguns dias mais
tarde.
’Uma noite, a minha mãe disse-me: - Olha, o teu pai encontrou a cigana. Aguarda-mo-la
um destes dias.
Na noite anterior à minha excisão, a minha mãe aconselhou-me a não beber muita água
nem leite, de forma a não ter muita vontade de fazer chichi. Não sabia por que me dizia
aquilo, mas não fiz perguntas e limitei-me a abanar a cabeça. Estava nervosa, mas
impaciente por acabar com aquela história. Nessa noite, toda a família se encheu de
cuidados comigo e, como mandava a tradição, tive direito a mais comida do que os
outros: era uma das razões que me tinham feito invejar as minhas irmãs mais velhas.
Mesmo antes de ir dormir, a minha mãe disse-me: - Acordar-te-ei amanhã de manhã,
quando tiver chegado o momento.
- Não faço a menor ideia de como adivinhara ela a vinda daquela mulher. Ela sentia
sempre intuitivamente quando algo estava para vir ou quando ia passar-se algo.
Terrivelmente excitada, mal consegui dormir nessa noite até ver a minha mãe inclinada
sobre mim. O céu ainda estava escuro; era mesmo antes da aurora, quando o negro se
torna imperceptivelmente cinzento. Ela fez-me sinal para não falar e deu-me a mão.
Agarrei no meu cobertor e, semiadormecida, segui-a aos tropeções. Agora sei por que
preferem levar as raparigas logo cedo pela manhã - assim podem ser excisadas antes que
as outras pessoas estejam acordadas, para ninguém ouvir os seus gritos.
Afastámo-nos da tenda e penetrámos nos arbustos. A minha mãe disse:
- Esperaremos aqui.
Sentámo-nos no chão frio. O sol levantava-se lentamente e as formas à nossa volta mal se
distinguiam. Em breve ouvi o clic-clic das sandálias da cigana. A minha mãe chamou-a:
- És tu?
Uma voz respondeu: - Sim, estou aqui...
Mas eu não via ninguém. Depois, surgiu subitamente ao meu lado. Apontou para uma
rocha plana: - Senta-te ali.
Não me disse mais nada, nem «Bom dia», nem «Como estás», nem «O que te vou fazer
hoje é bastante doloroso e tens de ser corajosa». Nada disso. A Assassina era totalmente
profissional.
A minha mãe arrancou um pedaço de raiz de uma árvore velha e depois instalou-me sobre
a rocha. Sentou-se atrás de mim, puxou-me a cabeça sobre o seu peito e apertou-me o
corpo com as pernas. Eu passei os braços em volta das suas coxas. Ela meteu o pedaço de
raiz entre os meus dentes: - Morde isto.
Eu estava paralisada de medo à medida que a memória do rosto torturado de Aman
ressurgia diante de mim. Mordendo a raiz, murmurei: - Vai doer muito?
A minha mãe inclinou-se para mim e murmurou: - Sabes, sozinha não consigo segurar-te.
Tenta ser uma menina bem comportada, meu bebé. Sê corajosa pela mãe e isto passará
depressa.
42
43
Espreitei entre as minhas pernas e vi a mulher Preparar-se. Era idêntica a qualquer outra
mulher Somali; tinha um lenço colorido enrolado em volta da cabeça, um vestido de
algodão de C0% vivas, mas não sorria. Fitou-me duramente antes de mergulhar a mão
num velho saco de Pano. Eu não tirava os olhos dela porque queria saber o que ia usar
para me cortar. Estava à espera de uma grande faca, mas em vez disso retirou do saco um
pequeno embrulho envolvido num estojo de algodão. Com uns dedos compridos, extraiu
do seu interior uma lâmina de barbear partida e examinou-a de ambos os lados. O sol
estava agora bastante alto e havia luz suficiente para ver as cores, mas não os detalhes.
Apesar disso, vi sangue seco nas extremidades usadas da lâmina. Ela cuspiu na lâmina e
limpou-a com o vestido. Foi na altura que tudo se tornou escuro, porque a minha mãe me
pôs um lenço em volta dos olhos.
Em seguida senti que me cortavam a carne, os órgãos genitais. Ouvia o ruído da lâmina
que ia e vinha. Honestamente, quando penso nisso, custa-me verdadeiramente a crer que
não tenha enlouquecido. Sinto-me como se estivesse a falar de outra pessoa. É-me
praticamente impossível explicar o que senti. É como se nos cortassem a sangue-frio a
carne da coxa ou do braço, excepto que se trata da parte mais sensível do nosso corpo.
Contudo, não me movi um centímetro; lembrei-me de Aman e sabia que não havia
hipótese alguma de escapar. E queria que a minha mãe se orgulhasse de mim. Permaneci
deitada como se fosse feita de pedra, dizendo para comigo que quanto menos me
mexesse menos duraria aquela tortura. Infelizmente, as minhas pernas começaram a
tremer sozinhas sem que eu pudesse fazer nada contra isso. E rezei: Meu Deus, por
favor, faz com que isto acabe depressa. Depois não senti mais nada porque desmaiei.
Quando voltei a mim, pensei que tinha terminado, mas o pior ainda estava por vir.
Tinham-me retirado a venda, e vi que a Assassina tinha a seu lado uma pilha de espinhos
de acácia. Utilizou-os para fazer buracos na minha pele, após o que passou um fio branco
sólido e me coseu. Eu tinha as pernas completamente dormentes mas a dor que eu sentia
naquele sítio era tão terrível que desejei morrer. Senti-me flutuar acima do chão,
deixando o meu sofrimento atrás de mim, e planei alguns metros acima da cena
observando a mulher que cosia o meu corpo enquanto a minha pobre mãe me segurava
os braços. Naquele momento, senti uma paz total; já não estava nem inquieta nem
assustada.
A partir desse instante, não me lembro de mais nada; quando recuperei a consciência, a
mulher já tinha partido. Tinham-me mudado de sítio: estava estendida no chão junto à
rocha. As minhas pernas estavam atadas juntas com pedaços de tecido, dos tornozelos até
às ancas, para que não me pudesse mexer. Procurei a minha mãe com o olhar, mas ela
também tinha Partido. Fiquei estendida, completamente só, perguntando-me o que iria
acontecer-me em
seguida. Virei a cabeça para o rochedo: estava coberto de sangue, como se um animal
tivesse sido abatido ali. Pedaços da minha carne, do meu sexo, secavam ao sol.
Assim estendida, observei o sol subir acima da minha cabeça. Já não havia sombra à
minha volta e o calor queimava-me a cara quando a minha mãe e a minha irmã voltaram.
Arrastaram-me e colocaram-me à sombra de um arbusto enquanto acabavam de preparar
«a minha árvore». Era a tradição: uma pequena tenda especial era armada debaixo de
uma árvore e seria aí que eu repousaria e me recuperaria, sozinha durante algumas
semanas, até ficar boa. Quando terminaram o seu trabalho, a minha mãe e Aman
transportaram-me para o interior da tenda.
Eu pensava que o suplício tinha terminado até que senti vontade de fazer chichi; foi então
que compreendi por que razão a minha mãe me aconselhara a não beber leite nem água.
Depois de ter esperado várias horas, eu estava a morrer de vontade de urinar, mas as
minhas pernas estavam atadas uma à outra, mal me conseguia mexer. A minha mãe
pedira-me para não andar porque a ferida poderia voltar a abrir e então teria de ser
cosida de novo. E, podem crer, essa era a última coisa que eu queria.
Chamei a minha irmã: - Tenho de fazer chichi.
A sua expressão fez-me pensar que não se tratava de uma boa notícia. Aproximou-se de
mim, fez-me deitar de lado e escavou um buraco na areia.
- Podes fazer.
A primeira gota de urina queimou-me como se a minha pele tivesse sido comida por um
ácido. Quando a cigana me cosera, deixara para a urina e para o sangue menstrual apenas
um minúsculo orifício com o diâmetro de um fósforo. Ficava assim garantido que me seria
impossível ter relações sexuais antes do casamento, e o meu marido teria a certeza de ter
uma mulher virgem. Enquanto a urina, retida na minha ferida em carne viva, escorria gota
a gota ao longo das minhas pernas e depois para a areia, comecei a soluçar. Não chorara
quando a Assassina me cortara em pedaços, mas agora o ardor era tão horrível que não
consegui suportar mais.
À medida que a noite caía, Aman e a minha mãe voltaram ao acampamento para junto da
família e eu fiquei sozinha na tenda. Permaneci deitada e impotente, incapaz de fugir, mas
desta vez não tinha medo, nem do escuro, nem dos leões, nem das serpentes. Desde o
momento em que me tinha visto pairar acima do meu corpo e vira aquela velha coser o
meu sexo, já nada me podia amedrontar. Estendida no chão duro, rígida como uma pedra,
ignorando o medo, era-me indiferente se iria viver ou morrer. Tão-pouco me importava
saber que o resto da família estava em casa a conversar e a rir à lareira enquanto eu
permanecia sozinha no escuro.
44
45
À medida que os dias passavam e eu continuava estendida na minha tenda, a minha ferida
começou a infectar e a febre subiu. Eu estava cada vez mais fraca, e por vezes perdia a
consciência. Temendo a dor provocada pela micção, esforçava-me por não urinar, mas a
minha mãe disse-me:
- Meu bebé, se não fizeres chichi acabas por morrer.
E eu esforcei-me por lhe obedecer. Quando estava só, deslocava-me alguns centímetros e,
rebolando até ficar de lado, preparava-me para a dor lancinante que ia seguir-se. A dado
momento, a minha ferida estava de tal forma infectada que eu era incapaz de urinar.
Durante duas semanas a minha mãe trouxe-me de comer e de beber; durante o resto do
tempo eu estava só, com as pernas sempre atadas. E esperava que a minha ferida sarasse.
Febril, morta de aborrecimento e apática, não podia fazer mais nada a não ser pensar:
Porquê? Qual a utilidade de tudo aquilo? Com a idade que eu tinha, não compreendia
nada acerca de sexo. A única coisa que sabia é que tinha sido mutilada com o
consentimento da minha mãe, e não conseguia entender a razão.
Finalmente, a minha mãe veio procurar-me e eu arrastei-me até ao acampamento, com as
pernas sempre atadas. Nessa mesma noite, na tenda famíliar, o meu pai perguntou-me:
- Como te sentes?
Suponho que ele se referia ao meu novo estado de mulher, mas eu só conseguia pensar
na dor que sentia entre as pernas. Eu tinha cinco anos; limitei-me a sorrir, sem responder
nada. Que podia eu saber acerca de ser mulher? Apesar de não perceber na altura, eu
sabia uma série de coisas sobre o facto de se ser uma mulher africana: sabia como viver
sem dar nas vistas, sofrendo à maneira passiva e impotente de uma criança.
Durante mais de um mês, as minhas, pernas permaneceram ligadas uma à outra para que
a minha ferida sarasse. A minha mãe lembrava-me frequentemente para não correr nem
saltar, e eu arrastava suavemente os pés. Sempre fora muito activa e cheia de energia,
correndo como um leopardo, trepando às árvores ou saltando por cima das rochas, e
conhecia agora uma outra forma de suplício para uma rapariga: permanecer sentada
enquanto os seus irmãos e irmãs brincavam. Mas, totalmente aterrorizada de voltar a
passar por todo aquele tormento, mal me movia. A minha mãe certificava-se todas as
semanas de que a ferida cicatrizava convenientemente. Quando retiraram os pedaços de
pano que me ligavam as pernas, pude ver pela primeira vez o que me tinham feito: vi,
entre as minhas coxas, pele completamente lisa, à excepção de uma espécie de fecho
eclair praticamente fechado - os meus órgãos genitais estavam tão fechados como uma
parede de tijolos. Assim, nenhum homem poderia penetrar-me antes da noite de núpcias,
altura em que o meu marido me abriria com uma faca ou entraria à força dentro de mim.
46
Assim que pude recomeçar a andar, cumpri uma missão. Tinha pensado nela desde o
dia em que aquela mulher me mutilara e durante as longas semanas em que permanecera
estendida. Consistia em ir até junto do rochedo em que tinha sido sacrificada para ver se
os meus órgãos genitais ainda lá estavam. Mas tinham desaparecido, sem dúvida comidos
por um abutre ou uma hiena, predadores que participam no ciclo da vida e da morte em
África. o seu papel é o de fazer desaparecer os cadáveres, a prova mórbida da dureza da
nossa vida no deserto.
A minha excisão fizera-me sofrer bastante, e no entanto tive sorte, as coisas podiam ter
sido bem piores, como sucedia frequentemente com outras raparigas. Quando nos
deslocavámos através da Somália, encontrávamos várias outras famílias e eu costumava
brincar com as suas filhas. Mais tarde, quando voltávamos a encontrar-nos, algumas
dessas raparigas já não existiam. Ninguém dizia a verdade sobre a sua ausência: morriam
em consequência destas mutilações, das hemorragias, choques, infecções ou tétano.
Dadas as condições em que é praticada esta ablação, não é de forma alguma
surpreendente. O que é surpreendente é que algumas de nós sobrevivam a tudo isto.
Pouco me lembro da minha irmã Halemo. Eu devia ter três anos quando subitamente ela
desapareceu; não compreendi o que lhe aconteceu. Mais tarde, soube que a cigana a
tinha excisado quando o «momento especial» chegara, e Halemo sangrara até morrer.
Quando eu tinha cerca de dez anos, soube a história de uma das minhas jovens primas,
excisada aos seis anos de idade. Foi um dos seus irmãos, que veio viver connosco, quem
nos contou o que se passara. Uma mulher excisara a sua irmã e depois deitara-a na tenda
para que ela recuperasse. Mas a sua «coisa», como lhe chamava o meu primo, começara a
inchar; o cheiro que saía da tenda era insuportável. Na altura em que me contara esta
história, eu não tinha acreditado. Por que teria a minha prima cheirado mal se isso não se
passara com Aman nem comigo? Agora compreendo que ele dizia a verdade: dadas as
condições repugnantes em que a excisão era praticada, a ferida tinha infectado, e o cheiro
nauseabundo era um dos sintomas da gangrena. Segundo a tradição, a minha prima
passara as suas noites sozinha na tenda, e uma manhã, quando a sua mãe fora vê-la,
encontrara-a morta, o corpo já frio. Mas antes que os abutres tivessem tempo para fazer
desaparecer aquela prova mórbida a família enterrara a rapariga.
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FLOR DO DESERTO
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  • 1. Waris Dirie (nome que significa flor do deserto) tem uma vida dupla – durante o dia, é uma modelo famosa a nível internacional, e a porta-voz das Nações Unidas para os direitos das mulheres em África. À noite, os seus sonhos levam-na de volta a casa, na Somália. Waris nasceu numa família tradicional de doze filhos, numa tribo de nómadas do
  • 2. deserto Africano. Recorda-se da sua infância despreocupada – as brincadeiras com os irmãos, as corridas de camelos, as mudanças da família para os novos locais de pastagem... Até ao dia em que chegou a sua vez de conhecer a anciã que lhe iria aplicar o antigo costume imposto à maioria das raparigas Somalis: a mutilação genital. Waris sofreu esta tortura quando tinha apenas cinco anos de idade. Quando, já com doze anos, o seu pai tentou negociar o seu casamento com um desconhecido de 60 anos, em troca de cinco camelos, Waris desapareceu. Após uma extraordinária fuga pelo deserto, conseguiu chegar a Londres, onde trabalhou como empregada do embaixador da Somália, até ao regresso deste a África. Sem dinheiro e com poucos conhecimentos da língua Inglesa, empregou-se então como porteira do MacDonalds onde viria a ser descoberta por um fotógrafo de moda. A sua história é uma fonte de inspiração e um extraordinário autorretrato de uma mulher memorável, cuja personalidade é tão arrebatadora com a sua beleza. Waris Dirie é uma modelo famosa e a imagem dos produtos de beleza da Revlon. Em 1997, foi nomeada pelas nações unidas embaixadora para os direitos das mulheres, na luta pela eliminação da prática da mutilação genital feminina. Vive atualmente em Nova Iorque com o namorado e o filho de ambos. Os direitos cinematográficos do seu livro foram vendidos à Rocket Pictures, a empresa de cinema de Elton John. WARIS DIRIE e CATHLEEN MILLER FLOR DO DESERTO A EXTRAORDINÁRIA ODISSEIA DE UMA NÓMADA DO DESERTO A MINHA MÃE Connosco em pleno ciclone, sobrevivemos apenas graças à força de vontade. Dedico, pois, este livro à mulher que me carregou aos ombros, àquela cuja determinação é inabalável: a minha mãe, Fattuma Ahmed Aderi. Enquanto se defrontava com uma inimaginável adversidade, sempre deu provas de fé. Dedicou-se de forma igual aos seus doze filhos (um feito notável) e mostrou um discernimento capaz de tomar humilde o sábio mais perspicaz. Fez inúmeros sacrifícios, sem se queixar, e nós, os seus filhos e filhas, sabíamos que ela nos deu sem reservas tudo o que possuía. Ela conheceu a dor intolerável de ver morrer vários dos seus filhos, mas nunca perdeu a coragem e encontrou sempre força para continuar a lutar pelos que lhe restavam. A sua generosidade, a sua grandeza de alma, a sua bondade a sua beleza, são lendárias. Mãe, amo-te, respeito-te e lembro-te com carinho; e agradeço Alá Todo-Poderoso ter-me dado uma mãe como tu. Rezo para
  • 3. que Ele me ajude a honrar-te criando o meu filho como tu fizeste, infatigavelmente, com os teus filhos. És a saia escocesa que o jovem dândi escolheu. És o tapete precioso que custou milhões. Alguma vez encontrarei alguém como tu - tu, que só vi uma vez? Um guarda-chuva parte-se; tu és forte como o ferro forjado. És como o oiro de Nairobi, finamente moldado. És o sol que se levanta, os primeiros raios da aurora, Alguma vez encontrarei alguém como tu - tu, que só vi uma vez? Poema tradicional somali NOTA DOS AUTORES Flor do Deserto é o relato verídico da vida de Waris Dirie, e todos os eventos apresentados são factuais, baseados nas suas memórias. Com o intuito de respeitar a vida privada das pessoas retratadas nesta obra, utilizámos pseudónimos para a maioria delas. A FUGA Arrancada ao meu sono por um ligeiro ruído, entreabri os olhos e vi apenas uma coisa, a cabeça de um leão! Totalmente desperta e fascinada, senti os meus olhos abrirem-se desmesuradamente como se quisessem conter o animal inteiro que estava diante de mim. Tentei levantar-me, mas as minhas pernas fracas recusaram-se a obedecer-me pois não comia há vários dias. Deixei-me cair contra a árvore debaixo da qual me abrigara para me proteger daquele sol implacável em pleno meio-dia no deserto africano. Fechei os olhos e encostei suavemente a cabeça contra a casca rugosa da árvore. O leão estava tão próximo que sentia o seu cheiro almiscarado no ar quente. Dirigi-me a Alá: - É o meu fim, meu Deus. Leva-me, peço-te. A minha longa viagem através do deserto chegara ao fim. Não tinha nada para proteger, nenhuma arma. Nem forças para correr. Mesmo na melhor das hipóteses, sabia não conseguiria escapar ao leão subindo à árvore porque, como todos os felinos, era certamente um excelente trepador e, com as suas garras poderosas, seria muito mais rápido que eu. Quando eu tivesse atingido apenas meia altura - ZÁS -, uma patada e seria o meu fim. Não sentindo qualquer espécie de medo, voltei a abrir os olhos e disse-lhe: - Vês estou pronta. Era um belo macho, com uma juba dourada e uma longa cauda que abanava incessantemente para repelir as moscas. Tinha uns cinco ou seis anos, era jovem e saudável. Eu sabia que podia esmagar-me num abrir e fechar de olhos - ele era o rei. Durante toda a minha vida tinha visto aquelas patas atacarem zebras e algumas centenas de quilos mais pesados que eu. O leão observou-me com os seus olhos cor de mel piscando suavemente. Fixei os seus olhos castanhos, e ele desviou o olhar. - Vamos, acaba comigo. - Ele observou-me
  • 4. novo antes de desviar o olhar. Lambeu as mandíbulas e sentou-se. Depois levantou-se de novo, caminhou diante de mim, para a frente e para trás, com um andar sensual, elegante. Acabou por se virar e afastar-se, certamente convicto de que os meus ossos tinham tão pouca carne que não valia a pena comer-me. Vi-o afastar-se com grandes passadas através do deserto, até a sua pele dourada se confundir com a areia. Não me senti aliviada quando compreendi que o leão não me mataria, porque não tinha tido medo. Estava pronta para morrer. Mas Deus, que sempre foi o meu melhor amigo, tinha outros planos para mim, e uma razão para me manter viva. Perguntei-lhe: - Qual? Toma a minha mão, conduz-me! - e levantei-me penosamente. Tinha iniciado esta viagem de pesadelo para fugir ao meu pai. Naquela altura, eu devia ter treze anos e vivia com a minha família, uma tribo nómada no deserto da Somália. O meu pai anunciara o meu casamento próximo com um homem mais velho. Sabendo que tinha de agir com rapidez, antes que o meu novo marido me viesse buscar, dissera à minha mãe que queria fugir. O meu plano era encontrar a minha tia materna que vivia em Mogadíscio, a capital da Somália. Claro que eu nunca tinha ido a Mogadíscio, nem de resto a nenhuma outra cidade do género. E também nunca tinha conhecido a minha tia. Mas com o otimismo de uma criança, sentia que de uma forma ou de outra, como que por encanto, as coisas correriam de feição. Enquanto o meu pai e o resto da família ainda dormiam, a minha mãe acordou-me e disse-me: - Chegou a hora. Vai! - Eu olhei em volta para ver se havia alguma coisa que pudesse agarrar para levar comigo, mas não havia nada, nem uma garrafa de água, nem um jarro de leite, nem um cesto de comida. Por isso, descalça, apenas com um longo lenço envolvendo-me o corpo, precipitei-me na noite escura do deserto. Não sabia que direção tomar para Mogadíscio, por isso limitei-me a seguir em frente. Lentamente a princípio, porque não via nada; avançava escorregando e tropeçando nas raízes. Finalmente, decidi sentar-me enquanto esperava que o dia nascesse, porque em África as serpentes abundam, e eu tinha pavor a esses animais. Imaginava que cada raiz onde punha o pé era uma cobra venenosa. Observei o céu iluminar-se progressivamente e, mesmo antes de o sol se levantar, ooops!, já tinha saltado como uma gazela. Corri, corri, corri durante horas. Por volta do meio-dia, estava perdida muito longe na areia vermelha, e muito longe também nos meus pensamentos. Perguntei-me aonde diabo ia. Não sabia que direção tomar. A paisagem estendia-se até ao infinito; apenas uma acácia ou um arbusto espinhoso quebrava por vezes a uniformidade da areia. Esfomeada, sedenta e cansada, abrandei o passo e avancei lentamente numa espécie de transe, pensando aonde me levaria a minha nova vida, no que iria acontecer-me a seguir. Enquanto me punha todas estas questões, pareceu-me ouvir alguém chamar: W-A-R-I-S!... W-A-R-I-S!... - Era a voz do meu pai. Mas não vi ninguém. Pensei que era a minha imaginação a fazer-me das suas. - W-A-R-I-S!... W-A-R-I-S!... - O grito ecoava por toda a parte. O tom era suplicante, mas eu tinha muito medo. Se o meu pai me apanhasse, levar-me-ia certamente de volta para casa e obrigar-me-ia a casar com o tal homem. E provavelmente bater-me-ia ainda por cima. A voz era bastante real e estava cada vez mais próxima. Desatei a correr, tão depressa quanto podia. Apesar do meu avanço de várias horas, ele havia-me quase alcançado. Mais tarde, compreendi que ele
  • 5. me encontrara seguindo as minhas pegadas na areia. Pensei que ele era demasiado velho para me apanhar; eu era jovem e ágil. Para a minha mente infantil, ele era um velho. Hoje, lembro-me, rindo, que ele devia ter cerca de uns trinta anos. Toda a minha família estava em plena forma física, porque andávamos sempre a correr por toda a parte; não tínhamos carro, nem qualquer tipo de transporte público. Eu corria sempre muito depressa: para caçar animais, para ir buscar água, para não me deixar surpreender pela escuridão e voltar a casa antes do cair da noite. Ao fim de um bocado, tendo deixado de ouvir a voz do meu pai, abrandei o passo. Achei que, se continuasse assim, ele cansar-se-ia e voltaria para casa. De repente voltei-me e vi-o avançar na minha direção. Ele também me tinha visto. Aterrorizada, corri mais depressa. E mais depressa ainda. Era um pouco como se estivéssemos a fazer surf em ondas de areia. Eu lançava-me para o alto de uma duna enquanto ele descia deslizando pela que se encontrava atrás de mim. Continuámos assim durante horas até que finalmente compreendi que ele já desaparecera há algum tempo. Já não ouvia gritar o meu nome. Com o coração a bater desordenadamente, parei e olhei em volta, escondida atrás de um arbusto. Nada. Escutei com muita atenção. Nem um som. Atravessei um pequeno leito rochoso e parei para descansar. O meu erro da noite anterior servira-me de lição. Quando retomei a marcha, andei por entre as rochas onde o chão era duro e depois mudei de direção para que o meu pai não pudesse seguir as minhas pegadas. Ele tinha provavelmente feito meia volta tentando voltar para casa, uma vez que o sol estava a pôr-se. No entanto, não conseguiria chegar antes do anoitecer. Teria de correr na escuridão, tentando ouvir os sons noturnos produzidos pela nossa família até encontrar caminho graças às vozes das crianças que gritavam e riam e aos ruídos dos rebanhos que baliam e mugiam. No deserto, o vento transporta os sons para muito longe e servem-nos de ponto de referência quando nos perdemos à noite. 11
  • 6. Depois de ter andado sobre as rochas, mudei de direção. Não importava que direção escolhesse uma vez que, fosse como fosse, eu ignorava o caminho a tomar para chegar a Mogadíscio. Continuei a correr até o sol se pôr, até a luz desaparecer e a noite ser tão escura que não conseguia ver nada. Nessa altura, tinha tanta fome que já não conseguia pensar senão em comer. Os meus pés sangravam. Sentei-me debaixo de uma árvore para descansar e adormeci. De manhã, o calor do sol no meu rosto acordou-me. Abri os olhos e vi a folhagem de um belo eucalipto que se estendia para o céu. Pouco a pouco, lembrei-me da situação em que me encontrava. Meu Deus, estou completamente só, não sei o que hei-de fazer. Levantei-me e retomei a minha corrida. Consegui continuar assim durante vários dias, não sei ao certo quantos. Sei apenas que o tempo já não existia para mim. Restava-me apenas a fome, a sede, o medo e a dor. Quando estava demasiado escuro para ver, parava para descansar. Ao meio-dia, quando o sol estava mais quente, sentava-me debaixo de uma árvore para fazer uma curta sesta. Foi durante uma dessas sestas que o leão me acordou. Nessa altura, já não queria saber da minha liberdade; a única coisa que queria era voltar para junto da minha mãe. Mais do que comida ou bebida, sentia falta dela. Apesar de ser normal para nós passarmos um ou dois dias sem comer nem beber, eu sabia que não poderia sobreviver durante muito mais tempo assim. Sentia-me fraca e mal conseguia mexer-me; os meus pés estavam tão gretados e tão doridos que cada passo era um verdadeiro suplício. Quando o leão se sentou diante de mim a lamber as mandíbulas, eu já tinha desistido. Aceitei aquela morte rápida como uma forma de pôr termo ao meu sofrimento. Mas ao ver os meus ossos salientes sob a pele, as minhas faces chupadas e os meus olhos inchados, o leão afastou-se. Não sei se teve pena de um ser tão miserável, se decidiu, pragmaticamente, que eu nem sequer daria um aperitivo de jeito, ou se Deus intercedeu em meu favor. Pensei que, se Deus me tinha salvo a vida, não seria tão impiedoso que me deixasse morrer em seguida de uma forma mais cruel ainda, de fome, por exemplo. Tinha certamente outros planos para mim e implorei-lhe ajuda: - Toma a minha mão, guia-me. - Agarrei-me ao tronco e consegui levantar-me. Retomei a minha caminhada e, alguns minutos mais tarde, deparei com um rebanho de camelos. Havia-os por toda a parte. Escolhi o animal que parecia ter mais leite e precipitei-me para ele. Comecei a mamar como um bebé. O pastor do rebanho deu pela minha presença e gritou: - Sai daí, sua cabrinha! Ouvi o estalido de um longo chicote, mas tinha tanta fome que continuei a mamar engolindo todo o leite que podia. O pastor precipitou-se para mim aos gritos pois sabia que se não me amedrontasse, quando chegasse ao pé de mim já não teria mais leite. Mas eu tinha bebido o suficiente, por isso comecei a correr. Ele perseguiu-me e atingiu-me por duas vezes com o chicote antes de eu conseguir afastar-me. Eu era mais rápida do que ele, e ele deteve-se amaldiçoando-me sob o sol do meio-dia. Agora que já tinha enchido o estômago, sentia-me cheia de energia. Continuei a correr, e corri mais ainda, até chegar a uma aldeia. Nunca tinha visto um lugar semelhante, com edifícios e ruas de terra batida. Eu andava em plena rua, convencida de que era isso que devia fazer, e olhava em todas as direções, boquiaberta diante daquele estranho cenário. Uma mulher passou ao meu lado, olhou-me da cabeça aos pés e disse:
  • 7. - És completamente idiota! Onde julgas que estás? - Depois dirigiu-se a outros aldeãos que desciam a rua: - Meu Deus! Olhem-me para aquilo. Ela apontava para os meus pés gretados e cobertos de sangue seco. - Deve ser uma dessas pobres campónias. Acertara em cheio. Depois gritou-me: - Menina, se queres continuar a viver, sai do meio da rua! Sai daí! Fez-me sinal para ir para o passeio, e depois desatou a rir. Todos tinham ouvido e eu senti-me extremamente embaraçada. Baixei a cabeça e saí da aldeia continuando a andar pelo meio da estrada, porque não tinha compreendido o que mulher quisera dizer. Pouco depois apareceu um camião. BEEP! BEEP! Tive de saltar para berma a fim de o evitar. Voltei-me, de frente para o trânsito e, ao ver os carros e camiões que avançavam na minha direção, estendi a mão esperando que alguém parasse e me ajudasse. Não posso dizer que estava a pedir boleia; nem sequer sabia o que essa palavra significava. Limitei-me a permanecer no meio da estrada com a mão levantada. Um carro passou a derrapar e quase me arrancava o braço. Pulei para a berma e continuei a avançar, estendendo a mão com mais cuidado desta vez. Olhava para os condutores dos carros que passavam, rezando silenciosamente para que um deles parasse e me ajudasse. Finalmente um camião parou. Não estou orgulhosa do que se passou em seguida, do que me aconteceu, e que posso eu fazer senão dizer a verdade? Ainda hoje, quando penso naquele camião, lamento não ter seguido o meu instinto e continuado o meu caminho. O camião transportava um carregamento de pedras de construção, todas lascadas e de tamanho de bolas de softball. Havia dois homens na cabina; o motorista abriu a porta disse-me em somali: - Sobe, querida. Eu sentia-me impotente e morta de medo. Eu vou para Mogadíscio - expliquei. Levo-te aonde quiseres - disse o homem sorrindo. Os seus dentes eram avermelhados. Eu sabia que aquela cor castanho-avermelhada não era causada pelo tabaco, mas pelo khat; tinha visto o meu pai mastigá-lo uma vez. Esta planta narcótica que os homens mastigam é semelhante à cocaína. As mulheres não têm o direito de lhe tocar, e ainda bem, porque torna as pessoas loucas, sobrexcitadas, agressivas, e destruiu inúmeras vidas. Eu sabia que estava em maus lençóis, mas não sabia que outra coisa podia fazer, por isso aceitei. O motorista disse-me para saltar para a traseira. A ideia de ficar separada daqueles dois homens reconfortou-me. Por isso, instalei-me no reboque, a um canto, sobre o monte de pedras. Nesse momento já estava escuro e fresco no deserto. Quando o camião retomou a sua marcha, senti frio e estendi-me para me proteger do vento. Em seguida, lembro-me apenas de que o homem que acompanhava, o motorista se encontrava subitamente ao meu lado, ajoelhado sobre as pedras. Tinha cara de quarenta anos e era feio, muito feio. Tão feio que estava a ficar sem cabelo; era praticamente careca. Compensava este facto deixando crescer um bigodinho. Os seus dentes eram ratados e faltavam alguns; os que lhe restavam estavam manchados de um castanho-avermelhado horrível mas apesar disso ele sorria-me, exibindo-os orgulhosamente. Por mais que eu viva, jamais esquecerei a expressão lúbrica do seu rosto. Ainda por cima era gordo, como descobri quando baixou as calças. O seu pénis em ereção
  • 8. estendeu-se na minha direção enquanto ele me segurava nas pernas tentando afastá-las. - Oh não! Por favor, não! - Supliquei-lhe. Enrolei as minhas pernas magrizelas como uma corda entrançada e mantive-as bem apertadas. Lutámos durante um momento e depois, como aquilo não levava a lado nenhum, ele levantou a mão e esbofeteou-me com força na cara. Deixei escapar um grito agudo que se perdeu no ar enquanto o camião rolava a toda a velocidade. - ABRE AS PUTAS DAS PERNAS! Lutámos, ele com todo o peso do seu corpo em cima de mim enquanto as pedras lascadas me laceravam as costas. Levantou a mão de novo e bateu-me ainda com mais força. Nesse momento compreendi que tinha de adotar uma nova tática; ele era demasiado forte para mim. Era evidente que aquele homem sabia o que estava a fazer. Ao contrário de mim, experiência não lhe faltava e provavelmente violara inúmeras mulheres; eu estava simplesmente prestes a tornar-me a sua próxima vítima. Quis desesperadamente matá-lo, mas não tinha nenhuma arma. Então fingi que o desejava. Disse-lhe suavemente: - Está bem, está bem. Mas primeiro tenho de fazer chichi. Percebi que a sua excitação aumentava - eh, aquela miúda desejava-o! - E deixou-me levantar. Fui para o canto oposto e, agachando-me, fingi fazer chichi. Isto deu-me alguns minutos para refletir. Quando terminei a minha pequena farsa, já tinha um plano. Agarrei na pedra maior que pude encontrar, voltei para junto dele e deitei-me a seu lado. Ele saltou para cima de mim e eu apertei a pedra na mão. Levantei-a e, com todas as minhas forças, desferi-lhe um golpe em plena fronte. Ele ficou atordoado. Atingi-o outra vez, e vi-o tombar. Como um guerreiro, eu tinha subitamente uma força tremenda, uma força que ignorava possuir. Quando alguém tenta atacar-nos, matar-nos, tornamo-nos bastante fortes. Não sabemos mesmo até que ponto podemos sê-lo antes desse momento. Quando já estava estendido, atingi-o de novo e o sangue jorrou-lhe da orelha. O seu amigo, o motorista, viu o que se passava da cabina. Começou a gritar: - Que merda é essa aí atrás? Procurou um lugar para estacionar entre os arbustos. Eu sabia que se ele me apanhasse seria o meu fim. Quando o camião abrandou, saltei para a parte de trás do reboque, equilibrei-me nas pedras e saltei para o chão como um gato. Depois desatei a correr para salvar a vida. O motorista do camião era um velho. Desceu da cabina e começou a gritar: - Mataste o meu amigo! Volta aqui! Mataste-o! Perseguiu-me por entre os arbustos espinhosos durante um momento, e depois desistiu; pelo menos foi o que me pareceu. Mas na realidade ele voltou para o camião, subiu para a cabina, acendeu os faróis e lançou-se em minha perseguição através do deserto. Os faróis iluminavam o chão à minha volta e eu ouvia o rugido do motor. Corri tão depressa quanto pude, mas claro que o camião ia ganhando terreno. Então comecei a correr em ziguezague no escuro. Era-lhe impossível seguir-me, e acabou por desistir retomando a estrada. Continuei a correr através do deserto como um animal perseguido, sem fazer a menor ideia do sítio onde me encontrava. O sol levantou-se e continuei a correr. Finalmente fui
  • 9. dar a outra estrada. Apesar de estar morta de medo com a ideia do que poderia acontecer, decidi pedir de novo boleia para me afastar o mais rapidamente possível do motorista do camião e do seu amigo. Não sabia o que tinha acontecido ao meu agressor, e nunca o soube, mas acima de tudo não voltar a encontrar aqueles dois homens. De pé na beira da estrada, à luz do sol matinal, devia estar numa linda figura. O lenço que me envolvia era apenas um trapo sujo; tinha corrido pela areia durante vários dias e tinha a pele e os cabelos cobertos de poeira; os meus braços e as minhas pernas pareciam ramos frágeis que um sopro de vento poderia quebrar; tinha os pés cobertos de feridas que poderiam rivalizar com as de um leproso. Estendi a mão, e fiz sinal ao Mercedes para parar. Um homem elegantemente vestido estacionou na berma da estrada. Deslizei para o assento de couro a seu lado, e fiquei deslumbrada diante de tanto luxo. - Para onde vais? - Perguntou-me o condutor. - Naquela direção - disse eu apontando em frente na direção em que o carro seguia. O homem abriu a boca, mostrando uns belos dentes brancos, e desatou a rir. CRESCENDO COM OS ANIMAIS Antes de eu ter fugido de casa, a minha vida girava em volta da natureza, da minha família e dos animais que nos permitiam viver e aos quais estávamos ligados por laços muito fortes. Desde que me lembro, sempre partilhei esta característica comum a todas as crianças: o amor pelos animais. Na verdade, a minha memória mais longínqua diz respeito ao meu bode Billy. Billy era o meu tesouro pessoal, representava tudo para mim, e se o amei tanto foi talvez por ele ser, tal como eu, um bebé. Eu levava-lhe tudo o que encontrava de bom para comer, e ele era o mais feliz e o mais rechonchudo do rebanho. A minha mãe estava sempre a perguntar: - Por que é que aquele bode é tão gordo enquanto os outros são tão escanzelados? - Eu cuidava bem dele, tratava-lhe do pêlo, acariciava-o e falava com ele durante horas. A minha relação com Billy simbolizava o nosso modo de vida na Somália. O nosso destino estava intimamente ligado ao dos rebanhos que guardávamos. Depender dos animais obrigava-nos a um grande respeito por eles, e esse sentimento estava presente em tudo o que fazíamos. Todas as crianças da nossa família cuidavam dos animais, tarefa que desempenhávamos desde que aprendíamos a andar. Crescíamos com os animais, prosperando quando eles Prosperavam, sofrendo quando eles sofriam, morrendo quando eles morriam. Criávamos vacas, ovelhas e cabras, mas se eu amava ternamente o meu pequeno Billy, os camelos eram sem sombra de dúvida os animais mais importantes que possuíamos. O camelo é um animal lendário entre nós; a Somália orgulha-se de ter mais camelos do que qualquer outro país do mundo; na Somália, há mais camelos do que habitantes. Temos uma longa tradição oral e a maioria dos nossos poemas servem para transmitir, de uma geração a outra, informações sobre o camelo, a fim de sublinhar a sua importância 17
  • 10. capital para a nossa cultura. Lembro-me de a minha mãe cantar uma canção que dizia mais ou menos: O meu camelo fugiu para ir ter com um homem mau que o matará ou roubará. Por isso, suplico-te: por favor, traz de volta o meu camelo. Desde muito pequena conheci a enorme importância destes animais que valem ouro na nossa sociedade. É impossível viver no deserto sem eles. Até a vida de um homem é mensurável em camelos: cem camelos por um homem morto, é o preço a pagar pelo clã do assassino à família da vítima, senão o clã do homem morto reclamará o castigo do assassino. O preço a pagar por uma esposa conta-se também em camelos. Mas, no dia-a-dia, os camelos permitem-nos viver, pois nenhum outro animal se adapta melhor à vida no deserto. Um camelo necessita apenas de beber uma vez por semana, mas pode aguentar no máximo um mês sem água. Entretanto, o leite da camela alimenta-nos e mata a nossa sede, uma enorme vantagem quando nos encontramos longe da água. Mesmo nas temperaturas mais elevadas, os camelos conseguem sobreviver armazenando água. Comem arbustos secos que encontramos nas nossas regiões áridas, deixando a erva para o gado. Também servem para nos deslocarmos pelo deserto, para transportarmos os nossos parcos haveres e para pagarmos as nossas dívidas. Noutros países, podemos saltar para dentro de um carro e partir, mas o nosso único transporte, para além de andar a pé, é o camelo. A personalidade do camelo é muito semelhante à de um cavalo; a longo prazo, estabelece-se uma relação estreita entre o animal e o seu dono, e o camelo fará por este último o que não faria por mais ninguém. Os homens «quebram» os jovens camelos - uma prática perigosa -, treinam-nos para serem montados e ensinam-lhes a seguirem-se uns aos outros. É muito importante ser-se firme com eles porque, quando sentem que o condutor é fraco, fazem-no tombar ou dão-lhe coices. Como a maioria dos somalis, nós levávamos uma existência de pastores nómadas. Apesar de lutarmos constantemente pela sobrevivência, segundo os padrões do nosso país, o valor do gado que possuíamos fazia de nós pessoas ricas. Seguindo a tradição, os rapazes guardavam os animais maiores, bovinos e camelos, e as raparigas os outros. Nunca permanecíamos no mesmo lugar mais do que três ou quatro semanas. Estas deslocações constantes eram-nos impostas pela necessidade de tomar conta dos nossos animais. Procurávamos água e comida para os manter vivos, o que, no clima seco da Somália, não era nada fácil. A nossa casa era uma cabana de erva entrançada. Utilizávamo-la como uma tenda. Construíamos uma base com ramos, depois a minha mãe fazia estruturas de erva entrançada que colocávamos sobre os ramos vergados para formar uma cúpula com cerca de dois metros de diâmetro. Quando chegava a altura de partir, desmontávamos a tenda e atávamos os ramos e as esteiras, com os nossos outros pertences, ao dorso dos camelos; são uns animais inacreditavelmente fortes. Instalávamos os bebés e as crianças mais pequenas no topo e o resto da família seguia a pé, conduzindo
  • 11. os rebanhos. Quando encontrávamos um local com água e folhagem para pastagem, montávamos de novo o acampamento. A tenda oferecia abrigo para os bebés, sombra para o sol do meio-dia, e um lugar onde guardar o leite fresco. À noite dormíamos ao relento, e as crianças apertavam-se umas contra as outras sobre uma esteira. Quando o sol se punha, fazia frio; como não havia cobertores suficientes para todas as crianças e não tínhamos muita roupa, usávamos o calor dos nossos corpos para nos aquecermos. O meu pai dormia à parte; era o nosso guarda, o protector da família. Levantávamo-nos com o nascer do dia. A nossa primeira tarefa consistia em dirigirmos-nos para a cerca onde os animais estavam guardados e tratar deles. Onde quer que estivéssemos, cortávamos arbustos para construir as cercas nas quais os enclausurávamos para os impedir de deambular à noite. Separávamos as crias das mães para que não mamassem o leite todo. Eu estava encarregada de tratar das vacas, de guardar uma parte da ordenha para fazer manteiga, mas deixava leite suficiente para as crias. Após a ordenha, deixávamos as crias entrarem na cerca das mães para se alimentarem. Depois tomávamos o nosso pequeno-almoço: leite de camelo, bastante mais nutritivo do que os outros porque contém vitamina C. A nossa região era demasiado seca para medrar culturas, e não tínhamos legumes nem cereais. Por vezes seguíamos os javalis africanos que conseguem farejar as raízes comestíveis e desenterrá-las com os cascos e o focinho para obterem um belo repasto. Roubávamos-lhes uma parte do seu manjar para melhorar o nosso regime. O abate de animais por causa da carne era considerado um desperdício e apenas recorríamos a isso em caso de urgência ou em ocasiões excepcionais como um casamento. Os nossos animais eram demasiado valiosos para os matarmos ou comermos. Criávamo-los pelo seu leite e para os trocarmos por outras mercadorias de que tínhamos necessidade. Como base de alimentação quotidiana, tínhamos apenas leite de camelo de manhã e ao fim do dia. Por vezes nem sequer chegava para todos, e dávamos em primeiro lugar às crianças mais novas, depois às mais velhas, e assim sucessivamente. A minha mãe nunca comia uma migalha do que fosse antes de todos se terem servido. Na verdade, não me lembro de a ver comer, apesar de saber que certamente também comia. Se não tínhamos nada para jantar, não fazíamos disso um drama, não havia razão para entrar em pânico, nem necessidade de 18 19
  • 12. chorarmos ou de nos queixarmos. As crianças mais novas podiam fazê-lo, mas as mais velhas conheciam as regras: íamos simplesmente deitar-nos. Fazíamos tudo para permanecer alegres, manter a calma e a serenidade; no dia seguinte, se Deus quisesse, encontraríamos uma solução. A nossa filosofia resumia-se à seguinte fórmula: Inch’Allah, «Se Deus quiser». Sabíamos que as nossas vidas dependiam das forças da natureza, e só Deus controlava essas forças. Quando o meu pai trazia um saco de arroz, era um verdadeiro acontecimento, o que os habitantes de outras partes do mundo consideram uma festa. Nessas ocasiões, utilizávamos a manteiga que fazíamos batendo leite de vaca num cesto que a minha mãe cerzira. Por vezes, trocávamos uma cabra por milho que crescia nas regiões mais húmidas da Somália. Reduzíamo-lo a farinha para o transformar em papa de aveia, ou fazíamo-lo estalar num recipiente sobre o fogo. Quando outras famílias se encontravam por perto, partilhávamos sempre o que tínhamos. Se algum de nós tinha tâmaras, raízes ou matara um animal, preparávamos tudo e cada um comia a sua parte. Aproveitávamos todos esses momentos afortunados porque, embora estivéssemos isolados a maior parte do tempo, deslocando-nos apenas na companhia de uma ou duas outras famílias, fazíamos parte de uma comunidade bastante maior. De um ponto de vista prático, como não tínhamos frigorífico, a carne e outros alimentos frescos deviam ser consumidos o mais rapidamente possível. Todas as manhãs, após o pequeno-almoço, tínhamos de obrigar os animais a sair da cerca. Desde os seis anos de idade fiquei encarregada de cuidar de rebanhos com sessenta ou setenta ovelhas e cabras. Levava um cajado comprido e partia sozinha com os meus animais, cantando uma pequena canção para os guiar. Se algum deles se afastava do rebanho, utilizava o cajado para o reconduzir ao caminho certo. Eles estavam impacientes porque sabiam que sair da cerca significava que chegara o momento de comer. Era muito importante partir cedo, a fim de encontrar o melhor lugar com água fresca e erva abundante. Todos os dias tentava ganhar avanço sobre os outros pastores, para evitar que os seus animais bebessem a pouca água disponível. Além disso, temia que o terreno seco absorvesse tudo à medida que o sol se tornava mais quente. Certificava-me de que os animais bebiam a maior quantidade de água possível, porque talvez só a encontrássemos dali a uma semana, ou duas, ou mesmo três. Na época da seca, o mais triste era ver os animais morrerem. Cada dia nos deslocávamos mais longe à procura de água. O rebanho tentava seguir-nos, mas acabava por desistir. Quando os animais se iam abaixo, experimentávamos um terrível sentimento de impotência, porque sabíamos que era o fim e não havia nada que pudéssemos fazer. Na Somália, ninguém possui uma pastagem; por isso, eu tinha de ser esperta e descobrir os locais onde cresciam plantas em abundância para as minhas ovelhas e cabras. Por instinto de sobrevivência, aprendera a reconhecer os sinais indicadores de chuva, 20 perscrutava o céu à procura de nuvens. Os meus outros sentidos também desempenhavam um papel importante porque determinado cheiro ou uma certa impressão no ar podiam fazer prever chuva. Enquanto os animais pastavam, eu vigiava os predadores; há-os por toda a parte em
  • 13. África. As hienas aproximavam-se furtivamente e saltavam sobre um cordeiro ou um cabrito tresmalhado do rebanho. Eu também tinha medo dos leões e dos cães selvagens, que se deslocavam em grupo, mas eu estava sozinha. Observando o céu, calculava quando tinha de partir para estar de volta ao acampamento antes do cair da noite.. Mas muitas vezes enganava-me, e tive bastantes aborrecimentos. Enquanto tropeçava no escuro, as hienas atacavam o rebanho porque sabiam que eu não as podia ver. Quando conseguia apanhar uma, havia outra que conseguia deslizar por detrás de mim; e se eu a perseguia, uma terceira precipitava-se enquanto eu estava de costas voltadas. As hienas são os piores predadores porque são obstinadas. Nunca desistem antes de terem obtido algo. Todas as noites, ao chegar ao acampamento e antes de encerrar os animais na cerca, contava-os várias vezes para ter a certeza de que não faltava nenhum. Uma noite contei as minhas cabras e compreendi que faltava uma. Voltei a contar, e contei ainda uma vez mais. Subitamente, compreendi que não tinha visto Billy e precipitei-me por entre as cabras para o procurar. Em seguida corri para a minha mãe, a gritar: - Mãe, Billy não está aqui! Que hei-de fazer? Mas claro que já era demasiado tarde, e ela limitou-se a acariciar-me a cabeça enquanto eu chorava, compreendendo que as hienas tinham comido o meu animal favorito, tão rechonchudo. Acontecesse o que acontecesse, tínhamos de continuar a tomar conta do gado: continuava a ser a nossa prioridade, apesar da seca, da doença ou da guerra. Na Somália, os constantes problemas políticos causavam vários problemas nas cidades, mas nós estávamos tão isolados que a maior parte do tempo ninguém nos vinha perturbar. Um dia, quando eu tinha cerca de nove anos, um grande exército instalou o seu acampamento próximo do nosso. Tínhamos ouvido contar histórias sobre soldados que violavam as raparigas sós, e eu conhecia uma a quem isso acontecera. Que o exército fosse composto por somalis ou por marcianos, Pouco nos importava, aqueles soldados não faziam parte do nosso povo, não eram nómadas, e evitávamo-los a todo o custo. Uma manhã o meu pai ordenou-me que fosse dar de beber aos camelos e afastei-me com o meu rebanho. Durante a noite, o exército montara o acampamento à beira da estrada; as tendas e os camiões estendiam-se a perder de vista. Escondida atrás de uma árvore, 21
  • 14. observei os soldados que abundavam, vestidos com os seus uniformes. Pensava no que tinha acontecido à outra rapariga e estava aterrorizada. Não havia ninguém nas redondezas para me defender, e aqueles homens poderiam fazer-me o que lhes apetecesse. Detestei-os à primeira vista. Detestei os seus uniformes, os seus camiões, as suas armas. Nem sequer sabia o que eles tinham vindo fazer; no que me dizia respeito, que eles estivessem ali para salvar a Somália não mudava rigorosamente nada. Contudo, os meus camelos precisavam de água. O único caminho que me teria permitido evitar o acampamento militar era demasiado comprido e fazia demasiados desvios para que eu o percorresse com o meu rebanho. Por isso, decidi desatar os camelos e deixá-los atravessar o acampamento sozinhos: passaram pelo meio dos soldados e dirigiram-se directamente para a água, como eu esperava. Contornei o acampamento a toda a velocidade, escondendo-me atrás dos arbustos e das árvores, e fui ter com os meus animais ao outro lado do oásis. Depois, quando o céu escureceu, repetimos a nossa pequena manobra e voltámos ao acampamento sãos e salvos. Todas as noites, depois de ter voltado ao pôr-do-sol e de ter encerrado os animais na cerca, havia que tratar deles de novo. Pendurávamos chocalhos de madeira ao pescoço deles. O som desses chocalhos é verdadeira música para os nómadas que, ao crepúsculo, ouvem aqueles sons côncavos e surdos quando a ordenha começa. Esta música serve de ponto de referência aos viajantes que regressam a casa ao anoitecer. Durante os trabalhos a esta hora, a grande curva do céu escurece, e surge então uma estrela brilhante, sinal de que chegou a hora de fechar as ovelhas na sua cerca. Noutros países, este planeta é conhecido como Vénus, o planeta do amor, mas no meu país chamamos-lhe maqa1 hidhid, o que significa que chegou a hora de «esconder os cordeiros». Era normalmente por esta altura que os meus aborrecimentos começavam porque, após ter trabalhado desde o nascer-do-sol, já não conseguia manter os olhos abertos. Caminhando ao crepúsculo, acontecia-me adormecer no meio das cabras que me pisavam; ou então, quando me agachava para as mungir, a minha cabeça começava a tombar. Se o meu pai me surpreendia nessas alturas, meu Deus! Eu gosto do meu pai, mas ele podia mostrar-se verdadeiramente duro. Quando me apanhava assim a dormitar, batia-me para me obrigar a levar o meu trabalho a sério e a aplicar-me ainda mais. Quando terminávamos as nossas tarefas, jantávamos leite de camelo, depois apanhávamos madeira para fazer uma fogueira e sentávamo-nos a sentir o seu calor, conversando e rindo até ao momento em que nos íamos deitar. Essas noites são, entre as minhas memórias da Somália, as minhas preferidas: aqueles momentos em que me sentava com a minha mãe, o meu pai, os meus irmãos e irmãs em volta do fogo, quando toda a gente estava saciada e ria. Esforçávamo-nos sempre por ser optimistas. Ninguém se queixava, ninguém choramingava ou dizia: «E se conversássemos sobre a morte?». A vida era muito dura; precisávamos de todas as nossas forças para sobreviver e mostrar-nos negativos teria acabado com a nossa energia vital. Estávamos longe de qualquer aldeia, e no entanto eu nunca estava só porque brincava com os meus irmãos e irmãs. Tinha um irmão e duas irmãs mais velhas, e vários irmãos e irmãs mais novos. Passávamos o tempo a correr uns atrás dos outros, a trepar às árvores
  • 15. como macacos, a jogar à macaca traçando linhas na areia, a apanhar pedras e a cavar buracos para um jogo africano chamado mancala. Tínhamos mesmo a nossa própria versão do jogo das cinco pedrinhas: atirávamos ao ar um pau enquanto tentávamos apanhar pauzinhos em vez de pedras. Este jogo era o meu favorito porque eu era muito boa nele, e esforçava-me sempre por convencer o meu irmão mais novo, Ali, a jogar comigo. No entanto, o nosso maior prazer provinha do facto de sermos crianças que viviam em plena natureza, livres de fazer parte dela e de desfrutar da sua vista, dos seus ruídos e dos seus odores. Observávamos grupos de leões estendidos ao comprido, aquecendo-se ao sol, rolando de patas para o ar ou rugindo. Os leõezinhos corriam uns atrás dos outros e brincavam exactamente como nós. Corríamos com as girafas, as zebras e as raposas. O hírax, animal do tamanho de um coelho que é um pequeno primo do elefante, era o nosso preferido. Esperávamo-los pacientemente no exterior das suas tocas à espera de ver aparecer as suas cabecinhas e perseguíamo-los pela areia. Uma vez descobri um ovo de avestruz. Decidi levá-lo para casa porque queria ver o bebé avestruz nascer e depois guardá-lo como animal de estimação. O ovo tinha mais ou menos o tamanho de uma bola de bowling; retirei-o do seu buraco e dirigia-me para o acampamento quando a mãe apareceu. Lançou-se em minha perseguição e, acreditem, era bastante rápida: as avestruzes podem atingir a velocidade de sessenta e cinco quilómetros por hora. Alcançou-me e começou a picar-me a cabeça com o bico, ka-ka-ka. Pensei que ia quebrar-me o crânio como um ovo. Pousei o seu futuro bebé no chão e desatei a correr para salvar a vida. Raramente nos encontrávamos na proximidade de áreas florestais mas, quando isso acontecia, gostávamos muito de observar os elefantes. Ouvíamos os seus possantes rugidos à distância e trepávamos às árvores para os ver. Como os leões, os macacos e os humanos, os elefantes vivem em comunidade. Se há uma cria entre eles, todos os adultos - o primo, o tio, a tia, a irmã, a mãe e os avós - tomam conta dela para que ninguém lhe faça mal. Nós, as crianças, penduradas numa árvore, ríamos durante horas observando os elefantes. 22 23
  • 16. Mas pouco a pouco, todos estes momentos felizes passados com a minha família foram-se transformando em memórias. Uma das minhas irmãs mais velhas fugiu; o meu irmão partiu para a escola, na cidade. Eu aprendi coisas tristes sobre a minha família e sobre a vida. Deixou de chover, e tomar conta dos nossos animais tornava-se cada dia mais difícil. A vida era cada vez mais dura, e eu também endurecia com ela. Uma parte dessa dureza vinha-me de ver os meus irmãos e irmãs morrerem. Éramos doze crianças na família, agora não passávamos de seis. A minha mãe teve gémeos que morreram à nascença. Depois teve outra bela rapariga, que aos seis meses era um bebé forte e saudável. Mas um dia a minha mãe chamou-me; corri para ela e vi-a ajoelhada junto do bebé. Eu era apenas uma rapariguinha, mas compreendi que as coisas estavam verdadeiramente complicadas porque o bebé não parecia nada bem. A minha mãe ordenou-me: - Waris, vai depressa buscar um pouco de leite de camelo! Mas eu fui incapaz de me mexer. Despacha-te! Eu continuava a olhar fixamente para a minha irmã, em transe, aterrorizada. - Que se passa contigo? - gritou a minha mãe. Finalmente consegui partir a correr, mas sabia o que me esperava no meu regresso. Quando voltei com o leite, o bebé estava completamente imóvel e compreendi que estava morto. Enquanto olhava para a minha irmã, a minha mãe esbofeteou-me com toda a força. Durante algum tempo, acusou-me da morte da sua filha e acreditava que eu possuía poderes de feiticeira. Acreditava que eu causara a morte da criança ao pousar o meu olhar sobre ela enquanto estava em transe. Eu não possuo tais poderes, mas um dos meus irmãos mais novos tinha dons sobrenaturais. Todos estavam de acordo em reconhecer que ele não era uma criança normal. Chamávamos-lhe Velho Homem porque, quando tinha apenas seis anos, os seus cabelos já se tinham tornado completamente grisalhos. Era extremamente inteligente, e todos os homens vinham pedir-lhe conselho. Cada um à vez, sentavam o rapaz dos cabelos grisalhos nos joelhos e perguntavam-lhe: - Que tens a dizer sobre a chuva para este ano? Era uma criança, e no entanto nunca se comportou como tal. Pensava, falava e comportava-se como um velho sábio. Todos o respeitavam, mas também o temiam porque era evidente que ele não era um dos nossos. Ainda não passava de um rapaz novo quando Velho Homem morreu como se tivesse queimado a sua vida inteira em apenas alguns breves anos. Ninguém soube a causa da sua morte, mas todos acharam que fazia sentido porque «ele não pertencia de forma alguma a este mundo». Como em qualquer família numerosa, cada um de nós desempenhava um papel. Eu era rebelde, reputação que adquirira comportando-me de uma forma que julgava perfeitamente lógica e justificada, mas que parecia chocante aos olhos dos meus pais, sobretudo do meu pai. Um dia, estava eu sentada com o meu jovem irmão Ali debaixo de uma árvore a comer arroz misturado com leite de camelo, quando ele engole tudo rapidamente, com sofreguidão. Como era um acontecimento raro termos arroz, eu comia bastante lentamente. Nunca tínhamos a certeza de termos comida suficiente, e sempre saboreei cada alimento com prazer. Restava apenas um pouco de arroz e leite na minha taça quando, subitamente, Ali mergulhou a colher e comeu tudo até ao último grão. Sem
  • 17. reflectir, agarrei numa faca que se encontrava pousada ao meu lado e espetei a lâmina na coxa dele. Ele gritou, mas arrancou a faca e espetou-a na minha coxa, exactamente no mesmo sítio. Ficámos os dois feridos, mas como tinha sido eu a primeira a agir, as culpas recaíram todas sobre mim. Hoje, ainda temos duas cicatrizes idênticas, memória daquela refeição. Uma das primeiras manifestações desse comportamento rebelde foi provocada pela minha vontade de possuir um par de sapatos. Toda a vida fui obcecada por sapatos. Hoje sou modelo e, no entanto, possuo pouca roupa: um par de jeans, duas T-shirts, mas tenho um armário cheio de sapatos de salto alto, sandálias e botas, apesar de curiosamente não ter nada para acompanhar tudo isso. Quando era pequena, desejava desesperadamente um par de sapatos. Nem todas as crianças da minha família tinham roupas, e não havia dinheiro suficiente para comprarmos sapatos. No entanto, eu sonhava possuir belas sandálias de couro como as da minha mãe. Desejava ardentemente calçar um bom par de sapatos confortáveis para ir guardar os animais sem ter de me preocupar com as pedras e os espinhos, as cobras e os escorpiões. Os meus pés estavam sempre feridos e marcados, e ainda hoje tenho cicatrizes negras. Uma vez, um espinho atravessou-me o pé; outras vezes quebravam-se na minha carne. Não havia médicos no deserto, nem medicamentos para tratar as feridas. No entanto, devíamos continuar a andar porque tínhamos de cuidar dos animais. Ninguém dizia: «Não posso mais». Limitávamo-nos a fazê-lo; todas as manhãs partíamos e avançávamos a coxear, da melhor forma que podíamos. Um dos irmãos do meu pai era um homem muito rico. O tio Ahmed vivia na cidade, em Galcaio, mas nós tratávamos dos seus camelos e do resto dos seus rebanhos. Eu era preferida para tomar conta das suas cabras porque fazia o meu trabalho de uma forma muito conscienciosa, certificando-me de que os animais estavam bem alimentados e bebidos, defendendo-os o melhor possível dos predadores. Um dia, teria eu cerca de sete anos, o tio Ahmed visitou-nos e eu disse-lhe: - Gostaria que me comprasses um par de sapatos. 24 25
  • 18. Ele olhou para mim e desatou a rir: - Está bem, está bem. Vou comprar-te um par de sapatos. Eu sabia que ele ficara surpreendido porque era pouco habitual uma rapariga pedir alguma coisa, sobretudo algo tão extravagante como um par de sapatos. Quando o tio Ahmed voltou a visitar-nos, eu estava bastante excitada porque chegara o dia em que ia finalmente ter o meu primeiro par de sapatos. Na primeira ocasião, perguntei-lhe, impaciente: - Então, trouxeste-os? - Sim, aqui estão. Estendeu-me um embrulho. Tirei os sapatos e observei-os: eram umas sandálias de borracha, umas chinelas! Não as belas sandálias de couro iguais às da minha mãe, mas umas chinelas amarelas, de má qualidade. Não quis acreditar. - São estes os meus sapatos?! - gritei. E atirei-lhos à cara. Quando atingiram o tio, o meu pai tentou parecer aborrecido, mas não conseguiu resistir e desatou a rir. O meu tio disse-lhe: - Não acredito! É assim que educas esta criança? Atirei-me a ele e comecei a bater-lhe de tão desiludida que estava. Depois gritei: - Trabalhei tanto e a recompensa é isto? Um par de sandálias de borracha? Bah! Prefiro andar descalça; andarei descalça até sangrar em vez de usar esta porcaria! O tio Ahmed olhou para mim, depois levantou os olhos para o céu e gemeu: - Oh, Alá. - Baixou-se com um suspiro, apanhou as suas chinelas e levou-as de volta. No entanto, eu não queria desistir tão facilmente. A partir desse dia, encarreguei cada parente, amigo ou estranho que viajasse para Galcaio, de uma mensagem para o meu tio: «Waris quer um par de sapatos!». Mas tive de esperar vários anos antes de o meu sonho se realizar. Entretanto, continuei a criar as cabras do tio Ahmed e a ajudar a sua família a tomar conta dos rebanhos, percorrendo milhares de quilómetros descalça. Muitos anos antes deste episódio dos sapatos com o tio Ahmed, quando eu não passava de uma rapariguinha com cerca de quatro anos, recebemos a visita de Guban, um amigo do meu pai que nos visitava com alguma frequência. Ao anoitecer, costumava conversar com os meus pais quando, olhando para o céu e vendo surgir a brilhante maqa1 hihid, o meu pai disse que chegara a hora de recolher as ovelhas. Guban respondeu: - Oh, deixa-me fazer isso por ti. Waris poderá ajudar-me. Senti-me uma pessoa importante: um amigo do meu pai escolhera-me em vez dos rapazes para ajudá-lo a guardar os animais. Deu-me a mão, afastámo-nos da tenda e começámos a juntar o rebanho. Normalmente, eu teria de correr em todas as direcções como um animal 26 selvagem, mas começava a escurecer e, como estava um pouco receosa, permaneci junto de Guban. De repente, ele tirou o blusão, estendeu-o na areia e sentou-se em cima dele. E olhei para ele, confusa, e protestei: - Por que te estás a sentar? Vai escurecer e temos de apanhar os animais. - Temos tempo. Faremos isso num minuto. Estendeu-se sobre um dos lados do seu blusão e bateu com a mão no lugar vazio junto dele. - Vem sentar-te. Aproximei-me com relutância. Sempre gostei de histórias, e pensei que talvez fosse uma boa ocasião para ouvir uma. - Vais contar-me uma história?
  • 19. Guban bateu de novo no casaco: - Sim, se vieres sentar-te junto a mim. Assim que me sentei junto dele, ele tentou embrulhar-me no blusão. Eu insisti obstinadamente, erguendo-me: - Eu não quero deitar-me. Quero que me contes uma história. - Vem, vem. - A sua mão puxava firmemente o meu ombro. - Deita-te e observa as estrelas. Vou contar-te uma história. Estendi-me, com a cabeça sobre o blusão e os calcanhares na areia fria e observei a Via Láctea. À medida que o céu passava de índigo a preto, as ovelhas corriam em círculo nossa volta, balindo no escuro, e eu esperava ansiosamente que a história começasse. De repente, o rosto de Guban interpôs-se entre mim e a Via Láctea. Ajoelhou-se entre as minhas pernas e levantou secamente o pequeno pedaço de tecido que eu tinha enrolado em volta da cintura. Depois senti algo duro e húmido pressionar contra o meu sexo. A princípio fiquei imóvel, não compreendendo o que se passava, mas sabia que era algo de muito mau. A pressão aumentou até se tornar numa dor aguda. - Quero a minha mãe! Subitamente fui inundada por um líquido quente, e um cheiro acre e nauseabundo espalhou-se no ar da noite. Horrorizada, gritei: - Fizeste chichi em cima de mim! Levantei-me de um salto e esfreguei o meu lenço nas pernas limpando o líquido nauseabundo. Ele segurou-me no braço e murmurou-me num tom apaziguador: - Calma calma. Não há problema. Tentava apenas contar-te uma história. Libertei-me bruscamente e corri para a tenda, com Guban. atrás de mim, esforçando-se por alcançar-me. Quando vi a minha mãe, que se encontrava junto ao fogo com o rosto iluminado pela luz cor de laranja, precipitei-me para ela e lancei os meus braços em volta das suas pernas. Ela perguntou-me, inquieta: - Que se passa, Waris? Guban chegou, ofegante, e a minha mãe olhou para ele. - Que se passa com ela? Ele riu com desenvoltura e estendeu o braço para mim: - Oh, queria apenas contar-lhe uma história e ela teve medo. 27
  • 20. Agarrei-me à minha mãe com todas as minhas forças. Queria contar-lhe o que o amigo do meu pai acabara de me fazer, mas não encontrava palavras - nem sequer sabia o que ele me tinha feito. Observei o seu rosto sorrindo à luz do fogo, um rosto que veria ainda muitas vezes ao longo dos anos, e soube que o odiaria para sempre. A minha mãe acariciou-me a cabeça e eu encostei a minha cara ao seu colo: - Acalma-te, Waris. Pronto, pronto. Era apenas uma história, meu bebé. Não é verdadeira. - Depois voltou-se para Guban: - Onde estão as ovelhas? 28 UMA VIDA DE NÓMADA Tendo crescido em África, eu não possuía o sentido da História que parece tão importante noutras partes do mundo. A nossa língua, o somali, só se tornou língua escrita partir de 1973, e nunca aprendemos a ler, nem a escrever. O conhecimento era-nos transmitido oralmente - através de poesias ou contos - e os nossos pais ensinavam-nos tudo que era necessário saber para sobreviver. A minha mãe, por exemplo, ensinou-me a tecer recipientes com erva seca tão comprimida que podiam conter leite; o meu pai ensinou-me a tomar conta dos animais para que se mantivessem saudáveis. Não falávamos muito do passado, não tínhamos tempo para isso. Só o presente nos preocupava: «Que vamos fazer hoje as crianças estão cá todas? Os animais estão todos na cerca? Como é que vamos comer? Onde poderemos encontrar água?». Na Somália, vivíamos como os nossos antepassados desde há milhares de anos; nada mudara verdadeiramente. Sendo nómadas, não tínhamos electricidade, nem telefone, nem carro, e claro que nunca ouvíramos falar em computadores, televisão ou na conquista espacial. Dado o nosso modo de vida e a nossa tendência para nos preocuparmos apenas com o presente, tínhamos uma concepção do tempo muito diferente daquela que prevalece nos países ocidentais. Como todos os membros da minha família, não sei ao certo a minha idade; no meu país, um bebé que nasce tem poucas hipóteses de sobreviver até ao ano seguinte, pelo que a noção de aniversário não tem a mesma importância para nós. Quando eu era criança, vivíamos sem emprego do tempo, sem relógio ou calendário. Seguíamos as estações e o curso do sol, organizando as nossas deslocações em função das necessidades de água, e as nossas jornadas segundo a duração do dia. Sabíamos as horas pela posição do sol; se a minha sombra se estendia para oeste, era manhã; se se encontrava exactamente debaixo de mim, e 29
  • 21. ao meio-dia. Próximo do final do dia, a minha sombra tornava-se mais comprida, advertindo-me de que era altura de partir para o acampamento antes do anoitecer. Quando nos levantávamos de manhã, decidíamos o que faríamos nesse dia, depois cumpríamos as nossas tarefas o melhor que podíamos até termos terminado, ou até ser demasiado escuro para ver. Quando nos levantávamos, o nosso dia não estava planeado com antecedência. Desde que vivo em Nova Iorque, é frequente as pessoas tirarem a agenda e perguntarem: «Quer almoçar no dia 14 ou no dia 15?». E eu respondo sempre: «Por que não me telefona na véspera do dia em que me quer ver?». Por mais que aponte os meus compromissos, não consigo habituar-me a essa ideia. Quando cheguei a Londres, ficava surpreendida quando via as pessoas olharem para o pulso e gritarem: «Tenho de ir! ». Tinha a impressão de que toda a gente corria em todos os sentidos, que tudo era cronometrado. Em África, não conhecemos a pressa, o stress. O nosso tempo é muito diferente, o nosso ritmo é extremamente lento e calmo. Quando se diz a alguém: «Encontramo-nos amanhã ao meio-dia ... », isso significa por volta das quatro ou cinco horas da tarde. Ainda hoje me recuso a usar relógio. Quando eu era pequena, nunca me aconteceu projectar no futuro nem vasculhar o suficiente no passado para perguntar à minha mãe como se tinha desenrolado a sua infância. Consequentemente, sei muito pouco sobre a história da minha família, tanto mais que parti de casa muito nova. Queria poder voltar atrás e colocar todas estas questões, saber como vivia a minha mãe quando era pequena, de onde vinha a sua própria mãe, como morrera o seu pai. A ideia de que posso nunca vir a conhecer toda esta história entristece-me bastante. No entanto, sei uma coisa sobre a minha mãe: era muito bonita. Posso dar a impressão de ser a típica filha que adora a sua mãe, mas ela era realmente de uma beleza excepcional. O seu rosto parecia uma escultura de Modigliani; tinha a pele tão escura e tão macia que parecia esculpida a mármore preto. A cor da sua pele era de um negro tão intenso que quando sorria à noite viam-se os seus dentes de uma brancura estonteante cintilarem no ar. Tinha cabelos compridos e lisos, muito macios, que alisava com os dedos; nunca a vi servir-se de uma escova. Era alta e elegante, características que todas as suas filhas herdaram dela. O seu temperamento era calmo e pouco falador. Mas quando começava a falar, tornava-se irresistivelmente engraçada e ria muito. Contava piadas, algumas delas divertidas, outras bastante grosseiras; havia ainda outras que não passavam de asneiras para nos fazer rir. Por exemplo, ela olhava para mim e dizia: - Por que é que os teus olhos desaparecem na tua cara? Mas a brincadeira mais estúpida, a sua preferida, era chamar-me Abdohol, que significa «boca pequena». Ela observava-me e depois dizia: - Eh, Abdohol, por que é que a tua boca é tão pequena? 30 o meu pai era muito bonito e, acreditem, sabia-o; media mais de um metro e oitenta, era magro e tinha a pele mais clara do que a da minha mãe. Os seus cabelos eram castanhos e os seus olhos de um castanho claro. Tendo consciência da sua beleza, era bastante vaidoso. Costumava provocar a minha mãe: «Um dia destes vou procurar outra mulher se
  • 22. tu não ... ». E anunciava o que desejava. Ou então dizia: «Começo a aborrecer-me aqui, vou-me embora procurar outra mulher». E a minha mãe respondia-lhe no mesmo tom: «Veremos o que consegues arranjar». Amavam-se verdadeiramente, muito, mas um dia, infelizmente, as suas ameaças concretizaram-se. A minha mãe crescera em Mogadíscio. O meu pai era um nómada e sempre vivera percorrendo o deserto. Quando se conheceram, a minha mãe achara que o meu pai era muito bonito e que passar a vida com ele de um lado para o outro era uma ideia bastante romântica. Rapidamente haviam decidido casar-se. O meu avô tinha morrido, por isso o meu pai foi ter com a minha avó e pediu-lhe permissão para casar com a sua filha. A minha avó respondera: - Não, não, não! De maneira nenhuma! - E acrescentara, dirigindo-se à sua filha: - Ele não passa de um playboy! A minha avó não estava disposta a deixar a sua bela filha estragar a vida criando camelos com este homem, um nómada do deserto! Mas quando a minha mãe tinha cerca de dezasseis anos, fugiu de casa e casou com o meu pai. Tinham partido para a outra ponta do país e haviam vivido no deserto com a família do meu pai, o que causara bastantes problemas. A minha família materna tinha algum poder e dinheiro e a minha mãe ignorava tudo acerca da rude vida dos nómadas. Mais grave ainda, o meu pai pertencia à tribo Da arood, e a minha mãe à tribo Hawiye. Como os ameríndios, os somalis encontram-se divididos em tribos, e cada um dá provas de uma lealdade fanática para com o seu próprio grupo. Este orgulho tribal tem sido a origem de bastantes guerras ao longo da nossa História. Uma rivalidade particular opõe os Daaroods aos Hawiyes e a família do meu pai sempre tratou muito mal a minha mãe, sob o pretexto de que, pertencendo a uma tribo diferente, ela era um ser inferior. A minha mãe sentiu-se muito só durante muito tempo, mas teve de se adaptar. Quando eu fugi e me vi separada da minha família, compreendi o que deve ter sido a sua vida, sozinha entre os Daaroods. A minha mãe começou a ter crianças, e deu-lhes todo o amor de que se vira privada vivendo longe do seu povo. Agora que sou adulta, compreendo melhor o que representou para ela trazer doze crianças ao mundo. Lembro-me dos períodos em que ela estava grávida. Subitamente desaparecia e não a víamos durante vários dias. Depois voltava, com um bebé nos braços. Partia sozinha para o deserto, levando consigo um objecto bastante agudo para Cortar o cordão umbilical. Uma vez, quando acabara de desaparecer, tivemos de levantar o 31 acampamento, como sempre em busca de água. Ela teve de caminhar quatro dias pelo deserto, carregando o recém-nascido, antes de encontrar o seu marido. De todos os filhos, eu tinha a impressão de ser a sua favorita. Entendíamo-nos na perfeição, e penso nela em cada dia da minha vida, pedindo a Deus que tome conta dela até que eu própria possa fazê-lo. Quando era pequena, queria estar sempre junto dela, e ansiava por chegar a casa para ir sentar-me ao seu lado e senti-la acariciar-me a cabeça. A minha mãe tecia uns cestos muito bonitos, uma técnica que leva anos de prática a aperfeiçoar. Passávamos muitas horas juntas, e ela ensinava-me a fazer pequenas chávenas onde podia beber leite, mas quando eu tentava fazer objectos maiores, nunca conseguia igualá-la: os meus cestos eram irregulares e cheios de buracos.
  • 23. Um dia, o meu desejo de estar junto dela e a minha natural curiosidade infantil impeliram-me a segui-la secretamente. Uma vez por mês, ela abandonava o acampamento e partia sozinha durante a tarde. Um dia, eu disse-lhe: - Queria tanto saber o que tu fazes, mãe, onde vais todos os meses. Ela respondeu-me que me metesse na minha vida; em África uma criança não tem o direito de se imiscuir nos assuntos dos seus pais. E, como habitualmente, disse-me para ficar em casa e tomar conta dos meus irmãos e irmãs. Mas, quando ela se afastou, segui-a à distância escondendo-me atrás dos arbustos. Ela encontrou-se com outras cinco mulheres, que, como ela, haviam percorrido longas distâncias. Ficaram sentadas durante várias horas, debaixo de uma grande árvore muito bonita. Era o momento da sesta. E como o sol estava demasiado quente para fazer outra coisa, animais e pessoas descansavam, e as mulheres podiam ter um pouco de tempo para si. As suas cabeças estavam juntas, e ao longe faziam lembrar formigas. Vi-as comer pipocas e beberem chá. Não faço a menor ideia do que diziam porque me encontrava demasiado longe para ouvi-las. Como tinha muita vontade de comer milho, decidi finalmente mostrar-me. Avançando suavemente, fui colocar-me ao lado da minha mãe. Quando me viu, ela gritou: - De onde vens tu? - Vim atrás de ti. - És uma rapariga muito má! Mas as outras mulheres desataram a rir e começaram a mimar-me: - Oh, como é bonita. Anda cá, minha querida... A minha mãe deixou-se enternecer, e eu pude comer pipocas. Naquela idade, não sabia que existia um mundo diferente daquele em que nós vivíamos com os nossos camelos e as nossas cabras. Nunca tendo viajado para países estrangeiros; não conhecendo livros, televisão ou cinema, o meu universo limitava-se ao que ouvia à minha volta. Não compreendi que durante a sua juventude a minha mãe poderia ter tido uma vida diferente. Antes da independência da Somália, em 1960, a região sul do país fora uma colónia italiana. Em Mogadíscio, a cultura, a arquitectura e a sociedade tinham, por isso, sofrido a influência italiana, e a minha mãe falava italiano. De vez em quando, quando estava zangada, vociferava uma torrente de palavrões em italiano. Eu olhava para ela, inquieta: - o que é que estás a dizer, mãe? - Oh, é italiano. - italiano? O que é isso? - Nada, mete-te na tua vida. E fazia-me sinal para me afastar. Mais tarde, descobri que a Itália fazia parte do vasto inundo que se estendia para além da nossa tenda. Muitas vezes, interrogámos a minha mãe sobre as razões que a tinham levado a casar com o meu pai. - Por que o seguiste? Olha onde vives agora, ao passo que os teus irmãos e irmãs vivem um pouco por toda a parte no mundo. Um dos nossos tios até é embaixador em Londres. Por que é que fugiste com este falhado? Ela explicava-nos que se tinha apaixonado pelo meu pai e que decidira fugir com ele ,para
  • 24. poderem ficar juntos. A minha mãe é uma mulher forte, muito forte. Apesar de tudo o que a vi suportar, nunca a ouvi queixar-se. Nunca a ouvi dizer: «Estou farta!» ou «Não quero mais viver assim!». Permanecia silenciosa e dura como o aço. Depois, sem que nada o fizesse prever, fazia-nos rir com uma das suas graças idiotas. O meu objectivo é um dia vir a ser tão forte como ela; poderei então dizer que triunfei na vida. As ocupações da minha família eram as mesmas que as de muitos somalis, uma vez que sessenta por cento destes são pastores nómadas. O meu pai aventurava-se periodicamente até a uma aldeia onde vendia um animal para comprar um saco de arroz, tecido para as nossas roupas ou cobertores. Por vezes, enviava o que tinha para vender por alguém que ia à cidade e também fazia a lista de tudo o que queria comprar em troca. Também ganhávamos algum dinheiro colhendo incenso, um dos presentes dos reis magos ao Menino Jesus. Hoje em dia, ainda é um produto tão precioso como nos tempos anti- gos. O incenso provém da Boswellia, um arbusto muito bonito que mede cerca de um metro e cinquenta, cujos ramos se abrem vergados fazendo lembrar um guarda-chuva aberto. Com um machado, eu dava golpes ligeiros na árvore, sem a ferir, mas o suficiente para retirar a casca. Então escorria um líquido leitoso. Depois esperava que esse sumo branco se solidificasse até adquirir a consistência da pastilha elástica - por vezes mastigávamo-lo porque gostávamos do seu gosto amargo. Em seguida metíamo-lo, em cestos e o meu pai ia vendê-lo. 32 33
  • 25. Queimávamos incenso à noite, nos nossos fogos de campo. Hoje, quando sinto aquele cheiro, sou transportada para anos atrás. Por vezes vendem em Manhattan incenso tido por verdadeiro. Compro-o, desesperada por reviver algumas memórias do meu país, mas o seu cheiro não passa de uma pálida imitação que não iguala em nada o rico perfume exótico dos fogos que ardiam à noite no deserto. A nossa numerosa família não constituía excepção; na Somália, as mulheres têm em média sete filhos. As crianças são de algum modo a futura pensão das pessoas mais velhas, pois tomarão conta dos seus pais quando estes se tornarem velhos. As crianças somalis tratam dos seus pais e avós com respeito e jamais teriam a audácia de contestar a sua autoridade. Todos os mais velhos, incluindo irmãos e irmãs, têm direito a esse respeito e há que obedecer aos seus desejos. Era aliás por isto que os meus actos de rebelião eram considerados tão escandalosos. Uma das razões desta grande natalidade - para além da ausência do controlo de nascimentos - tem a ver com o facto de que a vida se torna mais fácil quanto mais pessoas há para assegurarem o trabalho. Por exemplo, ter água - não água em abundância nem água suficiente, mas simplesmente ter água - requeria um trabalho extenuante. Quando toda a região onde nos encontrávamos estava seca, o meu pai partia em busca de água. Atava uns enormes odres ao dorso dos camelos, que a minha mãe tecera com erva, e deixava o acampamento. Permanecia ausente vários dias, o tempo de descobrir água, encher os odres e fazer o caminho de regresso. Enquanto esperávamos, permanecíamos no mesmo lugar enquanto era possível, mas tornava-se cada dia mais difícil porque tínhamos de percorrer quilómetros sem fim para dar de beber aos rebanhos. Por vezes partíamos antes do seu regresso, e no entanto ele encontrava-nos sempre sem a ajuda de estradas, sinais indicadores ou mapas. Quando o meu pai estava ausente ou tinha ido comprar comida, um de nós encarregava-se de encontrar água porque a minha mãe tinha de permanecer no acampamento para tratar de tudo. Por vezes esta tarefa cabia-me a mim. Eu caminhava durante dias e dias, tão longamente quanto necessário, porque era impensável voltar sem água. Nunca teríamos voltado de mãos a abanar, porque então não haveria esperança. Ninguém queria ouvir dizer: «Não consegui». A minha mãe tinha-me pedido que encontrasse água, e eu devia fazê-lo. Quando cheguei ao mundo ocidental, ficava espantada quando ouvia as pessoas queixarem-se: «Não posso trabalhar, dói-me a cabeça». Eu tinha vontade de lhes dizer: «Deixem-me dar-vos trabalho a sério. Depois, nunca mais se queixarão do vosso emprego». e Um dos meios que permitiam dispor de mais mão-de-obra para executar as tarefas consistia em aumentar o número de mulheres e de crianças; ter várias mulheres é uma prática corrente em África. Os meus pais, enquanto casal, eram pouco comuns pelo facto de estarem juntos há vários anos. Mas, depois de terem tido doze crianças, um dia a minha mãe disse ao meu pai: - Estou demasiado velha... Arranja outra mulher e deixa-me sossegada. Não sei se ela acreditava no que dizia; provavelmente não acreditava que o meu pai a levasse a sério. Mas um dia ele desapareceu. A princípio pensámos que tinha ido procurar água ou comida e a minha mãe encarregou-se de tudo. Após dois dias de ausência, pensamos que
  • 26. tinha morrido. E depois, uma noite, tão subitamente como tinha partido, voltou. Eu estava sentada com os meus irmãos e irmãs diante da tenda. Ele avançou descontraidamente para nós e disse: - Onde está a vossa mãe? Respondemos-lhe que ela ainda estava a tratar dos animais. Ele dirigiu-nos um grande sorriso: - Bem, ouçam todos! Quero apresentar-vos a minha nova mulher. Empurrou na nossa direcção uma rapariga de dezassete anos - pouco mais velha do que eu. Limitámo-nos a olhar para ela porque não nos teria sido permitido pronunciar uma palavra que fosse; além disso, não saberíamos o que dizer. Quando a minha mãe chegou, ficámos todos tensos, na expectativa do que iria passar-se. Ela olhou para o meu pai, sem reparar na rapariga que estava no escuro, e disse-lhe: - Oh, decidiste voltar? O meu pai balançava-se num pé e noutro olhando em volta. - Sim, aaahhh... sim. A propósito, apresento-te a minha mulher. E passou os braços em volta dos ombros da sua nova esposa. Nunca esquecerei a expressão do rosto da minha mãe à luz do fogo: parecia ter-se desmoronado. Foi então que ela compreendeu: - Meu Deus! Perdi-o! Trocou-me por esta criança! - Ela estava morta de ciúmes, mas tentava corajosamente não o mostrar. Não fazíamos ideia de onde vinha a nova mulher do meu pai nem sabíamos nada acerca dela. Mas isso não a impediu de começar imediatamente a dar-nos ordens. Depois, esta rapariga de dezassete anos começou a mandar na minha mãe, ordenando-lhe que fizesse isto, que lhe trouxesse aquilo, que lhe cozinhasse tal prato. O ambiente já estava bastante tenso quando um dia ela cometeu um erro fatal: esbofeteou o meu irmão Velho Homem. No dia em que isto aconteceu, eu encontrava-me com os meus irmãos e irmãs no nosso esconderijo (sempre que nos deslocávamos, procurávamos uma árvore, perto da tenda, junto da qual 34 35
  • 27. gostávamos de nos reunir; servia-nos de «quarto das crianças».) Ouvi Velho Homem gritar, levantei-me e vi-o vir na minha direcção a chorar. - O que foi? Inclinei-me para ele e limpei-lhe a cara. - Ela bateu-me, bateu-me com muita força! Nem sequer precisei de perguntar quem, porque na nossa família nunca ninguém levantara a mão para Velho Homem. Nem a minha mãe, nem nenhuma das crianças, nem o meu pai, que batia em todos nós regularmente. Não havia necessidade de corrigir Velho Homem porque ele era o mais sábio de todos nós, e comportava-se sempre de forma. exemplar. Ao bater no meu irmão, aquela idiota ultrapassara os limites, era mais do que eu podia suportar, e fui ter com ela: Por que bateste no meu irmão? Ele bebeu o meu leite. Disse estas palavras num tom altivo, como se fosse a rainha do palácio e possuísse todo o nosso leite e todos os nossos rebanhos. - O teu leite? Fui eu que pus esse leite na tenda e se o meu irmão o quer, se tem sede, pode bebê-lo. Tu não tens nada que lhe bater! - Oh, cala a boca e desaparece daqui! - Ela gritava e fez-me sinal para me afastar com um gesto. Olhei-a abanando a cabeça. Eu tinha apenas treze anos, mas sabia que ela acabara de cometer um erro fatal. Os meus irmãos e irmãs esperavam-me, sentados debaixo da árvore, estendendo o ouvido para apanhar partes da nossa discussão. Aproximei-me deles, e ao ver as suas expressões inquisidoras, disse simplesmente: - Amanhã. Eles acenaram. No dia seguinte, a sorte sorriu-nos porque o meu pai partiu por dois dias. À hora da sesta, eu levei os animais para o acampamento e fui ter com a minha irmã e dois dos meus irmãos. - A nova mulher do pai está a ir longe de mais. Isto parecia evidente a todos. - Temos de fazer alguma coisa. - Sim, mas o quê? - respondeu Ali. - Já vão ver. Venham ajudar-me e verão. Agarrei numa espessa corda rugosa que normalmente usávamos para atar as nossas coisas ao dorso dos camelos quando nos deslocávamos, depois levámos a amedrontada [mulher do meu pai para longe do acampamento, para o mato, e obrigámo-la a despir-se corretamente. Lancei então uma das extremidades da corda por cima do ramo de uma grande árvore e atei-lha aos tornozelos. Enquanto a içávamos do solo, ela insultava-nos, gritava e soluçava, tudo ao mesmo tempo. Com a ajuda dos meus irmãos, puxei a corda para que a cabeça dela ficasse suspensa a dois metros e meio do solo, certificando-me assim de que nenhum animal selvagem a devoraria. Depois atámos a um arbusto a extremidade livre da corda e voltámos ao acampamento, deixando a esposa do meu pai a torcer-se e a gritar no deserto. o meu pai voltou no dia seguinte à tarde, mais cedo do que previsto. Perguntou-nos onde estava a sua mulherzinha. Encolhemos todos os ombros respondendo que não a tínhamos visto. Felizmente, tínhamo-la levado suficientemente longe para que os seus gritos não pudessem ser ouvidos. O olhar do meu pai era desconfiado. Ao escurecer, ainda não tinha
  • 28. encontrado vestígios dela. Sabia que algo se passara e interrogou-nos: - Quando é que a viram pela última vez? E hoje, viram-na? E ontem? Dissemos-lhe que ela não voltara na noite anterior, o que, de resto, era verdade. O meu pai entrou em pânico e começou a procurar por toda a parte freneticamente. Mas só a encontrou na manhã seguinte. A sua jovem esposa tinha ficado durante quase dois dias pendurada de cabeça para baixo quando finalmente ele a soltou; e não estava em muito bom estado. Ao voltar ao acampamento, ele estava furioso e perguntou: - Quem foi o responsável por isto? Entreolhámo-nos em silêncio. Mas claro que ela disse: - Foi Waris quem teve a iniciativa. O meu pai atirou-se a mim e começou a bater-me, mas todos os meus irmãos se precipitaram em minha defesa. Sabíamos que era errado bater no próprio pai, mas não podíamos continuar a suportar aquela situação. Depois disto, a jovem esposa do meu pai tornou-se uma pessoa diferente. Tínhamos-lhe dado uma lição, e ela compreendera-a bem. Tendo sentido o sangue afluir-lhe à cabeça durante dois dias, penso que as suas ideias estavam agora mais claras; passou a mostrar-se doce e disponível. A partir desse momento, beijava os pés da minha mãe e servia-a com mil cuidados, como uma escrava. «O que é que eu te posso trazer? O que é que posso fazer por ti? Não te mexas, descansa». E eu pensei: «Ora aí está! Devias ter-te comportado assim desde o inicio, cabrinha. Ter-nos-ias poupado uma dor inútil». Mas a vida de nómada é dura, e embora ela tivesse menos vinte anos do que a minha mãe, a nova esposa do meu pai não era tão robusta como ela. Finalmente, a minha mãe compreendeu que não tinha nada a temer daquela adolescente. 36 37 A vida de nómada é dura, mas também é muito bela, de tal forma ligada à natureza que as duas são inseparáveis. O nome que a minha mãe me deu é justamente um desses milagres da natureza: Waris significa «Flor do Deserto». A flor do deserto floresce onde poucas coisas conseguem sobreviver. No meu país, por vezes não chove durante um ano inteiro. Quando finalmente a água cai, purificando a paisagem poeirenta, as flores surgem como por milagre. São de um amarelo-alaranjado brilhante, e é por esta razão que o amarelo sempre foi a minha cor preferida. Quando uma rapariga se casa, as mulheres da tribo vão apanhar essas flores no deserto. Secam-nas e misturam-nas com água para obterem uma pasta que espalham na cara da futura esposa, dando-lhe um brilho dourado. Coloram-lhe as mãos e os pés com hena e realçam os olhos com khol, para o seu olhar parecer profundo e sensual. Todos estes cosméticos, à base de plantas e ervas, são totalmente naturais. As mulheres envolvem-na em seguida em tecidos coloridos, vermelho, rosa, laranja e amarelo, até cobrirem o corpo todo. Quanto mais tecidos, melhor. Por vezes não têm muitos, algumas famílias são extremamente pobres, mas não há vergonha alguma nisso; a futura esposa levará simplesmente o que a mãe, irmãs e amigas tiverem encontrado de melhor, e o seu porte será sempre altivo, característica comum a todas as somalis. No dia do casamento, ela estará de uma beleza deslumbrante para receber o seu futuro esposo. Mas os homens
  • 29. não o merecem. Nesse dia, os membros da tribo trazem presentes; mas não se sentem obrigados a comprar isto ou aquilo e não se preocupam por não poderem oferecer nada de valor. Cada um dá o que tem: uma esteira onde o casal dormira, ou uma taça, e quando não se tem nenhuma destas coisas, leva-se comida para a festa que se segue à cerimónia. Na minha cultura, não existe nada de semelhante a uma lua-de-mel, e o dia a seguir ao casamento é um dia de trabalho normal para os recém-casados; nessa altura, precisam de todos os seus presentes para iniciarem a vida em comum. Após meses e meses de seca, o desespero apoderava-se de nós. Reuníamo-nos então para implorar a Deus que nos enviasse chuva. Por vezes isto resultava, outras vezes não. Houve um ano em que não caíra ainda uma gota, apesar de ser a estação das chuvas. Metade dos nossos animais tinham sucumbido e os outros agonizavam de sede. A minha mãe decidiu que devíamos reunir-nos e rezar por chuva. As pessoas saíram literalmente de toda a parte. Todos rezámos, cantámos e dançámos, tentando ser felizes e manter o espírito positivo. No dia seguinte, as nuvens juntaram-se e a chuva começou a cair. Então, como sempre que chovia, o verdadeiro regozijo começou: toda a gente se despia e corria à chuva, lavando-se pela primeira vez em muitos meses. Festejámos o acontecimento com as nossas danças tradicionais: as mulheres batiam palmas e cantavam, as suas vozes doces e graves ressoavam pela noite do deserto, e os homens davam grandes saltos no ar. Toda a gente tinha trazido comida, e comemos como reis para festejar a dádiva da vida. Nos dias que se seguiam à chuva, a savana cobre-se de flores douradas e as pastagens tornam-se verdes. Os animais podem finalmente comer e beber até se saciarem, proporcionando-nos a oportunidade de nos descontrairmos e gozarmos a vida. Nessas ocasiões vamos até aos lagos recém-formados pela chuva para tomar banho e nadar. No ar fresco, os pássaros começam a cantar e o deserto torna-se um paraíso. Para além dos casamentos, temos poucas festas. Não há dias inscritos arbitrariamente no calendário. A chuva que esperamos durante muito tempo é uma das causas principais desse regozijo. No meu país, a água é muito escassa, e no entanto é a própria essência da vida. Os nómadas do deserto têm um enorme respeito pela água, e cada gota é para eles algo de precioso. Ainda hoje amo a água. O simples facto de olhar para ela enche-me de alegria. 38 39
  • 30. TORNAR-SE MULHER Chegara o momento de Aman, a minha irmã mais velha, ser excisada. Como todas as irmãs mais novas, eu invejava-a, tinha ciúmes de a ver entrar naquele mundo dos adultos que ainda me estava vedado. Aman era uma jovem adolescente que ultrapassara há muito a idade normal da excisão, mas até então não surgira a ocasião. Como a minha família se deslocava incessantemente, por uma razão ou por outra tínhamo-nos sempre desencontrado da cigana que praticava esse ritual antigo. Um dia o meu pai encontrou-a finalmente e pediu-lhe que viesse excisar as minhas duas irmãs mais velhas, Aman e Halemo. Quando a mulher chegou ao acampamento, Aman havia partido em busca de água e ela excisara apenas Halemo. O meu pai mostrava-se cada vez mais inquieto porque Aman atingiria em breve a idade de se casar, mas não era possível qualquer união enquanto a sua filha não tivesse sido devidamente «preparada». Na Somália, existe uma crença segundo a qual as raparigas têm entre as pernas coisas muito más, partes do corpo com as quais nasceram e que não obstante são sujas e devem ser suprimidas. O clitóris, os pequenos lábios e a maior parte dos grandes lábios são cortados e depois a ferida é cosida, deixando apenas uma cicatriz no lugar dos órgãos genitais. Mas os detalhes deste ritual permanecem um mistério para as raparigas, nada lhes é explicado antes da cerimónia. Sabem apenas que algo de especial lhes acontecerá quando chegar a sua vez. Consequentemente, todas as jovens na Somália aguardam com impaciência esta cerimónia que lhes permite tornarem-se mulheres. Originariamente, isto passava-se quando uma rapariga atingia a idade da puberdade, e o ritual tinha então um determinado significado, porque doravante a jovem tornava-se fértil e capaz de gerar. Mas, com o tempo, a excisão começou a ser praticada em raparigas cada vez mais novas, em parte porque elas mesmas esperavam con, impaciência aquele «momento especial», como uma criança do mundo ocidental espera o seu aniversario ou a vinda do Pai Natal. Quando soube que a velha cigana vinha excisar Aman, quis que ela me fizesse o mesmo. Aman era a minha bela irmã mais velha, o meu ídolo, e tudo o que ela desejava ou tinha, eu também desejava. Na véspera do grande acontecimento, supliquei à minha mãe puxando-a pelo braço: - Mãe, deixa-nos fazer as duas ao mesmo tempo. Mãe, por favor, aduas! A minha mãe afastou-me: - Cala-te, filhinha. No entanto, Aman não me parecia demasiado impaciente. Lembro-me de a ter ouvido murmurar: - Só espero que não suceda o mesmo que com Halemo. Mas naquela altura eu era demasiado jovem para compreender o que isto queria dizer, quando pedi a Aman que me explicasse, ela não me respondeu. Muito cedo no dia seguinte, a minha mãe e uma das suas amigas vieram procurar minha irmã para a levarem à mulher que deveria praticar a excisão. Eu insisti para as acompanhar, mas a minha mãe disse-me para ficar onde estava e tomar conta das crianças. Uma vez mais, segui-a tal como fizera no dia em que ela fora reunir-se com as suas amigas, escondendo-me nos arbustos e atrás das árvores, permanecendo a uma distância prudente. A cigana chegou. Na nossa comunidade, é considerada uma pessoa importante, não apenas porque possui um saber especializado, mas também porque ganha muito dinheiro
  • 31. praticando a excisão. O preço a pagar por esta cerimónia representa, uma grande despesa para a família, mas é considerado um bom investimento, uma vez que as raparigas não-excisadas não podem ser colocadas no «mercado» do casamento. Com os órgãos genitais intactos, são consideradas impróprias para o casamento, e passam por raparigas fáceis e sujas que nenhum homem quereria para esposa. A cigana, como alguns lhe chamam, é por isso um membro importante na nossa sociedade; mas eu chamo-lhe a «Assassina» por causa de todas as raparigas que morreram por sua culpa. Escondida atrás de uma árvore, eu observava Aman sentada no chão. Depois a minha mãe e a sua amiga agarraram-na pelos ombros e obrigaram-na a deitar-se. A cigana meteu as mãos entre as pernas da minha irmã, e eu vi uma expressão de dor perpassar pelo rosto de Aman. A minha irmã era grande e tinha muita força e de repente - pum!, deu um pontapé no peito da cigana, fazendo-a cair de costas; depois libertou-se da mulher e da minha mãe que a Mantinham no chão, e conseguiu levantar-se. Horrorizada, vi sangue escorrer pelas suas pernas e deixar um rasto na areia enquanto ela fugia a correr. As duas precipitaram-se atrás dela, mas a minha irmã já estava a uma grande distância delas quando caiu desmaiada. viraram-na de costas, no próprio sítio onde ela caíra, e continuaram o seu trabalho. Eu já não Podia olhar, sentia-me doente, e voltei para o acampamento. 40 41 Agora sabia algo que teria preferido ignorar. Não compreendia o que se passara, mas estava aterrorizada com a ideia de eu própria passar por aquilo. Não podia interrogar a minha mãe porque sabia que não deveria ter assistido àquela cena. Quando as feridas cicatrizaram, Aman ficou separada das outras crianças. Quando voltei a vê-la, perguntei-lhe: -Que tal foi? -Foi horrível... Depois calou-se. Suponho que preferiu não me dizer a verdade sabendo que chegaria a minha vez de ser excisada, e que teria então muito medo em vez de esperar o momento com impaciência. - Seja como for, em breve chegará a tua vez e vai ser bastante em breve. Não me disse mais nada. A partir desse momento, temi aquele ritual ao qual teria de submeter-me e que faria de mim uma mulher. Esforcei-me por afastar do meu espírito aquelas imagens horríveis e, com o passar do tempo, a memória da dor que lera na cara de Aman. foi-se desvanecendo. Acabei por me convencer estupidamente de que também queria tornar-me mulher, juntando-me assim às minhas irmãs mais velhas. Naquela época, deslocávamo-nos sempre na companhia de um amigo do meu pai e da sua família. Era um homem velho e resmungão. Quando a minha irmã mais nova ou eu o aborrecíamos, afastava-nos agitando a mão, como se estivesse a afastar moscas, e ria-se de nós dizendo: - Afastem-se de mim, não passam de duas raparigas sujas e impuras. Ainda nem sequer foram excisadas! - Cuspia estas palavras como se fossemos seres tão repelentes que nem sequer suportava ver-nos pela frente. Aqueles insultos perturbavam-me, e jurei encontrar uma forma de lhe calar a boca.
  • 32. Este homem tinha um filho, um jovem adolescente chamado Jamali por quem eu estava apaixonada. Jamali ignorava-me e só Aman lhe interessava. Acabei por lhe dizer que ele preferia a minha irmã porque ela tinha sido excisada. Como o seu pai, Jamali certamente não queria ter nada a ver com as rapariguinhas «sujas». Quando eu tinha cerca de cinco anos, provoquei a minha mãe: - Mãe, encontra-me essa mulher. Quando é que vamos tratar do assunto? Eu pensava: É preciso acabar com isto fazer com que esta coisa misteriosa aconteça de vez. E quis o acaso que a cigana passasse de novo pelas redondezas alguns dias mais tarde. ’Uma noite, a minha mãe disse-me: - Olha, o teu pai encontrou a cigana. Aguarda-mo-la um destes dias. Na noite anterior à minha excisão, a minha mãe aconselhou-me a não beber muita água nem leite, de forma a não ter muita vontade de fazer chichi. Não sabia por que me dizia aquilo, mas não fiz perguntas e limitei-me a abanar a cabeça. Estava nervosa, mas impaciente por acabar com aquela história. Nessa noite, toda a família se encheu de cuidados comigo e, como mandava a tradição, tive direito a mais comida do que os outros: era uma das razões que me tinham feito invejar as minhas irmãs mais velhas. Mesmo antes de ir dormir, a minha mãe disse-me: - Acordar-te-ei amanhã de manhã, quando tiver chegado o momento. - Não faço a menor ideia de como adivinhara ela a vinda daquela mulher. Ela sentia sempre intuitivamente quando algo estava para vir ou quando ia passar-se algo. Terrivelmente excitada, mal consegui dormir nessa noite até ver a minha mãe inclinada sobre mim. O céu ainda estava escuro; era mesmo antes da aurora, quando o negro se torna imperceptivelmente cinzento. Ela fez-me sinal para não falar e deu-me a mão. Agarrei no meu cobertor e, semiadormecida, segui-a aos tropeções. Agora sei por que preferem levar as raparigas logo cedo pela manhã - assim podem ser excisadas antes que as outras pessoas estejam acordadas, para ninguém ouvir os seus gritos. Afastámo-nos da tenda e penetrámos nos arbustos. A minha mãe disse: - Esperaremos aqui. Sentámo-nos no chão frio. O sol levantava-se lentamente e as formas à nossa volta mal se distinguiam. Em breve ouvi o clic-clic das sandálias da cigana. A minha mãe chamou-a: - És tu? Uma voz respondeu: - Sim, estou aqui... Mas eu não via ninguém. Depois, surgiu subitamente ao meu lado. Apontou para uma rocha plana: - Senta-te ali. Não me disse mais nada, nem «Bom dia», nem «Como estás», nem «O que te vou fazer hoje é bastante doloroso e tens de ser corajosa». Nada disso. A Assassina era totalmente profissional. A minha mãe arrancou um pedaço de raiz de uma árvore velha e depois instalou-me sobre a rocha. Sentou-se atrás de mim, puxou-me a cabeça sobre o seu peito e apertou-me o corpo com as pernas. Eu passei os braços em volta das suas coxas. Ela meteu o pedaço de raiz entre os meus dentes: - Morde isto. Eu estava paralisada de medo à medida que a memória do rosto torturado de Aman ressurgia diante de mim. Mordendo a raiz, murmurei: - Vai doer muito?
  • 33. A minha mãe inclinou-se para mim e murmurou: - Sabes, sozinha não consigo segurar-te. Tenta ser uma menina bem comportada, meu bebé. Sê corajosa pela mãe e isto passará depressa. 42 43
  • 34. Espreitei entre as minhas pernas e vi a mulher Preparar-se. Era idêntica a qualquer outra mulher Somali; tinha um lenço colorido enrolado em volta da cabeça, um vestido de algodão de C0% vivas, mas não sorria. Fitou-me duramente antes de mergulhar a mão num velho saco de Pano. Eu não tirava os olhos dela porque queria saber o que ia usar para me cortar. Estava à espera de uma grande faca, mas em vez disso retirou do saco um pequeno embrulho envolvido num estojo de algodão. Com uns dedos compridos, extraiu do seu interior uma lâmina de barbear partida e examinou-a de ambos os lados. O sol estava agora bastante alto e havia luz suficiente para ver as cores, mas não os detalhes. Apesar disso, vi sangue seco nas extremidades usadas da lâmina. Ela cuspiu na lâmina e limpou-a com o vestido. Foi na altura que tudo se tornou escuro, porque a minha mãe me pôs um lenço em volta dos olhos. Em seguida senti que me cortavam a carne, os órgãos genitais. Ouvia o ruído da lâmina que ia e vinha. Honestamente, quando penso nisso, custa-me verdadeiramente a crer que não tenha enlouquecido. Sinto-me como se estivesse a falar de outra pessoa. É-me praticamente impossível explicar o que senti. É como se nos cortassem a sangue-frio a carne da coxa ou do braço, excepto que se trata da parte mais sensível do nosso corpo. Contudo, não me movi um centímetro; lembrei-me de Aman e sabia que não havia hipótese alguma de escapar. E queria que a minha mãe se orgulhasse de mim. Permaneci deitada como se fosse feita de pedra, dizendo para comigo que quanto menos me mexesse menos duraria aquela tortura. Infelizmente, as minhas pernas começaram a tremer sozinhas sem que eu pudesse fazer nada contra isso. E rezei: Meu Deus, por favor, faz com que isto acabe depressa. Depois não senti mais nada porque desmaiei. Quando voltei a mim, pensei que tinha terminado, mas o pior ainda estava por vir. Tinham-me retirado a venda, e vi que a Assassina tinha a seu lado uma pilha de espinhos de acácia. Utilizou-os para fazer buracos na minha pele, após o que passou um fio branco sólido e me coseu. Eu tinha as pernas completamente dormentes mas a dor que eu sentia naquele sítio era tão terrível que desejei morrer. Senti-me flutuar acima do chão, deixando o meu sofrimento atrás de mim, e planei alguns metros acima da cena observando a mulher que cosia o meu corpo enquanto a minha pobre mãe me segurava os braços. Naquele momento, senti uma paz total; já não estava nem inquieta nem assustada. A partir desse instante, não me lembro de mais nada; quando recuperei a consciência, a mulher já tinha partido. Tinham-me mudado de sítio: estava estendida no chão junto à rocha. As minhas pernas estavam atadas juntas com pedaços de tecido, dos tornozelos até às ancas, para que não me pudesse mexer. Procurei a minha mãe com o olhar, mas ela também tinha Partido. Fiquei estendida, completamente só, perguntando-me o que iria acontecer-me em seguida. Virei a cabeça para o rochedo: estava coberto de sangue, como se um animal tivesse sido abatido ali. Pedaços da minha carne, do meu sexo, secavam ao sol. Assim estendida, observei o sol subir acima da minha cabeça. Já não havia sombra à minha volta e o calor queimava-me a cara quando a minha mãe e a minha irmã voltaram. Arrastaram-me e colocaram-me à sombra de um arbusto enquanto acabavam de preparar «a minha árvore». Era a tradição: uma pequena tenda especial era armada debaixo de uma árvore e seria aí que eu repousaria e me recuperaria, sozinha durante algumas
  • 35. semanas, até ficar boa. Quando terminaram o seu trabalho, a minha mãe e Aman transportaram-me para o interior da tenda. Eu pensava que o suplício tinha terminado até que senti vontade de fazer chichi; foi então que compreendi por que razão a minha mãe me aconselhara a não beber leite nem água. Depois de ter esperado várias horas, eu estava a morrer de vontade de urinar, mas as minhas pernas estavam atadas uma à outra, mal me conseguia mexer. A minha mãe pedira-me para não andar porque a ferida poderia voltar a abrir e então teria de ser cosida de novo. E, podem crer, essa era a última coisa que eu queria. Chamei a minha irmã: - Tenho de fazer chichi. A sua expressão fez-me pensar que não se tratava de uma boa notícia. Aproximou-se de mim, fez-me deitar de lado e escavou um buraco na areia. - Podes fazer. A primeira gota de urina queimou-me como se a minha pele tivesse sido comida por um ácido. Quando a cigana me cosera, deixara para a urina e para o sangue menstrual apenas um minúsculo orifício com o diâmetro de um fósforo. Ficava assim garantido que me seria impossível ter relações sexuais antes do casamento, e o meu marido teria a certeza de ter uma mulher virgem. Enquanto a urina, retida na minha ferida em carne viva, escorria gota a gota ao longo das minhas pernas e depois para a areia, comecei a soluçar. Não chorara quando a Assassina me cortara em pedaços, mas agora o ardor era tão horrível que não consegui suportar mais. À medida que a noite caía, Aman e a minha mãe voltaram ao acampamento para junto da família e eu fiquei sozinha na tenda. Permaneci deitada e impotente, incapaz de fugir, mas desta vez não tinha medo, nem do escuro, nem dos leões, nem das serpentes. Desde o momento em que me tinha visto pairar acima do meu corpo e vira aquela velha coser o meu sexo, já nada me podia amedrontar. Estendida no chão duro, rígida como uma pedra, ignorando o medo, era-me indiferente se iria viver ou morrer. Tão-pouco me importava saber que o resto da família estava em casa a conversar e a rir à lareira enquanto eu permanecia sozinha no escuro. 44 45
  • 36. À medida que os dias passavam e eu continuava estendida na minha tenda, a minha ferida começou a infectar e a febre subiu. Eu estava cada vez mais fraca, e por vezes perdia a consciência. Temendo a dor provocada pela micção, esforçava-me por não urinar, mas a minha mãe disse-me: - Meu bebé, se não fizeres chichi acabas por morrer. E eu esforcei-me por lhe obedecer. Quando estava só, deslocava-me alguns centímetros e, rebolando até ficar de lado, preparava-me para a dor lancinante que ia seguir-se. A dado momento, a minha ferida estava de tal forma infectada que eu era incapaz de urinar. Durante duas semanas a minha mãe trouxe-me de comer e de beber; durante o resto do tempo eu estava só, com as pernas sempre atadas. E esperava que a minha ferida sarasse. Febril, morta de aborrecimento e apática, não podia fazer mais nada a não ser pensar: Porquê? Qual a utilidade de tudo aquilo? Com a idade que eu tinha, não compreendia nada acerca de sexo. A única coisa que sabia é que tinha sido mutilada com o consentimento da minha mãe, e não conseguia entender a razão. Finalmente, a minha mãe veio procurar-me e eu arrastei-me até ao acampamento, com as pernas sempre atadas. Nessa mesma noite, na tenda famíliar, o meu pai perguntou-me: - Como te sentes? Suponho que ele se referia ao meu novo estado de mulher, mas eu só conseguia pensar na dor que sentia entre as pernas. Eu tinha cinco anos; limitei-me a sorrir, sem responder nada. Que podia eu saber acerca de ser mulher? Apesar de não perceber na altura, eu sabia uma série de coisas sobre o facto de se ser uma mulher africana: sabia como viver sem dar nas vistas, sofrendo à maneira passiva e impotente de uma criança. Durante mais de um mês, as minhas, pernas permaneceram ligadas uma à outra para que a minha ferida sarasse. A minha mãe lembrava-me frequentemente para não correr nem saltar, e eu arrastava suavemente os pés. Sempre fora muito activa e cheia de energia, correndo como um leopardo, trepando às árvores ou saltando por cima das rochas, e conhecia agora uma outra forma de suplício para uma rapariga: permanecer sentada enquanto os seus irmãos e irmãs brincavam. Mas, totalmente aterrorizada de voltar a passar por todo aquele tormento, mal me movia. A minha mãe certificava-se todas as semanas de que a ferida cicatrizava convenientemente. Quando retiraram os pedaços de pano que me ligavam as pernas, pude ver pela primeira vez o que me tinham feito: vi, entre as minhas coxas, pele completamente lisa, à excepção de uma espécie de fecho eclair praticamente fechado - os meus órgãos genitais estavam tão fechados como uma parede de tijolos. Assim, nenhum homem poderia penetrar-me antes da noite de núpcias, altura em que o meu marido me abriria com uma faca ou entraria à força dentro de mim. 46 Assim que pude recomeçar a andar, cumpri uma missão. Tinha pensado nela desde o dia em que aquela mulher me mutilara e durante as longas semanas em que permanecera estendida. Consistia em ir até junto do rochedo em que tinha sido sacrificada para ver se os meus órgãos genitais ainda lá estavam. Mas tinham desaparecido, sem dúvida comidos por um abutre ou uma hiena, predadores que participam no ciclo da vida e da morte em África. o seu papel é o de fazer desaparecer os cadáveres, a prova mórbida da dureza da nossa vida no deserto. A minha excisão fizera-me sofrer bastante, e no entanto tive sorte, as coisas podiam ter
  • 37. sido bem piores, como sucedia frequentemente com outras raparigas. Quando nos deslocavámos através da Somália, encontrávamos várias outras famílias e eu costumava brincar com as suas filhas. Mais tarde, quando voltávamos a encontrar-nos, algumas dessas raparigas já não existiam. Ninguém dizia a verdade sobre a sua ausência: morriam em consequência destas mutilações, das hemorragias, choques, infecções ou tétano. Dadas as condições em que é praticada esta ablação, não é de forma alguma surpreendente. O que é surpreendente é que algumas de nós sobrevivam a tudo isto. Pouco me lembro da minha irmã Halemo. Eu devia ter três anos quando subitamente ela desapareceu; não compreendi o que lhe aconteceu. Mais tarde, soube que a cigana a tinha excisado quando o «momento especial» chegara, e Halemo sangrara até morrer. Quando eu tinha cerca de dez anos, soube a história de uma das minhas jovens primas, excisada aos seis anos de idade. Foi um dos seus irmãos, que veio viver connosco, quem nos contou o que se passara. Uma mulher excisara a sua irmã e depois deitara-a na tenda para que ela recuperasse. Mas a sua «coisa», como lhe chamava o meu primo, começara a inchar; o cheiro que saía da tenda era insuportável. Na altura em que me contara esta história, eu não tinha acreditado. Por que teria a minha prima cheirado mal se isso não se passara com Aman nem comigo? Agora compreendo que ele dizia a verdade: dadas as condições repugnantes em que a excisão era praticada, a ferida tinha infectado, e o cheiro nauseabundo era um dos sintomas da gangrena. Segundo a tradição, a minha prima passara as suas noites sozinha na tenda, e uma manhã, quando a sua mãe fora vê-la, encontrara-a morta, o corpo já frio. Mas antes que os abutres tivessem tempo para fazer desaparecer aquela prova mórbida a família enterrara a rapariga. 47