SlideShare uma empresa Scribd logo
1 de 14
Baixar para ler offline
Faculdades EST                                                                      TEXTO 2

Curso de Integralização

Disciplina: Temas de Missiologia

Prof. Roberto Zwetsch




                        O conceito Missio Dei – Missão de Deus


                                                                                    Roberto Zwetsch1


1 – Missio Dei: uma perspectiva trinitária de missão2

        Não há consenso fácil na teologia em torno do conceito de missão. Percebo, no
entanto, duas direções para onde se encaminham as reflexões de distintos teólogos e
teólogas:

    a) Numa direção, missão é um conceito muito atrelado à Igreja cristã; serve aos seus
       ministérios ordenados e afins, que desenvolvem programa e criam projetos no
       intuito não só de manter, mas principalmente de expandir a igreja. Um dos
       conceitos que mais aparecem nessa argumentação é o da plantatio ecclesiae (a
       plantação de igrejas), supostamente em áreas onde a igreja não exista. Missão
       evidentemente cria igreja, mas aqui a ênfase recai sobre os frutos da ação
       missionária e sua capacidade de frutificação continuada.
    b) Noutra direção, missão caracteriza aquelas atividades e projetos que têm em vista
       um público amplo, não vinculado à instituição, e que procura situar-se em meio às
       estruturas sociais com alguns sinais que atestam a diferença. Nesse sentido, adquire
       um caráter mais testemunhal da fé do que de proclamação ou anúncio, ainda que
       este último de alguma forma sempre esteja presente. Não visa a criação rápida e




1
  Este texto é parte do capítulo 1 de minha tese de doutorado. Cf. ZWETSCH, Roberto E. Missão como com-
   paixão. Por uma teologia da missão em perspectiva latino-americana. São Leopoldo: EST, 2007, p. 74-80.
2
  Cf. ZWETSCH, Roberto E. Missão – testemunho do evangelho no horizonte do reino de Deus. In:
   SCHNEIDER-HARPPRECHT, Christoph (Org.). Teologia prática no contexto da América Latina. São
   Leopoldo: Sinodal, ASTE, 1998a, p. 214-218, com as devidas referências.
2

           automática de comunidades eclesiais, dando ênfase à singularidade tanto do
           contexto quanto da vocação missionária. Geralmente ocorre em trabalhos diaconais
           ou em áreas de fronteiras geográfica, étnica, social.

           A essas direções aqui descritas ao modo de tipos ideais (Max Weber)3 e que não
precisam necessariamente estar em concorrência, mas podem eventualmente imbricar-se
em casos concretos, correspondem duas tendências na teologia da missão:

       a) Missão é a proclamação do evangelho a toda pessoa ou grupo humano que não
          conhece a Jesus como Salvador e Senhor pessoal. Esta missão não tem fronteiras
          nem se deixa prender por qualquer tipo de limitação institucional ou de
          discriminação. Procura desenvolver o seu anúncio a partir do conhecido texto de
          Mateus 28.18-20 e paralelos, conhecido como a Grande Comissão. Defende como
          termo-chave da ação prática a obediência missionária. Nos últimos tempos,
          elaborou uma compreensão sócio-política da fé e suas conseqüências com a
          expressão missão integral.

       b) Missão é participar do envio de Deus entendido em seu mistério trinitário, cujo
          fundamento é o amor divino por toda a humanidade, revelado de modo pleno em
          Jesus de Nazaré, o Filho do Deus vivo. Ele é o centro do envio de Deus e a missão
          que lhe corresponde segue os seus passos. Seguimento ou discipulado de Jesus é
          um dos conceitos centrais dessa perspectiva missionária. Missão é entendida como
          uma ação divina, que se manifesta em missionários e missionárias. A ação da igreja
          cristã enquanto ação missionária é entendida como participação no chamado e
          envio de Deus. Missão é missio Dei (missão de Deus). A igreja cristã é instrumento
          na missão que é de Deus. Sua vocação é tornar-se co-participante da própria ação
          de Deus no mundo. Deus veio e vem continuamente a este mundo para salvar e
          libertar a humanidade. A tarefa da igreja deste Deus missionário – como enviada –
          é ver, ouvir, chamar, orientar, apontar, ajudar e tornar-se solidária como parte do
          testemunho daquela ação de Deus. A missão aponta para além de si mesma e da
          própria igreja que ajuda a construir. Ela indica para o horizonte do reino de Deus. O
          reino de Deus é o alvo e a igreja existe a serviço deste reino futuro, mas que já se
          antecipa em sinais aqui e acolá.

           Detenho-me aqui para um exame mais específico do conceito missio Dei, pois ele
tem se mostrado útil e compreensível para o testemunho do evangelho no mundo
contemporâneo. David J. Bosch desenvolveu no livro já citado o que ele chamou de
paradigma emergente e ecumênico de missão. E o fez a partir do conceito de missio Dei.
Ora, este conceito já tem uma longa história. Remonta a reflexões elaboradas já nos anos de




3
    Cf. WEBER, 1991, v. 1, p. 139-166, especialmente p. 141s.
3

1920 e 1930 por teólogos como Karl Hartenstein e Karl Barth. Estes teólogos tomaram
como ponto de partida a crise do cristianismo no século 20, percebendo nela tanto um
perigo quanto uma chance de renovação ou redefinição do papel da missão. E afirmaram
que a fé cristã e a própria igreja são, por definição, essencialmente missionárias. A missão é
a razão de ser da igreja. Não obstante, é quase impossível dizer o que ela é. Cada geração
de cristãos precisa redefinir o que entende por missão. Pois missão diz respeito às relações
entre Deus e o mundo, a partir de sua manifestação na história de Israel e particularmente,
na vida, morte e ressurreição de Jesus de Nazaré, a “autocomunicação de Deus”. Nesse
sentido, a Bíblia não é um conjunto de “leis de missão” que nos daria um receituário seguro
para a prática da missão. Ela é antes como um mapa ou bússola de orientação para
avaliarmos a ambivalência entre a providência ou ação divinas e a confusão ou limitação
propriamente humanas do povo de Deus e mesmo da humanidade. Assim, o envolvimento
da igreja na missão de Deus é um ato de fé para o qual não há garantia.4

          Bosch entende que a igreja e a vida cristãs são essencialmente missionárias por
causa da universalidade do evangelho. Ele distingue entre missão e missões. O primeiro
conceito se refere à missio Dei. A missão de Deus diz respeito à auto-revelação de Deus
como aquele que ama este mundo de modo inefável e absoluto. Descreve a ação de Deus
através do povo de Deus e de sua presença no mundo. A missão não é, pois, primeiramente
uma atividade da igreja, mas um atributo divino. A missão é primária; as missões são
secundárias, derivadas da primeira. Sendo a missão de Deus atividade de Deus, ela abarca
tanto a igreja quanto o mundo. A igreja é privilegiada em virtude de sua vocação de ser
parceira dessa ação de Deus, mas jamais exclusivamente. Deste modo, as missões referem-
se às diferentes formas adotadas pelas igrejas para pôr em prática a missão como
participantes da missio Dei.

          Não podemos separar Deus e o mundo. Quando falamos de Deus, imediatamente
temos de falar do mundo como âmbito de sua revelação e atuação criadora e salvadora ou




4
    Cf. PICH, Roberto H.; ZWETSCH, Roberto E. Elementos de um novo paradigma de missão: breve
     exposição do pensamento de David J. Bosch. Estudos Teológicos, São Leopoldo, ano 35, n. 2, p. 211-215,
     1995.
4

restauradora. A atenção e o amor de Deus transcendem a esfera do que entendemos por
religião, pois dizem respeito ao mundo todo (humanidade, natureza, cosmos). Assim,
podemos entender missão como “participação na existência de Deus no mundo”.

       Por isso, é razoável dizer que a igreja-em-missão não pode existir sem olhar para o
mundo com os olhos de Deus. Como comunidade enviada ao mundo, ela não consegue
deixar de questionar os principais problemas que afligem a humanidade (pobreza,
discriminação, fome, violência, guerra, corrupção, desesperança). Em meio a essas
realidades, missão é evangelização, anúncio do evangelho de Jesus Cristo, do perdão dos
pecados, da conversão para uma nova vida, da formação de comunidades alternativas
formadas por membros do corpo de Cristo, nas quais o seu Espírito habita e dá poder.
Missão é o “não” e o “sim” de Deus ao mundo. É “não” ao pecado, à injustiça e à violência
que desumaniza o ser humano radicalmente, É, em especial, o “sim” de Deus, da graça e do
amor que liberta e dignifica, porque em sua ação misericordiosa ele se deu e se dá neste
mundo e não em outro. É o que a Bíblia expressa com a encarnação do Filho de Deus que
torna presente o reinado de Deus, uma realidade nova de justiça e paz já atuantes no
mundo, mas em forma de fermento, realidade que não se confunde com qualquer progresso
humano, ainda que dele se possa valer para o bem da humanidade.

       Portanto, a questão central na missão é estar presente no mundo sem ser do mundo
(João 17.15s). Nem igreja separada ou sectária, nem igreja secularizada podem articular
bem a missio Dei. Igreja-em-missão, sinal e instrumento da actio Dei, poderia descrever
essa ambivalência desafiadora, sem esquecer sua permanente luta consigo mesma. A igreja
é santa e pecadora e subsiste exclusivamente pela e na graça de Deus. Por isso mesmo, ela
não pode ser identificada com o reino de Deus, mas também não pode ser entendida à parte
dele. A igreja é uma realidade escatológica. Na verdade, ela vive numa tensão criativa entre
ser chamada para fora do mundo (do grego ek-klesia, ek-kalein) e ser enviada (do grego
apostéllein) em sua apostolicidade ao mundo como um experimento da realidade
escatológica do reino de Deus.
5

          Georg Vicedom, em sua obra Missio Dei, expõe em profundidade o conceito de
missão sob o ponto de vista da doutrina da justificação.5 Ele retoma o conceito que foi
assumido pela Conferência Missionária de Willingen, na Alemanha, em 1952, segunda a
qual missão não é somente obediência a uma palavra do Senhor, mas é participação na
missão do Filho, na missio Dei, com o objetivo de estabelecer o senhorio de Cristo sobre
toda a criação.

          Para Vicedom, o conceito de missio Dei deve ser entendido como genitivo
atributivo. Isto é, “Deus não se torna apenas o enviador, mas também o enviado”. Isto
significa que todo envio da pessoa divina implica a presença da própria Trindade divina. O
Pai enviou o Filho e este envia o Espírito. Este envio serve à salvação do mundo. Nesta
concepção trinitária mais complexa de missão nos encontramos diante do que Vicedom
considera o “derradeiro mistério” da ação ou presença de Deus, pois de nossa parte só
podemos perceber de Deus aquilo que ele faz na relação com os seres humanos. Na missão
nos defrontamos, portanto, com o próprio mistério de Deus: Ele é o enviado, mas
simultaneamente, o conteúdo do envio e o que envia. Este pensamento tem enormes
conseqüências para a missio ecclesiae e o seu serviço no mundo. Para Vicedom, a missão
da igreja se encontra “prefigurada na missão divina”. Serviço, sentido e conteúdo de sua
atividade prática estão configurados ou conformados a partir da missio Dei.

          Por ser ação soberana, a missio Dei não se deixa prescrever por ninguém: religiões,
governos, potestades, ciência, incredulidade, piedade (especialmente a piedade cristã) não
podem conter a ação livre desse Deus. Faz parte da sua divindade não estar sujeito a
nenhuma restrição humana. O agir de Deus é, como afirmou a teologia da Reforma, extra
nos. E este agir é e só pode ser salvífico. Mesmo quando julga, Deus visa salvar a
humanidade. Por isto, o modo desse agir é tão crucial. Meio e fim não podem ser vistos
como apartados ou em contradição. Nunca conseguimos abarcar toda a ação divina, a sua
missio. Estamos sempre na dependência de suas testemunhas. Na teologia da missão nos




5
    VICEDOM, Georg. A missão como obra de Deus: introdução à teologia da missão (1958). São Leopoldo:
     Sinodal, IEPG, 1996. A Apresentação da edição brasileira é de autoria de Albérico Baeske e minha, p. 7-
     12.
6

referimos de modo especial à ação de Deus em Jesus de Nazaré e seu Espírito, à ação de
Deus na igreja, sem olvidar sua atuação na história do povo de Israel, por intermédio dos
profetas e outros de seus enviados. Ademais, Deus ainda envia ou atua por meio de outras
realidades totalmente impessoais. Assim, Deus, por meio de sua missio, sustenta o mundo e
conduz os seres humanos. E isto não se pode ver nem provar, mas nisso se pode crer,
confiar e procurar entender pela fé. É o que faz a teologia dos sinais dos tempos.

          A missão de Deus se tornou, na história, chamamento à decisão para dela fazer
parte. Deus não age sozinho, mas em comunidade, de forma plural, dinâmica, mostrando-se
de formas diferentes ao longo da história. Seria esta uma forma de entender a Trindade
divina: uma comunidade que trabalha junto movida pelo amor entre si e para com o outro, a
humanidade.6 Quem é chamado é incluído nessa missio, por amor. Difícil é ignorar o
chamado. Por caminhos às vezes desconhecidos, estranhos mesmo, todas as pessoas são
chamadas. E quando nos negamos a participar da obra de Deus, parece que Deus se cala e o
ser humano triunfa em sua autocentralidade. Qual não é nossa surpresa quando,
inesperadamente, a missio prossegue, apesar das resistências, tentações, fraquezas e
derrotas típicas da nossa experiência histórica. É isto que significa afirmar o senhorio de
Deus e orar constantemente: Venha o teu reino!

          Em resumo, Vicedom assim definiu missio Dei:

                             A missão como obras da misericórdia divina, que Deus iniciou através do
                             envio de seu Filho, é continuada por ele agora ao incumbir sua
                             comunidade, por meio de seu enviado, da propagação e da proclamação
                             de sua vontade salvadora. Assim o Senhor dá a ordem missionária ...
                             (mas) esse serviço da Igreja somente é possível porque ela mesma
                             experimentou compaixão através da ação redentora do Filho de Deus e
                             agora representa a comunidade dos crentes e justificados... Por
                             conseguinte, esse serviço é engajamento na atuação de Deus, obediência




6
    Cf. BOFF, Leonardo. A trindade e a sociedade. 3. ed. Série II: O Deus que liberta seu povo. Petrópolis:
     Vozes, 1987 (coleção Teologia e Libertação, v. 5). Cf. ainda SINNER, 2003. Nesta obra o autor destaca a
     importância da teologia trinitária para a hermenêutica ecumênica e o diálogo intercultural. Cf. ainda
     SINNER, Rudolf von. Hermenêutica ecumênica para um cristianismo plural. Estudos Teológicos, São
     Leopoldo, ano 44, n. 2, 26-57, 2004.
7

                              da fé, não estar desligado de Deus, mas ser tomado por ele, não é algo que
                              é acrescentado à ação de Deus, mas é submeter-se ao agir de Deus.7


           Tal compreensão de missão ajuda a desequilibrar o componente messiânico que a
missão cristã assumiu, sobretudo, durante os séculos de colonialismo, disseminando a
formação de igrejas nacionais em muitas partes do mundo que por muito tempo ficaram
enredadas nas estruturas e lideranças missionárias do exterior. É urgente retomar a idéia de
que somos cooperadores de Deus (1 Coríntios 3.9) na sua missio, para o bem, a justiça e a
paz entre as pessoas, e não soldados a serviço de um comandante que declarou guerra aos
infiéis deste mundo.8


2 – Síntese e perspectivas

           Este capítulo serviu como porta de entrada para esta pesquisa. Reuni elementos para
avaliar a teologia da missão que emergiu da caminhada histórica das igrejas protestantes e
procurou desafiá-las para uma inserção relevante no contexto latino-americano, crítica,
profética, diaconal e esperançadora. A história do protestantismo, em sua diversidade, ajuda
a perceber que, por mais dedicadas e heróicas que as pessoas tenham sido, nem sempre
prevaleceram as boas intenções e mesmo a dedicação piedosa e de boa consciência. O
protestantismo, por exemplo, tem uma dívida com a população negra escrava na América
Latina. Também deve muitas explicações sobre as estratégias missionárias civilizatórias
impostas às comunidades indígenas. Na sua relação com os governos, assumiu posições
ambíguas mais preocupado em garantir espaços institucionais do que com as conseqüências
da proclamação do evangelho do reino. Quando do surgimento do pentecostalismo no




7
    VICEDOM, 1996, p. 107s. Trata-se de um texto publicado como Apêndice e que tem por título: A
     justificação como força conformadora da missão (1952).
8
    A teologia da missio Dei tem despertado renovado interesse entre evangélicos do Movimento de Lausanne,
     ainda que sua compreensão seja diferenciada em relação ao âmbito ecumênico Cf. ARAGÃO, Jarbas Luiz
     Lopes. Missio Dei – A trindade em missão. Dissertação de mestrado. Orientador: Ms. Roberto E.
     Zwetsch. Viçosa: CEM, 2004. Cf. Também DEIROS, 1992. O autor, membro da Fraternidade Evangélica
     Latino-Americana, afirma na Introdução geral dessa volumosa obra: “Por tratarse de la dimensión histórica
     de la misión, este estudio tiene que ver con la acción de Dios en la América Latina a través de su pueblo.
     Es, pues, la consideración de la missio Dei desde una perspectiva histórica. Como tal, su importancia en el
     pasado no hace más que afirmar su vigencia en el presente” (p. XII).
8

início do século 20, não se podia prever em que direção seguiria o processo histórico que
acabou revelando a força impressionante deste movimento para se expandir por toda a
América Latina, sobretudo junto às camadas populares. Por outro lado, pode-se observar
uma deficiência cada vez mais evidente no que concerne às concepções eclesiológicas
nesse segmento majoritário do protestantismo latino-americano. É bem por isto que se pode
avaliar como uma promessa feliz, sem dúvida, a crescente demanda por desenvolvimento
autônomo de uma teologia pentecostal com perfil crítico e aberto à ecumene cristã.9

         Esta pesquisa se concentrou na análise de contribuições teológicas que nascem no
contexto de igrejas protestantes históricas e de movimentos evangélicos de grande
expressão na América Latina. Mesmo assim, imagino ser possível chegar a uma formulação
da teologia da missão que consiga estabelecer pontes com outros setores do protestantismo
latino-americano, inclusive com aqueles que eventualmente se mostrem críticos a uma
perspectiva teórica que parte do princípio de que uma teologia cristã relevante para o século
21 necessariamente deverá ser ecumênica, crítica, autocrítica, e por isto mesmo, inspiradora
para um seguimento apaixonado e profético do Senhor Jesus numa realidade que conspira
contra a dignidade da vida humana. É minha esperança que a compreensão da teologia da
missão como com-paixão permita um diálogo promissor com as pessoas de fé, com as
igrejas cristãs e mesmo para além delas, superando preconceitos e mal-entendidos que
acumularam desentendimentos e, não raro, um contra-testemunho na sociedade da qual
fazemos parte. É tempo de diálogo e construção de novos caminhos, de novos rostos para a
missão que, em suma, é de Deus e seu reino. A idéia de missão como com-paixão será
abordada mais extensamente no Texto n. 5.


                                                  *
         Para continuar a reflexão faço abaixo alguns excertos da introdução de David J.
Bosch ao seu livro Missão transformadora (p. 17-29). Quem tiver oportunidade de



9
    Cf. CHIQUETE, Daniel; ORELLANA, Luis (Eds.). Voces del pentecostalismo latinoamericano:
    identidad, teología e historia. Concepción: RELEP – Red Latinoamericana de Estudios Pentecostales;
    CETELA; ASETT – AL, 2003. Cf. ainda GUTIÉRREZ; CAMPOS (Eds.), 1996.
9

consultar esse livro, faça-o com muita liberdade, pois o proveito será grande. Mas para
facilitar o trabalho de quem não puder acessá-lo, seguem alguns trechos que considero os
mais estimulantes para este estudo.

        Trecho 1

        O título deste livro [...] é ambíguo. Transforming [“transformadora”] pode ser um
adjetivo que descreve “missão”. [...] entretanto, também pode ser um particípio presente, a
atividade de transformar, da qual “missão” é o objeto. Aqui, a missão não é um
empreendimento que transforma a realidade, mas algo que está sendo, ele próprio,
transformado. [...] Minha tese é [...] que esse processo de transformação ainda não chegou
ao fim (e, na verdade, jamais chegará ao fim), e de que nos encontramos [...] em meio a
uma das mais importantes mudanças na compreensão e prática da missão cristã. Este
estudo, porém, não é meramente descritivo. [... Ele] também sugere que a missão continua
sendo uma dimensão indispensável da fé cristã e que, em seu nível mais profundo, seu
propósito é transformar a realidade que a circunda. [...] “Transformadora” é, por
conseguinte, um adjetivo que descreve uma característica essencial do que significa missão
cristã. (p. 11, Prefácio)




        Trecho 2

        O termo “missão” pressupõe alguém que envia, uma pessoa ou pessoas enviadas por
quem envia, as pessoas para as quais alguém é enviado e uma incumbência. Toda a
terminologia pressupõe, assim, que quem envia tema a autoridade para fazer isso. Com
freqüência, se sustentava que quem realmente enviava era Deus [...]. Na prática, [..] a
autoridade era entendida como sendo conferida à igreja ou a uma sociedade missionária, ou
mesmo a um potentado cristão. [...] Fazia parte de toda essa abordagem conceber a missão
em termos de expansão, ocupação de campos, conquista de outras religiões e coisas
semelhantes. [...] Vou sustentar que essa interpretação tradicional de missão foi
gradativamente modificada ao longo do século 20. (p. 18)
10

        Trecho 3

        O que é novo em relação à nossa era [...] é que a missão cristã [...] está sendo
atacada não só a partir de fora, mas também a partir de dentro de suas próprias fileiras. [...]
Essas circunstâncias por si só tornam necessária e justificam a reflexão sobre a missão
como um ponto permanente na pauta da teologia. Se esta é uma “exposição reflexiva da
fé” [...], faz parte da tarefa da teologia considerar criticamente a missão como uma das
expressões [...] da fé cristã.

        A crítica da missão não deveria, em si, nos surpreender. É, antes, normal para os
cristãos viverem numa situação de crise. (O teólogo holandês) H. Kraemer formulou isto da
seguinte maneira: “A rigor, dever-se-ia dizer que a Igreja está sempre num estado de crisee
que sua maior insuficiência é o fato de ela só estar consciente disso ocasionalmente.” Isso
deveria ser assim, sustentou Kraemer, por causa da “tensão permanente entre a natureza
essencial (da igreja) e sua condição empírica”.

        [...]

        Como seu Senhor, [...] a igreja – se for fiel a seu ser – será sempre controvertida,
um “sinal contra o qual se falará” (Lucas 2.34). [...] Saibamos [...] que defrontar-se com a
crise é encontrar a possibilidade de ser verdadeiramente a igreja. O caracter japonês de
“crise” é uma combinação dos caracteres de “perigo” e “oportunidade” (ou “promessa”); a
crise, por conseguinte, não é o fim da oportunidade, mas na realidade apenas seu início, o
ponto onde o perigo e a oportunidade se encontram, onde o futuro é incerto e onde os
acontecimentos podem tomar qualquer uma das direções. (p. 19)

        Bosch em seguida afirma que a crise de que fala não atinge apenas a igreja cristã,
ela, na verdade, é uma crise que afeta o mundo inteiro: a ciência e a tecnologia; o Ocidente
antes considerado cristão e hoje crescentemente descristianizado; o mundo pluralista das
religiões; a crescente divisão entre pobres e ricos, entre poucas nações extremamente ricas e
muitos países tragicamente empobrecidos e assim por diante. Diante dessa situação, as
igrejas que surgiram do movimento missionário já não admitem mais a dependência das
igrejas de origem. Buscam sua autonomia não só segundo os três autos do século 19 (auto-
11

sustento; autogoverno; autopropagação), mas também agora uma teologia própria,
contextual, que ajude estas igrejas a se tornarem responsáveis por sua compreensão do
evangelho e do mandato missionário de Cristo. É daí que surgem as novas teologias do
Terceiro Mundo: teologia da libertação (América Latina), teologia negra (EUA), teologia
contextual (CMI), teologia minjung (Coréia), teologia africana, teologia asiática e outras.

       Trecho 4

       A tese deste livro é que os acontecimentos que temos vivenciado ao menos desde a
Segunda Guerra Mundial (1939-1945, RZ) e a conseqüente crise na missão cristã não
devem ser entendidos como meramente incidentais e reversíveis. Ao contrário, o que tem se
desenvolvido em círculos teológicos e missionários durante as últimas décadas é resultado
de uma fundamental mudança de paradigma, não apenas na missão ou na teologia, mas
na experiência e no pensamento do mundo inteiro. [...] tal mudança de paradigma não nos
confronta [...] apenas com um perigo, mas também com oportunidades. Em épocas
anteriores a igreja reagiu imaginosamente a mudanças de paradigma; somos desafiados a
fazer o mesmo em relação a nosso tempo e contexto. (p. 20s)




       Trecho 5

       A crise contemporânea se manifesta, no que diz respeito à missão, em três áreas: o
fundamento, os motivos e a meta e a natureza da missão.

       [...] Um fundamento inadequado para a missão e motivos e metas missionários
ambíguos estão fadados a acarretar uma prática missionária insatisfatória. As igrejas
“plantadas” nos “campos de missão” eram réplicas das igrejas da “frente doméstica” da
agência missionária, “abençoadas” com toda a parafernália dessas igrejas, “incluindo tudo,
desde harmônios até arquidiáconos”. [...]

       Foi esse comércio de exportação eclesiástica que fez com que (o teólogo alemão
Paul (Schütz) protestasse dizendo: “A casa está pegando fogo! Em nossa missão nós nos
parecemos a um lunático que carrega a colheita para dentro de seu celeiro em chamas”.
12

Schütz localizou o problema não “lá fora”, no campo da missão, mas no coração da própria
igreja ocidental. [...] “Intra muros”!” [“para dentro dos muros!”], bradou ele, “o resultado é
determinado pelo que acontece dentro da igreja, não fora, no campo de missão”. (p. 21s)




       Trecho 6

       (Diante dessa crise), o único caminho válido aberto para nós é lidar com a crise
numa atitude de máxima sinceridade, mas sem nos permitir sucumbir a ela. Mais uma vez:
a crise é o ponto em que o perigo e a oportunidade se encontram.

       [...] Sugiro [...] que a solução para o problema apresentado pela atual falta de fibra
não reside numa simples volta a uma consciência e uma prática missionárias anteriores. [...]
Necessitamos, antes, de uma nova visão para sair do atual impasse rumo a uma espécie
diferente de envolvimento missionário [...]. Os mais valentes entre os pensadores
missionários já começaram há algum tempo a perceber que um novo paradigma para a
missão estava surgindo. [...] As duras realidades do presente nos compelem a re-conceber e
reformular a missão da igreja, a fazer isso de maneira ousada e imaginativa, mas também
em continuidade com o melhor daquilo que a missão foi nas últimas décadas e séculos.

       A tese deste livro é a de que não é possível nem apropriado tentar uma definição
revista de missão sem examinar meticulosamente as vicissitudes das missões e da idéia
missionária durante os últimos 20 séculos da história cristã. (Além disso) deveria tornar-se
claro que em nenhuma época dos dois últimos milênios houve uma única “teologia da
missão”. [...] Entretanto, diferentes teologias da missão não se excluem necessariamente
umas às outras; elas formam um mosaico multicolorido de sistemas de coordenadas
complementares e mutuamente enriquecedores, bem como mutuamente contestadores. Em
vez de tentar formular uma única concepção de missão, deveríamos, antes, mapear o perfil
de um “pluriverso de missiologia num universo cristão”. (p. 25)
13

       Trecho 7

       [...] nunca podemos arrogar-nos delinear a missão com excessiva nitidez e
autoconfiança. Em última análise, a missão permanece indefinível; ela nunca deveria ser
encarcerada nos limites estreitos de nossas predileções (ou teorias, RZ). O máximo que
podemos esperar é formular algumas aproximações do que a missão significa.

       A missão cristã dá expressão ao relacionamento dinâmico entre Deus e o mundo,
particularmente à maneira como ele foi retratado, primeiro na (história) do povo do pacto,
Israel, e então, de modo supremo, no nascimento, vida, morte, ressurreição e exaltaçào de
Jesus de Nazaré. Um fundamento teológico da missão, diz (o teólogo alemão Th.) Kramm,
“só é possível se nos referirmos continuamente à base de nossa fé: a autocomunicaçào de
Deus em Jesus Cristo”.

       A Bíblia não deve ser tratada como um depósito de verdades às quais poderíamos
recorrer aleatoriamente. Não há “leis de missão” imutáveis e objetivamente corretas [...].
Nossa prática missionária [...] é um empreendimento inteiramente ambivalente executado
no contexto da tensão entre providência divina e confusão humana. O envolvimento da
igreja na missão permanece um ato de fé sem garantias terrenas.

       [...] A natureza missionária da igreja não depende simplesmente da situação na qual
ela se encontra em dado momento, mas está baseada no próprio evangelho. A justificação e
fundamentação das missões no exterior, bem como das missões no próprio país, “residem
na universalidade da salvação e na indivisibilidade do reinado de Cristo”. [...] Temos [...]
de repudiar a doutrina mística da água salgada; isto é, a idéia de que viajar a países
estrangeiros constitui a condição sine qua non de qualquer empenho missionário e o teste e
critério final do que seja verdadeiramente missionário. (p. 26s)
14

       Trecho 8

       Temos de distinguir entre missão (no singular) e missões (no plural). O primeiro
conceito designa primordialmente a missio Dei (missão de Deus), isto é, a auto-revelaçào
de Deus como Aquele que ama o mundo, o envolvimento de Deus no e com o mundo, a
natureza e atividade de Deus, que compreende tanto a igreja quanto o mundo, e das quais a
igreja tem o privilégio de participar. Missio Dei enuncia a boa nova de que Deus é um
Deus-para as/pelas-pessoas. Missões (as missiones ecclesiae) [“missões da igreja”]: (os
empreendimentos missionários das igrejas): designa formas particulares, relacionadas com
tempos, lugares ou necessidades específicos, de participação na missio Dei. (p. 28)

       Bosch, então, afirma que a missio Dei – missão de Deus – é o “sim” e o “não” de
Deus ao mundo. É “sim” quando anunciamos o amor e a atenção de Deus pelo mundo, por
todas as pessoas, todos os povos, e particularmente, os pobres do mundo. É “não” quando
Deus se volta contra as injustiças e o mal no mundo, tudo aquilo que desumaniza e oprime
o ser humano e a própria criação. Também nós somos integrados neste “não” de Deus
quando nos opomos aos desmandos dos poderosos e nos solidarizamos com as vítimas de
toda e qualquer forma de opressão. Ao final dessa longa introdução, Bosch resume assim
seu pensamento:

       Trecho 9

       A igreja-em-missão [...] pode ser descrita em termos de sacramento e sinal. Ela é
sinal no sentido de indicação, símbolo, exemplo ou modelo; é sacramento no sentido de
mediação, representação ou antecipação. Não é idêntica ao reinado de Deus (nunca
confundir igreja e reinado ou reino de Deus, RZ), mas também não deixa de estar
relacionada com ele; é “um antegosto de sua vinda” (um aperitivo do reino, como escreveu
Rubem Alves, RZ), o sacramento de suas antecipações na história. Vivendo na tensão
criativa de, ao mesmo tempo, ser chamada para fora do mundo e ser enviada ao mundo, ela
é desafiada a ser o jardim experimental de Deus na terra, um fragmento do reinado de
Deus, tendo “as primícias do Espírito” (Romanos 8.23) como penhor do que há de vir (2
Coríntios 1.22). (p. 29)

Mais conteúdo relacionado

Mais procurados

O que é missão Integral?
O que é missão Integral?O que é missão Integral?
O que é missão Integral?Jean Francesco
 
Marialis cultus (apresentação didática)
Marialis cultus (apresentação didática)Marialis cultus (apresentação didática)
Marialis cultus (apresentação didática)Afonso Murad (FAJE)
 
A igreja Católica e seus Modelos e a Eclesiologia Latino Americana
A igreja Católica e seus Modelos e a Eclesiologia Latino AmericanaA igreja Católica e seus Modelos e a Eclesiologia Latino Americana
A igreja Católica e seus Modelos e a Eclesiologia Latino AmericanaRodrigo F Menegatti
 
Imaculada conceição e assunçáo
Imaculada conceição e assunçáoImaculada conceição e assunçáo
Imaculada conceição e assunçáoAfonso Murad (FAJE)
 
A+teologia da missao_integral_ed+rené+kivitz
A+teologia da missao_integral_ed+rené+kivitzA+teologia da missao_integral_ed+rené+kivitz
A+teologia da missao_integral_ed+rené+kivitzERABELO
 
A igreja como agente de transformação integral
A igreja como agente de transformação integral A igreja como agente de transformação integral
A igreja como agente de transformação integral Alípio Vallim
 
Hermenêutica dos textos religiosos
Hermenêutica dos textos religiososHermenêutica dos textos religiosos
Hermenêutica dos textos religiososJoão Pereira
 
Introdução à mariologia (2012)
Introdução à mariologia (2012)Introdução à mariologia (2012)
Introdução à mariologia (2012)Afonso Murad (FAJE)
 
A missão integral da igreja [salvo automaticamente]
A missão integral da igreja [salvo automaticamente]A missão integral da igreja [salvo automaticamente]
A missão integral da igreja [salvo automaticamente]Joziran Vieira joziran
 
Maria no Vaticano II: Esquema do capítulo 8 da lumen gentium.
Maria no Vaticano II: Esquema do capítulo 8 da lumen gentium.Maria no Vaticano II: Esquema do capítulo 8 da lumen gentium.
Maria no Vaticano II: Esquema do capítulo 8 da lumen gentium.Angela Cabrera
 
A mística mariana da alegria do evangelho v2
A mística mariana da alegria do evangelho v2A mística mariana da alegria do evangelho v2
A mística mariana da alegria do evangelho v2Afonso Murad (FAJE)
 
O rosto atual de Maria a partir do Vaticano II
O rosto atual de Maria a partir do Vaticano IIO rosto atual de Maria a partir do Vaticano II
O rosto atual de Maria a partir do Vaticano IIAfonso Murad (FAJE)
 
Texto 3 carisma pastoral - bispo paulo lockmann
Texto 3   carisma pastoral - bispo paulo lockmannTexto 3   carisma pastoral - bispo paulo lockmann
Texto 3 carisma pastoral - bispo paulo lockmannPaulo Dias Nogueira
 

Mais procurados (20)

O que é missão Integral?
O que é missão Integral?O que é missão Integral?
O que é missão Integral?
 
Marialis cultus (apresentação didática)
Marialis cultus (apresentação didática)Marialis cultus (apresentação didática)
Marialis cultus (apresentação didática)
 
Marialis cultus
Marialis cultusMarialis cultus
Marialis cultus
 
Itinerário da missão pe. altevir maio 2011
Itinerário da missão pe. altevir maio 2011Itinerário da missão pe. altevir maio 2011
Itinerário da missão pe. altevir maio 2011
 
A igreja Católica e seus Modelos e a Eclesiologia Latino Americana
A igreja Católica e seus Modelos e a Eclesiologia Latino AmericanaA igreja Católica e seus Modelos e a Eclesiologia Latino Americana
A igreja Católica e seus Modelos e a Eclesiologia Latino Americana
 
O culto cristão a forma
O culto cristão   a formaO culto cristão   a forma
O culto cristão a forma
 
Imaculada conceição e assunçáo
Imaculada conceição e assunçáoImaculada conceição e assunçáo
Imaculada conceição e assunçáo
 
A+teologia da missao_integral_ed+rené+kivitz
A+teologia da missao_integral_ed+rené+kivitzA+teologia da missao_integral_ed+rené+kivitz
A+teologia da missao_integral_ed+rené+kivitz
 
Aparições de Nossa Senhora
Aparições de Nossa SenhoraAparições de Nossa Senhora
Aparições de Nossa Senhora
 
A igreja como agente de transformação integral
A igreja como agente de transformação integral A igreja como agente de transformação integral
A igreja como agente de transformação integral
 
Hermenêutica dos textos religiosos
Hermenêutica dos textos religiososHermenêutica dos textos religiosos
Hermenêutica dos textos religiosos
 
Apostila missiologia
Apostila missiologiaApostila missiologia
Apostila missiologia
 
Introdução à mariologia (2012)
Introdução à mariologia (2012)Introdução à mariologia (2012)
Introdução à mariologia (2012)
 
A missão integral da igreja [salvo automaticamente]
A missão integral da igreja [salvo automaticamente]A missão integral da igreja [salvo automaticamente]
A missão integral da igreja [salvo automaticamente]
 
Maria no Vaticano II: Esquema do capítulo 8 da lumen gentium.
Maria no Vaticano II: Esquema do capítulo 8 da lumen gentium.Maria no Vaticano II: Esquema do capítulo 8 da lumen gentium.
Maria no Vaticano II: Esquema do capítulo 8 da lumen gentium.
 
Missões indígenas - Realidades e Desafios
Missões indígenas - Realidades e DesafiosMissões indígenas - Realidades e Desafios
Missões indígenas - Realidades e Desafios
 
MISSIOLOGIA - IBADEP - LIÇÃO 1
MISSIOLOGIA - IBADEP - LIÇÃO 1MISSIOLOGIA - IBADEP - LIÇÃO 1
MISSIOLOGIA - IBADEP - LIÇÃO 1
 
A mística mariana da alegria do evangelho v2
A mística mariana da alegria do evangelho v2A mística mariana da alegria do evangelho v2
A mística mariana da alegria do evangelho v2
 
O rosto atual de Maria a partir do Vaticano II
O rosto atual de Maria a partir do Vaticano IIO rosto atual de Maria a partir do Vaticano II
O rosto atual de Maria a partir do Vaticano II
 
Texto 3 carisma pastoral - bispo paulo lockmann
Texto 3   carisma pastoral - bispo paulo lockmannTexto 3   carisma pastoral - bispo paulo lockmann
Texto 3 carisma pastoral - bispo paulo lockmann
 

Semelhante a Missio Dei - conceito da missão de Deus

Apostila missiologia
Apostila missiologiaApostila missiologia
Apostila missiologiaBispoAlberto
 
8 natureza e missão da teologia
8 natureza e missão da teologia8 natureza e missão da teologia
8 natureza e missão da teologiafaculdadeteologica
 
10. MISSÃO E LIDERANÇA.pdf
10. MISSÃO E LIDERANÇA.pdf10. MISSÃO E LIDERANÇA.pdf
10. MISSÃO E LIDERANÇA.pdfSEMERSONBARROS
 
FUNDAMENTOS TEOLÓGICOS DA MISSÃO
FUNDAMENTOS TEOLÓGICOS DA MISSÃOFUNDAMENTOS TEOLÓGICOS DA MISSÃO
FUNDAMENTOS TEOLÓGICOS DA MISSÃOPaulo David
 
As Dimensões missionarias da Igreja
As Dimensões missionarias da Igreja  As Dimensões missionarias da Igreja
As Dimensões missionarias da Igreja Oswaldo Michaelano
 
A Teologia da Missão Integral - Ed René Kivitz - 2009
A Teologia da Missão Integral - Ed René Kivitz - 2009A Teologia da Missão Integral - Ed René Kivitz - 2009
A Teologia da Missão Integral - Ed René Kivitz - 2009Jairo Mielnik
 
Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora 2011-2015 (DGAE 2011-2015)
Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora 2011-2015 (DGAE 2011-2015) Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora 2011-2015 (DGAE 2011-2015)
Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora 2011-2015 (DGAE 2011-2015) Bernadetecebs .
 
Diretrizes 2011 2015
Diretrizes  2011  2015Diretrizes  2011  2015
Diretrizes 2011 2015MNEstudio
 
Missão integral (1/3)
Missão integral (1/3)Missão integral (1/3)
Missão integral (1/3)daalianca
 
1 história do cristianismo - 1ª aula
1   história do cristianismo - 1ª aula1   história do cristianismo - 1ª aula
1 história do cristianismo - 1ª aulaPIB Penha
 
Viver em multiplicidade
Viver em multiplicidadeViver em multiplicidade
Viver em multiplicidadeLuiz Ferreira
 
Apostila teologia-biblica-de-missoes
Apostila teologia-biblica-de-missoesApostila teologia-biblica-de-missoes
Apostila teologia-biblica-de-missoesCaetan Capellan
 
NATUREZA MISSIONÁRIA DA IGREJA
NATUREZA MISSIONÁRIA DA IGREJANATUREZA MISSIONÁRIA DA IGREJA
NATUREZA MISSIONÁRIA DA IGREJAPaulo David
 

Semelhante a Missio Dei - conceito da missão de Deus (20)

Missiologia
MissiologiaMissiologia
Missiologia
 
Apostila missiologia
Apostila missiologiaApostila missiologia
Apostila missiologia
 
7 teologia da missão
7 teologia da missão7 teologia da missão
7 teologia da missão
 
Missio dei x missio ecclesiae
Missio dei  x  missio ecclesiaeMissio dei  x  missio ecclesiae
Missio dei x missio ecclesiae
 
8 natureza e missão da teologia
8 natureza e missão da teologia8 natureza e missão da teologia
8 natureza e missão da teologia
 
10. MISSÃO E LIDERANÇA.pdf
10. MISSÃO E LIDERANÇA.pdf10. MISSÃO E LIDERANÇA.pdf
10. MISSÃO E LIDERANÇA.pdf
 
FUNDAMENTOS TEOLÓGICOS DA MISSÃO
FUNDAMENTOS TEOLÓGICOS DA MISSÃOFUNDAMENTOS TEOLÓGICOS DA MISSÃO
FUNDAMENTOS TEOLÓGICOS DA MISSÃO
 
As Dimensões missionarias da Igreja
As Dimensões missionarias da Igreja  As Dimensões missionarias da Igreja
As Dimensões missionarias da Igreja
 
O dom apostólico carlos carvalho
O dom apostólico    carlos carvalhoO dom apostólico    carlos carvalho
O dom apostólico carlos carvalho
 
Catequese Renovada
Catequese RenovadaCatequese Renovada
Catequese Renovada
 
A Teologia da Missão Integral - Ed René Kivitz - 2009
A Teologia da Missão Integral - Ed René Kivitz - 2009A Teologia da Missão Integral - Ed René Kivitz - 2009
A Teologia da Missão Integral - Ed René Kivitz - 2009
 
Evangelismo aula 03
Evangelismo   aula 03Evangelismo   aula 03
Evangelismo aula 03
 
Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora 2011-2015 (DGAE 2011-2015)
Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora 2011-2015 (DGAE 2011-2015) Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora 2011-2015 (DGAE 2011-2015)
Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora 2011-2015 (DGAE 2011-2015)
 
Diretrizes 2011 2015
Diretrizes  2011  2015Diretrizes  2011  2015
Diretrizes 2011 2015
 
Missão integral (1/3)
Missão integral (1/3)Missão integral (1/3)
Missão integral (1/3)
 
1 história do cristianismo - 1ª aula
1   história do cristianismo - 1ª aula1   história do cristianismo - 1ª aula
1 história do cristianismo - 1ª aula
 
Viver em multiplicidade
Viver em multiplicidadeViver em multiplicidade
Viver em multiplicidade
 
Diretrizes
Diretrizes Diretrizes
Diretrizes
 
Apostila teologia-biblica-de-missoes
Apostila teologia-biblica-de-missoesApostila teologia-biblica-de-missoes
Apostila teologia-biblica-de-missoes
 
NATUREZA MISSIONÁRIA DA IGREJA
NATUREZA MISSIONÁRIA DA IGREJANATUREZA MISSIONÁRIA DA IGREJA
NATUREZA MISSIONÁRIA DA IGREJA
 

Mais de Vinicio Pacifico (20)

Criação ou coincidencia biológica
Criação ou coincidencia biológicaCriação ou coincidencia biológica
Criação ou coincidencia biológica
 
Ode to n (1)
Ode to n (1)Ode to n (1)
Ode to n (1)
 
Os dez mandamentos
Os dez mandamentosOs dez mandamentos
Os dez mandamentos
 
Ode to n (1)
Ode to n (1)Ode to n (1)
Ode to n (1)
 
A história da salvação
A história da salvaçãoA história da salvação
A história da salvação
 
Disciplina na igreja
Disciplina na igrejaDisciplina na igreja
Disciplina na igreja
 
Culto familiar
Culto familiarCulto familiar
Culto familiar
 
A história da salvação
A história da salvaçãoA história da salvação
A história da salvação
 
M.g.f. visão ...
M.g.f. visão ...M.g.f. visão ...
M.g.f. visão ...
 
M.g.f. visão
M.g.f. visãoM.g.f. visão
M.g.f. visão
 
Sobreviventes
SobreviventesSobreviventes
Sobreviventes
 
Estudos em hermenêutica bíblica
Estudos em hermenêutica bíblicaEstudos em hermenêutica bíblica
Estudos em hermenêutica bíblica
 
Evangelismo efetivo retrato
Evangelismo efetivo   retratoEvangelismo efetivo   retrato
Evangelismo efetivo retrato
 
Capa 02 retrato
Capa 02 retratoCapa 02 retrato
Capa 02 retrato
 
Capa 01
Capa 01Capa 01
Capa 01
 
Bibliografia
BibliografiaBibliografia
Bibliografia
 
Sumário
SumárioSumário
Sumário
 
íNdice
íNdiceíNdice
íNdice
 
Ev efetivo 005
Ev efetivo 005Ev efetivo 005
Ev efetivo 005
 
Ev efetivo 004
Ev efetivo 004Ev efetivo 004
Ev efetivo 004
 

Missio Dei - conceito da missão de Deus

  • 1. Faculdades EST TEXTO 2 Curso de Integralização Disciplina: Temas de Missiologia Prof. Roberto Zwetsch O conceito Missio Dei – Missão de Deus Roberto Zwetsch1 1 – Missio Dei: uma perspectiva trinitária de missão2 Não há consenso fácil na teologia em torno do conceito de missão. Percebo, no entanto, duas direções para onde se encaminham as reflexões de distintos teólogos e teólogas: a) Numa direção, missão é um conceito muito atrelado à Igreja cristã; serve aos seus ministérios ordenados e afins, que desenvolvem programa e criam projetos no intuito não só de manter, mas principalmente de expandir a igreja. Um dos conceitos que mais aparecem nessa argumentação é o da plantatio ecclesiae (a plantação de igrejas), supostamente em áreas onde a igreja não exista. Missão evidentemente cria igreja, mas aqui a ênfase recai sobre os frutos da ação missionária e sua capacidade de frutificação continuada. b) Noutra direção, missão caracteriza aquelas atividades e projetos que têm em vista um público amplo, não vinculado à instituição, e que procura situar-se em meio às estruturas sociais com alguns sinais que atestam a diferença. Nesse sentido, adquire um caráter mais testemunhal da fé do que de proclamação ou anúncio, ainda que este último de alguma forma sempre esteja presente. Não visa a criação rápida e 1 Este texto é parte do capítulo 1 de minha tese de doutorado. Cf. ZWETSCH, Roberto E. Missão como com- paixão. Por uma teologia da missão em perspectiva latino-americana. São Leopoldo: EST, 2007, p. 74-80. 2 Cf. ZWETSCH, Roberto E. Missão – testemunho do evangelho no horizonte do reino de Deus. In: SCHNEIDER-HARPPRECHT, Christoph (Org.). Teologia prática no contexto da América Latina. São Leopoldo: Sinodal, ASTE, 1998a, p. 214-218, com as devidas referências.
  • 2. 2 automática de comunidades eclesiais, dando ênfase à singularidade tanto do contexto quanto da vocação missionária. Geralmente ocorre em trabalhos diaconais ou em áreas de fronteiras geográfica, étnica, social. A essas direções aqui descritas ao modo de tipos ideais (Max Weber)3 e que não precisam necessariamente estar em concorrência, mas podem eventualmente imbricar-se em casos concretos, correspondem duas tendências na teologia da missão: a) Missão é a proclamação do evangelho a toda pessoa ou grupo humano que não conhece a Jesus como Salvador e Senhor pessoal. Esta missão não tem fronteiras nem se deixa prender por qualquer tipo de limitação institucional ou de discriminação. Procura desenvolver o seu anúncio a partir do conhecido texto de Mateus 28.18-20 e paralelos, conhecido como a Grande Comissão. Defende como termo-chave da ação prática a obediência missionária. Nos últimos tempos, elaborou uma compreensão sócio-política da fé e suas conseqüências com a expressão missão integral. b) Missão é participar do envio de Deus entendido em seu mistério trinitário, cujo fundamento é o amor divino por toda a humanidade, revelado de modo pleno em Jesus de Nazaré, o Filho do Deus vivo. Ele é o centro do envio de Deus e a missão que lhe corresponde segue os seus passos. Seguimento ou discipulado de Jesus é um dos conceitos centrais dessa perspectiva missionária. Missão é entendida como uma ação divina, que se manifesta em missionários e missionárias. A ação da igreja cristã enquanto ação missionária é entendida como participação no chamado e envio de Deus. Missão é missio Dei (missão de Deus). A igreja cristã é instrumento na missão que é de Deus. Sua vocação é tornar-se co-participante da própria ação de Deus no mundo. Deus veio e vem continuamente a este mundo para salvar e libertar a humanidade. A tarefa da igreja deste Deus missionário – como enviada – é ver, ouvir, chamar, orientar, apontar, ajudar e tornar-se solidária como parte do testemunho daquela ação de Deus. A missão aponta para além de si mesma e da própria igreja que ajuda a construir. Ela indica para o horizonte do reino de Deus. O reino de Deus é o alvo e a igreja existe a serviço deste reino futuro, mas que já se antecipa em sinais aqui e acolá. Detenho-me aqui para um exame mais específico do conceito missio Dei, pois ele tem se mostrado útil e compreensível para o testemunho do evangelho no mundo contemporâneo. David J. Bosch desenvolveu no livro já citado o que ele chamou de paradigma emergente e ecumênico de missão. E o fez a partir do conceito de missio Dei. Ora, este conceito já tem uma longa história. Remonta a reflexões elaboradas já nos anos de 3 Cf. WEBER, 1991, v. 1, p. 139-166, especialmente p. 141s.
  • 3. 3 1920 e 1930 por teólogos como Karl Hartenstein e Karl Barth. Estes teólogos tomaram como ponto de partida a crise do cristianismo no século 20, percebendo nela tanto um perigo quanto uma chance de renovação ou redefinição do papel da missão. E afirmaram que a fé cristã e a própria igreja são, por definição, essencialmente missionárias. A missão é a razão de ser da igreja. Não obstante, é quase impossível dizer o que ela é. Cada geração de cristãos precisa redefinir o que entende por missão. Pois missão diz respeito às relações entre Deus e o mundo, a partir de sua manifestação na história de Israel e particularmente, na vida, morte e ressurreição de Jesus de Nazaré, a “autocomunicação de Deus”. Nesse sentido, a Bíblia não é um conjunto de “leis de missão” que nos daria um receituário seguro para a prática da missão. Ela é antes como um mapa ou bússola de orientação para avaliarmos a ambivalência entre a providência ou ação divinas e a confusão ou limitação propriamente humanas do povo de Deus e mesmo da humanidade. Assim, o envolvimento da igreja na missão de Deus é um ato de fé para o qual não há garantia.4 Bosch entende que a igreja e a vida cristãs são essencialmente missionárias por causa da universalidade do evangelho. Ele distingue entre missão e missões. O primeiro conceito se refere à missio Dei. A missão de Deus diz respeito à auto-revelação de Deus como aquele que ama este mundo de modo inefável e absoluto. Descreve a ação de Deus através do povo de Deus e de sua presença no mundo. A missão não é, pois, primeiramente uma atividade da igreja, mas um atributo divino. A missão é primária; as missões são secundárias, derivadas da primeira. Sendo a missão de Deus atividade de Deus, ela abarca tanto a igreja quanto o mundo. A igreja é privilegiada em virtude de sua vocação de ser parceira dessa ação de Deus, mas jamais exclusivamente. Deste modo, as missões referem- se às diferentes formas adotadas pelas igrejas para pôr em prática a missão como participantes da missio Dei. Não podemos separar Deus e o mundo. Quando falamos de Deus, imediatamente temos de falar do mundo como âmbito de sua revelação e atuação criadora e salvadora ou 4 Cf. PICH, Roberto H.; ZWETSCH, Roberto E. Elementos de um novo paradigma de missão: breve exposição do pensamento de David J. Bosch. Estudos Teológicos, São Leopoldo, ano 35, n. 2, p. 211-215, 1995.
  • 4. 4 restauradora. A atenção e o amor de Deus transcendem a esfera do que entendemos por religião, pois dizem respeito ao mundo todo (humanidade, natureza, cosmos). Assim, podemos entender missão como “participação na existência de Deus no mundo”. Por isso, é razoável dizer que a igreja-em-missão não pode existir sem olhar para o mundo com os olhos de Deus. Como comunidade enviada ao mundo, ela não consegue deixar de questionar os principais problemas que afligem a humanidade (pobreza, discriminação, fome, violência, guerra, corrupção, desesperança). Em meio a essas realidades, missão é evangelização, anúncio do evangelho de Jesus Cristo, do perdão dos pecados, da conversão para uma nova vida, da formação de comunidades alternativas formadas por membros do corpo de Cristo, nas quais o seu Espírito habita e dá poder. Missão é o “não” e o “sim” de Deus ao mundo. É “não” ao pecado, à injustiça e à violência que desumaniza o ser humano radicalmente, É, em especial, o “sim” de Deus, da graça e do amor que liberta e dignifica, porque em sua ação misericordiosa ele se deu e se dá neste mundo e não em outro. É o que a Bíblia expressa com a encarnação do Filho de Deus que torna presente o reinado de Deus, uma realidade nova de justiça e paz já atuantes no mundo, mas em forma de fermento, realidade que não se confunde com qualquer progresso humano, ainda que dele se possa valer para o bem da humanidade. Portanto, a questão central na missão é estar presente no mundo sem ser do mundo (João 17.15s). Nem igreja separada ou sectária, nem igreja secularizada podem articular bem a missio Dei. Igreja-em-missão, sinal e instrumento da actio Dei, poderia descrever essa ambivalência desafiadora, sem esquecer sua permanente luta consigo mesma. A igreja é santa e pecadora e subsiste exclusivamente pela e na graça de Deus. Por isso mesmo, ela não pode ser identificada com o reino de Deus, mas também não pode ser entendida à parte dele. A igreja é uma realidade escatológica. Na verdade, ela vive numa tensão criativa entre ser chamada para fora do mundo (do grego ek-klesia, ek-kalein) e ser enviada (do grego apostéllein) em sua apostolicidade ao mundo como um experimento da realidade escatológica do reino de Deus.
  • 5. 5 Georg Vicedom, em sua obra Missio Dei, expõe em profundidade o conceito de missão sob o ponto de vista da doutrina da justificação.5 Ele retoma o conceito que foi assumido pela Conferência Missionária de Willingen, na Alemanha, em 1952, segunda a qual missão não é somente obediência a uma palavra do Senhor, mas é participação na missão do Filho, na missio Dei, com o objetivo de estabelecer o senhorio de Cristo sobre toda a criação. Para Vicedom, o conceito de missio Dei deve ser entendido como genitivo atributivo. Isto é, “Deus não se torna apenas o enviador, mas também o enviado”. Isto significa que todo envio da pessoa divina implica a presença da própria Trindade divina. O Pai enviou o Filho e este envia o Espírito. Este envio serve à salvação do mundo. Nesta concepção trinitária mais complexa de missão nos encontramos diante do que Vicedom considera o “derradeiro mistério” da ação ou presença de Deus, pois de nossa parte só podemos perceber de Deus aquilo que ele faz na relação com os seres humanos. Na missão nos defrontamos, portanto, com o próprio mistério de Deus: Ele é o enviado, mas simultaneamente, o conteúdo do envio e o que envia. Este pensamento tem enormes conseqüências para a missio ecclesiae e o seu serviço no mundo. Para Vicedom, a missão da igreja se encontra “prefigurada na missão divina”. Serviço, sentido e conteúdo de sua atividade prática estão configurados ou conformados a partir da missio Dei. Por ser ação soberana, a missio Dei não se deixa prescrever por ninguém: religiões, governos, potestades, ciência, incredulidade, piedade (especialmente a piedade cristã) não podem conter a ação livre desse Deus. Faz parte da sua divindade não estar sujeito a nenhuma restrição humana. O agir de Deus é, como afirmou a teologia da Reforma, extra nos. E este agir é e só pode ser salvífico. Mesmo quando julga, Deus visa salvar a humanidade. Por isto, o modo desse agir é tão crucial. Meio e fim não podem ser vistos como apartados ou em contradição. Nunca conseguimos abarcar toda a ação divina, a sua missio. Estamos sempre na dependência de suas testemunhas. Na teologia da missão nos 5 VICEDOM, Georg. A missão como obra de Deus: introdução à teologia da missão (1958). São Leopoldo: Sinodal, IEPG, 1996. A Apresentação da edição brasileira é de autoria de Albérico Baeske e minha, p. 7- 12.
  • 6. 6 referimos de modo especial à ação de Deus em Jesus de Nazaré e seu Espírito, à ação de Deus na igreja, sem olvidar sua atuação na história do povo de Israel, por intermédio dos profetas e outros de seus enviados. Ademais, Deus ainda envia ou atua por meio de outras realidades totalmente impessoais. Assim, Deus, por meio de sua missio, sustenta o mundo e conduz os seres humanos. E isto não se pode ver nem provar, mas nisso se pode crer, confiar e procurar entender pela fé. É o que faz a teologia dos sinais dos tempos. A missão de Deus se tornou, na história, chamamento à decisão para dela fazer parte. Deus não age sozinho, mas em comunidade, de forma plural, dinâmica, mostrando-se de formas diferentes ao longo da história. Seria esta uma forma de entender a Trindade divina: uma comunidade que trabalha junto movida pelo amor entre si e para com o outro, a humanidade.6 Quem é chamado é incluído nessa missio, por amor. Difícil é ignorar o chamado. Por caminhos às vezes desconhecidos, estranhos mesmo, todas as pessoas são chamadas. E quando nos negamos a participar da obra de Deus, parece que Deus se cala e o ser humano triunfa em sua autocentralidade. Qual não é nossa surpresa quando, inesperadamente, a missio prossegue, apesar das resistências, tentações, fraquezas e derrotas típicas da nossa experiência histórica. É isto que significa afirmar o senhorio de Deus e orar constantemente: Venha o teu reino! Em resumo, Vicedom assim definiu missio Dei: A missão como obras da misericórdia divina, que Deus iniciou através do envio de seu Filho, é continuada por ele agora ao incumbir sua comunidade, por meio de seu enviado, da propagação e da proclamação de sua vontade salvadora. Assim o Senhor dá a ordem missionária ... (mas) esse serviço da Igreja somente é possível porque ela mesma experimentou compaixão através da ação redentora do Filho de Deus e agora representa a comunidade dos crentes e justificados... Por conseguinte, esse serviço é engajamento na atuação de Deus, obediência 6 Cf. BOFF, Leonardo. A trindade e a sociedade. 3. ed. Série II: O Deus que liberta seu povo. Petrópolis: Vozes, 1987 (coleção Teologia e Libertação, v. 5). Cf. ainda SINNER, 2003. Nesta obra o autor destaca a importância da teologia trinitária para a hermenêutica ecumênica e o diálogo intercultural. Cf. ainda SINNER, Rudolf von. Hermenêutica ecumênica para um cristianismo plural. Estudos Teológicos, São Leopoldo, ano 44, n. 2, 26-57, 2004.
  • 7. 7 da fé, não estar desligado de Deus, mas ser tomado por ele, não é algo que é acrescentado à ação de Deus, mas é submeter-se ao agir de Deus.7 Tal compreensão de missão ajuda a desequilibrar o componente messiânico que a missão cristã assumiu, sobretudo, durante os séculos de colonialismo, disseminando a formação de igrejas nacionais em muitas partes do mundo que por muito tempo ficaram enredadas nas estruturas e lideranças missionárias do exterior. É urgente retomar a idéia de que somos cooperadores de Deus (1 Coríntios 3.9) na sua missio, para o bem, a justiça e a paz entre as pessoas, e não soldados a serviço de um comandante que declarou guerra aos infiéis deste mundo.8 2 – Síntese e perspectivas Este capítulo serviu como porta de entrada para esta pesquisa. Reuni elementos para avaliar a teologia da missão que emergiu da caminhada histórica das igrejas protestantes e procurou desafiá-las para uma inserção relevante no contexto latino-americano, crítica, profética, diaconal e esperançadora. A história do protestantismo, em sua diversidade, ajuda a perceber que, por mais dedicadas e heróicas que as pessoas tenham sido, nem sempre prevaleceram as boas intenções e mesmo a dedicação piedosa e de boa consciência. O protestantismo, por exemplo, tem uma dívida com a população negra escrava na América Latina. Também deve muitas explicações sobre as estratégias missionárias civilizatórias impostas às comunidades indígenas. Na sua relação com os governos, assumiu posições ambíguas mais preocupado em garantir espaços institucionais do que com as conseqüências da proclamação do evangelho do reino. Quando do surgimento do pentecostalismo no 7 VICEDOM, 1996, p. 107s. Trata-se de um texto publicado como Apêndice e que tem por título: A justificação como força conformadora da missão (1952). 8 A teologia da missio Dei tem despertado renovado interesse entre evangélicos do Movimento de Lausanne, ainda que sua compreensão seja diferenciada em relação ao âmbito ecumênico Cf. ARAGÃO, Jarbas Luiz Lopes. Missio Dei – A trindade em missão. Dissertação de mestrado. Orientador: Ms. Roberto E. Zwetsch. Viçosa: CEM, 2004. Cf. Também DEIROS, 1992. O autor, membro da Fraternidade Evangélica Latino-Americana, afirma na Introdução geral dessa volumosa obra: “Por tratarse de la dimensión histórica de la misión, este estudio tiene que ver con la acción de Dios en la América Latina a través de su pueblo. Es, pues, la consideración de la missio Dei desde una perspectiva histórica. Como tal, su importancia en el pasado no hace más que afirmar su vigencia en el presente” (p. XII).
  • 8. 8 início do século 20, não se podia prever em que direção seguiria o processo histórico que acabou revelando a força impressionante deste movimento para se expandir por toda a América Latina, sobretudo junto às camadas populares. Por outro lado, pode-se observar uma deficiência cada vez mais evidente no que concerne às concepções eclesiológicas nesse segmento majoritário do protestantismo latino-americano. É bem por isto que se pode avaliar como uma promessa feliz, sem dúvida, a crescente demanda por desenvolvimento autônomo de uma teologia pentecostal com perfil crítico e aberto à ecumene cristã.9 Esta pesquisa se concentrou na análise de contribuições teológicas que nascem no contexto de igrejas protestantes históricas e de movimentos evangélicos de grande expressão na América Latina. Mesmo assim, imagino ser possível chegar a uma formulação da teologia da missão que consiga estabelecer pontes com outros setores do protestantismo latino-americano, inclusive com aqueles que eventualmente se mostrem críticos a uma perspectiva teórica que parte do princípio de que uma teologia cristã relevante para o século 21 necessariamente deverá ser ecumênica, crítica, autocrítica, e por isto mesmo, inspiradora para um seguimento apaixonado e profético do Senhor Jesus numa realidade que conspira contra a dignidade da vida humana. É minha esperança que a compreensão da teologia da missão como com-paixão permita um diálogo promissor com as pessoas de fé, com as igrejas cristãs e mesmo para além delas, superando preconceitos e mal-entendidos que acumularam desentendimentos e, não raro, um contra-testemunho na sociedade da qual fazemos parte. É tempo de diálogo e construção de novos caminhos, de novos rostos para a missão que, em suma, é de Deus e seu reino. A idéia de missão como com-paixão será abordada mais extensamente no Texto n. 5. * Para continuar a reflexão faço abaixo alguns excertos da introdução de David J. Bosch ao seu livro Missão transformadora (p. 17-29). Quem tiver oportunidade de 9 Cf. CHIQUETE, Daniel; ORELLANA, Luis (Eds.). Voces del pentecostalismo latinoamericano: identidad, teología e historia. Concepción: RELEP – Red Latinoamericana de Estudios Pentecostales; CETELA; ASETT – AL, 2003. Cf. ainda GUTIÉRREZ; CAMPOS (Eds.), 1996.
  • 9. 9 consultar esse livro, faça-o com muita liberdade, pois o proveito será grande. Mas para facilitar o trabalho de quem não puder acessá-lo, seguem alguns trechos que considero os mais estimulantes para este estudo. Trecho 1 O título deste livro [...] é ambíguo. Transforming [“transformadora”] pode ser um adjetivo que descreve “missão”. [...] entretanto, também pode ser um particípio presente, a atividade de transformar, da qual “missão” é o objeto. Aqui, a missão não é um empreendimento que transforma a realidade, mas algo que está sendo, ele próprio, transformado. [...] Minha tese é [...] que esse processo de transformação ainda não chegou ao fim (e, na verdade, jamais chegará ao fim), e de que nos encontramos [...] em meio a uma das mais importantes mudanças na compreensão e prática da missão cristã. Este estudo, porém, não é meramente descritivo. [... Ele] também sugere que a missão continua sendo uma dimensão indispensável da fé cristã e que, em seu nível mais profundo, seu propósito é transformar a realidade que a circunda. [...] “Transformadora” é, por conseguinte, um adjetivo que descreve uma característica essencial do que significa missão cristã. (p. 11, Prefácio) Trecho 2 O termo “missão” pressupõe alguém que envia, uma pessoa ou pessoas enviadas por quem envia, as pessoas para as quais alguém é enviado e uma incumbência. Toda a terminologia pressupõe, assim, que quem envia tema a autoridade para fazer isso. Com freqüência, se sustentava que quem realmente enviava era Deus [...]. Na prática, [..] a autoridade era entendida como sendo conferida à igreja ou a uma sociedade missionária, ou mesmo a um potentado cristão. [...] Fazia parte de toda essa abordagem conceber a missão em termos de expansão, ocupação de campos, conquista de outras religiões e coisas semelhantes. [...] Vou sustentar que essa interpretação tradicional de missão foi gradativamente modificada ao longo do século 20. (p. 18)
  • 10. 10 Trecho 3 O que é novo em relação à nossa era [...] é que a missão cristã [...] está sendo atacada não só a partir de fora, mas também a partir de dentro de suas próprias fileiras. [...] Essas circunstâncias por si só tornam necessária e justificam a reflexão sobre a missão como um ponto permanente na pauta da teologia. Se esta é uma “exposição reflexiva da fé” [...], faz parte da tarefa da teologia considerar criticamente a missão como uma das expressões [...] da fé cristã. A crítica da missão não deveria, em si, nos surpreender. É, antes, normal para os cristãos viverem numa situação de crise. (O teólogo holandês) H. Kraemer formulou isto da seguinte maneira: “A rigor, dever-se-ia dizer que a Igreja está sempre num estado de crisee que sua maior insuficiência é o fato de ela só estar consciente disso ocasionalmente.” Isso deveria ser assim, sustentou Kraemer, por causa da “tensão permanente entre a natureza essencial (da igreja) e sua condição empírica”. [...] Como seu Senhor, [...] a igreja – se for fiel a seu ser – será sempre controvertida, um “sinal contra o qual se falará” (Lucas 2.34). [...] Saibamos [...] que defrontar-se com a crise é encontrar a possibilidade de ser verdadeiramente a igreja. O caracter japonês de “crise” é uma combinação dos caracteres de “perigo” e “oportunidade” (ou “promessa”); a crise, por conseguinte, não é o fim da oportunidade, mas na realidade apenas seu início, o ponto onde o perigo e a oportunidade se encontram, onde o futuro é incerto e onde os acontecimentos podem tomar qualquer uma das direções. (p. 19) Bosch em seguida afirma que a crise de que fala não atinge apenas a igreja cristã, ela, na verdade, é uma crise que afeta o mundo inteiro: a ciência e a tecnologia; o Ocidente antes considerado cristão e hoje crescentemente descristianizado; o mundo pluralista das religiões; a crescente divisão entre pobres e ricos, entre poucas nações extremamente ricas e muitos países tragicamente empobrecidos e assim por diante. Diante dessa situação, as igrejas que surgiram do movimento missionário já não admitem mais a dependência das igrejas de origem. Buscam sua autonomia não só segundo os três autos do século 19 (auto-
  • 11. 11 sustento; autogoverno; autopropagação), mas também agora uma teologia própria, contextual, que ajude estas igrejas a se tornarem responsáveis por sua compreensão do evangelho e do mandato missionário de Cristo. É daí que surgem as novas teologias do Terceiro Mundo: teologia da libertação (América Latina), teologia negra (EUA), teologia contextual (CMI), teologia minjung (Coréia), teologia africana, teologia asiática e outras. Trecho 4 A tese deste livro é que os acontecimentos que temos vivenciado ao menos desde a Segunda Guerra Mundial (1939-1945, RZ) e a conseqüente crise na missão cristã não devem ser entendidos como meramente incidentais e reversíveis. Ao contrário, o que tem se desenvolvido em círculos teológicos e missionários durante as últimas décadas é resultado de uma fundamental mudança de paradigma, não apenas na missão ou na teologia, mas na experiência e no pensamento do mundo inteiro. [...] tal mudança de paradigma não nos confronta [...] apenas com um perigo, mas também com oportunidades. Em épocas anteriores a igreja reagiu imaginosamente a mudanças de paradigma; somos desafiados a fazer o mesmo em relação a nosso tempo e contexto. (p. 20s) Trecho 5 A crise contemporânea se manifesta, no que diz respeito à missão, em três áreas: o fundamento, os motivos e a meta e a natureza da missão. [...] Um fundamento inadequado para a missão e motivos e metas missionários ambíguos estão fadados a acarretar uma prática missionária insatisfatória. As igrejas “plantadas” nos “campos de missão” eram réplicas das igrejas da “frente doméstica” da agência missionária, “abençoadas” com toda a parafernália dessas igrejas, “incluindo tudo, desde harmônios até arquidiáconos”. [...] Foi esse comércio de exportação eclesiástica que fez com que (o teólogo alemão Paul (Schütz) protestasse dizendo: “A casa está pegando fogo! Em nossa missão nós nos parecemos a um lunático que carrega a colheita para dentro de seu celeiro em chamas”.
  • 12. 12 Schütz localizou o problema não “lá fora”, no campo da missão, mas no coração da própria igreja ocidental. [...] “Intra muros”!” [“para dentro dos muros!”], bradou ele, “o resultado é determinado pelo que acontece dentro da igreja, não fora, no campo de missão”. (p. 21s) Trecho 6 (Diante dessa crise), o único caminho válido aberto para nós é lidar com a crise numa atitude de máxima sinceridade, mas sem nos permitir sucumbir a ela. Mais uma vez: a crise é o ponto em que o perigo e a oportunidade se encontram. [...] Sugiro [...] que a solução para o problema apresentado pela atual falta de fibra não reside numa simples volta a uma consciência e uma prática missionárias anteriores. [...] Necessitamos, antes, de uma nova visão para sair do atual impasse rumo a uma espécie diferente de envolvimento missionário [...]. Os mais valentes entre os pensadores missionários já começaram há algum tempo a perceber que um novo paradigma para a missão estava surgindo. [...] As duras realidades do presente nos compelem a re-conceber e reformular a missão da igreja, a fazer isso de maneira ousada e imaginativa, mas também em continuidade com o melhor daquilo que a missão foi nas últimas décadas e séculos. A tese deste livro é a de que não é possível nem apropriado tentar uma definição revista de missão sem examinar meticulosamente as vicissitudes das missões e da idéia missionária durante os últimos 20 séculos da história cristã. (Além disso) deveria tornar-se claro que em nenhuma época dos dois últimos milênios houve uma única “teologia da missão”. [...] Entretanto, diferentes teologias da missão não se excluem necessariamente umas às outras; elas formam um mosaico multicolorido de sistemas de coordenadas complementares e mutuamente enriquecedores, bem como mutuamente contestadores. Em vez de tentar formular uma única concepção de missão, deveríamos, antes, mapear o perfil de um “pluriverso de missiologia num universo cristão”. (p. 25)
  • 13. 13 Trecho 7 [...] nunca podemos arrogar-nos delinear a missão com excessiva nitidez e autoconfiança. Em última análise, a missão permanece indefinível; ela nunca deveria ser encarcerada nos limites estreitos de nossas predileções (ou teorias, RZ). O máximo que podemos esperar é formular algumas aproximações do que a missão significa. A missão cristã dá expressão ao relacionamento dinâmico entre Deus e o mundo, particularmente à maneira como ele foi retratado, primeiro na (história) do povo do pacto, Israel, e então, de modo supremo, no nascimento, vida, morte, ressurreição e exaltaçào de Jesus de Nazaré. Um fundamento teológico da missão, diz (o teólogo alemão Th.) Kramm, “só é possível se nos referirmos continuamente à base de nossa fé: a autocomunicaçào de Deus em Jesus Cristo”. A Bíblia não deve ser tratada como um depósito de verdades às quais poderíamos recorrer aleatoriamente. Não há “leis de missão” imutáveis e objetivamente corretas [...]. Nossa prática missionária [...] é um empreendimento inteiramente ambivalente executado no contexto da tensão entre providência divina e confusão humana. O envolvimento da igreja na missão permanece um ato de fé sem garantias terrenas. [...] A natureza missionária da igreja não depende simplesmente da situação na qual ela se encontra em dado momento, mas está baseada no próprio evangelho. A justificação e fundamentação das missões no exterior, bem como das missões no próprio país, “residem na universalidade da salvação e na indivisibilidade do reinado de Cristo”. [...] Temos [...] de repudiar a doutrina mística da água salgada; isto é, a idéia de que viajar a países estrangeiros constitui a condição sine qua non de qualquer empenho missionário e o teste e critério final do que seja verdadeiramente missionário. (p. 26s)
  • 14. 14 Trecho 8 Temos de distinguir entre missão (no singular) e missões (no plural). O primeiro conceito designa primordialmente a missio Dei (missão de Deus), isto é, a auto-revelaçào de Deus como Aquele que ama o mundo, o envolvimento de Deus no e com o mundo, a natureza e atividade de Deus, que compreende tanto a igreja quanto o mundo, e das quais a igreja tem o privilégio de participar. Missio Dei enuncia a boa nova de que Deus é um Deus-para as/pelas-pessoas. Missões (as missiones ecclesiae) [“missões da igreja”]: (os empreendimentos missionários das igrejas): designa formas particulares, relacionadas com tempos, lugares ou necessidades específicos, de participação na missio Dei. (p. 28) Bosch, então, afirma que a missio Dei – missão de Deus – é o “sim” e o “não” de Deus ao mundo. É “sim” quando anunciamos o amor e a atenção de Deus pelo mundo, por todas as pessoas, todos os povos, e particularmente, os pobres do mundo. É “não” quando Deus se volta contra as injustiças e o mal no mundo, tudo aquilo que desumaniza e oprime o ser humano e a própria criação. Também nós somos integrados neste “não” de Deus quando nos opomos aos desmandos dos poderosos e nos solidarizamos com as vítimas de toda e qualquer forma de opressão. Ao final dessa longa introdução, Bosch resume assim seu pensamento: Trecho 9 A igreja-em-missão [...] pode ser descrita em termos de sacramento e sinal. Ela é sinal no sentido de indicação, símbolo, exemplo ou modelo; é sacramento no sentido de mediação, representação ou antecipação. Não é idêntica ao reinado de Deus (nunca confundir igreja e reinado ou reino de Deus, RZ), mas também não deixa de estar relacionada com ele; é “um antegosto de sua vinda” (um aperitivo do reino, como escreveu Rubem Alves, RZ), o sacramento de suas antecipações na história. Vivendo na tensão criativa de, ao mesmo tempo, ser chamada para fora do mundo e ser enviada ao mundo, ela é desafiada a ser o jardim experimental de Deus na terra, um fragmento do reinado de Deus, tendo “as primícias do Espírito” (Romanos 8.23) como penhor do que há de vir (2 Coríntios 1.22). (p. 29)