A Cia Marginal de Teatro, formada por atores-moradores da favela Maré no Rio de Janeiro, apresenta o espetáculo "Qual é a nossa cara?" contando histórias da comunidade através de cenas e depoimentos dos atores. O grupo busca democratizar o acesso ao teatro e discutir questões sociais por meio de seu trabalho.
1. Marcelo Salles
TEATRO DA MARÉ
mostra a força da favela
A Cia Marginal de
Teatro, grupo formado
por atores-moradores
da Maré, maior bairro
popular do Rio de
Janeiro, realiza ações
para democratizar o seu
método de trabalho.
t udo escuro. Silêncio absoluto. Uma ponta
de cigarro acesa dança, em movimentos ca-
denciados. Aos poucos, a luz se abre. E ru-
fam os tambores! No centro do palco, surge, va-
garosamente, uma pomba-gira. Sentada com seu
enorme vestido branco, caprichosamente deitado
em círculo, ela balança a cabeça de lado a lado,
enquanto fuma e bebe. Ela bate duas palmas e
duas ajudantes entram em cena. Mais duas pal-
mas e elas enchem seu copo. De repente, uma
pastora evangélica, dessas bem escandalosas, en-
tra no palco. Sua pregação coincide com a saída
de cena, lenta e gradual, da pomba-gira. Com os
olhos esbugalhados, a pastora grita: “Aceite Je-
sus no seu coração!” e outras palavras de ordem.
A transição se completa. A pomba-gira e suas
ajudantes saem completamente de cena, e a pas-
tora conquista, definitivamente, o palco.
O trecho acima está em cartaz com o espetácu-
lo Qual é a nossa cara?, da Cia Marginal de Tea-
tro. Trata-se de uma das muitas histórias de Nova
Holanda, uma das dezesseis favelas do Comple-
FOTO: Q NALDINHO LOUREN
xo da Maré, conjunto habitacional às margens
da Avenida Brasil, no Rio de Janeiro, que reúne
mais de 130 mil pessoas. A passagem conta, com
beleza e rigor histórico, a substituição das religi-
ões de matriz africana pelas neopentecostais no
Rio de Janeiro – processo que muitas vezes ex- Grupo de teatro emociona o público com texto vigoroso e apresentação de alto nível profissional.
pulsou das favelas, com violência, os praticantes
de umbanda e candomblé. chegar à formatação das histórias. “Depois, fize- velas pelas mãos de ONGs comprometidas ape-
A peça conta diversas histórias de Nova Ho- mos um processo de seleção e reflexão em cima nas consigo mesmas. Priscilla fala de seu primei-
landa, entrecortadas por depoimentos pessoais desse material”, explica a diretora do grupo, Isa- ro Fórum Social Mundial, narra a evolução do
dos atores, que são também moradores da Maré. bel Penoni. “E juntamos histórias de 20, 30 anos engajado bloco carnavalesco Se Benze que Dá e
O processo de criação que deu origem ao espe- atrás, mas que são atualizadas pelos depoimen- lembra de quando moradores fecharam a Aveni-
táculo teve como ponto de partida uma pesqui- tos dos atores”. da Brasil após o assassinato do menino Renan,
sa de campo realizada nesta favela. Durante dois Um deles, o da brilhante atriz Priscilla Andra- 3 anos, durante operação policial em 2006. “A
ou três meses os atores entrevistaram alguns dos de, de 24 anos, mostra que esse grupo de teatro gente também faz protesto!”, afirma.
moradores mais antigos da comunidade até se não é mais um desses que se proliferam nas fa- Uma segunda passagem do espetáculo conta
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2. um pouco da história do traficante varejista Jor- A atriz Priscilla Andrade conta que a Cia Mar- ganização Redes de Desenvolvimento da Maré.
ge Negão, que durante muito tempo reinou abso- ginal é um projeto de vida. “Foi por ela que eu Seu nome reflete a prática a que se propõe, que
luto na favela. O ator caminha lentamente. Três parei de resistir em tentar ser atriz. No Brasil há aponta para a liberdade que se encontra às mar-
mulheres o acompanham, com gritinhos de Jor- uma ideia de não-valorização da cultura, mas o gens dos sistemas e padrões dominantes. A Cia
ge, Jorge. Quando ele vira o boné pra trás, todas teatro foi mais forte, foi me puxando e não teve realiza ações voltadas para a democratização do
se calam e deitam, imóveis. Apavoradas, procu- jeito”, diz ela, para quem a arte tem um impor- seu método de trabalho, como oficinas teatrais
ram esconder o rosto. O bandido desvira o boné tante papel político. “Eu acredito na arte. E pri- oferecidas para jovens da favela. Em 2006, o
e volta a caminhar. Gritinhos, boné pra trás, mu- meiro de tudo tem que ter um papel político. A grupo foi contemplado com o Prêmio de Tea-
lheres no chão. Tragicômico: os moradores mais arte questiona, problematiza as questões envol- tro Myriam Muniz, da Funarte, que permitiu a
antigos contam que quando Jorge Negão saía de vidas na história. Ela toca na ferida. Se não toca montagem do espetáculo Qual é a nossa cara?.
sua casa com o boné virado pra trás era porque na ferida, não é arte, é só entretenimento”. Em 2009 foi agraciada com patrocínio da Se-
estava indo matar alguém. Wallace Lino, ator que interpreta a pomba-gi- cretaria de Cultura do Estado do Rio de Janeiro
Uma outra cena que retrata a violência diz res- ra da cena inicial, se encontrou no teatro, mais para a manutenção de suas atividades.
peito a uma trégua do Jorge Negão e dos Irmãos especificamente nesse grupo. “A Cia Marginal é Para a temporada 2010/2011, a Cia Marginal
Metralha, grupos rivais que durante anos domi- minha vida”, diz. “Foi o único espaço em que pretende trabalhar o projeto Do outro lado, que
naram a região. Era dia de votação para a Asso- consegui construir um vínculo que não consigo vai tratar do universo dos presos em regime fe-
ciação de Moradores – este o motivo da bandei- e nem quero me desligar”. Em sua opinião, en- chado. “Me interessa saber como eles passam o
ra branca. De repente estoura o funk Rio Chumbo cenar uma peça sobre a Maré é um privilégio, tempo, como constroem a privacidade num lu-
Quente, dos MCs Júnior e Leonardo, adaptação pois “as pessoas que construíram esse lugar são gar onde a premissa é a subtração da privaci-
da música “Chumbo Quente”, da dupla sertaneja exemplos de resistência. Não só na Maré, mas na dade, como dão sentido à passagem do tempo”,
Léo Canhoto e Robertinho, que surgiu em 1969, maioria das favelas”, diz. Wallace critica a for- explica a diretora Isabel Penoni. O objetivo é
em Goiânia. Ao contínuo, os atores entram com ma como o poder público age nesses espaços, e mostrar ao público um pouco da subjetividade
máscaras de Bush, Saddam Hussein, Bin Laden, pergunta: “Por que aqui ele atua totalmente di- de quem está preso, sobre quem é a pessoa que
Minie e Carlitos. Seguram foices, armas de fogo, ferente da Zona Sul?”. está ali, geralmente tida como um número, uma
munições. E dançam, percorrem todo o palco. massa homogênea de criminosos. “Também me
HISTÓRICO interessa ver como vai se dar a interação com
CENA ANTOLÓGICA A Cia Marginal é um grupo formado por ato- os atores durante o processo de pesquisa, pois
A diretora Isabel Penoni explica que tentou res-moradores da Maré, maior bairro popular do na favela também há uma série de limitações,
conjugar as celebridades do terrorismo inter- Rio de Janeiro. Nesse espaço, o grupo desenvol- como muros, fronteiras impostas pelo tráfico,
nacional com a banalização da violência entre ve, desde 2005, atividades em parceria com a or- entre outras”, diz Isabel, que trabalha há dez
crianças (Minie), enquanto a figura do Carlitos, anos na Maré.
única a não portar nenhuma arma, pula de um Atores contam histórias e fazem depoimentos pessoais. A missão da Cia Marginal é realizar projetos
lado para outro tentando escapar com vida. “O de pesquisa, criação, produção e democratiza-
importante é que o uso das máscaras de Bush, ção da prática teatral, através de uma gestão co-
Saddam e Bin Laden nessa cena amplia a refle- letiva. O grupo atua em diferentes espaços e está
xão sobre a guerra que se vive hoje nas favelas voltado para um público diversificado, contri-
cariocas, conectando ou associando-a aos gran- buindo para a descentralização da difusão artís-
des conflitos internacionais”, diz Isabel. tica da cidade do rio de Janeiro, através de um
O espetáculo aproveita as histórias dos mo- teatro autoral, contemporâneo e feito com qua-
radores da Nova Holanda para problematizar lidade, comprometido com a formação de um
questões tabus, como a homossexualidade, abu- pensamento crítico e reflexivo.
so sexual e os diversos preconceitos ainda en- A direção da Cia está a cargo de Isabel Peno-
raizados no país. No total, são 13 cenas, entre ni. Em seu elenco estão Priscilla Andrade, Ge-
as representações das histórias contadas pelos andra Nobre, Jaqueline Andrade, Wallace Lino,
moradores mais antigos e os depoimentos pes- Diogo Vitor e Rodrigo Souza. A ficha técnica
soais dos atores. do espetáculo Qual é a nossa cara? é a seguin-
O momento em que a plateia mais riu foi dian- te: Concepção e Direção: Isabel Penoni; Pesqui-
te da interpretação da história das palafitas du- sa e Criação: Cia Marginal; Supervisão de Dra-
plex. Muitas pegaram fogo, os donos perderam maturgia: Rosyane Trotta; Direção de Arte: Rui
tudo, uma desgraça sem fim. Mas a pose estava Cortez; Direção Musical: Isadora Medella; Ilu-
mantida. “Mas era duplex”, repetia, orgulhoso, minação: Daniela Sanchez e Rogério Emerson
entre uma e outra tragada no cigarro. Magalhães; Programação Visual: João Penoni;
Uma outra cena que diz muito pela atualida- Foto e Vídeo: Davi Marcos; Produção Executi-
de da reflexão proposta é a que mostra o papelão va: Cia Marginal e Bianca Fero.
prestado por muitas ONGs que atuam em comu- O público que esteve presente na noite de
nidades. Pegam os favelados mais fudidos e os 19 de junho, um sábado, no Centro de Artes da
inscrevem num projeto social qualquer. Depois, Maré, assistiu a tudo com uma atenção exem-
os que aprendem a batucar qualquer coisa são plar. E riu e chorou. E quando a apresentação
atirados à mídia e pressionados a defender mu- terminou, todos aplaudiram de pé por intermi-
ros, caveirões e UPPs. É a nova rolagem da má- náveis minutos. Não à toa. Os atores estiveram
quina de moer gente, diria Darcy Ribeiro. impecáveis, a iluminação precisa, o figurino es-
Gizele Martins, moradora da Maré, assistiu à tupendo. Esse espetáculo, esse grupo, poderia
peça pela quarta vez e se emocionou mesmo as- estar em qualquer teatro do mundo.
sim. “Eu me vejo representada em cada situação
JOÃO PENONI
representada. A peça é essencial para o resgate Marcelo Salles é jornalista.
da nossa história”, disse. Colaborou Eduardo Sá, estudante de Jornalismo.
Novo sítio: www.carosamigos.com.br julho 2010 caros amigos
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