Este documento discute os conceitos de causalidade na sabedoria taoista, budista e na teoria geral dos sistemas. A sabedoria taoista vê a realidade como um fluxo contínuo entre os opostos Yin e Yang. O budismo ensina que todos os fenômenos surgem devido a condições, e cessam quando essas condições deixam de existir. A teoria geral dos sistemas reconhece que a causalidade em sistemas complexos é cíclica e recíproca, não linear.
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Cap. I – CAUSALIDADE
O RETORNO À ANTIGA SABEDORIA
Um dos principais motivos da minha esperança pessoal de que a nossa cultura
está a progredir na boa direcção é a verificação de que estamos a
progressivamente redescobrir a sabedoria ancestral. Um bom exemplo deste
progresso é a nossa descoberta e cada vez mais generalizada adopção da Teoria
Geral dos Sistemas. Proponho-me seguidamente demonstrar como este método
de entendimento do Mundo recupera a sabedoria dos mestres taoistas e de um
ensinamento fundamental budista.
TAOISMO
Os antigos filósofos chineses consideram a realidade - a cuja última essência dão
o nome de Tao - como um processo contínuo de fluxo e mudança. A
característica principal do Tao é a natureza cíclica do seu movimento incessante
e a sua estrutura é definida pelos opostos Yin e Yang, os dois pólos que
delimitam o ciclo da mudança: “Quando o Yang atinge o seu apogeu, dá lugar ao
Yin; tendo o Yin atingido o seu apogeu, dá lugar ao Yang”.
Assim, todas as manifestações do Tao são originadas por relações dinâmicas
entre estes dois pólos arquétipais, que são associados a numerosos pares de
opostos retirados da Natureza e da vida social, como por exemplo:
YIN YANG
Terra Céu
Lua Sol
Noite Dia
Inverno Verão
Humidade Secura
Frio Calor
Interior Superficial
Feminino Masculino
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Integrado Expansivo
Conservador Progressista
Adaptável Agressivo
Cooperativo Competitivo
Intuitivo Racional
Sintético Analítico
O Yin e o Yang não são associados a valores éticos. O que é bom não é um nem o
outro, mas sim o equilíbrio dinâmico entre eles e o que é mau, é o desequilíbrio.
Portanto, segundo a sabedoria taoista nenhum dos valores perseguidos pela
nossa cultura é mau em si mesmo, mas isolando-os em relação aos seus opostos,
concentrando-se no Yang e investindo-o de valores morais e poder politico,
chegámos à triste situação actual de vários sectores fundamentais da nossa
sociedade.
A agressividade e competitividade características do Yang tendem a conquistar
os sectores economicamente mais poderosos, dado que a capacidade económica
é a face preponderante do poder na sociedade actual. Assim, vemos em Portugal
os hospitais dominados por homens e impondo à actividade uma postura Yang
de, por exemplo:
- o regulamento sobrepondo-se às necessidades individuais;
- tratamentos agressivos e focalizados em objectivos de sucesso imediato, com
prevalência da postura analítica da especialidade médica.
Por outro lado, há cada vez mais mulheres juízes; e a postura de ser juiz é
predominantemente Yang.
Desde os primórdios da cultura chinesa que o Yin é associado ao feminino e o
Yang ao masculino, mas os milénios seguintes de patriarcado deformaram o
conceito inicial destes dois pólos. A biologia humana diz-nos que as
características masculinas e femininas não são nitidamente separadas, mas que
se simplesmente se afirmam em proporções diferentes nos dois sexos. Também
na antiga China se considerava que quer os homens quer as mulheres
atravessam fases de Yin e fases de Yang. A personalidade de um homem ou de
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uma mulher não é uma entidade estática, mas sim um fenómeno dinâmico
resultante da relação entre os elementos femininos e masculinos.
BUDISMO: ORIGENS INTERDEPENDENTES E PRODUÇÃO
CONDICIONADA
No ensinamento budista dá-se o nome de “pratityasamutpada” (sk) ao
conjunto dos mecanismos de interacção que regem os fenómenos nas suas
relações causais. Este Princípio da Condicionalidade diz que tudo o que
acontece, em qualquer plano de existência, acontece em consequência (ou em
decorrência) de condições e na ausência dessas condições cessa. Numa
formulação clássica será:
“Isto estando, aquilo acontece;
Surgindo isto, aquilo surge;
Isto não estando, aquilo não acontece;
Cessando isto, aquilo cessa.1
Há pois um encadear incessante de fenómenos, todos eles condicionados, para a
formação de novos fenómenos.
“Isto estando, aquilo acontece”, significa que os fenómenos são sempre os
efeitos decorrentes de causas e condições específicos2. “Surgindo isto, aquilo
surge”, significa que um fenómeno permanente e não produzido, como é a
natureza de “prakrti” na filosofia Samkhya,3 não pode ser a causa de fenómenos
impermanentes. O que é sem causa e imutável não pode ser origem de coisa
alguma, pois isso seria contrário à sua própria natureza.
Para melhor entendimento destes conceitos parece-me adequado citar “As cinco
características da interdependência das causas e efeitos”4:
1. Os fenómenos são todos impermanentes. Ex: o broto surge quando a
semente deixou de existir.
1 sutra Samyutta Nikaya, II - 28
2 não são produzidos por um Deus criador, superior e permanente
3 do Hinduismo
4 Dicionnaire encyclopédique du Boudhisme, de Philipe Cornu
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2. Os fenómenos ocorrem em sequência ininterrupta. Ex: não há
descontinuidade entre o desaparecer da semente e o aparecer do rebento;
o cessar de uma e o aparecer do outro são como os movimentos
contrários dos pratos de uma balança.
3. O fenómeno precedente não é transformado no seguinte. Ex: a semente e
o broto não são um único fenómeno, nem em termos de identidade nem
em termos de função.
4. Uma causa menor pode engendrar um grande efeito. Ex: uma semente
está na origem de uma árvore.
5. A causa e o seu efeito estão encadeadas. Ex: uma semente de sésamo
produz um rebento de sésamo, não de arroz.
A CAUSALIDADE LINEAR
Aristóteles assumiu que a estabilidade e a permanência são as características
predominantes do real, sendo a mudança um derivativo da estabilidade, um
agente causal exterior. Tudo o que se move é movido por algo, visto que a
matéria é passiva e inerte. Admitindo ainda que o Universo é um sistema
mecânico composto de parcelas materiais elementares, chega-se ao
determinismo de Laplace. Se tudo é movido por um agente exterior, não pode
evitar mover-se. Se conseguirmos detectar todas as forças actuantes poderemos
predizer o movimento de cada estrela e de cada átomo.
Ainda no início do século passado o reputado teólogo Charles Harshore dizia:
“Temos de admitir… que uma causa, no sentido mais geral do termo, é sempre
independente de um seu particular efeito, o qual é sempre dependente da sua
causa”.
Estas noções de causalidade linear estão na base do nosso método científico
clássico:
- elege-se uma área de pesquisa, que é adequadamente circunscrita para que as
cadeias causais possam ser detectadas;
- as variáveis consideradas são unicamente aquelas que podem ser
empiricamente testadas e controladas;
- para detectar o “ingrediente activo” as variáveis são artificialmente separadas e
testadas isoladamente, sem ter em conta as dependências recíprocas entre elas;
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- generaliza-se a conclusão obtida a todos os casos considerados similares, sem
comprovar empiricamente a validade dessa generalização.
Este método conduziu, conduz, a poderosos avanços científicos e tecnológicos,
mas o desenvolvimento científico do último século mostrou que o universo nem
sempre se adapta às nossas expectativas, como a seguir veremos.
Apetece-me lembrar que já Mestre Eckhart (séc XIII) na posse de visões da
realidade vindas das suas meditações observou a dissolução das distinções entre
causas e efeitos. Destes insights resultaram afirmações aparentemente
paradoxais como: “O olho com que Deus me vê é o olho com que eu vejo Deus”.
Mas estas visões não afectaram o paradigma causal cientifico, que só no início
do século XX começou a ser alargado por físicos como Einstein e Heisenberg,
que demonstraram que a posição do observador e o próprio acto de observar
alteram a percepção das causas e dos efeitos.
TEORIA GERAL DOS SISTEMAS
No século XX começou a tornar-se evidente que o conceito linear de causalidade
pode ser adequado para problemas com duas variáveis, mas não funciona para
sistemas mais complexos.
O desenvolvimento da cibernética, na segunda Grande Guerra, para o fabrico de
mísseis auto-guiados para defesa aérea, levou à criação de sistemas de
elementos em interacção mútua. O processo chamado de “feedback”, pelo qual
os mísseis conseguiam auto-corrigir a sua trajectória, levou à compreensão de
como os sistemas biológicos conseguem por si sós sobreviver e organizar-se
naturalmente.
Assim os cientistas começaram a falar de causalidade cíclica, causalidade
recíproca e mútua e indeterminação. Nas ciências naturais tornou-se evidente
que os modelos anteriores de causalidade em que o universo funciona como um
relógio (Laplace), ou como um sistema aleatório e incoerente, não conseguem
explicar o observável. Também nas ciências sociais se abandonou o modelo
linear behaviorista de estímulo-resposta, bem como o diagnóstico baseado em
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“causas” isoladas, que levava a programas sociais que não tinham em conta a
interdependência mútua entre escolas, emprego, habitação e saúde.
Como veremos mais à frente, os actuais desenvolvimentos dos estudos
biológicos já apontam para a necessidade de entendimento dos organismos
vivos com base em sistemas causais que ultrapassam a Teoria Geral dos
Sistemas. O progressivo entendimento dos princípios da física quântica leva ao
reconhecimento de que um ser vivo é tão “divinamente complexo e coerente”
que temos de alargar ainda mais o paradigma para conseguir entendê-lo e tratá-
lo. E aí, de novo, verificaremos que o mais actual entendimento se coaduna com
o mais antigo conhecimento, como se quanto mais avançamos mais antigo é o
ensinamento que recuperamos e (é esse o génio da nossa cultura) tornamos
operacional.
Mas, apesar de vivermos num mundo de permanente partilha de informação, há
sectores da nossa sociedade que ainda estão no paradigma do séc. XIX. A título
de exemplo cito a frequente prescrição médica: “este será para si um remédio
para o resto da sua vida”. Para fazer uma afirmação destas com algum rigor
científico é necessário simplificar a noção de o que é o paciente, até o assimilar a
algo tão inerte e permanente quanto um recipiente feito de excelente aço
inoxidável e contendo água destilada em condições de perfeita esterilidade.